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Carlos Mallorquín
A síntese proposta por nosso autor vai desde o aproveitamento dos instrumentos de
análise correntes na economia ‘ortodoxa’ até preocupações com os elementos
estruturais e a racionalidade no uso dos fatores, mas mantém a fé no mais clássico
que o século XIX legou à ciência social contemporânea: a idéia de otimização no uso
de fatores e a crítica iniciada pelo marxismo à pura racionalidade formal.1
1
“El Desarrollo en Capilla”, em El análisis estructural en economía: Ensayos de América Latina y España, seleção de
J. Molero, Fondo de Cultura Económica, México, 1981.
2
Teoría y política del desarrollo económico, Siglo XXI, México, 1974; primeira edição em português em 1967. O livro
inclui textos da primeira metade dos anos 50. Ver também Desarrollo y subdesarrollo, Editorial Universitaria de
Buenos Aires, Buenos Aires, 1964, primeira edição em português em 1961.
3
O mesmo se pode dizer do esboço de Furtado realizado por Werner Baer. Embora destaque a importância que tinha
para Furtado a crítica e transformação das categorias da análise econômica convencional — e sua irrelevância para a
América Latina —, não deixa de referir as importantes incursões nos campos da análise sóciopolítica. Indiretamente,
avalia de forma negativa sua teorização por ecletismo e heterogeneidade; contudo, tem esperanças de que Furtado algum
dia tente dar maior unidade a seu discurso e “reuna suas idéias sobre o processo de desenvolvimento com um tratamento
mais sistemático”. “Furtado on development: a review essay”, em Journal of Developing Areas, n. 3, 1969.
4
La economía latinoamericana, Siglo XXI, México, 1980; edição brasileira de 1969.
5
Teoría y politica, op. cit., p. 187.
3
6
Teoría y política, op. cit., p. 79.
4
Dessa forma, Furtado põe em evidência que a teorização do crescimento tem de levar
em conta fatores psicológicos ou sociais que incidem no desenvolvimento de uma
comunidade. Considera insuficiente a simples quantificação das variáveis para explicar a
práxis dos agentes produtivos, pois “a previsão econômica tem necessariamente que limitar-
se a estabelecer um campo de possibilidades”. O aproveitamento pelo homem de um
horizonte mais amplo de ação é algo que só a história social pode explicar.
Quando Furtado aborda a delimitação do objeto teórico do estruturalismo utiliza F.
Perroux para destacar o que se deve entender por estrutura:
Mas Furtado vai mais longe em sua exposição teórica. De início critica os modelos
econômicos por serem aistóricos, estáticos e abstratos, o que explica o surgimento de
modelos que introduziram, com resultados modestos, um eixo diacrônico. Em seguida vai
7
Ibid, p. 3, prefácio à edição francesa. Os últimos três itálicos são meus.
8
Ibid, p. 79. Em “Las fuentes del estructuralismo latinoamericano”, Joseph Love (Desarrollo Económico vol. 36, n.
141, 1996) menciona a importância de Perroux como uma das bases para a formulação do que ele entende por
“estruturalismo”.
5
mais longe e afirma que estruturalismo latino-americano nada tem que ver com a escola
estruturalista francesa:
É este portanto o significado primordial dos elementos históricos que devem integrar-
se ao modelo estruturalista de origem latino-americana. Embora a estratégia teórica de
Furtado não abandone totalmente a noção teórica de Perroux, ela adquire um significado
distinto ao ser incorporada ao discurso estruturalista, por meio de sua recomposição
conceitual, introduzindo a história e as especificidades regionais. É o que observamos na
teorização e crítica de Furtado aos modelos “macroeconômicos”.10 Segundo ele, esses
modelos são construções que poderiam se generalizar fora do âmbito para o qual foram
elaborados, sempre que a “matéria-prima” com que foram engendrados esteja marcada pela
9
Ibid, itálicos meus, pp. 80-81. Em seu livro anterior escrevia: “… as peculiaridades das estruturas socio-econômicas
(…) indica [m] a possibilidade de uma generalização do enfoque estruturalista que predomina no pensamento
econômico latino-americano contemporâneo, no sentido de abarcar em uma só explicação teórica não apenas os tipos de
crescimento que se dão na região mas também a persistente elevação do nível geral de preços e a tendência à
estagnação”, Subdesarrollo y estancamiento en América Latina, ed. EUDEBA, Buenos Aires, 1966; edição original de
1964; utilizamos a terceira edição, 1967, p. 59.
10
De forma semelhante, em A economia latino-americana, tanto no “Prefácio” da primeira edição (1969) como no da
segunda (1975), se assinala a importância dos aspectos “institucionais” e da “matriz estrutural” — que são a base da
mesma — para compreender tanto o desenvolvimento como a fonte de todos os seus obstáculos.
6
Pode-se dizer portanto que o discurso estruturalista vai muito mais longe do que os
modelos “dinâmicos” de crescimento. Vemos que Furtado insiste na função transcendental
do “institucional” e do “não-econômico”. Além da compreensão do funcionamento dos
modelos macroeconômicos, é necessário abarcar um saber sobre a “estrutura agrária” a fim
de compreender a “rigidez da oferta” e, ademais, os efeitos que traz consigo o “dualismo
estrutural”. Note-se que essa concepção somente se “aproxima” dos modelos
macroeconômicos dinâmicos do discurso convencional.
11
Teoría y política del desarrollo económico, op. cit., p. 82.
12
Ibid., pp. 81-83.
13
Ibid., itálicos meus, pp. 82-82.
7
Com efeito, sem um conhecimento adequado da estrutura agrária não seria possível
entender a rigidez da oferta de alimentos em certas economias; sem uma análise do
sistema de decisões (cujo controle pode estar em mãos de grupos estrangeiros) não
seria fácil entender a orientação das inovações técnicas; sem a identificação do
dualismo estrutural não seria fácil explicar a tendência à concentração da renda, etc.
Como esses fatores “não-econômicos” — regime de propriedade da terra, controle
das empresas por grupos estrangeiros, existência de uma parte da população “fora” da
economia de mercado — integram a matriz estrutural do modelo com que trabalha o
economista, aqueles que deram ênfase especial ao estudo de tais parâmetros foram
chamados de “estruturalistas”. Em um certo sentido, o trabalho desses economistas
aproxima-se do daqueles outros preocupados em dinamizar os modelos
econômicos.14
Mas Furtado não fica por aí. Descreve também o que supõe ser um dos elementos
genealógicos do “estruturalismo”: o marxismo, de onde diz que extraiu a idéia de
“estruturas”. Esse discurso dá ênfase às “estruturas sociais” que por sua vez descrevem o
“comportamento das variáveis econômicas”.
Não obstante, em relação à “construção” dos modelos, os mesmos são constituídos
quase à maneira de Weber e de seus “tipos ideais”:
14
Teoría y politica del desarrollo económico, op. cit., p. 81.
8
nível de abstração o modelo de mercado não represente nenhuma situação real, ainda
assim o seu valor como instrumento analítico é inegável.15
15
Ibid., p. 80.
9
16
O hoje clássico artigo de Noyola: “El desarrollo económico y la inflación en México y otros países latinoamericanos”
foi publicado em 1956, versão que se encontra em Desequilibrio externo e inflación. Investigación Económica, UNAM,
Faculdade de Economia, México, 1987.
17
Sunkel publica artigo similar dois anos depois, no qual se estabelece nova diferenciação das “pressões básicas” da
noção de inflação desenvolvida por Noyola, assinalando três tipos de pressões: a básica, as inflacionárias circunstanciais
e as acumulativas, o que de fato problematiza a causalidade implícita no esquema de Noyola, fundado originalmente na
10
A apreciação das idéias de Furtado entre 1950 e 1964 deixa ver duas imagens de
Marx: numa delas aparece a teoria do valor-trabalho e do colapso do capitalismo; na outra
aparece o Marx das classes e forças político-sociais, do Estado e da luta política. Esta última
versão, hegemônica na obra de Furtado a partir de 1964, nasce sob a influência dos anos de
experiência teórico-política e de administrador do desenvolvimento brasileiro (1958-1964).20
dicotomia “pressão” e “propagação” das forças inflacionárias. Veja-se O. Sunkel, “La inflación chilena: un enfoque
heterodoxo”, em El Trimestre Económico, vol. XXV, n. 4, 1958.
18
Cf. Carlos Mallorquín, “Un recuento de la deconstrucción del ‘estructuralismo’ latinoamericano”, Estudios
latinoamericanos, n. 2, Nueva Época, jul.-dez. 1994.
19
Pedro Paz, “El enfoque de la dependencia en en desarrollo del pensamiento económico latinoamericano”, em
Economía de América Latina, Cide, México, 1981, n. 6, p. 64.
20
Para uma descrição de suas idéias e atividades por essa época, veja-se Carlos Mallorquín, “Celso Furtado y la
problemática regional: el caso del Nordeste brasileño”, Revista Estudios Sociológicos, El Colegio de Mexico, n. 42,
set.-dez. 1996; assim como La idea del subdesarrollo: el pensamiento de Celso Furtado, op. cit.
11
Que os [dependentistas] consigam ou não, que o uso [do marxismo] tenha sido
mecânico ou não, que se observem evidentes imprecisões conceituais a respeito da
utilização de certas categorias marxistas, já é outro problema (...) Só se destaca o
esforço explícito desses autores para incorporar o pensamento marxista à análise da
dependência.21
21
Pedro Paz, op. cit., pp. 63-64.
22
Ed. Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1956. Esse livro apresenta as idéias do autor pela metade dos
anos 50. Uma análise desse período teórico está em Carlos Mallorquín, La idea del subdesarrollo: el pensamiento de
Celso Furtado, particularmente “La interpretación de la historia económica del Brasil” e “Las ausencias presentes en la
ciencia convencional: tiempo y geografía”, respectivamente capítulos 4 e 5.
23
Um capítulo dessa obra encontra-se em Aníbal Pinto, América latina: una visión estructuralista, UNAM, Faculdade
de Economia, México, 1991
12
24
Cf. Joseph Love, “The Origins of dependency analysis”, Journal of Latin American Studies, vol. 22, 1990, e do
mesmo autor, “Modelling internal colonialismy: History and Prospect”, World Development, vol. 17, n. 6, 1989; W.
Arndt, Economic Development – The History of an Idea, University Chicago Press, Londres, 1987; H. Brookfield,
Interdependent Development, Metheun Co. & Ltd., Londres, 1975; M. Blomstrom e B. Hettne em Development Theory
in Transition, Zed Books Ltd., Londres, 1984; Cristóbal Kay, Latin American Theories of Development and
Underdevelopment, Routledge, Londres, 1989.
25
Arndt escreveu: “O primeiro a traduzir essa interpretação [refere-se à tese de Prebisch centro-periferia] em uma teoria
da ‘dependência’ parece haver sido o economista brasileiro Celso Furtado em seu estudo histórico de Formação
econômica do Brasil (1957 sic)”, Economic Development – The History of an Idea, op. cit., p. 120.
26
FCE, México, 1962, primeira edição em português em 1959.
27
Uma análise dessa obra e desse período encontra-se em Carlos Mallorquín, “Celso Furtado y la problemática regional:
el caso del Nordeste brasileño”, op. cit., e “Celso Furtado: un retrato intelectual”, em Revista Mexicana de Ciencias
Políticas y Sociales, n. 163, UNAM, México, 1996.
28
“The Origins of Dependecy Analysis”, em Journal of Latin American Studies, vol. 22, 1990, nota de pé de página, p.
153. Em obra posterior, Love tem muito cuidado quando fala das “fontes do estruturalismo” e suas possíveis bases
teóricas; menciona alguns economistas europeus posteriores à Segunda Guerra Mundial: “Las fuentes del
estructuralismo latinoamericano”, op. cit.
29
“Formação econômica do Brasil: uma obra-prima do estruturalismo cepalino”, em Revista de economia política, vol.
9, n. 4, 1989.
30
Uma análise detalhada da integração de A economia brasileira em Formação econômica do Brasil encontra-se no
capítulo 4, segunda e terceira seções: Carlos Mallorquín, La idea del subdesarrollo: el pensamiento de Celso Furtado,
op. cit.; recordemos de novo que mais de três quartos do último texto de Furtado foram escritos antes de 1958.
13
como André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Fernando H. Cardoso, Vania Bambirra,
Osvaldo Sunkel, Teotonio dos Santos, entre outros.
Mais próximo de nosso ponto de vista, Cristóbal Kay em Latin American Theories of
Development and Underdevelopment 31 opina que a melhor parte da teorização sobre
estruturalismo feita por Furtado aparece após sua partida da CEPAL em 1958.
Para captar a pertinência das idéias de Furtado necessitamos de uma abordagem
teórica que destaque a importância de certos conceitos e idéias que governaram o seu
discurso. Daí a necessidade de expor sua concepção “estruturalista” da economia. Conforme
vimos, certos autores singularizam determinados textos de Furtado para comprovar seu
“estruturalismo” ou sua “teoria da dependência” ou suas noções de “crescimento” sem
perceber que obras posteriores já não se referem a esses pontos. Este é sentido da crítica das
idéias de Furtado apresentada por Jaime E. Estay Reino em “El neodesarrollismo: Prebisch,
Furtado y Pinto”.32 Ao abordar três obras de Furtado surgidas em contextos diversos, como
seriam Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967), O mito do desenvolvimento
econômico (1974) 33 e Pequena introdução ao desenvolvimento econômico – um enfoque
interdisciplinar (1980) 34, busca uma homogeneidade discursiva que não existe. Não se trata
de uma simples leitura errônea mas de uma leitura “ateórica”, quiçá provocada pelo próprio
Furtado que afirma na obra de 1980 que ela projeta nova luz sobre alguns temas tratados em
Teoria e política...
Se se leva a sério a noção de que o processo de transformação e renovação teórica
deve ser analisado e avaliado a partir dos conceitos e objetos criados pelo próprio processo,
omitindo as apreciações que faça o próprio autor sobre a sua evolução teórica,35 os pontos de
partida das interpretações devem ser fundamentados e têm que ser avaliados.
31
Ed. Routledge, Londres, 1989.
32
Veja-se por exemplo Jaime E. Estay Reino, “El neodesarrollismo: Prebisch, Furtado y Pinto”, em La teoría social
latinoamericana (coord. Ruy Mauro Marini e Márgara Millán), UNAM-Caballito, México, 1995.
33
Siglo XXI, México, 1982; primeira edição em português em 1974.
34
FCE, México, 1983, edição em português de 1980.
35
Anos depois, quando o “estruturalismo” de Furtado vai emergindo como uma especificidade “interdisciplinar”, o
autor acredita que existe certa congruência entre a noção surgida em Pequena introdução ao desenvolvimento e em
Teoria e política: “Não se trata de transformar a análise econômica em algo acessível aos não economistas, num esforço
de divulgação, mas de construir um quadro conceitual que permita apreender a realidade social em suas múltiplas
dimensões. Não se pretende substituir o trabalho que realizam independentemente as diversas disciplinas sociais, mas de
completá-lo e enriquecê-lo”, em “Introdução” de Pequena introdução ao desenvolvimento econômico – um enfoque
interdisciplinar, op. cit., pp. 9-10.
14
36
Talcott Parsons e Neil J. Smelser, Economy and Society; a study in the integration of economic and social theory, ed.
New York Free, 1965.
37
Em El Trimestre Económico, n. 150, México, 1971.