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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de História
Textos e documentos

Evolução da Cidade de Deus


Etienne Gilson

O que é uma cidade, não segundo o sentido material, mas pelo sentido social do termo?
Procurar-se-ia em vão, no mundo que é a Cidade de Deus, uma discussão abstrata e geral do
problema, tal como o consideram os filósofos, quando tentam definir por sua natureza o nexo social.
Por mil voltas e rodeios, Agostinho prossegue na realização de sua obra, de que não é inexato dizer-
se que é uma apologética, mas que o empenha em mais de uma discussão em que a filosofia como
tal é julgada segundo um ponto de vista cristão. Tal é, precisamente, o caso da noção de cidade. Não
a discute nem como filósofo indiferente ao cristianismo, nem como cristão indiferente à filosofia,
mas como cristão que julga a filosofia, e se é preciso, lhe reforma as noções à luz da fé.
Quando fala de uma “cidade” humana, Agostinho pensa, primeiramente, em Roma e em sua
história, tal qual os escritores latinos lha haviam ensinado. Se lhe foi possível refutar a recriminação
dirigida contra a Igreja de ter causado a ruína de Roma, é que, como vimos, Salústio em pessoa,
havia considerado Roma arruinada por seus próprios vícios, bem antes do nascimento de cristo. Ao
levantar a questão acerca do momento de sua história em que Roma mereceu o nome de cidade, foi
ainda, a uma definição pagã de cidade que ele fez apelo. Assim, julgando a sociedade pagã em
nome das normas que ela própria havia estabelecido, ele se inspira em regras que ela mesma não
seria capaz de recusar.
O que parece dominar a concepção pagã de cidade, que é um corpo ao mesmo tempo político e
social, é a noção de justiça. Tal como a concebida por Cícero, por exemplo, toda a sociedade seria
semelhante a concerto musical, em que sons diferentes vindos dos instrumentos e das vozes,
chegariam finalmente ao acorde e à harmonia. O que o músico denomina harmonia, o político
denomina concórdia. A justiça é, pois, a condição preliminar requerida para a existência da cidade.
Quando um historiador afirma que, em certo momento de sua história, Roma perdera toda a justiça,
Agostinho crê poder concluir disto que, apesar de todas as aparências, Roma deixara desde então de
existir. Não basta pois dizer, com Salústio, que a sociedade romana se achava então corrompida; é
ncessário chegar mesmo a dizer, com Cícero, que, como sociedade, ela deixara totalmente de
existir: iam tunc prorsus periisse et mullam omniomo remansisse rempublicam.
Será dizer bastante? Se se relaciona a tese, igualmente defendida por Agostinho, de que Roma

Fonte: GILSON, Étienne. Evolução da cidade de Deus. São Paulo: Editora Herder, 1965.
Tradução: João Camilo de OliveiraTorres
A reprodução para fins educacionais não comerciais é permitida desde que citada a fonte.
republicana prosperara por suas virtudes, parece bem que se poderia admitir a existência de uma
sociedade pagã digna deste nome. Deus, escrevia ele a Marcelino em 412, desejou manifestar a
finalidade sobrenatural das virtudes cristãs, permitindo a Roma antiga prosperar sem elas. Isto
significava o reconhecimento de uma eficácia temporal certa para as virtudes cívicas dos pagãos e
do caráter de uma autêntica sociedade para a própria Roma. Para dizer a verdade, Agostinho
absolutamente nunca p negará. Por razões divinas ou humanas, a antiga Roma era à sua maneira,
uma sociedade. Ela foi melhor administrada pelo antigos Romanos do que por seus sucessores, mas
enfim, pro suo modo, era a uma sociedade. Somente, que no próprio lugar onde o concede,
Agostinho acrescenta que ela não o era e que o provará mais tarde, apoiando-se nas definições de
corpo social que Cícero em pessoa havia proposto. Nunca houvera uma “verdadeira” sociedade
romana, por que a “verdadeira justiça” nunca aí reinara.
Manifestamente estamos aqui às voltas com um problema que não se pode resolver por um
simples sim, ou um simples não. Em certo sentido, houve uma “coisa pública” romana onde,
sobretudo, na época das origens, reinava uma espécie de justiça, geradora de uma espécie de
sociedade. Todavia, pois que esta justiça não era a “verdadeira justiça”, esta sociedade não era uma
verdadeira sociedade. Aqui, cedendo um momento às solicitações da dialética, diremos que nunca
houve sociedade porque não ser uma verdadeira sociedade, é não ser nenhuma. É não ser uma
sociedade de forma alguma.
Tomada a rigor, esta tese significa que não existe e pode existir senão uma única cidade digna
deste nome, aquela que observa a verdadeira justiça, em suma, cujo chefe é Cristo. Deve haver ao
menos uma segunda, que é constituída por todos os homens que não tem Cristo por chefe; mas esta
não é senão resíduo da primeira e não é senão por sua causa que existe. Não haveria cidade da
injustiça, se não houvesse cidade da justiça. Toda sociedade digna deste nome ou é a Cidade de deus
ou se define por sua relação a ela.
Que tal seja a posição absoluta de Agostinho, ninguém o duvidaria e nós teremos em breve mais
de uma prova. Todavia não se poderá duvidar de que as virtudes romanas e a grandeza cívica da
ordem romana não lhe tenham apresentado problemas a respeito dos quais, na melhor das hipóteses
era-lhe necessário acomodar-se, bem ou mal. A ambiguidade da noção de justiça era-lhe a causa,
pois, se a noção de “verdadeira justiça” é clara, aquela de falsa justiça não o é, e como não se sabe
mais então se a justiça de que se fala é ainda uma justiça, não se sabe também se a sociedade que
ela funda é ainda uma sociedade.
É sem dúvida, por isto que, volvendo mais tarde ao exame da questão, Agostinho foi levado a
uma nova definição do nexo social na qual, sem que ela fosse eliminada, a noção de justiça passa a
um segundo plano.

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