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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

ICH – INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

ANDERSON LADISLAU DA ROCHA

“DUAS CIDADES, DOIS REINOS, DOIS GOVERNOS: REFLEXÕES


SOBRE O AMOR TERRESTRE E O AMOR DIVINO EM CIDADE DE
DEUS, DE SANTO AGOSTINHO E POSSÍVEIS APLICAÇÕES À
RECENTE POLARIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA”

Trabalho apresentado ao programa de Especialização em


Ciência da Religião, da disciplina Questões de Filosofia e
Fenomenologia da Religião, ministrada pelo prof. Dr.
Humberto Quaglio, da Universidade Federal de Juiz de
Fora.

Juiz de Fora
2023
O presente trabalho tem como objetivo apresentar reflexões baseadas no capítulo
XXVIII, do Livro Décimo Quarto da obra de Santo Agostinho, Cidade de Deus. Tais reflexões
visam abordar as recentes polarizações no cenário político brasileiro presentes na eleição do
ano de 2022, em que dois governos cujas políticas são diametralmente opostas e cujos valores
são visíveis a partir de ações programáticas apresentadas por cada governo, haja vista que
ambos os candidatos assumiram a cadeira do Executivo e deixaram legados em seus períodos
de governabilidade. Por esta razão, é possível associá-los às cidades terrena e celestial dos
amores de si mesmo e do amor de Deus, respectivamente.

Embora o capítulo em questão trate de dois amores, quais sejam o amor de si mesmo,
aquele que representa a cidade terrena; e o amor de Deus, que representa a cidade celestial,
supomos que por meio dos elementos que estão associados a tais amores, seja possível fazermos
uma comparação do último governo com o governo vencedor da última eleição em que cada
um representa (ou pode representar) uma cidade que, neste caso faz-se uma aplicação teológica
e contextualizada das cidades contidas nos textos sagrados: a cidade da Babilônia e a cidade de
Jerusalém. Para uma maior aproximação destas associações, nos apropriamos do texto de
Antônio Henrique C. Martins, em que o autor nos traz a seguinte argumentação:

“Devemos conhecer a Babilônia, na qual nos tornamos cativos, e a Jerusalém,


para a qual nos voltamos e almejamos chegar. As duas são “cidades” no sentido real
do termo. Em outras palavras, se verdadeiramente o são, cidades reais e opostas, deve-
se determinar o que as distingue e as especifica. Babilônia é o lugar do nosso cativeiro,
é o presídio; Jerusalém é a nossa pátria, o lugar da liberdade, da vida feliz.” 1

Com esta associação, nossa proposta fica mais clara quando extraímos de cada uma
destas cidades as suas características em que, a primeira cidade, Babilônia, identifica-se com a
cidade terrena pelo amor de si mesma, que despreza Deus. A Babilônia busca a sua própria
glória, “...os príncipes e as nações que ele subjuga são governados pelo amor de governar” 2,
buscam seus lucros para seus próprios corpos e interesses, são ingratos a Deus, sábios em si
mesmos, soberbos e orgulhosos e “... seguidores do povo em imagens de adoração, ...”. 3 O
governo que, nos últimos quatro anos, mostrou certa familiaridade com a cidade terrena,

1
Revista Ética e Filosofia Política – Nº 14 – Volume 1 – Julho de 2011. Disponível em
<http://hdl.handle.net/20.500.12424/234421>
2
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Parte II. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso, 2019, p.204.
3
Ibidem, p.204.
mostrou claramente a sua falibilidade e, mais do que isto, a intencionalidade dos seus atos de
extremismo demonstrando sua indiferença à dor e sofrimento de um povo marcado pela sua
história de opressão e sujeição às autoridades que buscavam perpetuar-se no poder, afastando-
se cada vez mais de uma realidade angustiante dos que padeciam de fome e miséria.

Portanto, o governo perdedor cujos adjetivos descritos acima retratam bem a cidade a
qual pertence, também remonta a outra cidade, a romana, que se deparou com o próprio mal
que cometera ao longo do seu reinado e se viu desmoralizada com o ataque sofrido pelos seus
invasores, vindo a sucumbir diante da sua autossuficiência e idolatria do próprio ego. A “libido
do domínio”4, deduz-se, é a maior expressão da decadência do império romano embora tenha
conseguido expandir-se territorialmente e se tornado o maior império por muito tempo. Da
mesma forma, um governo opressor que, assim como o império romano que desejava expandir
o seu domínio pelo poder opressor sobre os outros povos, desejou expandir suas fortunas por
meio de mecanismos fraudulentos e alimentando o caos, causando medo à população,
inevitavelmente também sucumbiria não às investidas dos seus “invasores”, mas à sua própria
incompetência e por ter subestimado um povo capaz de reconhecer o estado real de precariedade
que encontravam as suas vidas. Este povo, diferentemente dos invasores do império romano,
são donos da própria terra que sofria em função de uma política entreguista que se submetia aos
poderes imperialistas, decidiu o seu futuro democraticamente nas urnas, retirando da
presidência aquele que representava a cidade terrena que, assim como Roma, confundiu a
transitoriedade do seu poder à imutabilidade eterna.

A segunda cidade, a Jerusalém, é a cidade celestial formada pelo amor de Deus, até o
desprezo de si mesmo. 5 Sua maior glória está em Deus e “... é o que levanta a sua cabeça”
(p.204). Os componentes da cidade, os príncipes e súditos, servem-se em amor, sendo
obedientes e servindo-se entre si. A cidade celestial é desprovida de sabedoria humana, mas
abastecida pela piedade cuja adoração é oferecida ao Deus verdadeiro e único, sendo Ele tudo
em todos e em tudo.

Os valores da cidade celestial se contrapõem aos valores da cidade terrena. O senso


comunitário presente na cidade celestial converge com a carta paulina aos Romanos:
“Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a

4
Segundo o texto Amizade, Amor e Paz na obra De Civitate Dei, do subtítulo Jerusalém e Babilônia, as práticas
pagãs que faziam reverência às expansões e conquistas dos outros povos, fizeram com que Roma confundisse a
sua glória que era finita, transitória, com a imutabilidade da eternidade, causando o seu declínio.
5
Ibidem, p. 204.
vocês.” (Rm. 12:10). O medo do opressor já não existe mais, a esperança é um componente
presente no cotidiano embora as lutas e dificuldades permaneçam, porém, agora, há um olhar
no horizonte. Em I João 4:18-216, encontramos este horizonte cujo valor eterno que dá origem
à Jerusalém, o amor, repele todo e qualquer medo: “o amor lança fora o medo” 7.

No Livro XIX, no capítulo XIV, é possível observar duas formas de paz: a terrena e a
eterna. Essas duas formas de paz devem alcançar as dimensões tanto da alma quanto do corpo.
A dimensão do corpo está ligada às coisas terrenas que devem satisfazer as questões do corpo
como, por exemplo o apetite e a abundância de prazeres. Contudo, tais apetites e prazeres só
atendem ao corpo e, uma vez atendido, ele contribui para a paz da alma, caso contrário, torna-
se um obstáculo para a completude da alma e do corpo, chamadas “a paz da vida harmoniosa e
da saúde” (p.479).

Tanto a paz da vida harmoniosa e da saúde devem fazer parte de qualquer planejamento
ou programa político governamental quando o governo tem uma relação direta com o sentido
coletivo de salvação e santificação do seu povo. Tanto a Babilônia quanto a Jerusalém desejam
a plenitude da paz, entretanto a paz da cidade celestial não se limite somente às satisfações dos
prazeres e necessidades terrenas, mas tais prazeres e necessidades enquanto o ser humano
formado por corpo e alma, encontram o equilíbrio e realização plena como pessoa terrena, mas
também como pessoa com relação direta com a cidade celestial, que é pautada no amor a Deus,
a si mesmo e ao próximo. Neste sentido, o bem-estar social enquanto parte desta paz terrena,
torna-se um fator essencial como parte de uma ordenança divina, em que o cidadão celestial
tem a oportunidade e privilégio de proporcionar os cuidados necessários à sua família e,
sobretudo, aqueles que governam devem exercer suas funções por amor a misericórdia e sem
qualquer paixão à sua autoridade e seu poder.

Logo, um governo que possui preceitos de uma cidade como a Jerusalém, é um governo
que combate a desigualdade e prioriza a defesa dos ecossistemas, dos povos indígenas,
quilombolas, que prioriza e investe numa educação de qualidade para todas e todos, que investe
na igualde de gênero e racial, que combate o preconceito às comunidades LGBTQIAPN+, que
valoriza os movimentos que cultivam alimentos saudáveis, portanto, sem agrotóxico ou
qualquer componente químico prejudicial à saúde. Um governo que ama o seu povo e quer
servi-lo, defende projetos que visam a reforma agrária e habitação, que concede fomente às

6
Bíblia de Jerusalém.
7
Ibidem, I João 4:18.
iniciativas acadêmicas e científicas, que combate movimentos terraplanistas, anticientífico e
antiacademicista, que valoriza a classe trabalhadora garantindo seus direitos e valorizando sua
força de trabalho com reajustes do salário-mínimo acima da inflação.

Na conclusão do texto Amizade, Amor e Paz, a autora/autor cita Agostinho que nos traz
uma releitura realista em busca pela construção da Sua cidade:

“Em suma, Agostinho nos mostra que não há caminho sem desafios, sem
conflitos, sem decepções, sem fracassos. É precisamente no tempo realizado e vivido
que se dá a salvação, a graça. A proposta de Deus e a nossa resposta pela construção
da sua cidade. É assim que a história, cheia de debilidades, de fraquezas, de quedas,
repleta das misérias de cada indivíduo e de cada geração, se transforma no reino de
amor e de paz que Deus quer para o seu povo. O que se tem, desse modo, é uma
demonstração da consonância entre a horizontalidade e a verticalidade do amor que
tanto nos impede à vida social, à coletividade, aos semelhantes, quanto instaura uma
abertura para a transcendência. Com isso, entende-se a impossibilidade de se
desvincular, na obra de civitate dei, a dimensão salvífica da dimensão social, a vida
individual da vida coletiva, o peregrino do povo de Deus, o amor a si do amor ao
próximo. Eis o sentido maior de sua teologia da história ” 8

O amor, pois, de Deus, é o instrumento necessário para que tenhamos genuinamente


uma cidade com valores eternos e celestiais, uma nação que viva tão somente da dependência
da provisão divina capaz de nos proporcionar a verdadeira paz, ainda que que tenhamos que
enfrentar e resistir às forças oriundas da libido do domínio.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Parte II. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso, 2019.
BÍBLIA, N.T. I João 4, Romanos 12. In BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: Antigo
e Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2012.
Revista Ética e Filosofia Política – Nº 14 – Volume 1 – Julho de 2011. Disponível em
<http://hdl.handle.net/20.500.12424/234421>
El conflito político: orden, amistad y enemistad em el pensamento clássico y
contemporâneo / Daniel Inojora Bravo ... [et al.]; complación de Daniel Inojosa Bravo;
Marcos Ruffa – 1ª ed. – San Juan : Editora UNSJ, 2021.

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El conflito político: orden, amistad y enemistad em el pensamento clássico y contemporâneo / Daniel
Inojora Bravo ... [et al.]; complación de Daniel Inojosa Bravo; Marcos Ruffa – 1ª ed. – San Juan : Editora
UNSJ, 2021.

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