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O IMAGINÁRIO RELIGIOSO NA FIGURA DE THEODOR AMSTAD S. J.1

Alba Cristina Couto dos Santos**


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
accristinasantos925@gmail.com

Resumo: Este trabalho se propõe a identificar e a analisar a construção de um imaginário sociocultural e religioso
da Igreja do sul do país, sobretudo, da Igreja da Imigração que atuou em importantes eventos sociais e motivou
um processo constante de diferenciação religiosa, étnica e cultural no estado, principalmente na região do Vale dos
Sinos e do Vale do Caí. A disputa pelo domínio do imaginário social acontece na desvalorização do adversário,
por um lado, e na exaltação das causas a serem defendidas através de representações engrandecedoras, por outro
(BASKO, 1985). Neste sentido, podemos perceber que a importância inegável dos valores deixados por Theodor
Amstad é constantemente reafirmada desde sua morte em 1938. Agregam-se símbolos de representação, devoção e
supervalorização das práticas sociais atribuídas a ele e à ordem religiosa a qual pertencia.

Palavras-chave: Imaginário. Religiosidade. Theodor Amstad.

Introdução

Baseados em reflexões acerca do envolvimento da Igreja Católica na vida política


e social dos brasileiros, neste caso, no estado do Rio Grande do Sul. Já na monografia2
realizada em 2009 intitulada, “O Estado e a Igreja na construção de uma cultura
cooperativa”, discutimos e analisamos as intervenções da Igreja, não somente no âmbito
religioso como também no meio sociocultural da população brasileira, sobretudo na zona
rural rio-grandense. A partir deste estudo, percebemos uma importância dada às ações da
Igreja a partir do século XX no imaginário dos católicos, especialmente nos católicos da
região de imigração gaúcha.
Isto é facilmente explicável pelo envolvimento que a Igreja teve com fiéis nos finais
do século XIX, inicio do XX, estreitando relações com seu povo. As novas correntes de
pensamento social, no final da primeira metade do século XIX, Liberalismo e Socialismo,
apontaram desafios tanto para o Estado quanto para a Igreja. Estas novas concepções
aceleraram o fim da cristandade na qual os poderes civil e eclesiástico andavam juntos.

1  ∗ Texto integrante da pesquisa que está sendo realizada para a dissertação de mestrado.
** Estudante de Mestrado em História das Sociedades Ibero Americana, CNPq.
2  Este trabalho é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciado em História pelo Curso de História da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. São Leopoldo, 2009.
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Assim, Estado e Igreja separaram-se, e procuraram novas estratégias de ação – o Estado


garantindo o bem estar material do cidadão e a Igreja garantindo o bem-estar espiritual
dos fiéis.
Para a Igreja, este desafio foi firmado com a convocação do Concílio Vaticano I, sob
a orientação do papa Pio IX. Os padres conciliares tomaram como referência o Concilio
de Trento, reafirmando as linhas doutrinárias e as diretrizes disciplinares. A Restauração
Católica3 baseia-se na volta do catolicismo tridentino, conduzido sob a autoridade direta
do pontífice em Roma, o movimento ultramontano.
O projeto da Restauração tomou forma, atingindo a todos através dos documentos
papais. O primeiro grande documento da Igreja demonstrando preocupação com o mundo
exterior foi promulgado em 15 de maio de 1891. Teve como referencial a Doutrina
Social Cristã, que se consolidou na chamada Rerum Novarum, do papa Leão XIII. Este
documento chamou atenção para questão social, denunciando assim a precariedade da
vida operária, e apontando a garantia de direitos sociais através do Estado.
Neste sentido, queremos levantar e discutir algumas questões que julgamos
necessárias a fim de nos aproximar da temática, e, quem sabe, compreender um pouco
mais deste universo do imaginário religioso que se constrói a partir de uma pessoa, de
um grupo social, imagem ou objeto. Muitos estudiosos sobre o tema afirmam que a
Igreja do Sul do país possui características próprias, em grande medida por conta do
número expressivo de imigrantes europeus, os quais trouxeram em suas bagagens ideais,
conhecimentos e cultura diversa.
Identificamos que a Igreja da Imigração4 atuou em importantes funções sociais e
econômicas, sobretudo no Vale do Caí, região que dá origem à maioria das ações futuras.
O trabalho social desta Igreja motivou também um processo constante de diferenciação
religiosa, étnica e cultural no estado, através de fomentos simbólicos e ênfases nas ações
realizadas.
Em linhas gerais, não podemos esquecer que a Igreja latino-americana sempre
manteve relações mais estreitas com os estados ibéricos do que com o próprio papado.
No período colonial do país, gestou-se uma Igreja no sistema Padroado Régio. Neste
sistema, reis, soldados, missionários eram cristãos sem distinção de poder entre Igreja e
Estado. Na verdade, o rei era autoridade máxima, “enquanto que Roma se limitava de fato
a ratificar os atos dos detentores do poder civil como religioso” (RAMBO, 2002, p. 58).
Com a primeira imigração de açorianos5 para o Rio Grande do Sul, a partir de
3  A Restauração Católica nada mais significa do que reforma da Igreja nas bases doutrinárias e discipli-
nares que as circunstâncias dos tempos impuseram, e que finalmente foram formuladas nos documentos do
Concilio vaticano I (RAMBO, 1998, p. 148).
4  Termo utilizado em Rambo, 2002.
5  Aqui Dreher discute a influência desta imigração e a característica de forte militar que esta teve para a
cidade de Rio Grande, por conta da disputa entre Portugal e Espanha pela Colônia do Sacramento (2002,
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1735, destaca-se a pompa das festas religiosas, e sem dúvidas a maior era a Festa do
Divino Espírito Santo. Esta festa envolvia toda a vida religiosa dos açorianos, “as bênçãos
trazidas pela Bandeira do Divino eram indispensáveis para o bom sucesso da vida familiar
e para a produção dos campos e rebanhos” (DREHER, 2002, p. 19).
Dreher nos fala ainda sobre a Igreja que foi se configurando no Brasil Meridional.
Ele denomina de um “cristianismo devocional”, o que seria um cristianismo leigo, que foi
se construindo e se propagando com muita reza, rosários, ladainhas, novenas, abarcando
importantes segmentos da população brasileira. “Este cristianismo leigo quase dá origem
ao provérbio: muita reza pouco padre, muito terço pouca missa“ (DREHER, 2002, p.
19). Este foi o modelo de Igreja que os imigrantes do século XIX e XX encontraram,
em especial nos estados do Sul, iniciando com a imigração alemã, em 1824. “Em poucas
palavras, os imigrantes católicos encontraram uma Igreja sujeita, submissa e dependente
dos caprichos dos governantes e administradores civis, na qual a doutrina e os bons
costumes, pouco ou nada decidiam” (RAMBO, 2002, p. 58).
Os quilômetros que separavam os bispos os impediam de exercer o mínimo de
assistência aos padres e à população. As práticas de culto, cerimônias respondiam muito
mais aos caprichos dos patrocinadores do que às exigências do culto sagrado. Ou seja,
“encontraram uma Igreja que exibia os defeitos, os vícios e as distorções que o regime do
padroado terminou por imprimir nela” (ibid, p. 59).
Para Dreher (2002), os imigrantes alteraram profundamente o rosto da religião no
país. Falando especificamente dos católicos, aqueles de origem da Suíça, da Baviera, do
Palatinado, Vêneto Tirol, da Polônia estavam longe de se reconhecerem como pertencentes
do mesmo catolicismo encontrado no Brasil. Arthur Rambo (2002) diz que os imigrantes
encontraram uma mentalidade de Igreja que se esgotava em rituais e manifestações do
profano, sem vida sacramental, portanto iriam combater a esta com a Igreja da Restauração
Católica6, e os protestantes com a Igreja da Reforma.
Além de colocar em prática o projeto de Restauração a Igreja teria que rever e
reaprender a lidar com os conflitos entre fazendeiros e agricultores. Isto porque no período
de escravidão a religião era por questão de tutela, ou seja, a catequese e o batismo eram
confiados ao senhor dos escravos. Já com o imigrante havia uma resistência em relação
a esta tutela. Em razão da imigração e das novas condições políticas, a Igreja teve que
selecionar novos caminhos de atuação.

p. 18).
6  Como já citado acima, esse projeto tinha como pontos centrais: a retomada da doutrina formulada pelo
Concílio de Trento; a obediência à autoridade do romano pontífice e dos bispos; a distância e a rejeição à
ingerência do Estado e das autoridades leigas na vida e nos assuntos da Igreja (RAMBO, 2002, p. 60).
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A ação pastoral e social da Igreja da imigração com a participação dos


jesuítas: Theodor Amstad

A partir da década de 1840, chegam os primeiros jesuítas ao sul do país,


reconquistando novos fiéis e reassumindo as missões populares, após a supressão da
ordem, na segunda metade do século XVIII e a expulsão das colônias latino-americanas.
O governo brasileiro permitia aos colonos terem seus próprios curas de almas, vedando,
porém, aos estrangeiros o recebimento de subsídios do governo.7 Os padres, então,
renunciaram aos subsídios, e chegaram oficialmente no Rio Grande do Sul em 1842. Seus
primeiros trabalhos foram em Pelotas, e depois em Porto Alegre.
Embora estes primeiros sacerdotes fossem espanhóis e falassem um “portunhol”,
vieram auxiliar os imigrantes alemães na sua fé cristã, pregando missões populares,
também nas colônias, entre 1844 e 1845. Mas ainda tinham o obstáculo da comunicação
verbal para de fato concretizarem o trabalho apostólico. A língua, neste momento, tornava-
se uma barreira da aprendizagem doutrinária. Percebendo-se a necessidade de padres
que falassem o mesmo idioma dos colonos foi solicitado pelo superior dos jesuítas na
América Latina, padre Morey, ao superior da Ordem em Roma, a presença de sacerdotes
permanentes nas colônias. A resposta à solicitação foi a chegada de três jesuítas de fala
alemã, em 1849. A partir desta data, foram desembarcando nas colônias um número cada
vez maior de jesuítas procedentes da Alemanha, Áustria e Suíça.
Mas a presença jesuítica tornou-se significativa mesmo após a expulsão da Ordem
da Alemanha por Bismark, por conta do Kulturkampf.8 Com isso, muitas das lideranças
católicas vieram para o Brasil, contribuindo para a elevação cultural e religiosa dos
colonos e da região.
Segundo Rambo, estes sacerdotes estimulavam o fervor religioso, a vida sacramental
e a fidelidade religiosa. A Igreja dos imigrantes caracterizou-se pelo envolvimento na vida
do povo, incentivando a educação, o bem estar material como um pressuposto para vida
espiritual saudável. Envolveram-se e concentraram maior atenção em assistência social e
na liderança em projetos que visavam à promoção da vida humana.
Durante a implantação do projeto de Restauração, os jesuítas atuaram nas
comunidades com expressivo afinco e inovação das estratégias de captação dos fiéis.
A presença desta ordem no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina foi fundamental
para ampliação e difusão do projeto de Restauração da Igreja junto à implantação do
bispo arquidiocesano, um novo sistema para o clero e a comunidade católica geral.
Esta organização coesa e comprometida com o projeto de Restauração caracterizou um

7  Para saber mais da chegada dos jesuítas e a evolução de suas práticas, ver: RAMBO, 2011.
8  Movimento racional e anticlerical que pretendia inibir as ações da igreja católica que ameaçava a hege-
monia e a unidade política. Saber mais em: SCHALLENBERGER, 2012, p. 23.
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catolicismo intenso, nas áreas de colonização alemã. “A idéia norteadora era que todos os
aspectos da vida e, de forma muito especial, as relações sociais deviam ser regidas pelos
princípios católicos” (WERLE, 2004, p. 124). Desta forma, as práticas destes religiosos
estavam mais direcionadas à vida social, econômica e cultural da comunidade.
Os jesuítas criaram estratégias de motivação, a fim de cativar os fiéis e conquistar
novos membros para Igreja, através de exemplos de vida sacramental. Para tanto, os meios
utilizados foram os mais diversos, na tentativa também de uma aproximação mais casual.
Lúcio Kreutz (1998, p. 151-154) cita três exemplos básicos para a difusão do projeto de
Restauração, a citar: o associativismo, a imprensa, a escola e o professor paroquial.
Estes segmentos foram imprescindíveis para o estimulo da vida cristã na
comunidade, os padres atuavam como lideres, deixando leigos participarem ativamente
nas diretorias paroquiais e dos grupos de oração, que foram criados até mesmo para as
crianças em torno da devoção ao Menino Jesus. O padre, agora, exercia efetivamente
seu papel de pároco com o objetivo de zelar pela vida sacramental dos seus fiéis. Para as
mulheres, tanto as casadas quanto as viúvas, era dedicado a devoção ao Coração Jesus,
que tinha seu ponto alto no mês de junho, no qual acontecia uma festa de culminância em
louvor ao Sagrado Coração.
Foi neste contexto que outro jesuíta suíço chegou ao Brasil em 1885, Theodor
Amstad, e foi direcionado para o Rio Grande do Sul, na última turma missionária enviada
da Europa, com mais quatro companheiros.
Amstad teve a idéia junto a outros líderes coloniais e religiosos de reunir os
agricultores durante um congresso que chamavam de Katholikentag, Congresso Católico9,
a fim de unir cada vez mais a classe dos agricultores que se apresentava dispersa,
marginalizada e esquecida pelas autoridades governamentais. Os Katholikentage já eram
amplamente realizados na Alemanha, desde a década de 1850. A primeira edição no Rio
Grande do Sul foi em 1897, em Bom Jardim, hoje o município de Ivoti. Mas foi no
congresso realizado em Santa Catarina de Feliz, no ano de 1899, que aconteceu a fundação
da Associação Rio-grandense dos Agricultores. Um projeto amplo, que vinha ao encontro
dos anseios econômicos da comunidade, proposto por Amstad, em sua conferência. Era
uma proposta interconfessional, interétnica e intercultural.
A fundação da Associação Rio-Grandense de Agricultores, oficializada em 1902,
em São José do Hortênsio, fomentou a organização dos agricultores no associativismo,
pelo momento difícil em que a colônia passava. Criou-se o órgão oficial da Associação, o
Bauernfreund, “O amigo do agricultor”. Um veículo de comunicação entre a associação
e os colonos, com o formato de jornal, tinha como principio informar os colonos de tudo

9  Os Congressos Católicos surgiram para arregimentar os católicos em torno do Projeto de Restauração.


Para mais informações: Werle, 2004.
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aquilo que lhes interessava nas questões econômicas, políticas, sociais, educacionais e
culturais. “Ao Bauernfreund foi confiada também a tarefa de formar uma nova mentalidade
entre os colonos” (RAMBO, 2000, p. 9). Esta publicação foi redigida por Amstad, até
1912.
Amstad foi o fundador do sistema Raiffeisen, caixas rurais de crédito, no estado do
Rio Grande do Sul, e o pioneiro no país, hoje conhecido como Sicredi. Comprometeu-se
com a região de colonização alemã, através da Associação Rio-Grandense de Agricultores,
levando esta associação adiante, com a colaboração de uma direção leiga. Tinha como
finalidade facilitar a solução dos problemas financeiros, sociais, culturais e religiosos dos
colonos.
Amstad viveu 53 anos no país. Recebeu o nome Colonorum Pater, “Pai dos
Colonos”, por incentivar e fazer florescer o associativismo, atuando incansavelmente na
promoção da sociabilidade, na zona alemã. Redigiu durante 22 anos duas publicações:
Sankt Paulusblatt e Familienfreund. Através destas publicações, procurou manter uma
mentalidade cooperativista e associativista na comunidade e nos associados, além de
orientar uma vida regida pelos mandamentos e sacramentos.
O próprio almanaque publicado anualmente e periodicamente, Familienfreud
Kalender (O Amigo da Família), visava à formação religiosa e cultural, enquanto a revista
mensal Sankt Paulusblatt trazia informações de novas técnicas agrícolas, cuidados com
a saúde, reflorestamentos, entre outros assuntos. Estas publicações surgiram em outro
momento da história de Amstad junto aos agricultores, na criação da Sociedade União
Popular, em 1912, tomando o lugar da Associação Rio-Grandense de Agricultores. A
Sociedade União Popular foi criada com fins estritamente confessionais, engajando-se
ainda mais no projeto católico, abrangendo a promoção humana. As publicações tinham
como objetivo aumentar o nível cultural dos teuto-católicos.
Mesmo esta exposição breve evidencia perceber a grande participação e
contribuição do padre Theodor Amstad em relação a cultura teuto-católica e a promoção
da religiosidade, educação e progresso econômico-social entre os colonos. Ele era
filho de comerciante de produtos coloniais, e por isso estava atento às dificuldades que
envolviam a colônia, naquela época. Além disso, o momento vivenciado na Europa era de
transformações sociais, civis e religiosas. Suas ações iam ao encontro da doutrina social
católica. De certa forma, alguns estudiosos afirmam que o social-catolicismo alemão10 foi
o precursor da doutrina social da Igreja, com a preocupação dos problemas sociais, já no
inicio do século XIX. Desde então procurava organizar os trabalhadores em associações
e corporações para aglutinar forçar e abrir frentes de trabalho (SCHALLENBERGER,
2012, p. 27).
10  Para saber mais sobre o catolicismo e o associativismo cristão na Alemanha ver: SCHALLENBER-
GER, 2012; RAMBO, 2011.
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Theodor Amstad morreu em 1938, aos oitenta e seis anos de idade. Continuou
trabalhando e colaborando com seus conhecimentos até quando pode, principalmente
na intelectualidade, depois de um acidente ocorrido com sua mula o impossibilitou de
grandes viagens, e aos poucos foi limitando seu andar pelas colônias. Deixou algumas
obras escritas em alemão, inclusive suas Lembranças da vida, que foram publicadas em
1940 pela Sociedade União Popular.

O imaginário religioso a partir de Amstad

Muito se discute hoje sobre a memória e a subjetividade na historiografia, temas


que vem desafiando ainda mais o trabalho do historiador e a sua interpretação sobre
os fatos históricos. Dentre os estudos realizados sobre a temática, destacamos que o
imaginário faz parte das representações que temos dos objetos sociais que nos cercam.
Partindo da premissa de que toda a realidade é interpretada, a partir das ideias, dos signos
e conhecimentos prévios dos indivíduos, podemos inferir que a realidade percebida possa
ser transfigurada de acordo com os sentidos que se dá a ela (LAPLATINE & TRINDADE,
1997).
Vejamos, “a representação é um conceito-chave da teoria do simbólico, uma vez
que o objeto ausente é re-apresentado à consciência por intermédio de uma ‘imagem’
ou símbolo, isto é algo pertencente à categoria do signo” (FALCON, 2000, p. 46). O
símbolo11 embora não seja a reprodução, mas a representação do objeto, ultrapassa o seu
referente por conter estímulos afetivos para mobilizar e fazer os indivíduos agirem sob
sua própria lógica relacional ou de substituição. Assim, os símbolos geram sentidos e
ações sociais.
As instituições sociais, embora não sejam somente simbolismo, podem existir
apenas do simbólico, como é o caso da Igreja. Neste sentido, acrescentaria ainda o
conceito de re-presentificação12, para a presente análise, ou seja, a presença do ausente em
relação com o tempo e o espaço. Desta forma, as re-apresentações estarão em permanente
construção de acordo com as mudanças do presente e as alterações feitas ao passado.
“A re-presentificação é a experiência temporal indissociável da sua espacialidade”
(CATROGA, 2009, p. 21).
O imaginário está carregado de sentimentos e emoções orientadores e poéticos.
“O imaginário, ao libertar-se do real que são as imagens primeiras, pode inventar, fingir,
improvisar, estabelecer correlações entre os objetos da maneira improvável e sintetizar
ou fundir essas imagens” (LAPLATINE & TRINDADE, 1997, p. 27). Desta forma, o

11  Sobre esta discussão de semiótica ver LAPLANTINE L, TRINDADE L. 1997, p. 12-13.
12  Ver mais sobre esta discussão sobre o recordar e o re-presentar em Catroga, 2009.
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domínio deste imaginário pode aumentar a importância dada a um determinado segmento


ou grupo da sociedade, assim como informar acerca da realidade, conformando ou
apelando um determinado comportamento e ações.
A partir da morte de Theodor Amstad, houve um movimento de lembrança
constante do “pai dos colonos”, carregado de carinhosas lembranças. O lançamento do
livro Lembranças da minha vida, em 1940, pela a associação União Popular que ele
fundara, ilustra não apenas o querer lembrar, mas também o não deixar esquecer.
Os jesuítas tinham presença marcante nas comunidades do Vale do Caí, desde a
segunda metade do século XIX, e no Vale do Sinos, nas primeiras décadas do século XX.
O então arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker, nascido na Alemanha e imigrado
quando criança para o Brasil, entregou nas mãos dos jesuítas, a tarefa de formar um
clero afinado com os princípios da Igreja da Restauração. Ele próprio foi educado nesta
tradição, e teria sido aluno de jesuítas. Assim, durante 40 anos, o Seminário Central Nossa
Senhora da Conceição em São Leopoldo imprimiu um perfil definitivo à religiosidade no
estado. Esta formação do clero foi realizada em São Leopoldo, pelos jesuítas, até 1956,
após esta data o seminário foi transferido para a cidade de Viamão, e a formação ficou a
cargo do clero diocesano.
Na década de 1930, surge entre as Congregações Marianas sob a orientação do
Padre Werner von und zur Mühlen, um importante núcleo de estudos filosóficos e teológicos
com sede no Colégio Anchieta, localizado na cidade de Porto Alegre. O resultado deste
grupo foi o surgimento de intelectuais católicos que marcaram presença na vida social de
Porto Alegre, sobretudo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A Congregação Mariana para universitários e formados e a Juventude


Universitária Católica, por exemplo, mudaram o clima laico e em grande parte
anticlerical da Universidade do Rio Grande do Sul. O Dr. Armando Câmara, um
dos expoentes católicos da época, saído das fileiras da Congregação Mariana
dos formados, assumiu, em 1937, a reitoria da universidade. Uma porcentagem
significativa dos professores fundadores da Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras (em 1942) pertencia ao grupo de reflexão do Pe. Werner von und zur
Mühler, na Congregação Mariana dos formados do colégio Anchieta (RAMBO,
1998, p. 154).

Das Congregações Marianas e dos colégios jesuíticos “saíram, em grande parte,
as lideranças católicas que atuaram como agentes de transformação e assim foram
responsáveis pela influência que o catolicismo exerceu na vida civil urbana e na vida
pública do Estado e em âmbito nacional” (RAMBO, 1998, p. 155).
No ano de 1942, foi inaugurado um monumento em homenagem a Theodor Amstad,
na Linha Imperial, localizada na cidade de Nova Petrópolis, hoje capital nacional do
cooperativismo. “As celebrações, comemorações são portadoras de sentido, permitindo
perceber as construções do passado e materializando a memória em espaços eleitos –
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lugares da memória” (NORA, 1984 apud MATOS, 2006, p. 340). No discurso proferido
por Albano Volkmer na ocasião, associado da União Popular, observa-se não somente o
carinho, mas também a gratidão pelo trabalho prestado às comunidades.

A sua memória nos será sempre cara, e nos servirá de exemplo, como tão
grata nos é a oportunidade de mais uma vez poder enaltecer, de público, a
nossa grande admiração, por esse santo sacerdote, pelos Revmo padres da
Companhia de Jesus, a quem muito devem os nossos agricultores, a quem
todos nós devemos, pois foram nossos preceptores e mestres (Volkmer, 1943,
p. 24).

Aos poucos, vão surgindo símbolos e imagens a serem compartilhadas sobre


Theodor Amstad, reavivando sua literatura e sua própria imagem através do monumento.
Este imaginário foi crescendo ainda mais com o fim da Segunda Guerra Mundial e o
afrouxamento das políticas nacionalistas.
Ernesto Seidl (2007) discute sobre a presença de intelectuais religiosos e a mediação
cultural que eles exercem, na segunda metade do século XX. Ele denomina “especialistas
ou intérpretes da história” aqueles indivíduos que acumularam além do poder imbuído
na esfera religiosa, simultaneamente realizavam carreira acadêmica. Desta forma, com o
acúmulo de “autoridade” exerciam um poder legitimo de mediadores culturais socialmente
reconhecidos, através de instrumentos simbólicos como, por exemplo, publicações
próprias, institutos, centros de estudos, cargos, homenagens a editoras, etc.
Na análise feita por Seidl, estes religiosos alemães destacavam em seus discursos: o
triunfo da Igreja da Imigração sobre a igreja luso-brasileira; a reafirmação de uma identidade
jesuítica; o autodidatismo; a recriação de um passado/presente sagaz e triunfante, e a
estratégia de retraçar biografias edificantes para servirem de exemplo no presente/futuro.
Ou seja, o autor identificou uma supervalorização não somente religiosa, mas também
étnica. As interpretações e a recriação do passado feitas por estes intelectuais procuram,
de certa maneira, forjar uma tradição, com as histórias edificantes de seus coirmãos (por
hora talvez até esquecidos), em torno do social e da dimensão religiosa. Para este mesmo
autor, o que está em jogo é um amplo esforço de reconhecimento social de toda uma visão
de mundo “entre outros aspectos, pelas estruturas associativas e comunitárias, o código
de ética e o estilo de vida nas ‘colônias’, pela escola paroquial e a imprensa católica e
pela formação de uma elite ‘cultural’ e política dentro das escolas jesuíticas de renome”
(SEIDL, 2007, p. 92).
Indo ao encontro da análise de Seidl, o imaginário faz parte da representação que
temos de nós mesmos enquanto grupo social e a relação que este tem com as instituições
e outros grupos. A imagem-símbolo faz parte de uma estratégia para o domínio do
imaginário coletivo, é uma forma de exercer poder sobre os demais. A disputa pelo
domínio do imaginário social acontece na desvalorização do adversário, por um lado, e
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na exaltação das causas a serem defendidas através de representações engrandecedoras,


por outro. Nesse sentido, pode-se destacar o mito, o discurso persuasivo e o artifício da
manipulação. Veicular o imaginário social ao mito, argumentar e persuadir os indivíduos
através do discurso, bem como criar dispositivos simbólicos, manipulando toda a espécie
de ilusão e prestigio que se tem da própria imagem, somam meios que assegurariam a
coesão social e a legitimidade do poder estabelecido (BASCKO, 1985).
Usando as palavras de Bascko, os imaginários sociais fazem parte da vida social,
da atividade global dos seus agentes e se constituem de pontos de referência no vasto
sistema de valores simbólicos que qualquer atividade produz.

Ela se percepciona, divide e elabora os seus próprios objetivos. É assim que,


através dos seus imaginários sociais, uma coletividade designa a sua identidade;
elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e
das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie
de código de “bom comportamento”, designadamente através da instalação
de modelos formadores tais como o de “chefe”, o “bom súdito”, o “guerreiro
corajoso”, etc. (MAUSS apud BASCKO, 1985, p. 309).

Foram observados movimentos constantes dos agentes sociais envolvidos em busca


de pontos de referencia no valor simbólico, no caso o próprio Amstad. As rememorações
feitas à figura de Amstad a cada aniversário das cooperativas de crédito ou da associação
União Popular se justificam pelo trabalho desenvolvido nas mesmas sob sua liderança.
Foi um conjunto de atividades, e organização sistemática, que garantiu o sucesso dos
empreendimentos e do Projeto da Restauração Católica nas comunidades, sobretudo nas
regiões citadas, que tiveram como fomento também projetos ligados à economia e ao bem
social como um todo. Além disso, estas rememorações foram alimentadas pelas biografias
escritas por jesuítas, como já citado.
Emiliano Limberger (2003) destaca a dimensão cristã nas ações de Amstad.
Neste sentido, apresenta o movimento pró-beatificação registrado na revista Livro da
Família, reafirmando a importância que teve (e ainda tem) a figura do jesuíta, no estado,
principalmente na vida das comunidades e grupos associativistas e cooperativistas.
Amstad também contribuiu para o Ecumenismo, o Ecologismo – quando ensinava
a plantar uma nova árvore para cada árvore derrubada – e a promoção das mulheres. Já
em 1912, insistia na presença das mulheres na União Popular (Volksverein) e em outras
associações. Além disso, incentivou a “imprensa sadia”, e até hoje circulam publicações
por ele fomentadas. É justamente este legado educacional e de formação humana que
Limberger destaca como “milagres” seus, afirmando estar muito viva e presente a
memória de Amstad entre os gaúchos, devendo, inclusive, serem estes os motivos para o
movimento de beatificação do mesmo. A atualização de alguns destes ideais se ilustravam
no Centro de Educação e Treinamento Cooperativo (CEDTRICOOP), como podemos
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ver na citação de Limberger a seguir. Este Centro funcionava e realizava atividades na


localidade de Nova Petrópolis/RS, baseados nos ensinamentos de Amstad.

O ideal cooperativista de Amstad ainda continua vivo, operando – se até um


salutar resgate de sua autenticidade, baseado justamente em sua ímpar ação
pastoral incluindo aí sua extraordinária plataforma de 1900 (Feliz). Tal acontece
permanentemente no CEDTREICOOP (LIMBERGER, 2003, p. 38).

Valdemar Bösing concorda com Limberger naquilo que tange à religiosidade e ao


merecimento de beatificação.

Se hoje o Rio Grande do Sul é um dos Estados agrícolas mais desenvolvidos


da União e se hoje os agricultores gaúchos levam o progresso a quase todo
o Brasil, deve-se isto em grande parte ao Padre Amstad. Daí o entusiasmo
incipiente do movimento pró-beatificação de tão eminente jesuíta (BÖSING,
2001, p. 115).

Sabemos que a importância social e religiosa das ações realizadas por Theodor
Amstad e seus companheiros são inegáveis. As comemorações, festividades, homenagens
que seguem aí por anos, inclusive em fevereiro deste corrente ano (2012) comemoraram-
se os 100 anos da Sociedade União Popular, hoje conhecida como Associação Amstad.
No entanto, ressaltamos que estas realizações fizeram parte de um projeto maior como
estratégias de ação de uma Igreja que buscava espaço na vida dos fiéis.
O que foi possível perceber também é que nessas regiões o imaginário social
de diferenciação e exaltação mantém o grupo coeso ou reafirma uma identidade. O
imaginário coletivo em torno da figura da Amstad foi se construindo na imagem do bom
homem, o salvador de almas e da fome de coisas materiais oriundas das dificuldades
ligadas à colonização. Embora o dominio do imaginário social se dê na disputa, não se
identificou necessariamente um adversário, porque Theodor Amstad, talvez, nunca tenha
sido esquecido. Mas não podemos deixar de citar que na década de 1960 a Igreja passava
por uma revisão teológica e pastoral, através do Conciclio Vaticano II e da Teologia da
Libertação na América Latina. A busca por uma identidade latina pode ter impulsionando
as lembranças de um líder religioso em várias regiões, inclusive no Rio grande do Sul.
Contudo, o que se identifica de fato é que após a década de 1960, com a pujança
intelectual dos jesuítas como mediadores culturais, aumenta a importância dada a Amstad,
conformando e ordenando um olhar para o passado. “O imaginário social se configura
como um dispositivo de controle da vida coletiva no exercício do poder, através do sistema
simbólico construído a partir das experiências dos agentes sociais, mas também a partir
de seus desejos, aspirações e motivações“ (BASCKO, 1985, p. 311).
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