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Resumo: Este trabalho se propõe a identificar e a analisar a construção de um imaginário sociocultural e religioso
da Igreja do sul do país, sobretudo, da Igreja da Imigração que atuou em importantes eventos sociais e motivou
um processo constante de diferenciação religiosa, étnica e cultural no estado, principalmente na região do Vale dos
Sinos e do Vale do Caí. A disputa pelo domínio do imaginário social acontece na desvalorização do adversário,
por um lado, e na exaltação das causas a serem defendidas através de representações engrandecedoras, por outro
(BASKO, 1985). Neste sentido, podemos perceber que a importância inegável dos valores deixados por Theodor
Amstad é constantemente reafirmada desde sua morte em 1938. Agregam-se símbolos de representação, devoção e
supervalorização das práticas sociais atribuídas a ele e à ordem religiosa a qual pertencia.
Introdução
1 ∗ Texto integrante da pesquisa que está sendo realizada para a dissertação de mestrado.
** Estudante de Mestrado em História das Sociedades Ibero Americana, CNPq.
2 Este trabalho é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciado em História pelo Curso de História da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. São Leopoldo, 2009.
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1735, destaca-se a pompa das festas religiosas, e sem dúvidas a maior era a Festa do
Divino Espírito Santo. Esta festa envolvia toda a vida religiosa dos açorianos, “as bênçãos
trazidas pela Bandeira do Divino eram indispensáveis para o bom sucesso da vida familiar
e para a produção dos campos e rebanhos” (DREHER, 2002, p. 19).
Dreher nos fala ainda sobre a Igreja que foi se configurando no Brasil Meridional.
Ele denomina de um “cristianismo devocional”, o que seria um cristianismo leigo, que foi
se construindo e se propagando com muita reza, rosários, ladainhas, novenas, abarcando
importantes segmentos da população brasileira. “Este cristianismo leigo quase dá origem
ao provérbio: muita reza pouco padre, muito terço pouca missa“ (DREHER, 2002, p.
19). Este foi o modelo de Igreja que os imigrantes do século XIX e XX encontraram,
em especial nos estados do Sul, iniciando com a imigração alemã, em 1824. “Em poucas
palavras, os imigrantes católicos encontraram uma Igreja sujeita, submissa e dependente
dos caprichos dos governantes e administradores civis, na qual a doutrina e os bons
costumes, pouco ou nada decidiam” (RAMBO, 2002, p. 58).
Os quilômetros que separavam os bispos os impediam de exercer o mínimo de
assistência aos padres e à população. As práticas de culto, cerimônias respondiam muito
mais aos caprichos dos patrocinadores do que às exigências do culto sagrado. Ou seja,
“encontraram uma Igreja que exibia os defeitos, os vícios e as distorções que o regime do
padroado terminou por imprimir nela” (ibid, p. 59).
Para Dreher (2002), os imigrantes alteraram profundamente o rosto da religião no
país. Falando especificamente dos católicos, aqueles de origem da Suíça, da Baviera, do
Palatinado, Vêneto Tirol, da Polônia estavam longe de se reconhecerem como pertencentes
do mesmo catolicismo encontrado no Brasil. Arthur Rambo (2002) diz que os imigrantes
encontraram uma mentalidade de Igreja que se esgotava em rituais e manifestações do
profano, sem vida sacramental, portanto iriam combater a esta com a Igreja da Restauração
Católica6, e os protestantes com a Igreja da Reforma.
Além de colocar em prática o projeto de Restauração a Igreja teria que rever e
reaprender a lidar com os conflitos entre fazendeiros e agricultores. Isto porque no período
de escravidão a religião era por questão de tutela, ou seja, a catequese e o batismo eram
confiados ao senhor dos escravos. Já com o imigrante havia uma resistência em relação
a esta tutela. Em razão da imigração e das novas condições políticas, a Igreja teve que
selecionar novos caminhos de atuação.
p. 18).
6 Como já citado acima, esse projeto tinha como pontos centrais: a retomada da doutrina formulada pelo
Concílio de Trento; a obediência à autoridade do romano pontífice e dos bispos; a distância e a rejeição à
ingerência do Estado e das autoridades leigas na vida e nos assuntos da Igreja (RAMBO, 2002, p. 60).
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7 Para saber mais da chegada dos jesuítas e a evolução de suas práticas, ver: RAMBO, 2011.
8 Movimento racional e anticlerical que pretendia inibir as ações da igreja católica que ameaçava a hege-
monia e a unidade política. Saber mais em: SCHALLENBERGER, 2012, p. 23.
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catolicismo intenso, nas áreas de colonização alemã. “A idéia norteadora era que todos os
aspectos da vida e, de forma muito especial, as relações sociais deviam ser regidas pelos
princípios católicos” (WERLE, 2004, p. 124). Desta forma, as práticas destes religiosos
estavam mais direcionadas à vida social, econômica e cultural da comunidade.
Os jesuítas criaram estratégias de motivação, a fim de cativar os fiéis e conquistar
novos membros para Igreja, através de exemplos de vida sacramental. Para tanto, os meios
utilizados foram os mais diversos, na tentativa também de uma aproximação mais casual.
Lúcio Kreutz (1998, p. 151-154) cita três exemplos básicos para a difusão do projeto de
Restauração, a citar: o associativismo, a imprensa, a escola e o professor paroquial.
Estes segmentos foram imprescindíveis para o estimulo da vida cristã na
comunidade, os padres atuavam como lideres, deixando leigos participarem ativamente
nas diretorias paroquiais e dos grupos de oração, que foram criados até mesmo para as
crianças em torno da devoção ao Menino Jesus. O padre, agora, exercia efetivamente
seu papel de pároco com o objetivo de zelar pela vida sacramental dos seus fiéis. Para as
mulheres, tanto as casadas quanto as viúvas, era dedicado a devoção ao Coração Jesus,
que tinha seu ponto alto no mês de junho, no qual acontecia uma festa de culminância em
louvor ao Sagrado Coração.
Foi neste contexto que outro jesuíta suíço chegou ao Brasil em 1885, Theodor
Amstad, e foi direcionado para o Rio Grande do Sul, na última turma missionária enviada
da Europa, com mais quatro companheiros.
Amstad teve a idéia junto a outros líderes coloniais e religiosos de reunir os
agricultores durante um congresso que chamavam de Katholikentag, Congresso Católico9,
a fim de unir cada vez mais a classe dos agricultores que se apresentava dispersa,
marginalizada e esquecida pelas autoridades governamentais. Os Katholikentage já eram
amplamente realizados na Alemanha, desde a década de 1850. A primeira edição no Rio
Grande do Sul foi em 1897, em Bom Jardim, hoje o município de Ivoti. Mas foi no
congresso realizado em Santa Catarina de Feliz, no ano de 1899, que aconteceu a fundação
da Associação Rio-grandense dos Agricultores. Um projeto amplo, que vinha ao encontro
dos anseios econômicos da comunidade, proposto por Amstad, em sua conferência. Era
uma proposta interconfessional, interétnica e intercultural.
A fundação da Associação Rio-Grandense de Agricultores, oficializada em 1902,
em São José do Hortênsio, fomentou a organização dos agricultores no associativismo,
pelo momento difícil em que a colônia passava. Criou-se o órgão oficial da Associação, o
Bauernfreund, “O amigo do agricultor”. Um veículo de comunicação entre a associação
e os colonos, com o formato de jornal, tinha como principio informar os colonos de tudo
aquilo que lhes interessava nas questões econômicas, políticas, sociais, educacionais e
culturais. “Ao Bauernfreund foi confiada também a tarefa de formar uma nova mentalidade
entre os colonos” (RAMBO, 2000, p. 9). Esta publicação foi redigida por Amstad, até
1912.
Amstad foi o fundador do sistema Raiffeisen, caixas rurais de crédito, no estado do
Rio Grande do Sul, e o pioneiro no país, hoje conhecido como Sicredi. Comprometeu-se
com a região de colonização alemã, através da Associação Rio-Grandense de Agricultores,
levando esta associação adiante, com a colaboração de uma direção leiga. Tinha como
finalidade facilitar a solução dos problemas financeiros, sociais, culturais e religiosos dos
colonos.
Amstad viveu 53 anos no país. Recebeu o nome Colonorum Pater, “Pai dos
Colonos”, por incentivar e fazer florescer o associativismo, atuando incansavelmente na
promoção da sociabilidade, na zona alemã. Redigiu durante 22 anos duas publicações:
Sankt Paulusblatt e Familienfreund. Através destas publicações, procurou manter uma
mentalidade cooperativista e associativista na comunidade e nos associados, além de
orientar uma vida regida pelos mandamentos e sacramentos.
O próprio almanaque publicado anualmente e periodicamente, Familienfreud
Kalender (O Amigo da Família), visava à formação religiosa e cultural, enquanto a revista
mensal Sankt Paulusblatt trazia informações de novas técnicas agrícolas, cuidados com
a saúde, reflorestamentos, entre outros assuntos. Estas publicações surgiram em outro
momento da história de Amstad junto aos agricultores, na criação da Sociedade União
Popular, em 1912, tomando o lugar da Associação Rio-Grandense de Agricultores. A
Sociedade União Popular foi criada com fins estritamente confessionais, engajando-se
ainda mais no projeto católico, abrangendo a promoção humana. As publicações tinham
como objetivo aumentar o nível cultural dos teuto-católicos.
Mesmo esta exposição breve evidencia perceber a grande participação e
contribuição do padre Theodor Amstad em relação a cultura teuto-católica e a promoção
da religiosidade, educação e progresso econômico-social entre os colonos. Ele era
filho de comerciante de produtos coloniais, e por isso estava atento às dificuldades que
envolviam a colônia, naquela época. Além disso, o momento vivenciado na Europa era de
transformações sociais, civis e religiosas. Suas ações iam ao encontro da doutrina social
católica. De certa forma, alguns estudiosos afirmam que o social-catolicismo alemão10 foi
o precursor da doutrina social da Igreja, com a preocupação dos problemas sociais, já no
inicio do século XIX. Desde então procurava organizar os trabalhadores em associações
e corporações para aglutinar forçar e abrir frentes de trabalho (SCHALLENBERGER,
2012, p. 27).
10 Para saber mais sobre o catolicismo e o associativismo cristão na Alemanha ver: SCHALLENBER-
GER, 2012; RAMBO, 2011.
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Theodor Amstad morreu em 1938, aos oitenta e seis anos de idade. Continuou
trabalhando e colaborando com seus conhecimentos até quando pode, principalmente
na intelectualidade, depois de um acidente ocorrido com sua mula o impossibilitou de
grandes viagens, e aos poucos foi limitando seu andar pelas colônias. Deixou algumas
obras escritas em alemão, inclusive suas Lembranças da vida, que foram publicadas em
1940 pela Sociedade União Popular.
11 Sobre esta discussão de semiótica ver LAPLANTINE L, TRINDADE L. 1997, p. 12-13.
12 Ver mais sobre esta discussão sobre o recordar e o re-presentar em Catroga, 2009.
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lugares da memória” (NORA, 1984 apud MATOS, 2006, p. 340). No discurso proferido
por Albano Volkmer na ocasião, associado da União Popular, observa-se não somente o
carinho, mas também a gratidão pelo trabalho prestado às comunidades.
A sua memória nos será sempre cara, e nos servirá de exemplo, como tão
grata nos é a oportunidade de mais uma vez poder enaltecer, de público, a
nossa grande admiração, por esse santo sacerdote, pelos Revmo padres da
Companhia de Jesus, a quem muito devem os nossos agricultores, a quem
todos nós devemos, pois foram nossos preceptores e mestres (Volkmer, 1943,
p. 24).
Referências
AZEVEDO, Dermi. A Igreja Católica e seu papel político no Brasil. Estudos Avançados,
São Paulo, vol. 18, n. 52, p. 109-120, 2004.
BÖSING, Ir. Valdemar. Movimento cooperativista poderá ter um santo. In: Livro da
Família. Porto Alegre: Livraria Editora Padre Réus, 2001, p. 112-115.
DREHER, Martin Norberto. Rostos da Igreja no Brasil Meridional. In: In: DREHER,
Martin N. (org.). Populações rio-grandenses e modelos de igreja. Porto Alegre: Edições
EST; São Leopoldo: Sinodal, 1998.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A invenção da Paulistaneidade: de “A cidade que mais
cresce no mundo” a “Um só coração” (São Paulo – 1954 e 2004). In: LOPES, Antonio
Herculano; VELLOSO, Mônica Pimenta; e PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). História
e linguagem: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006,
p. 337 – 349.