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Josefa de Óbidos

e a Invenção do Barroco Português

MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA


15 de maio ~ 6 de setembro de 2015
ÍNDICE

Longos dias têm cem anos. Josefa de Óbidos e o «Barroco português» 9


António Filipe Pimentel

«O Que a Necessidade Applaudia»…


A pintura portuguesa no tempo de Josefa de Óbidos, 1630-1684 13
Vitor Serrão

Josefa de Óbidos: agudeza e engenho num contexto devoto 25


Diogo Ramada Curto

«Um espaço para pintar»: Josefa de Óbidos e a genealogia


de mulheres pintoras europeias dos séculos xvi e xvii 41
Filipa Lowndes Vicente

Josefa de Ayala: um sinuoso percurso de conhecimento 51


Joaquim Oliveira Caetano

I. JOSEFA «EM ÓBIDOS»


Josefa de Ayala (1630-1684): pintora e «donzela emancipada» 61
Joaquim Oliveira Caetano

II. A NATUREZA E A PAISAGEM


Baltazar Gomes Figueira e Josefa de Óbidos:
o início da natureza-morta em Portugal 91
Joaquim Oliveira Caetano

III. SENTIDO E FORMAS DO BARROCO PORTUGUÊS


Que coisa é o «Barroco português»? 109
António Filipe Pimentel

JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS 5


A circulação de modelos na criação do Barroco português 113
Anísio Franco

O Relicário de Alcobaça 123


Maria João Vilhena de Carvalho

IV. EM ESPANHA: O BODEGÓN NO TEMPO DE JOSEFA DE AYALA


Cinco pintores, cinco bodegones 131
José Alberto Seabra Carvalho

V. «EM ÓBIDOS»: MODELOS DO BODEGÓN PORTUGUÊS


Naturezas-mortas da oficina de Óbidos: as peças de um puzzle 139
Joaquim Oliveira Caetano

Objetos cerâmicos na pintura de Josefa de Óbidos 159


Rui André Alves Trindade

VI. TEMPO DE EMANCIPAÇÃO: COMPOSIÇÕES RELIGIOSAS


Duas pinturas de Zurbarán: a Imaculada e o Menino do Espinho 165
José Alberto Seabra Carvalho

Uma pintora de retábulos 167


Joaquim Oliveira Caetano

A Santa Catarina de Frei Cipriano da Cruz 181


Maria João Vilhena de Carvalho

VII. IMAGENS DE INTIMIDADE E DEVOÇÃO


Imagens repetidas. Modelos na pintura de Josefa de Óbidos 187
Joaquim Oliveira Caetano

As joias de Josefa de Ayala e Cabrera 196


Luísa Penalva

VIII. «O CÉU ABERTO NA TERRA»: O ESPAÇO ONÍRICO


DO BARROCO PORTUGUÊS
Construindo a «igreja de ouro»: caráter do Barroco português 203
António Filipe Pimentel
A Série de Santa Teresa do Convento de Nossa Senhora da Piedade, de Cascais 207
Joaquim Oliveira Caetano

Um retábulo disperso na Misericórdia de Peniche 211


Joaquim Oliveira Caetano

Frei Cipriano da Cruz Sousa 217


Maria João Vilhena de Carvalho

O Andor de São João Evangelista, de Beja 225


Nuno Vassallo e Silva

Bibliografia 226

Exposições 243
LONGOS DIAS TÊM CEM ANOS.
JOSEFA DE ÓBIDOS E O «BARROCO PORTUGUÊS»

ANTÓNIO FILIPE PIMENTEL

Longos dias têm cem anos, afirmaria Agustina e a centralização crescente de Madrid, um dessora-
Bessa-Luís no inspirado título de um dos seus livros mento da energia vital, a um tempo por perda e mi-
de contumaz introspeção, citando um velho adágio. gração de elites. No reino, empobrecido, preso agora
De facto, há séculos onde, como na vida, o turbilhão à crise estrutural do próprio império Habsburgo, em
cerrado dos sucessos parece conduzi-los rapidamen- cujas margens verdadeiramente se situa, e sofrendo
te ao seu final (ao século novo): como o xviii, o xix, os efeitos, por apetências de controlo, da hipertro-
o xx... E séculos onde, ao invés, o tempo quase estag- fia do aparelho disciplinar eclesiástico — que lhe
na, os anos se adicionam, na aparência, devagar, na sairá cara em sequelas culturais — cava-se um des-
sucessão dos dias que se arrastam sem terem novida- conforto fundo com o quadro jurídico-político da
de que contar. Séculos efervescentes e séculos planos Monarquia Dual. No plano estético, sem encomen-
— mesmo que belicosos. Séculos velozes e séculos da nem artistas, estiola a inovação e o tempo parece
lentos, de longos dias. congelar.
Foi assim, em amplo sentido, o século xvii em Reconquistada a autonomia, a conjuntura não
Portugal: depressivo, técnica e metaforicamente. melhoraria. Trinta anos de guerra hão de seguir-se,
Aninhado na penumbra da História, como área de até que a paz e o reconhecimento externo permitam
baixio entre outras luminosas, que avultam antes e enfim lançar as bases de uma recuperação, necessa-
após e o balizam. Nem o facto maior da retoma da riamente paulatina e lenta. Trinta anos de absoluta
independência lograria remi-lo na memória, preso exaustão, nos quais se hipoteca, em luta diuturna de
entre as dobras do nacionalismo e do decadentismo sobrevivência, a totalidade dos recursos: económi-
doutrinal. Século desde logo ibérico no plano cultu- cos, militares, diplomáticos, políticos, intelectuais.
ral, no quadro de um processo que vinha já de trás e Trinta anos, de resto, de abandono espiritual, num
havia conduzido à união dinástica de 1580, com ela país católico, quase órfão de pastores1. Trinta anos
se reforçando mais uma noção global, que domina o (por isso mesmo) de batalhas doutrinárias, teológicas,
tempo, de constituir-se na Europa um bloco à parte, duplicando, em compita de observância, a própria
com outro norte e outros ritmos, porém aqui em guerra feita no terreno, mais radicando, por essa via,
registo periférico contra um Siglo de Oro que só de o poder normativo eclesiástico e o império omní-
1
Cfr. Torgal, 1981-82, vol. i, pp. longe ecoaria. Da centúria finda ficaria vivo o trágico modo do religioso sobre o social. Como se o tempo
154, 216-217, 268-269, 279-283. rescaldo de Alcácer Quibir, acelerando-se, entre este persistisse em não passar.

LONGOS DIAS TÊM CEM ANOS 9


E, todavia, não seria realmente assim. Nada de que de tudo se apossa. À superfície, na realidade,
mais barroco, na verdade, que o tenebrismo desse pouco na aparência se alterara na paisagem marca-
tempo dramático, rasgado a esparsas luzes. Nada de da de uma prática construtiva persistentemente chã.
mais distante, na essência, do ambiente do racionalis- Mas os muros, de espessura castrense, em palácios e,
mo seco que, sem espaço para ensaiar um Maneiris- sobretudo, igrejas e conventos, rasgam-se agora em
mo, dominara Portugal no declinar do século velho, vãos de treva contra a cal ardente, em jogo voluptuo-
enformando a cultura e plasmando-se no integrismo so de contrastes, ao mesmo tempo que, em pilastras e
ideológico e estético dos sucessivos ciclos sebástico, portais, se instala um novo tónus que recusa a secura
henriquino e filipino: num modo reformado difun- do desenho — e busca-se, pelos tratados velhos, os
dido pela pintura e pela escultura e pela arquitetura meios novos de experimentar a dinamização espacial.
de igrejas e retábulos. Serão barrocos, de facto, os E, por força da sociabilidade constrangida que a vigi-
sermões de Vieira, como os textos de Rodrigues Lobo lância inquisitorial impõe, é ao abrigo destes muros
ou de D. Francisco Manuel de Melo. Como o são as nus, na penumbra reservada dos espaços, profanos ou
novas fortificações à la Vauban. sagrados (mas nestes em particular), que se abriga um
Faltou-nos, decerto, esse Barroco outro, triunfal consolo dos sentidos que trai as mudanças operadas.
e mundano, que em Roma, Londres ou Paris (Ver- Mais ainda que na morada das elites, sem verda-
salhes) fazia o seu caminho nesses anos 20 a 60 de deiro mundo que a provoque, é no espaço iniciático
Seiscentos em que, por cá, constrangidos entre o mar do templo que se abriga a verdadeira festa, sob a luz
e Castela, nos encolhíamos mais e mais na própria dramática, rompendo a treva, num deslumbramento.
concha. Escasseavam meios e espaço e tempo para É aí que o protagonismo novo do artesão, recobrindo
tal. Porém, na literatura, na música, na própria guer- os muros de azulejos, no próprio génio do assenta-
ra e, em geral, no novo protagonismo outorgado aos dor, subverte a arquitetura, enxaquetando o espaço
sentidos, uma outra atitude se divisa, contaminando, em reticulas diagonais que o plasticizam; ou que um
a pouco e pouco, a cultura, as artes e a vivência. Um uso novo dos ornatos velhos, recamando a persis-
Barroco de sombras e cintilações, de opostos, que não tente estrutura dos retábulos áureos, lhes imprime,
de luzes claras e esplendores, nasceria assim — mas à luz trémula dos círios, inusitadas reverberações,
um Barroco inteiro e pleno. no relevante crespo dos ornatos — que ecoa depois
De facto, à dispersão ou rarefação do meio artís- pelas abóbadas, num «brutesco» colorido e denso
tico, por falta de encomenda e escola; à privação de que subverte o erudito «grotesco» quinhentista. E
pintores e de escultores; à absorção da própria arqui- tudo brilha, agora; tudo cintila. E tudo se conjuga
tetura na urgência pragmática da engenharia militar, para expulsar da vida, a pouco e pouco, o passado
responderia um protagonismo insólito do ornato, severo que recua sob o efeito da nova instituição — a
liberto agora, em mãos crescentemente artesanais, «festa». Festa dos sentidos, estimulando as emoções
dos constrangimentos da erudição e estimulado pela e, na liberdade reganhada, o sentido identitário de
sedução das produções orientais, que, fator quase pertença3.
único de renovação, poderosamente contribuiriam De facto, foi no século xvii, aí pelos anos 20 em 2
Gomes, 1998.
3
Wunenberg, 1977, pp. 34, 102-
para induzir uma equiparação entre lavor e arte — diante, que, pouco a pouco, se gerou e caldeou um -103 e 135; Dubois, 1973, p. 163;
numa volúpia crescente de obra crespa e relevante2 dos mais originais fenómenos da cultura portuguesa, Bebiano,1989, pp. 189-190.

10 JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS


em especial, justamente, no domínio artístico — se «corte de aldeia», o percurso original de Josefa de
não o derradeiro verdadeiramente original. Fenó- Ayala e Cabrera, a pintora de Óbidos (1630-1684) —
meno esse cuja expansão «global» (de norte a sul, das e é daí que o seu mito irradia, desafiando o tempo de
ilhas atlânticas, aos domínios africanos, ao Brasil e ao modo singular4. Por razões várias, em que a inusitada
Oriente, por onde os portugueses se implantaram), prenda feminina terá, talvez, a menor parte. Porque,
haveria de convertê-lo num dos mais relevantes con- decerto, com a sua obra se lograva, enfim, contrariar
tributos lusos para o património universal e comum: o afastamento sensível da produção artística nacional
o Barroco português, designação que, em certo modo, em relação às sendas normativas das artes maiores,
pode derivar-se da inspirada categorização de «estilo suscitando uma natural visibilidade. Porque alcan-
nacional», criada por Robert C. Smith para o retábulo çou criar, e fazê-lo com escala, um cunho próprio e
de talha de arquivoltas torsas e concêntricas, desen- pessoal que a faria brilhar e distinguir no panorama
volvido em Portugal, como remate de um processo raro, rarefeito e estruturalmente periférico da prá-
longo, no último quartel do século (e a talha doura- tica pictórica nacional. Por ter dado eficaz resposta,
da dos altares constituirá, decerto, um dos seus mais em «naturezas» de realismo inusitado ou, ao invés,
impressivos traços), mas que consagra, sobretudo, a em pinturas devotas de registo deliberadamente
noção da existência de um Barroco seiscentista di- onírico, entre santos e santas e Meninos «pintados
verso dessoutro setecentista; Barroco vernacular, como bolos»5, a uma clientela crescente e aspirante,
em alteridade ao internacional; Barroco que, mesmo nos limites do marco cultural em que vivia, fosse ao
que verdadeiramente explodindo em coerência nos experiencialismo sensorial, fosse à teatralidade da
seus anos finais (e consagrado na criação suprema da vivência, que o confinamento disciplinar eclesiás-
«igreja-toda-de-ouro»), seria pouco a pouco caldea- tico reduzia ao marco do sagrado. E porque, enfim,
do nesse século lento, onde o tempo passava devagar. o «país real» resistiria, por longuíssimo tempo (se
Um Barroco original, por isso fruto do isolamento não resiste ainda) às sucessivas vagas de uma interna-
longo a que o país se vira confinado e das suas peculia- cionalização sempre verticalmente imposta, por isso
res condições conceptuais e operativas. Um Barroco mais epidérmica que dérmica, propiciando, assim,
que não podia mais que ser assim — mas que teria o ao universo referencial da artista, uma fortuna que,
engenho e grandeza de o ser inteiro, configurando, ao noutro contexto, provavelmente não usufruiria.
termo de um processo de empirismo, um sistema am- Donde a reação contemporânea, no desconforto
plo e coerente de pensamento e prática: e de eficácia da sua perceção sobre a óbvia insularidade nacional
na sua implantação. Um Barroco que, ao final, conso- no próprio quadro paralelo da pintura espanhola
lida um modo diverso e «nacional», a que não faltam coetânea, e o seu distanciamento reativo em relação,
sequer apetências de triunfalismo, na teatral volúpia mais que ao estrito valor, ao conjunto dos valores que
do seu fulgor dourado. E que constitui a simultânea e enformaria a sua pintura e a esse entranhado apre-
cabal prova de que, a um tempo, se atingira o pico do ço secular: «Pintava por devoção, sem dúvida: uma
abismo e o ar voltava a circular na nacional redoma. devoção ternurenta, xaroposa... O universo mental
É justamente no cadinho central desse próprio e cultural de Josefa, dado a ver na sua pintura, é pois
4
Serrão (coord.), 1991, pp. 13-17. longo século e ciclo, que se inscreve, no seu anódino, dissolvido em açúcar, confirmando o epíte-
5
Rio-Carvalho (pref.), 1971. recolhimento significativo e quase metafórico de to por que foi celebrada: molher donzella que nunca

LONGOS DIAS TÊM CEM ANOS 11


cazou»6. É por tudo isto que a correta valoração da que pouco a pouco vai desenvolvendo e exprime nas
obra, coerente e vasta, da pintora de Óbidos, não dis- suas composições religiosas dos anos maduros em
pensa a integração no seu contexto: nesse Barroco a que, «na idade de pouco mais ou menos de cinquenta
que respondeu. anos»8, se finou.
Efetivamente, não pode negar-se-lhe a espessura Obra de pintora (e é ato de bravura no Portugal de
de uma existência histórica, como halo que em seu então) cuja apreciação por natureza impõe um olhar
redor fixaria; nem a força de uma poética original7, paralelo à realidade contemporânea ibérica, na senda
que venceria o tempo, garantindo-lhe um nicho in- da breve infância sevilhana e da verdadeira relação
contornável na historiografia artística, tão cedo esta com o pai, Baltazar Gomes Figueira, de quem, afi-
se afirmou enquanto disciplina. Sobretudo, porém, nal, rapidamente se emanciparia: juridicamente, com
não poderá Josefa de Óbidos ser vista à margem do reflexos produtivos talvez nunca bem valorizados.
quadro singular em que decorreu a sua atividade e ao Como importa um confronto com outras persona-
qual, afinal, alcançou responder com eficácia: quadro gens — muito em especial Cipriano da Cruz — com
que é o de um «Barroco nacional», português, singu- as quais dividiria o palco nessa «igreja de ouro» em
lar na sua formulação e desígnios, feito de treva e luz, que, por muitos modos, o país de ilustrava.
que mais e mais se expande; de lavor que se associa a Tema grande e complexo, no amplo arco defini-
arte; de uma poética devota mas festiva que, mais que do entre a personagem, o mito e o contexto, a jus-
ao realismo material e trágico, aspira ao transporte tificar nova investigação e, seguramente, o quadro
como meio e forma de expressão. demonstrativo que uma exposição permite: mesmo
A sua arte (donde a fortuna que logrou) alcançaria que dela novas questões venham a surgir. E é tema
outorgar corpo e voz, enfim (como na escultura fa- central, decerto, no contexto da arte portuguesa o
riam, quase sincronicamente, Cipriano da Cruz ou desse Barroco nacional, sem cuja existência nem
os monges barristas de Alcobaça), ao palco que o Bar- longa duração se não entendem a um tempo a obra
roco criara, e se impunha preencher, de uma narrati- de Josefa e a relação atávica que, com ela, a posteri-
va a um tempo edificante e sensual, nos limites que o dade criaria. Foi isso o que se entendeu dever fazer:
país lhe fornecia: por isso, a bem dizer, sensorial. Um olhar, em simultâneo, a pintora no tempo e o tempo
Barroco, afinal, cujos ritmos a sua obra mesma ha- pelos olhos da pintora. Unindo, num mesmo ângulo
veria de repercutir, na evolução entre o tenebrismo de análise, Josefa de Óbidos e a invenção do Barroco
original e uma paleta de fulgores, luzes e matérias, português.

6
Pereira, 1989, p. 69.
7
Barghahn, 1997, pp. 63-69.
8
Serrão, Ob. Cit., p. 14.

12 JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS


QUE COISA É O «BARROCO PORTUGUÊS»?

ANTÓNIO FILIPE PIMENTEL

Existe um «barroco português» — singular retrataria a sociedade lusa dos anos da Restauração,
e específico no quadro global dessa corrente cultu- e o que se lhe seguiu, correspondente ao último terço
ral e estética (a primeira de escala verdadeiramente do século xvii, onde, em apetências já de internacio-
global)? De que falamos quando a ele nos referimos? nalização fomentada pela elite estrangeirada e pela
Em que circunstâncias se gerou? Que meios usou para superação da longa crise conjuntural que se segui-
expressar-se? A que desígnios respondeu? Todo um ra à recuperação da autonomia, o panorama seria
amplo conjunto de questões, porém fundamentais dominado pela grande produção de Bento Coelho
para a integração crítica da obra pictórica de Josefa de da Silveira (1617-1708) em ambiciosas composições
Óbidos, tendo em conta o facto incontroverso de ter de história sacra que renovavam e atualizavam os
sido percecionada ainda em vida (e em consequência interiores eclesiásticos — desta feita na periferia
celebrada) como um dos artistas que melhor soube de Rubens... No cadinho central, dos anos 50 a 80,
responder às apetências representativas e imagéticas Josefa aparece, pois, sem rival, num quadro onde, es-
da sociedade contemporânea (que era a do Portugal sencialmente, perpassa apenas, quase fantasmático,
barroco), nisso alicerçando uma estima e fama que, o vulto discreto de Marcos da Cruz (?-1683). E, mal-
quase sem quebras, iria acompanhá-la até aos nossos grado a sua implantação quase rural — pintando «em
dias. Dito de outro modo, a sociedade barroca por- Óbidos» — e a evidente necessidade de enquadrar a
tuguesa encontraria no imaginário desenvolvido e sua produção no confronto com a pintura ibérica que
cultivado por Josefa um quadro representativo e esté- a antecedeu, logrou criar uma expressão outra, que a
tico no qual se comprazia e reconhecia, aureolando-a, distinguiu e fez valorizar, no quadro de uma poética
por essa razão, de um halo sem rival e desse modo a original e coerente, que impede subsumi-la numa
convertendo, por excelência, na pintora do Barroco: categoria estritamente periférica: antes responderá
por definição, na pintora do «barroco português». (com eficácia) a um barroco outro, também ele, que
De facto, a obra pictórica de Josefa de Óbidos enformará o país nesses anos centrais de 1650-80:
(1630-1684) emerge como um astro isolado entre o «Barroco português», para cuja «invenção», por
dois grandes ciclos, no esparso território da pintura esse modo, contribuiria poderosamente. De que Bar-
seiscentista em Portugal: o que a antecedeu, prota- roco falamos?
gonizado em Domingos Vieira, alcunhado o Escuro No domínio da pintura, fica enunciado o breve
(ativo 1627-1678), que, na periferia de Velázquez, panorama. O prolongar da crise, somando em cata-

III. SENTIDO E FOR M AS DO BA R ROCO PORTUGUÊS 109


dupa o empobrecimento e rarefação da elite enco- e com uma estetização triunfalista e hórrida das
mendante entre os resgates de Alcácer Quibir (afe- portas de aparato, que dará terreno a inovadoras
tando nobreza e clero), a redução da estrutura áulica, exibições ornamentais4. Bem mais conservadora,
a nova centralidade Madrid (onde se localiza agora o na arquitetura civil não deixariam, apesar disso, de
Conselho de Portugal e reside a nobreza de funções) experimentar-se novidades, quanto mais não seja
e a reclusão da restante fidalguia aos seus domínios uma turgidez nova na aplicação de frisos e pilastras
fundiários, com a consequente migração de artistas e — mesmo que renitentemente secos e toscanos (sim-
dispersão das oficinas, geraria neste plano um quase plificados) —, em apetências de plasticidade e num
vazio, que a conclusão do processo disciplinar con- gosto pronunciado pela espessa profundidade de
trarreformista, reduzindo as próprias necessidades aberturas murais, que potencia um jogo dramático
de ilustração e catequese, permitiu em boa parte entre sombra e luz.
superar1. Outro tanto sucederia no plano da escul- Particular menção merecem, todavia, as experiên-
tura, onde a morte de João de Ruão (1580), último cias de inovação planimétrica de paracentralização,
representante dos ciclos renascentista e maneirista, em especial em templos isolados e de modesta ou
encerraria simbolicamente todo um tempo: o labor moderada dimensão. Com recurso às velhas receitas
da pedra, desprovido agora de encomenda e escola, tratadísticas, renovadas pelo tratamento ornamen-
dissolve em vinte anos a tradição de um século2 e os tal, constituirão ainda a base da obra finissecular de
novos retábulos, de madeira e ouro, povoam-se de João Antunes5. Mas, sobretudo, expande-se agora,
imagens hirtas, de objetivo essencialmente edifi- em especial nas moradas campestres, uma nova arte
cante, num gosto «reformado», onde as campanhas dos jardins, onde a água, ingrediente barroco de ex-
escolares (jesuítas, carmelitas) imporão a norma, na celência, se introduz como elemento cénico, no jogo
esteira ainda de um eruditismo quinhentista em que intrincado das sebes de buxo: mesmo que com obje-
haviam brilhado Gaspar e Bernardo Coelho3. tiva timidez6. Arte do jardim (hortus conclusus) e o
Progressivamente popularizada e, sobretudo, anó- denso geometrismo dos seus talhões de buxo traem,
nima, a nova produção iniciará um novo e extenso em boa parte, o verdadeiro sentido do barroco por-
ciclo, de mais de século e meio, de imaginária lígnea, tuguês: barroco de interior, de reserva, que aí projeta
policromada e dourada, que apenas adiantado já o um quadro sensorial que se quer sempre íntimo, de
século xviii, com José de Almeida ou Machado de acesso restrito e sentido de algum modo iniciático:
Castro, veremos regressar a nível autoral. Manuel seja no recato do jardim murado e resguardado; seja
Pereira, o grande vulto português da escultura em nos sobrados da morada fidalga, da cela ou oratório
madeira deste tempo, será, na verdade, um madri- monacal; ou ainda de um culto religioso só e par-
leno, de atividade, produção e fama, e o universo cialmente público, por isso que abrigado, também
pictórico de Josefa só encontrará um paralelo (com ele, à penumbra dos muros, preservado dos olhares
algum desfasamento cronológico) no labor dos mon- profanos, de hereges que ao Reino aportavam e nele
ges-barristas de Alcobaça, que se inicia nos últimos mais ou menos francamente circulavam. Por isso que
anos da vida da pintora e na obra escultórica do be- a «festa» (por definição a festa litúrgica) se entendia
neditino Frei Cipriano da Cruz, que entrará mesmo também como fator identitário, assim indutora da
pelo século xviii — e para cuja génese, do mesmo coesão social, num país que, de algum modo, rein-
modo, importa perscrutar o outro lado da fronteira ventava agora a sua identidade.
e o lastro da escola castelhana. Um Barroco igualmente mais de superfície e de
Resta, por conseguinte, a arquitetura. Nesta, sabi- ornato que estrutural e plástico; mais do precioso da
do é que o grande contributo do ciclo da Restauração matéria que da sofisticação do conceito que subjaz
é fruto da engenharia militar e da concentração nos e onde, por isso, «arte» é equivalente de «lavor», seja 1
Pimentel, 2002b, pp. 243-245.
2
Cf. Gonçalves, 2005.
objetivos de defesa das próprias estruturas pedagó- ele de cinzel, de goiva, de agulha, ou invenção poética 3
Dias, 1995.
gicas, reorganizadas por então no paço régio. E, bem (ou de pintura). Um Barroco, por isso mesmo, feito 4
Moreira, 1986, pp. 67-76.
assim, que nesta, a introdução da modernidade e das de «obra crespa e relevante»7, no que a expressão Pereira, 1995, pp. 37-42.
5

6
Carita e Homem-Cardoso, 1990,
escolas francesa e holandesa de fortificação iria a par indicia sobre o ato de imprimir plasticidade ao que pp. 143 e segs.
com a nova plasticidade dos baluartes à laVauban era estático e de facto o persiste sendo, estrutural- 7
Gomes, 1998.

110 JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS


mente, no exterior do ritmo por artifício imposto de couro. E também as máquinas retabulares, orla-
— seja por efeito de «encrespar» (isto é, frisar, si- das de figuras hieráticas como elas brunidas e esto-
nónimo da palavra francesa plisser, aplicável a ati- fadas, prolongam igualmente na estrutura o antigo
vidades domésticas, como o tratamento das roupas cânone serliano e a antiga e canónica decoração de
brancas, desde logo monacais), seja pelo de dar relevo «grutescos» e rollwerke — mas «relevante» agora,
ao que já existe, embora sem ele, ou que se considera em volúpia crescente, por efeito dos enrolamentos
insuficiente. Barroco de artifício, na verdade (que se curvilíneos de acantos, entumescidos, reforçando o
entende por «arte»), apelando aos sentidos um por efeito da luz pelo contraste com as sombras densas
um (visão, tato, audição, paladar, olfato) e onde a fes- que entre eles se aninham.
ta se entende como obra total, na pleno das discipli- O «brutesco», recriação barroca e lusa dos velhos
nas congregadas — melhor dizendo, «integradas» ornatos eruditos divulgados pela gravura, triunfa
(na arquitetura enquanto contentor). agora, num exercício crescente de liberdade orna-
Assim, pois, nos interiores domésticos, ao abri- mental, que irá contaminar as coberturas, enchendo
go dos seus muros de espessura conventual, arcas, abóbadas e anunciando um tempo novo, onde a deco-
leitos, armários ou bufetes, replicam também eles, ração tudo subverterá, em luxuriante festa dos senti-
ainda, a tradição arquitetónica, na secura severa de dos — como contamina a mais arquitetónica das ar-
uma estrutura fixada na transição do século. Mas do tes ornamentais: a ourivesaria, especialmente sacra.
Brasil e da Índia aportavam agora as madeiras ricas Pelos finais do século, nascerá por esta via a «igre-
e lustrosas, onde a luz jogava como seda. E, quebran- ja dourada», subvertendo, por efeito da presença
do a paz serena do desenho, um frémito se apossa da omnímoda da talha, o espaço inteiro, livre de toda
estrutura, encrespando as superfícies, num jogo rít- a regra racional: numa não-arquitetura plenamente
mico, geométrico, e, sobretudo, sem fim, de «tremi- assumida. Pelo meio, porém, pouco a pouco, o País
dos» animando as superfícies. É a «festa», também aí, esforçava-se por aproximar-se à realidade dessa Eu-
imprimindo um movimento que há de completar-se ropa transpirenaica, mais distante, na verdade, do que
de «torcidos» (agora, sim, sem-fim), antes ainda que a Índia. Mas fazia-o pelos próprios olhos: buscando
a torção salomónica se aposse das colunas dos alta- sempre a arte no lavor. É assim que, da importação
res, em tardia repercussão berniniana filtrada (como (como ocorrera com a porcelana oriental) não tardará
sempre) por Castela8. A par, os tapetes da Índia, as a suceder-se a réplica da indústria sumptuosa e floren-
sedas, os marfins e, muito em especial, as porcelanas, tina dos embutidos de mármores lustrosos: iniciando
representarão, no país isolado da Europa, uma fonte uma produção local e maciça de «embrechados» (de
nova de oxigenação formal, na sua associação feliz «brutesco») que integrará (em mobiliário ou em re-
de arte a lavor, que não tardará a ter repercussões: vestimentos) no hino à Divindade da sua «igreja de
da imaginária aos tapetes bordados de Arraiolos; à ouro»9. Pelos anos de 70/80, pouco a pouco, um co-
renovação da cerâmica nacional; ao azulejo, enfim, mércio significativo se estabelece: o da importação, a
reproduzindo, sem trasladação significante, as «aves partir de Génova, de estatuária avulsa, quase sempre
e ramagens» dos têxteis orientais. de função ornamental, com que se busca empreender
Nos interiores litúrgicos todo este movimento um realinhamento aos padrões de fora.
se repercutirá e magnificará: desde logo no cená- Mas eram brancas e assépticas as estátuas, na
rio cerimonial das magnas sacristias, povoadas de sua linguagem fria emitológica, adquirida pelos en-
longuíssimos arcazes, de armários, de oratórios, em comendantes como alarde de cosmopolitismo. As
madeiras lustrosas bordadas a «tremidos». Mas, es- histórias que importava contar, no interior dourado
pecialmente, no espaço teatral do templo, adjacente, das igrejas, capelas e oratórios onde a sociedade do
onde a talha dos altares inicia o seu brilhante futuro, Portugal barroco verdadeiramente se reconhecia,
de par com o azulejo, onde o velho enxaquetado de necessitavam de cor e luz e brilho e de transpor ma-
molduras severas dá lugar agora (sobre a mesma gre- terialidade ao que era espírito, conservando a distân-
lha, ainda e como sempre) às padronagens multicolo- cia terral: com isso transportando e elevando o seu
8
Pimentel, Ob. Cit., p. 246.
res (azul, amarelo, branco), que replicam, revestindo contemplador. Foi essa a missão cumprida por Josefa
9
Coutinho, 2011. os muros, a riqueza dos têxteis ou dos guadamecis de Óbidos. E a razão central do seu feliz sucesso.

III. SENTIDO E FOR M AS DO BA R ROCO PORTUGUÊS 111


CONSTRUINDO A «IGREJA DE OURO»:
CAR ÁTER DO BARROCO PORTUGUÊS

ANTÓNIO FILIPE PIMENTEL

Quando, em 1697, mais de década e meia decor- exercícios do «brutesco», se adossaria bem à emotiva
rida sobre o passamento de Josefa de Óbidos — mas polifonia das igrejas de ouro.
em pleno ciclo operativo de Frei Cipriano da Cruz —, Tudo isto, é certo, iniciaria uma fissura no am-
o ilustre sacerdote e teólogo Francisco de Santa biente estético homogéneo do Barroco português,
Maria dava à estampa a sua obra O Ceo Aberto na que o século xviii amplamente alargaria2. Mas, por
Terra, crónica das congregações loias em Portugal ora, era ainda de «abrir o Céu na Terra» que essen-
(oferecida a D. Pedro II, com frontispício ornado da cialmente se tratava. Ao perscrutar o sentido que
efígie de seu pai, D. João IV, assinada Phi. Bouttats o Barroco revestiria em Portugal (penetrando, em
Ju. Fecit Antuerpia), não somente o Barroco portu- consequência, no caráter e natureza do «Barroco por-
guês encerrara já o seu processo de formulação, como tuguês»), importa analisar, mesmo que fugazmente,
atingira o zénite, divulgando-se, na talha, o retábulo a própria natureza da sociedade a que responderia:
de «estilo nacional» e iniciando-se a edificação das a sociedade seiscentista, globalmente entendida, an-
primeiras «igrejas todas de ouro»: justamente desti- tes de a permeabilidade do aparelho dirigente à nova
nadas (mesmo que de tal fosse decerto inconsciente) elite «estrangeirada» lhe perturbar a fisionomia.
a dar espessura material ao título adotado. Efetivamente, tanto por efeito da crescente pe-
Na verdade, sopravam mesmo já os ventos de uma riferização do Reino nas décadas iniciais do século
aspiração de abertura internacional, não de orienta- que agora findava, como pela dureza conjuntural
ção flamenga, à maneira antiga — como se expressa- das circunstâncias nos anos pós-Restauração, tudo
ra na chamada régia de Dirk Stoop, pelos idos de 40 contribuíra para um reforço, nos planos cultural,
e no próprio frontispício ainda se ilustrava —, mas ideológico e das mentalidades (com inerentes conse-
à maneira nova, italiana, num vai-vem de barcos, quências no da sociabilidade), das características, já
de Génova a Lisboa. Assim chegavam, em número de si conservadoras, da sociedade do Ancien Régime:
crescente, estátuas de mármore, destinadas à mo- circunstância a que não seria alheia a própria debi-
dernização de palácios e jardins (mesmo uma fonte lidade do poder central suscitada pelos avatares da
de Bernini, para os «estrangeirados» Ericeiras1) e, sucessão na nova dinastia. Nesse contexto, a parti-
muito especialmente, se divulgava a voga (à floren- lha da autoridade entre a Coroa e os mais represen-
1
Delaforce et al., 1998, pp. 804-
-811.
tina) dos ricos embutidos multicolores de pedrarias tativos setores da nobreza e do clero, reforçando a
2
Pimentel, 2002b, pp. 247-249. (ou «embrechados»), cujo luxo, porém, propício aos capacidade económica dos estratos não produtivos,

VIII. «O CÉU ABERTO NA TERRA»: O ESPAÇO ONÍRICO DO BARROCO PORTUGUÊS 203


refletir-se-ia no paulatino enfraquecimento da classe sivamente sensorial; a variedade das suas manifesta-
mercantil, favorecendo a rigidez social. À hipertrofia ções e práticas, facilitando a extroversão; os próprios
das classes dominantes corresponde a progressiva mecanismos institucionais em que se apoia fazem
uniformização do terceiro estado, num quadro eco- dele um elemento fundamental na existência quoti-
nómico e mental de reforço dos valores de natureza diana da comunidade, onde, na verdade, o catolicis-
nobiliárquico-eclesiástica3. Por seu turno, a uma aris- mo enforma a globalidade da expressão social. Por
tocracia numerosa, mesmo que em extremo variada outro lado, serão as manifestações ligadas ao culto o
em termos de fortuna e influência, correspondia um essencial ponto de relação do elemento feminino com
clero também ele heterogéneo, mas, especialmente, o exterior doméstico — e, por conseguinte, o único
muito populoso, repartido entre século e clausura, espaço disponível de relacionamento transversal.
opulência e penúria, que faria comentar aos estran- Em consequência, o culto religioso converte-se
geiros: C’est ici le pays des moines4. na manifestação por excelência do Portugal barroco
Assim, isolada na extremidade da Europa, em co- e cada celebração num microcosmos que resume o
munhão secular (mesmo que belicosa) com a vizinha macrocosmos social. Já muito andado o século xviii,
Espanha, a sociedade portuguesa evoluiria, nas suas ainda um forasteiro, Link, haveria de captar, prova-
crenças como nos seus modos, num ritmo lento. Ge- velmente em tons exagerados: On va à la messe, parce
rada no convívio com as culturas islâmica e hebraica, qu’on n’a pas d’autre promenade; je dirais même qu’on
fascinada depois com o refinamento das civilizações n’aime les cérémonies religieuses que sous le rapport de
orientais e esse «novo mundo» que os seus olhos des- l’amusement. On suit les processions, comme on cour à
cobriam, desenvolve formas sui generis de sociabilida- l’opéra6. Mas é certo que também Cunha Brochado,
de e de cultura que a integram num conjunto ibérico, com meia vida na centúria de Seiscentos, haveria de
diferenciando-a dos padrões europeus. Estarão neste escrever: «Para ver Lisboa de huma vez fui ver a Pro-
caso, aliás, as práticas «mouriscas» de reclusão femi- cissão do Corpo de Deus»7.
nina, tanto mais restritivas, na verdade, quanto mais O culto é, pois, vivido antes de tudo como festa.
elevada a hierarquia, herdadas de tempos ancestrais, Festa religiosa, sem dúvida, produto de uma vivência
e, a fazer fé nas fontes disponíveis, mais constrange- da fé que tende a interiorizar-se verdadeiramente
doras, ainda, por cá que no país vizinho5. A um qua- quando se apresenta dramatizada ao crente, mas,
dro social demograficamente marcado pela presen- para o Portugal de então, essencialmente, «a festa».
ça omnímoda do clero e amplamente limitado por E, mais do que qualquer outra instituição, esta as-
constrangimentos de cariz religioso; a um ambiente segura, pela sua força plástica, pelas emoções que
cultural igualmente cerceado por confinamentos da desperta nos participantes — em simultâneo espec-
mesma natureza, acresceria um marco estético onde o tadores e atores; pelo sentido coletivo que estimula
distanciamento que se opera em relação à marcha pa- de comungar das mesmas crenças e ideais; pelo seu
ralela do Barroco europeu, difusamente apreendida poder, enfim, de sublimar tensões e de aplacar con-
em termos de artifício e volúpia formal, seria compen- flitos, uma função capital de unificação social8. No
sado pela sedução das produções orientais (na sua as- Portugal pós-Restauração, enformado já literaria-
sociação entre «lavor» e «arte»), tudo se conjugando mente pela cultura barroca do artifício, a consoli-
ativamente para o reforço desta conjuntura. dação da independência e a paulatina superação da
Nesse contexto e em compensação do esforço cons- crise conjuntural que o afetava virão de par com uma
trutivo militar (onde, porém, o Barroco erudito dos adesão psicológica ao valor catártico da festa como
tratados ia operando uma eficaz penetração), o inves- celebração global e identitária. Godinho, 1975, pp. 89-105 e 113.
3

4
Carrère, Joseph-Barthélèmy
timento em edificações eclesiásticas beneficia de uma Num contexto desta natureza, em que o catoli- François, Viyage en Portugal et
global validação social, do mesmo passo que a religião cismo enforma, em toda a sua extensão, a própria particulièremente à Lisbonne,
Paris, 1798, p. 273.
se afirma, igualmente, como um importantíssimo fa- expressão da sociabilidade, a sociedade portugue- 5
Pimentel, 2002a, p. 47.
tor de coesão social: o único, talvez, que na multipli- sa exteriorizar-se-á, fundamentalmente, no miúdo 6
Link, 1803-1805, tomo i, p. 286.
cidade das suas práticas congrega a totalidade de um exercício da multiplicidade das práticas devotas, Brochado, 1816, p. 184.
7

8
Wunenberg, 1977, pp. 34, 102-
corpo, no mais rigidamente estratificado. A crescen- elas mesmas crescentemente dramáticas na sua ex- -103 e 135; Dubois, 1973, p. 163;
te complexidade do culto barroco, de apelo progres- troversão. Em termos globais, pois, tratar-se-á, es- Bebiano,1989, pp. 189-190.

204 JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS


sencialmente, de um fenómeno de sublimação das veis na respetiva «armação» festiva, em cujo marco
formas tradicionais de comportamento — designa- atinge o zénite a dinâmica teatral que se ambiciona.
damente de recato e invisibilidade feminina — den- É a «igreja-toda-de-ouro», coroando o desenvolvi-
tro de um quadro contrarreformista de substituição mento paralelo do retábulo dito «nacional», que,
das práticas laicas de sociabilidade por obrigações por seu turno, assinala, na estrutura concêntrica de
religiosas e devotas que tendem a multiplicar-se e arquivoltas torsas, recobertas de pâmpanos e putti,
complexificar-se. Por sua vez, a ação reguladora da encenando a glória da eucaristia, a superação final
todo-poderosa Inquisição, especialmente sensível da tradição «chã». E a unidade eficaz deste work in
ao nível da organização do quotidiano, bem como a progress advém a um tempo da implosão do nexo ra-
perda da independência, com o consequente desapa- cional e da presença omnímoda do metal precioso, de
recimento da Corte e da sua função exemplar (pre- valor em simultâneo emotivo e simbólico12.
cária e lentamente reconstituída no quadro crítico «Obra de arte total», nela convergem todas as
da sucessão régia), agindo no sentido do isolamento, disciplinas e todos os horizontes, do Ocidente ao
constituiriam fatores poderosos na sedimentação de Oriente, numa assimilação de mundos em benefício
uma estrutura que levaria muito tempo a erradicar. dos sentidos: talha e azulejo; ourivesaria e têxteis; es-
Assim, severamente limitada à miúda observância cultura e pintura. O deslumbramento do olhar, entre
das obrigações devotas toda e qualquer forma de con- o cenário aurifulgente e a gestualidade dramática do
vívio social, a «igreja» parece afirmar-se como único orador sagrado, vai de par com o da audição, arreba-
espaço viável, substituindo entre nós o lugar que, lá tada pela oratória e pela música, onde a polifonia faz
fora, ia sendo ocupado pelo «salão». a sua aparição; com o do olfato, seduzido pelo odor
Não espanta, pois, a teatralidade que dela se apo- intenso de flores, velas e incenso, num quadro estéti-
dera, nem que, por essa via, o templo se converta em co de valor eminentemente «táctil» e ao qual, por na-
espaço de representação — e de projeção das repre- turais razões rituais, mesmo o paladar não é alheio...
sentações comuns —, acentuando a dramaticidade Ambiente eminentemente sensorial e retórico,
da sua própria organização formal. Igrejas-caixas, encontrará na escultura, de uma monumentalidade
na terminologia adotada por George Kubler 9, na sem precedentes, de Frei Cipriano da Cruz (como, a
tradição conservadora quinhentista, têm no púlpito par, fariam os barristas de Alcobaça — ou, décadas
— dispositivo essencial da oratória sacra, onde as volvidas, havia ainda de fazer Jacinto Vieira na sua
artes moriendi consagram a necessária antinomia ao teoria hagiográfica de Arouca13) a dimensão teatral e
«bem viver»10 — ingrediente essencial da dinâmica edificante que lhe era por natureza imprescindível.
emotiva que importa estabelecer, apetrechando-se Porém, ambiente igualmente lírico, onde, na caixa
de palcos polivalenciais, pela enfatização dourada do de que o ouro pouco a pouco se apodera, o espaço se
altar, que a complexidade cultual e religiosa (incluída dissolve por eliminação dos seus limites, reconhecerá
a proliferação das missas de sufrágio) fará disseminar em Josefa de Óbidos, na sua especial capacidade de
por todo o espaço. As escassas e diminutas experiên- pintar o natural e a volúpia dos sentidos em que a
cias de pulverização espacial, pela reabilitação da pla- arte do «bodegonismo» especialmente a adestraria,
nimetria centralizada, ela mesma de base quinhen- a personalidade capaz de adicionar-lhe uma nova di-
tista, mais não farão que reforçar a nova polissemia mensão essencial: a transcendente, abrindo o «Céu
do ambiente litúrgico. na Terra», em eficaz recriação do imaginário descri-
Num quadro entusiasta de adesão voluptuosa aos tivo e poético que a parenética em paralelo difundia.
valores sensoriais do ornamento (em «obra crespa e Esta a razão essencial do universo lírico em que se
relevante»11), a distinção entre o marco arquitetónico aplicou — em rutura com a tradição tenebrista e rea-
e os dispositivos de que seria por natureza escrínio lista de que emergiria, ao invés do que sucederia no
deixará mesmo, pouco a pouco, de operar-se, pela cultivo das suas «naturezas». Essa, talvez, a razão por
9
Kubler, 1988, pp. 153-160. sucessiva (e é conceito operativo que importará reter) que se emancipou — no plano jurídico como no pictó-
10
Pimentel, 1991, pp. 245-246. contaminação mural por efeito do adestramento de rico. Da eficácia que alcançou, testemunha exemplar-
11
Gomes, 1998.
12
Pimentel, 2002b, pp. 245-247.
sanefas, mísulas, painéis e uma ampla panóplia de mente (num país barroco de longa duração) a invul-
13
Pimentel, 1986, pp. 524-525. recursos, diacronicamente adicionados e mobilizá- gar fortuna que lhe aureolaria a póstuma memória.

VIII. «O CÉU ABERTO NA TERRA»: O ESPAÇO ONÍRICO DO BARROCO PORTUGUÊS 205


EXPOSIÇÃO

PROJETO
Museu Nacional de Arte Antiga CONSERVAÇÃO E RESTAURO CONSTRUÇÃO
António Filipe Pimentel Museu Nacional de Arte Antiga J. C. Sampaio, Lda.
Intervenção na pintura e escultura
ORGANIZAÇÃO Conceição Ribeiro TRANSPORTES
Museu Nacional de Arte Antiga Maria Monsalve, Contrato Emprego- Feirexpo
-Inserção + / iffp SIT Grupo Empresarial, S. L.
PRODUÇÃO Ricardo Guimarães, Contrato Emprego-
Ritmos -Inserção + / iffp MONTAGEM
Susana Campos Feirexpo
COMISSARIADO Teresa Serra e Moura, bolseira fct
Joaquim Oliveira Caetano (sfrh/bgct/51497/2011) ILUMINAÇÃO
Anísio Franco Vitor Vajão, Atelier de Iluminação
José Alberto Seabra Carvalho Laboratório José de Figueiredo /dgpc e Eletrotecnia, Lda.
Intervenção no cat. 133
COORDENAÇÃO Metal/Ourivesaria: SEGUROS
Museu Nacional de Arte Antiga Belmira Maduro LUSITANIA, Companhia de Seguros, S. A.
José Alberto Seabra Carvalho Mariana Cardoso, bolseira fct (sfrh/
bi/51520/2011) SEGURANÇA
Ritmos Jenni Lankinen e Petteri Liikkanen, Luísa Penalva
José Eduardo Martins / José Barreiro Metropolia University of Applied
Sciences, Finlândia VIGILÂNCIA
PROJETO MUSEOGRÁFICO Paula Monteiro Museu Nacional de Arte Antiga
Manuela Fernandes, dgpc Escultura/ljf: Rui André Alves Trindade
Elsa Murta
DESIGN GRÁFICO Jenni Lankinen e Petteri Liikkanen, Ritmos
FBA./Ana Simões, Daniel Santos, Metropolia University of Applied Scien- António Mendes
Eduardo Nunes, Rita Marquito ces, Finlândia
e Ana Soares (motion design) Laboratório Analítico: MARKETING
Lília Esteves Joana Carapeto
PRODUÇÃO GRÁFICA Laboratório Fotográfico:
Marco Carvalho – coordenação Luís Piorro, bolseiro fct (sfrh/ MERCHANDISING
bgct/51651/2011) – fotografia Forbidden Merch
TEXTOS Jorge Oliveira – radiografia
Miguel Soromenho BILHÉTICA
REGISTRAR Catarina Viana
TRADUÇÃO Ana Kol Rodrigues
John Elliott Madalena Thomaz
CATÁLOGO

COMUNICAÇÃO COORDENAÇÃO CIENTÍFICA REVISÃO


Museu Nacional de Arte Antiga Anísio Franco Imprensa Nacional-Casa da Moeda
António Filipe Pimentel
Paula Brito Medori – coordenação Joaquim Oliveira Caetano FOTO GRAFIA
Ana Sousa, bolseira fct (sfrh/ José Alberto Seabra Carvalho António Sacchetti: fig. 8.
bgct/52180/2013) Arquivo mnaa: figs. 24, 29-34, 49-52.
Ramiro Gonçalves, bolseiro fct (sfrh/ COORDENAÇÃO EDITORIAL Arquivo mnmc / José Meneses: 103,
bgct/33806/2009) Ana de Castro Henriques 126-131.
Rui Mestre Banco de Portugal: 102.
AUTORES Biblioteca Nacional de Portugal:
Ritmos Anísio Franco figs. 10-17.
Andreia Criner António Filipe Pimentel [AFP] Cabral Moncada Leilões / Vasco Cunha
Diogo Ramada Curto, IPRI-Faculdade Monteiro: fig. 5.
SERVIÇO DE EDUCAÇÃO de Ciências Sociais e Humanas da Carlos Vasconcelos e Sá: 12.
Museu Nacional de Arte Antiga Universidade Nova de lisboa Coleção do Museu de Lisboa / Câmara
Adelaide Lopes Filipa Lowndes Vicente, Instituto de Municipal de Lisboa: fig. 3.
Ana Rita Gonçalves Ciências Sociais da Universidade de Coleção Privada, Cortesia Galerie
Irina Duarte Lisboa Mendes – Paris: 22.
Marta Carvalho, Contrato Emprego- Joaquim Oliveira Caetano [JOC] copyright©patrimonio nacional:
Inserção + / iffp José Alberto Seabra Carvalho 63, 64.
Míriam Duarte, Contrato Emprego- Luísa Penalva Departamento do Património Histórico
Inserção + / iffp Maria João Vilhena de Carvalho e Artístico da Diocese de Beja: fig. 9.
Nuno Vassallo e Silva, Diretor-Geral do DGPC/ADF: 6, 25, 76, 77; fig. 37; Carlos
Ritmos Património Cultural Monteiro: 46; Francisco Matias: 132;
António Pedro Mendes Rui André Alves Trindade Giorgio Bordino: fig. 59; José Pessoa:
Rui Abreu Vitor Serrão, Historiador de Arte / 1, 3-5, 7-10, 15, 16, 19, 21, 23, 24, 26-30,
Pedro Fortes da Silva artis—Instituto de História da Arte 33-35, 38-40, 42, 44, 48, 51, 66-74, 79, 81,
Inês Silva da Faculdade de Letras da Universidade 83-89, 92-101, 104-108, 112-121, 123; figs.
Pedro Berga de Lisboa 25-27, 35, 36, 38-46, 53-58, 60, 61; Luísa
Sofia Machado Oliveira: 17, 20, 41, 43, 52; Manuel Palma:
Diana Ramos DESIGN GRÁFICO 133; Paulo Ruas: 14.
Margarida Barros fba./João Bicker DGPC/LJF/Luís Piorro: 11, 31, 32, 37, 45,
47, 49, 50, 53, 75, 78, 109-111, 22, 124.
PAGINAÇÃO Ex S.S.P.S.A.E e per il Polo Museale della
fba. /João Bicker e mnaa /Ana Sousa città di Firenze - Gabinetto Fotografico:
fig. 21.
APOIO TÉCNICO Foto Vitor Serrão: fig. 6.
Ramiro Gonçalves Foto Filipa Vicente: figs. 18, 22.
Francisco Fernández / Unidad Móvil: 61. IMPRESSÃO E ACABAMENTO O Museu Nacional de Arte Antiga
João Nunes da Silva: fig. 7. Imprensa Nacional-Casa da Moeda agradece a todos os particulares
Joaquim Real/Fundação da Casa de e instituições nacionais e estrangeiras
Bragança, Museu-Biblioteca da Casa de CAPA a generosa cedência de obras para esta
Bragança: 36. Pormenor de cat. 107 exposição, bem como a todos aqueles que,
Jorge Ricardo / Atelier 19: 55-60; fig. 48. Fotografia fba. / João Margalha por qualquer forma, colaboraram neste
Júlio Marques / msr / scml: fig. 4. projeto.
Município de Óbidos: 2; figs. 1, 2. © da edição mnaa e incm
© Museo Nacional del Prado. Madrid:
62, 90. ISBN
Museu de Aveiro: 125. 978-972-27-2374-9
Pedro Aboim Borges: 80.
Pedro Aguiar Branco: 18. DEPÓSITO LEGAL
Pedro Corrêa da Silva: 82. 390102/15
Pedro Lobo: 13, 54.
Pepe Morón: 65, 91. N.º DE EDIÇÃO
Photo © rmn-Grand Palais (musée du 1020497
Louvre) / René-Gabriel Ojéda: fig. 28.
© Rieunier & Associés – Paris: fig. 47. TIRAGEM
Roma, Accademia Nazionale di San Luca: 2000 exemplares
fig. 19.
Su concessione del Ministero dei beni
e attività culturali e del turismo, Polo
museale regionale del Piemonte: fig. 23.
The Raczyński Foundation at the
National Museum in Poznań: fig. 20.

PARCEIROS INSTITUCIONAIS

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