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Resumo
Realizo uma análise da demanda de reconhecimento do uso ritual da bebida
psicoativa ayahuasca como patrimônio imaterial da cultura brasileira. Trabalho com
a hipótese de que esta demanda implica numa transformação dos modos de
relacionamento destes grupos religiosos com outras esferas da sociedade e com o
Estado. Há uma alteração na forma de apresentação pública destas religiões: da
associação ao debate sobre drogas passa-se à definição da religião como cultura.
Comparo esse processo vivido por grupos religiosos ayahuasqueiros com o caso de
outras religiões brasileiras.
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014,
Natal/RN.
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O cipó Banisteriopsis caapi contém três alcalóides betacarbolínicos: harmalina, harmina e tetrahidroharmina. A espécie
vegetal Psichotria viridis, um arbusto, tem como princípio ativo um outro alcalóide, a DMT (N, N-dimetiltriptamina),
substância considerada a principal responsável pelo efeito visionário ou pelo caráter alucinógeno da referida bebida.
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Ayahuasca é um termo quíchua De acordo com Luís duardo Luna (1986), “aya” tem o sentido de “persona”,
“alma”,” espíritu muerto”; e “wasca” de “cuerda”, enradadera”, “liana”. Uma tradução possível para o português
seria: “corda dos espíritos” ou “cipó que condu aos mortos” O termo é um dos mais usados para designar tanto a bebida
quanto uma das plantas que a compõem: o cipó Banisteriopsis caapi. Nos grupos religiosos comentados aqui se combina
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o cipó Banisteriopsis caapi com as folhas da Psychotria viridis. A partir de um extenso processo ritual, o cipó e as folhas
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são cozidos e fervidos. O resultado final é uma bebida que será consumida nas cerimônias de todos esses grupos.
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Por isso, aliás, os assuntos relativos à regulação do uso da ayahuasca, no Brasil, foram tratados, sempre, por órgãos do
governo responsáveis pela elaboração de políticas de drogas, tais como o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN),
já extinto, e o atual Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), criado em 1998.
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estabelecidas por esses grupos religiosos na discussão sobre o registro da ayahuasca como
patrimônio cultural do Brasil.
Todo o debate sobre a regulação da ayahuasca contou, desde o início, com a
participação de pesquisadores de diferentes ciências. Estes pesquisadores participaram de
comissões estabelecidas pelos órgãos do governo, mediaram interlocuções entre estes
últimos e os grupos ayahuasqueiros, e elaboraram documentos que recomendavam tipos de
usos da ayahuasca. Nesse processo, concepções médicas, jurídicas, antropológicas etc.
penetraram no universo religioso ayahuasqueiro e, até certo ponto, orientaram, também,
posicionamentos públicos dos representantes desse universo. É importante investigar como
se dá esse movimento no caso das discussões atuais acerca da patrimonialização da
ayahuasca.
Neste ponto, cabe fornecer alguns esclarecimentos sobre o processo de pedido de
registro do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro. Em abril de 2008, três
grupos ligados às principais religiões ayahuasqueiras4, com o apoio da prefeitura de Rio
Branco e do governo do estado do Acre, encaminharam ao então Ministro da Cultura um
pedido de reconhecimento do uso da ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio
imaterial da cultura brasileira. O pedido foi direcionado ao Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico e Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura e
responsável pela política de patrimônio. A política de patrimônio imaterial é algo
relativamente recente na legislação brasileira. Embora ela já se colocasse através de certas
concepções defendidas na constituição de 1988, só em 2000, com a criação do decreto-lei
3551, é que se passou a ter um instrumento jurídico que permitisse a efetivação desse tipo
de política. O patrimônio imaterial abrange bens que não se limitam a uma natureza
material (como edifícios e objetos), tais como festas, tipos de artesanatos, certos ofícios (ou
saberes), práticas culturais diversas etc. O pedido dos grupos ayahuasqueiros procurava se
enquadrar nessa categoria de bens.
Em novembro de 2008, o IPHAN recusou o pedido de registro do uso da ayahuasca
como patrimônio cultural do Brasil sob a alegação de que comidas ou bebidas, assim como
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Os três grupos que fizeram o pedido foram: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo (CICLU- ALTO
SANTO), ligado à tradição do Santo Daime; Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, da
Barquinha; e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV), representando a União do Vegetal.
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A este respeito ver, também, a análise de Júlia O. dos Santos em um artigo (Santos 2010)
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O CEFLURIS é visto por grupos mais regionalistas, contrários à expansão, com desconfiança e, muitas vezes, associado,
por estes, a alterações ou deturpações da doutrina original fundada pelo estre rineu Os grupos denominados de “neo-
ayahuasqueiros” por eatri Labate (2004) consistem naqueles que buscam se caracteri ar por novos usos da ayahuasca,
mais “alternativos” e mais desvinculados do contexto religioso tradicional. Estes novos usos da ayahuasca fundem,
segundo a autora, aspectos lúdicos, espontâneos, psico-terapêuticos, artísticos, entre outros. Labate aproxima as práticas
dos neo-ayahuasqueiros do movimento da “Nova ra”
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para a sua inserção num debate sobre temas de patrimônio cultural. O que se torna evidente,
aqui, é que estes grupos procuram construir sua “identidade tradicional” sem se associarem
aos usos indígenas da ayahuasca, mesmo que admitindo a anterioridade desses últimos. Eles
visam, assim, legitimar sua posição de tradicionais ao se afirmarem como fundadores das
religiões ayahuasqueiras brasileiras não-indígenas ou como continuadores dos seus “troncos
fundadores”
É importante ressaltar que, antes do pedido de registro do uso ritual da ayahuasca
como patrimônio imaterial, um dos grupos responsáveis por esse pedido já havia
conseguido, junto ao governo do estado do Acre, o tombamento de construções localizadas
na área de sua comunidade. Estas instalações foram, então, consideradas patrimônio
histórico e cultural da cidade de Rio Branco e do estado do Acre7. Assim, o pedido de
registro do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial apenas dá continuidade a uma série
de ações empreendidas por grupos desse universo religioso, os quais procuram justamente
construir seu reconhecimento público ao se vincularem às discussões sobre patrimônio
cultural.
Os diálogos e negociações com órgãos governamentais têm implicado na introdução
de novos e diferentes sujeitos nesse debate. A instauração do Inventário de Referências
Culturais da Ayahuasca, nos moldes do IPHAN, por exemplo, incluiu representantes de
povos indígenas na discussão sobre um eventual reconhecimento da ayahuasca como
patrimônio imaterial do Brasil. Ao mesmo tempo, ao longo da realização do levantamento
de informações que o inventário implica, outros grupos ayahuasqueiros, que não estavam
envolvidos com o pedido inicial de registro, passaram a chamar a atenção dos técnicos do
IPHAN, em função de sua importância na região amazônica. Deste modo,
independentemente dos conflitos e diferenças entre os vários grupos desse universo
religioso, o debate sobre a patrimonialização coloca, certamente, a necessidade de novos
arranjos e alianças internas a esse universo, com a consideração de interlocutores antes
deixados de lado ou vistos como rivais.
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Trata-se de instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo, mais particularmente da igreja
construída pelo fundador do culto, o Mestre Irineu, e de seu túmulo, que é hoje local de visitação para fiéis de diferentes
grupos daimistas.
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CONSELHO NACIONAL ANTIDROGAS. Resolução n. 01, janeiro 2010. Diário Oficial da União.
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O grupo multidisciplinar de trabalho foi composto de seis pesquisadores das seguintes áreas: antropologia, farmácia,
bioquímica, psiquiatria, serviço social e jurídico; e, também, de seis representantes de diferentes grupos ayahuasqueiros.
Para uma análise mais profunda da formação deste grupo de trabalho, de sua dinâmica e de seus resultados ver o artigo de
Edward MacRae a esse respeito (MacRae, 2008).
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mostrou que, no caso espírita, a apresentação de práticas e crenças desses grupos como
“religiosas” se fe através da ênfase em noções como de “caridade” e “cura espiritual” No
caso dos cultos afro-brasileiros, Giumbelli diz que, em vários momentos, a apresentação da
“religi o” como “cultura” foi uma estratégia adotada pelos porta-vozes destes grupos no seu
movimento de busca de reconhecimento público. O autor lembra que uma série de outras
mobilizações, de demais grupos religiosos brasileiros atuais, como por exemplo certas
denominações evangélicas, tendem a expressar, cada vez mais, uma associação entre o
“religioso” e o “cultural”, muitas ve es subordinando o primeiro ao segundo Dissemina-se,
coloca Giumbelli, “um modo de presença do religioso no espaço público que passa pela
cultura” (Giumbelli, 2008, p 93)
A meu ver, esse movimento dinâmico de relações entre secular e religioso,
apontado por Giumbelli e Assad, também pode ser visualizado no caso das religiões
ayahuasqueiras. As discussões recentes que relacionam estas religiões ao tema do
patrimônio cultural trazem alterações ao modo pelo qual elas vêm construindo seu
reconhecimento no espaço público brasileiro, e destacam novas definições de “religi o”
apresentadas pelos diferentes representantes de grupos ayahuasqueiros.
Como coloquei, os grupos religiosos ayahuasqueiros que primeiro se envolveram na
demanda pelo registro do uso ritual da ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro se
apresentaram, inicialmente, como “comunidades tradicionais. Se a noção de tradição já
estava presente (e era acionada por integrantes destes grupos) no debate sobre a regulação
da bebida, informado pelo tema das drogas, agora ela é recolocada nas discussões sobre a
patrimonialização do uso da ayahuasca. Entretanto, a discussão passa a ser empreendida a
partir de uma nova ótica. O foco não é mais, necessariamente, a bebida e a sua (necessária)
distinção em relação a uma droga, e sim as referências culturais destes grupos e sua
colocação pública como “cultura”
Nesse ponto vale lembrar um conjunto de reflexões sobre o uso político da cultura,
em situações sociais contemporâneas, empreendidas por um autor como Marshall Sahlins
(1997 e 2007). Sahlins analisa como a categoria analítica de cultura, ao mesmo tempo em
que é questionada na antropologia atual, é cada vez mais recorrente entre os povos
convencionalmente estudados por esta ciência, sendo transformada por eles em argumento
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político. Nesse contexto, o conceito de cultura adquire toda uma relevância nas políticas de
construções de identidades étnicas.
Manuela Carneiro da Cunha (2009) se apoia em Sahlins para analisar as demandas
de povos indígenas do tronco linguístico Pano, situados na Amazônia brasileira, com
relação aos seus direitos intelectuais sobre os seus conhecimentos designados de
tradicionais10. Carneiro da Cunha faz uma distinção entre o que ela denomina de cultura no
sentido convencional e a cultura entre aspas, a qual justamente se refere a esse uso político
da cultura feita por povos tradicionais. Para a autora, a cultura entre aspas envolve uma
invenção feita a partir (ou sobre) da cultura sem aspas la é um “metadiscurso reflexivo
sobre a cultura” (Carneiro da Cunha, 2009, p 373), e um recurso para se afirmarem
identidades (e poder) diante de Estados nacionais e comunidades internacionais. Essa
cultura com aspas, segundo Carneiro da Cunha, coexiste com a outra cultura – esquemas
que organizam a percepção e ação das pessoas no mundo -, mas é diferente desta e, na
relação entre ambas, novas coisas e realidades são produzidas.
É possível visualizar no caso da construção da legitimidade social das religiões
ayahuasqueiras processos similares àqueles destacados por Sahlins e Carneiro da Cunha.
Trabalho com a hipótese de que a recente discussão sobre o reconhecimento do uso ritual da
ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil pode produzir novas definições de
“religioso” no interior destes grupos. Tais definições podem destacar diferentes articulações
e aproximações entre “religi o” e “cultura”, com uma subordinaç o da primeira à segunda
ou, inversamente, da segunda à primeira. Nesse movimento, as relações entre enunciados de
“religi o”, de “cultura”, de “tradicional” etc podem expressar diversos significados e
envolver diferentes modos de construção de reconhecimento público, numa dinâmica na
qual esferas religiosas e não-religiosas se interconectam.
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A autora se detem mais particularmente nas discussões acerca de uma secreção de uma rã arborícola, conhecida como
“vacina de sapo”, e que se populari ou também com o nome pano “Kampo” No rasil, os grupos indígenas que
demandam os direitos intelectuais sobre o Kampo são, principalmente, os Yawanawa, Kaxinawa e Katukina. Vale
ressaltar que todos esses grupos consomem, também, a mesma bebida psicoativa utilizada nas religiões ayahuasqueiras.
Por outro lado, vários fiéis destas últimas, mais recentemente, começaram a desenvolver novos usos do Kampo.
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