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Articulações entre religião, política e cultura: o caso das religiões


ayahuasqueiras do Brasil

Sandra Lucia Goulart


Faculdade Cásper Líbero/ São Paulo/ Brasil

Resumo
Realizo uma análise da demanda de reconhecimento do uso ritual da bebida
psicoativa ayahuasca como patrimônio imaterial da cultura brasileira. Trabalho com
a hipótese de que esta demanda implica numa transformação dos modos de
relacionamento destes grupos religiosos com outras esferas da sociedade e com o
Estado. Há uma alteração na forma de apresentação pública destas religiões: da
associação ao debate sobre drogas passa-se à definição da religião como cultura.
Comparo esse processo vivido por grupos religiosos ayahuasqueiros com o caso de
outras religiões brasileiras.

Religião; Ayahuasca; Patrimônio

Introdução: Objeto e Objetivos da Pesquisa

Pretendo analisar, aqui, a mobilização de grupos religiosos ayahuasqueiros


brasileiros tendo em vista o reconhecimento do uso ritual da ayahuasca como patrimônio
imaterial da cultura brasileira. Esses grupos religiosos começam a ser organizados, na
região amazônica brasileira, a partir do início dos anos trinta do século passado. Todos eles
têm em comum a utilização ritual de uma mesma bebida psicoativa, uma cocção composta
pela combinação de duas plantas: um cipó, cujo nome científico é Banisteriopsis caapi e as
folhas de um arbusto, a Psichotria viridis1. Esta bebida recebe em alguns desses grupos a


Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014,
Natal/RN.
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O cipó Banisteriopsis caapi contém três alcalóides betacarbolínicos: harmalina, harmina e tetrahidroharmina. A espécie
vegetal Psichotria viridis, um arbusto, tem como princípio ativo um outro alcalóide, a DMT (N, N-dimetiltriptamina),
substância considerada a principal responsável pelo efeito visionário ou pelo caráter alucinógeno da referida bebida.

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designação de Daime, e em outros de Vegetal. O termo ayahuasca2 também é usado para


designar a bebida, sendo mais recorrente entre não adeptos destes grupos e entre estudiosos
do tema. Daí, inclusive, nascem as noções de “religiões ayahuasqueiras” ou “religiões da
ayahuasca”, as quais foram emergindo conforme se formou um campo de estudos sobre
esse fenômeno.
Em termos cronológicos, a primeira religi o ayahuasqueira que se organi ou no
rasil foi a criada por aimundo rineu erra chamado por seus seguidores de estre
rineu no início dos anos trinta, em io ranco, no cre sse grupo religioso, com o
passar do tempo, ficará conhecido também como Santo Daime, em decorrência do fato da
bebida ser designada, por seus adeptos, de Daime.
Em 1945, surge outro grupo religioso ayahuasqueiro em Rio Branco, o qual mais
tarde passará a ser conhecido pela designação Barquinha. Este grupo foi organizado por
Daniel Pereira de Mattos, o Mestre Daniel. A denominação Barquinha refere-se a uma
barca ou embarcação, associando-se à própria missão religiosa do Mestre Daniel e de seus
seguidores. Como mostram vários autores (Araújo, 1999; Goulart, 2004), a imagem da
barca é bem destacada no hinário do Mestre Daniel, onde se mencionam, com frequência,
Barquinhas, naus ou viagens marítimas. Vale ressaltar que o fundador desta religião
ayahuasqueira foi piloto fluvial durante um período de sua vida.
Em 1961, surge aquela que é, historicamente, a terceira religião brasileira
organizada a partir do uso da ayahuasca, a União do Vegetal ou UDV. Este grupo religioso
foi fundado por José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, numa região de fronteira entre o
Brasil e a Bolívia. Em 1965, o Mestre Gabriel se muda para Porto Velho, em Rondônia, e
passa a organizar a UDV nessa cidade. Em 1970, o nome oficial do grupo criado pelo
Mestre Gabriel, com o qual ele foi registrado em cartório, tornou-se Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal (CEBUDV). Nos grupos da UDV, de modo diferente do que
ocorre nas duas outras religiões ayahuasqueiras, a bebida não é chamada de Daime, mas de
Vegetal.

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Ayahuasca é um termo quíchua De acordo com Luís duardo Luna (1986), “aya” tem o sentido de “persona”,
“alma”,” espíritu muerto”; e “wasca” de “cuerda”, enradadera”, “liana”. Uma tradução possível para o português
seria: “corda dos espíritos” ou “cipó que condu aos mortos” O termo é um dos mais usados para designar tanto a bebida
quanto uma das plantas que a compõem: o cipó Banisteriopsis caapi. Nos grupos religiosos comentados aqui se combina

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Em todas essas religiões, o falecimento de seus fundadores estimulou um processo


de rupturas e formação de novos grupos. Após a morte do Mestre Irineu, em 1971, surgiram
segmentações no grupo originalmente criado por ele. A maior delas, em termos de números
de adeptos envolvidos, foi aquela representada pelo grupo daimista do CEFLURIS (Centro
Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra), criado, em 1974, por Sebastião
ota de elo, chamado por seus seguidores de “padrinho ebasti o” ste grupo se
estabeleceu, inicialmente, numa região rural de Rio Branco, mas, nos anos oitenta,
estabeleceu a sua principal comunidade no interior da floresta da Amazônica, no município
amazonense de Pauni, às margens de um braço do rio Purus. Simultaneamente, esse grupo
daimista iniciou um movimento de expansão para fora do Acre e da região amazônica,
fundando centros em diferentes cidades do Brasil e conquistando novos fiéis, de um novo
perfil social. Mais tarde, a partir dos anos noventa, essa expansão se dá, também, para fora
do Brasil. O CEFLURIS é, assim, um grupo daimista expansionista, se opondo, nesse
sentido, a outros grupos desta tradição religiosa, mais regionalistas e contrários a um
movimento de expansão do uso da ayahuasca.
O Mestre Daniel, fundador do grupo que ficou conhecido como Barquinha, morreu
em 1958 e, aos poucos, começaram a surgir, também, diferentes centros que se colocam
como seguidores do culto criado por ele. Entretanto, a maior parte destes grupos se situa no
Acre e, até o momento, não há um movimento de expansão, com a criação frequente de
grupos ligados à tradição da Barquinha em diversas regiões do país e no exterior, tal como
acontece no CEFLURIS.
O Mestre Gabriel, criador da União do Vegetal, faleceu no mesmo ano que o Mestre
Irineu, em 1971. Na UDV existe uma organização hierárquica rígida que parece ter o efeito
de controlar um processo de fragmentação e de dissidências, embora ele também ocorra,
mas em menor medida. A UDV conta com um processo de expansão intenso, com fiéis em
diversas cidades brasileiras e também no exterior. Como o CEFLURIS, ela é uma religião
ayahuasqueira mais expansionista.
Neste artigo quero direcionar minha atenção para os modos como esses grupos
religiosos vêm construindo seus relacionamentos com diversos agentes da sociedade e com

o cipó Banisteriopsis caapi com as folhas da Psychotria viridis. A partir de um extenso processo ritual, o cipó e as folhas

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Estado, no seu movimento de legitimação social e de reconhecimento público. Nesse


sentido, meu objetivo é desenvolver uma reflexão que privilegia as relações entre a esfera
religiosa e a não religiosa.
O processo de construção da legitimação social das religiões ayahuasqueiras
brasileiras, assim como suas negociações com o Estado brasileiro, se intensifica conforme
se dá seu movimento de expansão, o que ocorre, principalmente, a partir dos anos oitenta.
Desde esse período, os grupos ayahuasqueiros têm sido vinculados a um debate sobre a
questão das drogas na sociedade contemporânea. As ações e o interesse do Estado brasileiro
em relação a esse fenômeno vêm se norteando pelas discussões acerca da regulação do uso
da bebida psicoativa ayahuasca, colocada sob suspeita ao ser classificada como droga3.
A discussão sobre o registro do uso ritual da ayahuasca como patrimônio cultural
brasileiro marca uma mudança no processo de legitimação social desses grupos e nas suas
formas de relacionamento com a sociedade mais abrangente e o Estado. O ponto central vai
deixando de ser o debate sobre as drogas e a questão da regulação da bebida ayahuasca, e
passa a ser a apresentação de práticas destes grupos religiosos como aspectos culturais.
Conforme já argumentei (Goulart, 2008), a inserção destas religiões num debate
público sobre as drogas provocou nelas uma série de transformações. Um conjunto
específico de significados e práticas relativas aos usos da ayahuasca passou a ser mais ou
menos enfatizado e, em última instância, alteraram-se as concepções destes grupos sobre si
mesmos. A associação das religiões ayahuasqueiras ao tema das drogas estimulou várias
acusações, entre esses grupos, sobre o uso indevido da bebida e, simultaneamente,
contribuiu para a generalização, nesse universo religioso, da recusa da identificação da
bebida a uma droga psicoativa.
Apesar das diferenças existentes entre esses grupos, foram realizados vários acordos
entre eles, os quais buscavam definir consensos sobre as formas de consumo da ayahuasca.
As negociações com a esfera pública levaram as religiões ayahuasqueiras a construírem
estratégias comuns. Tratava-se, assim, de elaborar uma identidade mais genérica, que
passasse por cima das distinções entre os vários grupos. O processo de regulação e

são cozidos e fervidos. O resultado final é uma bebida que será consumida nas cerimônias de todos esses grupos.

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legalização da ayahuasca, pelo governo brasileiro, conduziu à delimitação de um espaço de


“usos inadequados da bebida”, classificados como “não religiosos” ou “n o rituais”, e que
são identificados ao consumo de drogas ou de substâncias ilícitas. O que a discussão sobre
o reconhecimento do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial nacional coloca de novo
nesse cenário? Os debates sobre a regulamentação da bebida ayahuasca produziram um
controle, no próprio interior destes grupos religiosos, sobre a manifestação de diferentes
tipos de práticas e concepções ligadas à bebida. O que o tema da patrimonialização altera
nesse universo religioso?
É possível supor que esse novo debate impulsione, nesse campo religioso, esforços
no sentido de delimitar matrizes culturais mais ou menos relevantes, ligadas à história
desses grupos. Será que poderemos identificar uma disputa, entre os vários grupos
ayahuasqueiros, com relação a uma associação maior ou menor em relação a essas
matrizes? Em meu doutorado (Goulart, 2004), mostrei como elementos de diferentes
tradições religiosas ou culturais são acionados pelos membros desses grupos para marcar
contrastes ou aproximações entre eles ssim, por exemplo, mais ou menos “africano”,
“umbandista”, “espírita”, “crist o”, “xamânico”, “indígena” etc funcionam como
categorias que se alinham ou se opõem, em diversas situações, a outras categorias, tais
como: uma maior ou menor “autenticidade”, “pure a”, “tradiç o”, “evoluç o”,
“deturpaç o” etc Talvez a discussão sobre o registro do uso da ayahuasca como patrimônio
cultural brasileiro provoque um realinhamento dessas categorias.
Ao mesmo tempo é preciso refletir sobre a identidade comum que estas religiões
estão reforçando ao se inserirem no debate sobre a patrimonialização do uso da ayahuasca.
Em outras palavras, atentar para seus esforços e estratégias comuns, no seu diálogo com o
Estado e na sua manifestação numa esfera pública. Aqui é importante ressaltar, contudo,
que esse diálogo implica em uma série de mediações, empreendidas por vários agentes, e
não apenas num relacionamento com o Estado. Assim, de modo análogo ao que ocorreu no
debate sobre a legalização da ayahuasca, a mídia, as diversas áreas da ciência, da academia
e diferentes órgãos do governo também podem influenciar as negociações e demandas

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Por isso, aliás, os assuntos relativos à regulação do uso da ayahuasca, no Brasil, foram tratados, sempre, por órgãos do
governo responsáveis pela elaboração de políticas de drogas, tais como o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN),
já extinto, e o atual Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), criado em 1998.

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estabelecidas por esses grupos religiosos na discussão sobre o registro da ayahuasca como
patrimônio cultural do Brasil.
Todo o debate sobre a regulação da ayahuasca contou, desde o início, com a
participação de pesquisadores de diferentes ciências. Estes pesquisadores participaram de
comissões estabelecidas pelos órgãos do governo, mediaram interlocuções entre estes
últimos e os grupos ayahuasqueiros, e elaboraram documentos que recomendavam tipos de
usos da ayahuasca. Nesse processo, concepções médicas, jurídicas, antropológicas etc.
penetraram no universo religioso ayahuasqueiro e, até certo ponto, orientaram, também,
posicionamentos públicos dos representantes desse universo. É importante investigar como
se dá esse movimento no caso das discussões atuais acerca da patrimonialização da
ayahuasca.
Neste ponto, cabe fornecer alguns esclarecimentos sobre o processo de pedido de
registro do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro. Em abril de 2008, três
grupos ligados às principais religiões ayahuasqueiras4, com o apoio da prefeitura de Rio
Branco e do governo do estado do Acre, encaminharam ao então Ministro da Cultura um
pedido de reconhecimento do uso da ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio
imaterial da cultura brasileira. O pedido foi direcionado ao Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico e Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura e
responsável pela política de patrimônio. A política de patrimônio imaterial é algo
relativamente recente na legislação brasileira. Embora ela já se colocasse através de certas
concepções defendidas na constituição de 1988, só em 2000, com a criação do decreto-lei
3551, é que se passou a ter um instrumento jurídico que permitisse a efetivação desse tipo
de política. O patrimônio imaterial abrange bens que não se limitam a uma natureza
material (como edifícios e objetos), tais como festas, tipos de artesanatos, certos ofícios (ou
saberes), práticas culturais diversas etc. O pedido dos grupos ayahuasqueiros procurava se
enquadrar nessa categoria de bens.
Em novembro de 2008, o IPHAN recusou o pedido de registro do uso da ayahuasca
como patrimônio cultural do Brasil sob a alegação de que comidas ou bebidas, assim como

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Os três grupos que fizeram o pedido foram: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo (CICLU- ALTO
SANTO), ligado à tradição do Santo Daime; Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, da
Barquinha; e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV), representando a União do Vegetal.

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crenças, filosofias e teologias, não constituem em si bens culturais passíveis de registro,


mas sim, referências para a produção e reprodução de práticas culturais. Entretanto, apesar
da recusa do pedido, o IPHAN recomendou a realização de uma investigação dos usos
rituais da ayahuasca e de seu papel na constituição de referências culturais para os grupos
sociais envolvidos. O IPHAN recomendou, também, que essa investigação incluísse uma
ampla pesquisa, que abarcasse os usos da ayahuasca indígenas até os seus usos atuais. A
investigação sugerida pelo IPHAN segue os moldes dos procedimentos preliminares deste
órgão para um eventual registro de bens imateriais como patrimônio. Trata-se do
procedimento designado Inventário de Referências Culturais.
No final de 2011, o IPHAN do Acre abriu concorrência pública para empresas que
estivessem interessadas em empreender o inventário. Com o resultado da concorrência, em
fevereiro de 2012, o Inventário de Referências Culturais foi iniciado, e a realização de sua
primeira fase de trabalho foi concluída no início de 2013. Para que o IPHAN chegue,
contudo, a uma conclusão final sobre o tema e, eventualmente, empreenda, de fato, o
registro do uso ritual da ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro, é necessário uma
segunda fase de pesquisas do Inventário de Referências Culturais, o que ainda não foi feito.
Uma noção que vêm se destacando na demanda destes grupos pelo registro do uso
ritual da ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro é a autodenominação, que parece
estar se tornando recorrente, entre eles, de “comunidades tradicionais”5. Os três grupos que
entraram com o pedido junto ao Ministério da Cultura, se colocam, no documento entregue,
como “comunidades tradicionais da ayahuasca”, se distinguindo das “comunidades
originárias” (dos povos indígenas) e das “comunidades ecléticas” (representadas por grupos
ayahuasqueiros vistos por eles como “menos tradicionais”, tal como o CEFLURIS e os neo-
ayahuasqueiros6). Estas designações e diferenciações foram apresentadas pelos grupos
solicitantes do pedido, e têm feito parte de um vocabulário e de um repertório mais recente,
o qual justamente está ligado aos esforços e demandas, de alguns desses grupos, voltados

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A este respeito ver, também, a análise de Júlia O. dos Santos em um artigo (Santos 2010)
6
O CEFLURIS é visto por grupos mais regionalistas, contrários à expansão, com desconfiança e, muitas vezes, associado,
por estes, a alterações ou deturpações da doutrina original fundada pelo estre rineu Os grupos denominados de “neo-
ayahuasqueiros” por eatri Labate (2004) consistem naqueles que buscam se caracteri ar por novos usos da ayahuasca,
mais “alternativos” e mais desvinculados do contexto religioso tradicional. Estes novos usos da ayahuasca fundem,
segundo a autora, aspectos lúdicos, espontâneos, psico-terapêuticos, artísticos, entre outros. Labate aproxima as práticas
dos neo-ayahuasqueiros do movimento da “Nova ra”

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para a sua inserção num debate sobre temas de patrimônio cultural. O que se torna evidente,
aqui, é que estes grupos procuram construir sua “identidade tradicional” sem se associarem
aos usos indígenas da ayahuasca, mesmo que admitindo a anterioridade desses últimos. Eles
visam, assim, legitimar sua posição de tradicionais ao se afirmarem como fundadores das
religiões ayahuasqueiras brasileiras não-indígenas ou como continuadores dos seus “troncos
fundadores”
É importante ressaltar que, antes do pedido de registro do uso ritual da ayahuasca
como patrimônio imaterial, um dos grupos responsáveis por esse pedido já havia
conseguido, junto ao governo do estado do Acre, o tombamento de construções localizadas
na área de sua comunidade. Estas instalações foram, então, consideradas patrimônio
histórico e cultural da cidade de Rio Branco e do estado do Acre7. Assim, o pedido de
registro do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial apenas dá continuidade a uma série
de ações empreendidas por grupos desse universo religioso, os quais procuram justamente
construir seu reconhecimento público ao se vincularem às discussões sobre patrimônio
cultural.
Os diálogos e negociações com órgãos governamentais têm implicado na introdução
de novos e diferentes sujeitos nesse debate. A instauração do Inventário de Referências
Culturais da Ayahuasca, nos moldes do IPHAN, por exemplo, incluiu representantes de
povos indígenas na discussão sobre um eventual reconhecimento da ayahuasca como
patrimônio imaterial do Brasil. Ao mesmo tempo, ao longo da realização do levantamento
de informações que o inventário implica, outros grupos ayahuasqueiros, que não estavam
envolvidos com o pedido inicial de registro, passaram a chamar a atenção dos técnicos do
IPHAN, em função de sua importância na região amazônica. Deste modo,
independentemente dos conflitos e diferenças entre os vários grupos desse universo
religioso, o debate sobre a patrimonialização coloca, certamente, a necessidade de novos
arranjos e alianças internas a esse universo, com a consideração de interlocutores antes
deixados de lado ou vistos como rivais.

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Trata-se de instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo, mais particularmente da igreja
construída pelo fundador do culto, o Mestre Irineu, e de seu túmulo, que é hoje local de visitação para fiéis de diferentes
grupos daimistas.

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O movimento de expansão das religiões ayahuasqueiras trouxe a estas uma maior


visibilidade e implicou em transformações na imagem social desses grupos. Ao mesmo
tempo, conduziu à emergência de novos tipos de relacionamentos entre estes grupos e o
Estado, bem como com outras esferas da sociedade. Como coloquei anteriormente, é
principalmente a partir desta expansão que se intensificam uma série de ações do governo
brasileiro visando à análise da bebida ayahuasca e de seus usos nesses grupos religiosos.
Nesse sentido, é possível dizer que a legitimação social destes grupos, isto é, o seu
reconhecimento público como religiões, a partir dos anos oitenta, passou a depender de
investigações sobre a bebida psicoativa utilizada por eles em suas práticas rituais.
No Brasil, o uso da ayahuasca já esteve ameaçado de proibição legal em diversas
ocasiões. Em 1985, ele foi suspenso, e a ayahuasca foi incluída pela Divisão de
Medicamentos do Ministério da Saúde (DIMED) na lista de substâncias psicotrópicas
proibidas durante um período de quase um ano. O episódio levou o antigo Conselho Federal
de Entorpecentes (CONFEN), em 1986, a constituir uma comissão, formada por
especialistas de diferentes áreas, para avaliar o uso que os vários grupos religiosos faziam
da ayahuasca. Em 1987, quando a comissão do CONFEN concluiu seus trabalhos, este
órgão liberou o uso da ayahuasca, mas com a recomendação de que ela fosse consumida
apenas para fins religiosos e ritualísticos.
No último documento aprovado pelo governo brasileiro sobre esse tema o uso
religioso da ayahuasca é sancionado juridicamente8. O documento foi produzido pelo
Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), e sua elaboração resultou das discussões e
avaliações desenvolvidas por um grupo de trabalho composto de especialistas do tema,
principalmente da área biomédica, mas também das ciências humanas, e de representantes
dos principais grupos dessas religiões9. O documento do CONAD se fundamenta no
princípio da garantia do direito constitucional do livre exercício de culto e fé. O princípio
da liberdade religiosa e a garantia de proteção, dada pelo Estado, às manifestações culturais
populares, indígenas e afro-brasileiras serve de base para a defesa do uso religioso da

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CONSELHO NACIONAL ANTIDROGAS. Resolução n. 01, janeiro 2010. Diário Oficial da União.
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O grupo multidisciplinar de trabalho foi composto de seis pesquisadores das seguintes áreas: antropologia, farmácia,
bioquímica, psiquiatria, serviço social e jurídico; e, também, de seis representantes de diferentes grupos ayahuasqueiros.
Para uma análise mais profunda da formação deste grupo de trabalho, de sua dinâmica e de seus resultados ver o artigo de
Edward MacRae a esse respeito (MacRae, 2008).

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ayahuasca. O documento, portanto, regulamenta, recomenda e sanciona apenas os usos


religiosos da bebida. Além disso, ele contém um conjunto de princípios que indicam quais
os usos adequados da ayahuasca e, ao mesmo tempo, quais aqueles que devem ser
combatidos. Entre estes últimos, destacam-se a comercialização ou a promoção turística da
bebida.
Ao negociar com o Estado essas religiões se associam, criam alianças, e se
apresentam de uma forma mais uniforme. Além disso, no entanto, todo esse processo de
reconhecimento público conduz a reordenamentos no interior desse universo religioso,
valorizando, destacando ou, ao contrário, estigmatizando certas práticas e concepções.
Assim, os usos da ayahuasca, sancionados pelo governo brasileiro, cumprem um papel de
demarcar a adequação dos diferentes elementos dessas religiões.
Entretanto, estas religiões se constroem a partir de um relacionamento complexo não
só com o Estado, mas também com outras esferas e agentes da sociedade. Nesse sentido,
tem sido importante a atuação de representantes de diversos campos da ciência. Uma breve
reflexão sobre a expressão religiões ayahuasqueiras pode iluminar esse ponto. Essa
expressão é, atualmente, bastante utilizada por estudiosos da temática, tendo em parte se
tornado popular a partir desses estudos. Entretanto, os primeiros trabalhos acadêmicos
sobre esse fenômeno não recorriam a essa noção e utilizavam com mais frequência termos e
designações que eram até então bastante comuns entre os adeptos destes grupos, tais como
cultos ou doutrinas. Podemos, então, supor que a generalização da expressão religiões
ayahuasqueiras, ao menos parte, é fruto de um processo de negociações e relacionamentos
destes grupos com o Estado brasileiro e com outras esferas e agentes da sociedade (ciência,
pesquisadores, mídia etc.). É por isso que sustento que estes grupos se elaboram, também, a
partir desses relacionamentos. Se hoje eles se representam como “religiões tradicionais”
isso resulta de uma interlocução complexa com o Estado e com várias outras esferas da
sociedade mais abrangente.
Certamente a inserção destas religiões numa discussão sobre patrimônio cultural
pode implicar em alterações no formato dessas interlocuções complexas. O debate sobre a
legalização da bebida parece ter criado ou reforçado as noções de “usos religiosos da
ayahuasca”, de “religiões tradicionais” e até de “religiões ayahuasqueiras brasileiras”. Que

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tipos de autorrepresentações destes grupos poderiam ser enfatizadas com o reconhecimento


de suas práticas como patrimônio cultural do Brasil?
Conforme coloquei anteriormente, o meu objetivo é destacar uma reflexão sobre as
relações entre esferas religiosas e não religiosas na sociedade contemporânea. É a partir
desse enfoque mais geral que estou pensando o caso das religiões ayahuasqueiras
brasileiras. Nesse sentido, a minha perspectiva se alinha teoricamente a de outros autores
que tendem a ressaltar, em suas análises, a dimensão política dos fenômenos religiosos
atuais. Inspiro-me, em particular, em discussões feitas pelo antropólogo Emerson Giumbelli
(2008), a respeito das formas pelas quais algumas religiões se apresentam num espaço
público. Giumbelli pensa especificamente o caso brasileiro, procurando analisar como
diferentes expressões religiosas, tais como o catolicismo, o espiritismo, os cultos de matriz
africana, em momentos históricos diferentes, constroem sua presença no espaço público.
Ele está preocupado em compreender como estas diferentes manifestações religiosas
alcançaram uma legitimidade social. De acordo com Giumbelli, para se tornar reconhecidas
publicamente, cada uma delas necessitou construir definições específicas de religião.
Giumbelli se fundamenta na perspectiva desenvolvida por Talal Asad (1993 e 2003),
autor que revê criticamente o tema weberiano da secularização no mundo moderno. Asad
pensa a modernidade a partir de uma dinâmica complexa entre secular e religioso. Para ele,
secularidade e religiosidade são pares que se vinculam estreitamente. Deste modo, se
explica porque o religioso não só não desapareceu no mundo contemporâneo, como, ao
contrário, se manifesta com intensidade no mesmo. As novas expressões religiosas, afirma
Asad, emergem em Estados laicos modernos, mas, ao mesmo tempo, elas não podem
ignorar a lógica secular, a laicidade, mas se constroem também a partir da consideração
destas lógicas. Giumbelli sustenta que, do mesmo modo, várias expressões religiosas, no
Brasil, ao invés de se oporem à secularização, se elaboraram no seu interior. Assim, o
compromisso jurídico do Estado brasileiro com o princípio de laicidade, expresso nos
princípios particulares de autonomia e liberdade religiosas, propiciou a presença de diversas
formas de religiosidades na nossa esfera pública.
Giumbelli analisou quais tipos de definições de religião permitiram a acolhida, no
espaço público brasileiro, de grupos católicos, espíritas e afro-brasileiros, entre outros. Ele

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mostrou que, no caso espírita, a apresentação de práticas e crenças desses grupos como
“religiosas” se fe através da ênfase em noções como de “caridade” e “cura espiritual” No
caso dos cultos afro-brasileiros, Giumbelli diz que, em vários momentos, a apresentação da
“religi o” como “cultura” foi uma estratégia adotada pelos porta-vozes destes grupos no seu
movimento de busca de reconhecimento público. O autor lembra que uma série de outras
mobilizações, de demais grupos religiosos brasileiros atuais, como por exemplo certas
denominações evangélicas, tendem a expressar, cada vez mais, uma associação entre o
“religioso” e o “cultural”, muitas ve es subordinando o primeiro ao segundo Dissemina-se,
coloca Giumbelli, “um modo de presença do religioso no espaço público que passa pela
cultura” (Giumbelli, 2008, p 93)
A meu ver, esse movimento dinâmico de relações entre secular e religioso,
apontado por Giumbelli e Assad, também pode ser visualizado no caso das religiões
ayahuasqueiras. As discussões recentes que relacionam estas religiões ao tema do
patrimônio cultural trazem alterações ao modo pelo qual elas vêm construindo seu
reconhecimento no espaço público brasileiro, e destacam novas definições de “religi o”
apresentadas pelos diferentes representantes de grupos ayahuasqueiros.
Como coloquei, os grupos religiosos ayahuasqueiros que primeiro se envolveram na
demanda pelo registro do uso ritual da ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro se
apresentaram, inicialmente, como “comunidades tradicionais. Se a noção de tradição já
estava presente (e era acionada por integrantes destes grupos) no debate sobre a regulação
da bebida, informado pelo tema das drogas, agora ela é recolocada nas discussões sobre a
patrimonialização do uso da ayahuasca. Entretanto, a discussão passa a ser empreendida a
partir de uma nova ótica. O foco não é mais, necessariamente, a bebida e a sua (necessária)
distinção em relação a uma droga, e sim as referências culturais destes grupos e sua
colocação pública como “cultura”
Nesse ponto vale lembrar um conjunto de reflexões sobre o uso político da cultura,
em situações sociais contemporâneas, empreendidas por um autor como Marshall Sahlins
(1997 e 2007). Sahlins analisa como a categoria analítica de cultura, ao mesmo tempo em
que é questionada na antropologia atual, é cada vez mais recorrente entre os povos
convencionalmente estudados por esta ciência, sendo transformada por eles em argumento

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político. Nesse contexto, o conceito de cultura adquire toda uma relevância nas políticas de
construções de identidades étnicas.
Manuela Carneiro da Cunha (2009) se apoia em Sahlins para analisar as demandas
de povos indígenas do tronco linguístico Pano, situados na Amazônia brasileira, com
relação aos seus direitos intelectuais sobre os seus conhecimentos designados de
tradicionais10. Carneiro da Cunha faz uma distinção entre o que ela denomina de cultura no
sentido convencional e a cultura entre aspas, a qual justamente se refere a esse uso político
da cultura feita por povos tradicionais. Para a autora, a cultura entre aspas envolve uma
invenção feita a partir (ou sobre) da cultura sem aspas la é um “metadiscurso reflexivo
sobre a cultura” (Carneiro da Cunha, 2009, p 373), e um recurso para se afirmarem
identidades (e poder) diante de Estados nacionais e comunidades internacionais. Essa
cultura com aspas, segundo Carneiro da Cunha, coexiste com a outra cultura – esquemas
que organizam a percepção e ação das pessoas no mundo -, mas é diferente desta e, na
relação entre ambas, novas coisas e realidades são produzidas.
É possível visualizar no caso da construção da legitimidade social das religiões
ayahuasqueiras processos similares àqueles destacados por Sahlins e Carneiro da Cunha.
Trabalho com a hipótese de que a recente discussão sobre o reconhecimento do uso ritual da
ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil pode produzir novas definições de
“religioso” no interior destes grupos. Tais definições podem destacar diferentes articulações
e aproximações entre “religi o” e “cultura”, com uma subordinaç o da primeira à segunda
ou, inversamente, da segunda à primeira. Nesse movimento, as relações entre enunciados de
“religi o”, de “cultura”, de “tradicional” etc podem expressar diversos significados e
envolver diferentes modos de construção de reconhecimento público, numa dinâmica na
qual esferas religiosas e não-religiosas se interconectam.

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A autora se detem mais particularmente nas discussões acerca de uma secreção de uma rã arborícola, conhecida como
“vacina de sapo”, e que se populari ou também com o nome pano “Kampo” No rasil, os grupos indígenas que
demandam os direitos intelectuais sobre o Kampo são, principalmente, os Yawanawa, Kaxinawa e Katukina. Vale
ressaltar que todos esses grupos consomem, também, a mesma bebida psicoativa utilizada nas religiões ayahuasqueiras.
Por outro lado, vários fiéis destas últimas, mais recentemente, começaram a desenvolver novos usos do Kampo.

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