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Perspectivas, São Paulo

7:81-93, 1984.

RELIGIÃO, LITERATURA E IDEOLOGIA: ALGUNS


INDICADORES SOBRE AS M U D A N Ç A S OCORRIDAS NOS
CULTOS UMBANDISTAS A PARTIR DA
D É C A D A DE 60

Antônio Talora D E L G A D O S O B R I N H O *

RESUMO: A partir dos anos 60, há uma invasão da classe média na religião umbandista e, com is-
so, ocorrem alterações no culto, na doutrina e na organização dos templos. O índio passa a ser a figura
central da prática religiosa, mas não o índio real e sim o idealizado pelo movimento romântico brasilei-
ro.

UNITERMOS: Umbanda; espíritos; legiões; falanges; ideologia; romantismo; literatura e india-


nismo.

Nas pesquisas que realizei em Terrei- lho, não menos importante foram as pes-
ros sempre me despertou a atenção o di- quisas de campo, frutos da observação
namismo e a abertura dessa crença religio- participante do autor durante o período
sa que vem absorvendo os mais diferentes de 1964 até a presente data.
estratos sociais da p o p u l a ç ã o brasileira. Assim, nota-se que na década de 60,
Nesta circunstância torna-se difícil a Umbanda começa sua o p ç ã o pelo índio
traçar um perfil exato dos seus seguidores em detrimento do negro (preto-velho) até
que compõem-se de uma gama altamente então a entidade espiritual mais valoriza-
diversificada de indivíduos portadores das da. Esta opção e suas implicações subja-
mais variadas tendências e ocupantes de centes é o que se p r o c u r a r á demonstrar no
vários postos sociais, o que permite dizer presente trabalho.
que, a Umbanda na atualidade permeia os Analisando-se alguns livros de cará-
diferentes segmentos sociais, desde os ter essencialmente doutrinário sobre a
mais baixos até os mais altos escalões. Umbanda nota-se uma m u d a n ç a acentua-
Nesta pesquisa procurou-se proceder da em determinados aspectos que põem
a um estudo bibliográfico tanto específi- em evidência algums problemas funda-
co, isto é, de alguns autores representati- mentais**:
vos e ligados exclusivamente ao campo a) o afloramento do preconceito com re-
doutrinário, bem como a autores que ana- lação ao negro;
lisaram a regilião cientificamente. No b) a intenção deliberada de burocratiza-
campo da literatura, mais especificamen- ção e institucionalização da religião;
te, procurou-se autores do Romantismo, c) a preocupação exagerada com proble-
chegando-se a fixação na obra de José de mas éticos e morais;
Alencar (fase indianista) e alguns poemas d) a transposição de uma ideologia tópica
de Gonçalves Dias. dos estratos sociais médios para a reli-
Porém, é preciso destacar que, se por gião alterando-a em vários aspectos e
um lado a pesquisa bibliográfica foi im- descaracterizando de certa forma o
portante para a elaboração deste traba- próprio culto religioso;

* Departamento de Antropologia, Política e Filosofia — Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação — U N E S P —


14.800 — Araraquara — SP.
** Basicamente usou-se comparativamente os trabalhos de Aluizio Fontenelle e Nelson C . Y . Cunha .
(7) (4)

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ocorridas nos cultos umbandistas a partir da década de 60. Perspectivas. S ã o Paulo, 7:81-93, 1984.

e) o aparecimento de subtipos dentro da Quanto mais burocratizada e institu-


religião, que sem se constituírem novas cionalizada for a religião, mais fácil será o
seitas religiosas, mostram alterações comportamento de seus adeptos, porém
significativas no contexto religioso. menor a possibilidade de criatividade e,
Quando se analisa com um pouco de conseqüentemente, de inovação.
profundidade os problemas do negro na Assim, ao que tudo indica, a Umban-
sociedade brasileira, nota-se que, a tão da vai gradativamente assumindo um pa-
decantada ausência de preconceito é con- pel alienador dentro do contexto social
seqüência apenas de uma postura literária brasileiro, pois tornando-se estática, ela
e ideológica de alguns sociólogos que não inevitavelmente tornar-se-á conservadora
encararam o problema com atenção e pro- e reacionária.
fundidade (8:95). Quando se alteram os componentes
Felizmente outros sociólogos perce- de uma instituição torna-se evidente que
beram que, na realidade, o preconceito sua adesão propicia a entrada de novos
existe, embora dissimulado e explode valores que, no confronto direto com os
quando o negro tenta competir com o já existentes, leva a reformulação ou ain-
branco em termos econômicos, políticos da a uma síntese; p o r é m isto só acontece
etc. (6:35-40). N ã o devemos esquecer que algum tempo depois através de uma sedi-
existe a Lei Afonso Arinos que pune a dis- mentação efetiva.
criminação, o que comprova a existência A tentativa de obrigar todos os Ter-
do preconceito. reiros a uma filiação em entidades regio-
Sabe-se que os estratos sociais mé- nais, como as Federações e congregações,
dios (classe média) têm a pretensão de se- na verdade visa n ã o só a unificação, mas
rem os guardiães de valores sociais, senão também a um controle e uma fiscalização
ultrapassados, pelo menos defasados, repressiva por parte desses órgãos. A jus-
pois na impossibilidade de igualarem-se à tificativa divulgada é quase sempre a de
elite (estratos sociais superiores), tornam- moralizar a religião, porém o c o n t e ú d o la-
se defensores de valores de natureza ética. tente neste caso visa em última análise a
Assim, a separação dos adeptos por ajustar a religião às concepções defendi-
sexo (um lado para os homens, outro para das pelos novos estratos sociais que aden-
as mulheres), como vem ocorrendo atual- traram na religião nos últimos anos. Esses
mente em muitos templos umbandistas, órgãos congregacionais vêm desenvolven-
parace ser um exemplo típico, assim como do intensa campanha n ã o só entre seus fi-
também o é a distribuição dos passes rae- liados, mas t a m b é m junto aos templos au-
diúnicos, isto é, médiuns do sexo masculi- tônomos e ao público em geral, para abo-
no fazem passes apenas em adeptos deste lir o uso do fumo e de bebidas alcoólicas,
sexo, enquanto as médiuns fazem nas mu- simplificação do ritual, proibição de re-
lheres. ceitas a base de ervas, supressão dos ba-
Outra tendência generalizada é a re- nhos de defesa, a d o ç ã o de tênis branco
pressão aos médiuns homossexuais, atra- para as sessões, proibindo os médiuns de
vés da proibição de médiuns do sexo mas- ficarem descalços.
culino receberem durante o transe mediú-
nico entidades espirituais femininas. A proibição das práticas de Quim-
Observa-se com regularidade e inten- banda, que segundo muitos pais-de-santo
sidade, a realização de congressos nacio- são indispensáveis para a sobrevivência
nais para estabelecer uma uniformização do Terreiro, impedindo a disputa espiri-
e padronização nacional do culto e da tual, pois o E x u como "numem l o c i " ,
doutrina umbandista, bem como a reivin- protegeria a entrada do templo, evitando
dicação de cursos especiais para a forma- assim a entrada de entidades espirituais
ção de médiuns e babalorixás, o que é perturbadoras, é t a m b é m uma posição ti-
uma tentativa para burocratizar e institu- picamente ideológica e recente.
cionalizar a religião. A expulsão lenta e gradual do negro

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da Umbanda para a Quimbanda j á foi no- — Legião de Santo Expedito;


tada por outros pesquisadores (9:62). — Legião de São Francisco de Assis;
Em centros regionais onde a Umban- — Legião de São Benedito.
da já tinha uma existência sedimentada, E m pesquisas empíricas anteriores
notava-se desde a década de 1950, esta realizadas em Araraquara, São Carlos,
tendência conforme j á assinalava Bastide Bebedouro, Barretos, Santos e São Paulo
(2:230-235). Essas pressões ideológicas (5:90) em 1968/70, podia-se j á notar gran-
abriram caminho nesses centros para o de discrepância com esta apresentação do
aparecimento de uma linha do Oriente, Sr. Fontenelle, pois Obatalá era entendi-
numa tentativa de absorver grande núme- do nos terreiros como um Orixá sem culto
ro de imigrantes asiáticos que aderiram a definido e Deus era invocado sob a deno-
religião. minação de Olorum ou Zambi.
Porém se ganhou alguma notorieda- Quanto à linha de Otalá estava assim
de, essa linha do Oriente n ã o conseguiu se constitutída:
firmar, sendo considerada em muitos ter- — Legiões dos Caboclos: Aimoré,
reiros como uma linha secundária. Guarani; Ubiratan; U r u b a t ã o ; Ubira-
Assim, em muitos terreiros e centros jara; Tupi e Guaraci.
espíritas Kardecistas proliferam entidades Como se nota, a linha típica de San-
espirituais de linguagem arrevezada aten- to, composta inicialmente, pelos santos
dendo pelos nomes de D r . Fritz, Hans, católicos, j á estava no final da década de
Kurt Jansen e t c , ... realizando operações 60 integralmente substituída por " g u i a s "
com as mãos ou canivetes, e, receitando e "protetores", os caboclos ou índios.
remédios existentes nas farmácias e dro- Retomando a Fontenelle tem-se:
a

garias. 2 . linha de Iemanjá:


Tomando-se por base um trabalho — Legião das Sereias — proteção de
doutrinário, cuja segunda edição data de Oxum;
1957, observa-se a seguinte estruturação — Legião das Ondinas — proteção de
religiosa (7:155-60): Nanã;
— Legião das Caboclas do M a r —
1. Obatalá (Pai, Filho Espírito Santo) é proteção de Indaiá*;
o reino de Deus; — Legião das Caboclas dos rios —
2. Corte de Oxalá (Jesus Cristo); chefiadas por Iara**;
— Legião dos Marinheiros — coman-
3. No mesmo plano: a) corte de Oxum do de Tarimã;
(Maria Santíssima), b) corte de São — Legião dos Calungas — dirigida
Gabriel (Arcanjo), c) corte de São por Calunguinha;
J o ã o Batista (Profetas);
— Legião da Estrela da G u i a — diri-
4. No mesmo plano: a) corte de São Ra- gida por Santa M a r i a Madalena.
fael (Arcanjo), b) corte dos Anjos e No levantamento empírico a que foi
Serafins, c) corte de São Miguel (Ar- feito referência chegou-se ao seguinte com
canjo); relação a linha de Iemanjá nos Terreiros
5. Corte de Aruanda (7 linhas de U m - pesquisados:
banda) — Legião das Sereias do M a r ;
a
1. linha — de Santo ou de Oxalá — Legião de Inhaçã;
— Legião de Santo A n t ô n i o ; — Legião de Oxum;
— Legião de São Cosme e São Da- — Legião de Iara;
mião; — Legião da Estrela do M a r ;
— Legião de Santa Rita de Cássia; — Legião de N a n ã ;
— Legião de Santa Catarina; — Legião de Indaiá;

* Introdução de elemento indígena dentro de uma linha que tradicionalmente não a comportava. O evento ê recente.
** Aconteceu com esta ent*idade o mesmo que com Indaiá, isto é, introdução recente, o que comprova a ascenção do índio.

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a
Comparativamente tome-se nova- Para Fontenelle a 4 . linha é dirigida
mente Fontenelle: por Oxoce, o Orixá das Matas, o que é
d
3. Linha — do Oriente aceito por todos os templos. Inicialmente
— Legião de Zartu — falanges dos era a única linha constituída exclusiva-
povos Indus; mente por caboclos (índios) devido a liga-
— Legião de José de Arimatéia — fa- ção com a floresta. Aparecem para ele as
langes de médicos e cientistas; legiões de: — U r u b a t ã o ; Araribóia; Sete
— Legião de P i m b a r u ê — espíritos de Encruzilhadas ou Sete Matas; Peles Ver-
Árabes, Marroquinos e povos asiáti- melhas sob a direção de Águia Branca;
cos; Tamoios, chefiados por Grajaúna; Cabo-
— Legião de O r i do Oriente: integra- cla Jurema; Guaranis chefiados por Araú-
da por japoneses, chineses, mongóis na.
e povos que habitaram a Groenlândia Retomando a pesquisa empírica,
e a Atlântida; tem-se as seguintes legiões sob o comando
— Legião de Inhoairairi — composta da linha de Oxoce:
por egípcios, incas, caldeus e outras Pena Branca; Arruda; Guiné;
raças desaparecidas; Arranca-Toco*; Cobra Coral; Araribóia;
— Legião de Itaraici: falanges de he- Jurema**.
breus, persas e outros povos da A n t i - No caso específico da linha de X a n -
güidade; gô, Fontenelle apresenta as seguintes le-
— Legião de Marcus 1 — falanges de giões:
gauleses, fenícios, romanos e demais — Inhaçã — comandada por Santa
raças européias. Bárbara;
Embora vários pesquisadores assina- — Caboclos do Sol e da Lua;
lassem uma linha do Oriente (3:58) j á em — Caboclo da Pedra Branca;
declínio nos ano 70, a pesquisa empírica — Caboclo do Vento (7 Ventanias);
realizada nessa época mostrou apenas res- — Caboclo das Cachoeiras;
quícios dessa linha, com alguns elementos — Caboclo Treme-Terra.
dispersos em legiões ou falanges esporádi- Na pesquisa empírica chegou-se a Se-
cas. Ori em muitos terreiros aparecia co- te Montanhas; Sete Pedreiras; Pedra Pre-
mo Iori, mas na maioria aparecia sob o ta; C a ô ; A g o d ô ; Pedra Branca; Sete Ca-
nome de Ibeji (ou seja, os Santos gêmeos choeiras.
Cosme e D a m i ã o ) : Atualmente C a ô e A g o d ô são citados
— Legião de lari; como manifestações de X a n g ô e não co-
— Legião de Ori (japoneses, chineses mo chefes de legiões.
e egípcios) Com relação à linha de Ogum, Fon-
— Legião de Iariri; tenelle propõe as seguintes legiões sob seu
— Legião de Doum; comando:
— Legião de Cosme; — Ogum Beira-Mar, aliada ao povo
— Legião de D a m i ã o ; do mar;
— Legião de Tupanzinho. — Ogum Rompe-Mato, aliada a
Como se pode notar mesmo na linha Oxoce;
dos duplos j á havia penetração indígena — Ogum Iara — aliada ao povo dos
(Tupanzinho, lari e Iariri) como chefes de rios***;
legião ao lado do Cosme, Damião e — Ogum Megê — aliada ao povo
Doum enquanto que O r i j á passara de africano;
chefe de linha para chefe de uma legião — Ogum Naruê — aliada ao povo
que abriga povos orientais. africano;

* Ha vários caboclos com este nome pertencentes a linha de X a n g ô , Oxalá e este de Oxoce
** Ocorre com Jurema o mesmo fato citado com Arranca Toco, ha varias Juremas
*** O nome é misto. Ogum (africano) com Iara (indígena) mas ilustra que mesmo na época ja havia uma penetração indíge-
na.

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— Ogum Malei — aliada ao povo diuns, evoluídos em Terreiro honesto, o


de Exu; "Terreiro de São Miguel das A l m a s " , em
— Ogum Nagô — aliada ao povo de Guaianases, São Paulo, apresentados pe-
Ganga. lo caboclo Pena Amarela e iniciados pelo
No trabalho de minha autoria que caboclo do Sol e da L u a . Fizemos camari-
vem servindo de c o m p a r a ç ã o , são citadas nha ( C â m a r a pequena, quartinho), onde
as seguintes legiões, subordinadas a ficamos em meditação e estudos, receben-
Ogum: Matinata; Caboclo Beira-Mar; do nossa " c o r o a " de b a b a l a ô . É r a m o s ca-
Ogum Iara; Ogum de L e i ; Ogum Megê; tólicos, tendo sido coroinha e catequiza-
Caboclo Rompe-Mato; Ogum de Malei. dor em crianças nos afastamos de todas as
Como se pode notar o n ú m e r o de ca- religiões durante um longo tempo, tendo
boclos que aparecem como chefes de le- estudado quase todas imparcialmente por
giões cresceu muito comparativamente. não pertencermos a nenhuma. Entramos
para o círculo Esotérico em 1950, sendo
Finalmente, segundo a obra de Fon-
d remido sob o n . ° 196882. Entramos para
tenelle, tem-se a 7. linha que ele denomi-
a maçonaria em 1954, na Augusta e res-
na de Africana ou de São Cipriano, que
peitável loja Padre Feijó, de Regente Fei-
apresenta os seguintes chefes de legiões:
jó. Estudamos o Kardecismo, tendo lido
— Pai Cabinda — falange do povo quase todas as obras de A l a n Kardec
da costa; (Léon Deniz), Pedro Granja, Hernani
— Pai Congo ou Rei Congo — fa- Guimarães e outros. Estudamos em livros
lange do povo do Congo; de H . Durville, Francisco W . Lorenz e ou-
— Pai José de Angola — falange do tros. Lemos Edison Carneiro, Arthur Ra-
povo de Angola; mos, Felicio Santos, Padre Lemos Barbo-
sa etc." (4:11).
— Pai Benquela — falange do povo
de Benguela; C o m o se pode claramente notar pela
biografia do autor, ele está comprometido
— Pai J e r ô n i m o — falange do povo
com a classe a que pertence e expressará
de Moçambique;
tal comprometimento durante todo seu
— Pai Francisco — falange do povo trabalho. Discorrendo sobre a preferência
de Luanda; pela Umbanda, afirma: " C o n c l u í m o s pe-
— Pai Guiné ou Zun Guiné — falan- la Umbanda, como a mais popular e lógi-
ge do povo de Guiné. ca linha de Fé. Popular no sentido de n ã o
ser deturpada por pseudos eruditos e lite-
Tomando-se por base o trabalho
ratos. Hoje somos b a b a l a ô de Umbanda,
empírico até aqui usado comparativamen-
e tudo o que aprendemos iremos escrever
te têm-se as seguintes legiões, comanda-
nesta série, honestamente, sem lançar nas
das por Iorimá:
costas de nossos Guias os nossos possíveis
Pai Joaquim; Pai Benedito; Pai José; erros . . . " (4:12).
Pai J e r ô n i m o ; Pai Congo; Pai Guiné. "Ser humilde, modesto, tolerante é
E m data bem mais recente foi edita- premissa do verdadeiro umbandista, mas
do o livro doutrinário de Nelson C . Y . C u - ser sincero e honesto t a m b é m . Impingir li-
nha (4) que pretende mudar n ã o só a no- vros eivados de erros, de conceitos pró-
menclatura africana dos Orixás, mas tam- prios, de d e m o n s t r a ç ã o pública de igno-
bém substituir por nomes indígenas a no- rância do autor e dizer que foi ditado por
menclatura dos Comandantes de legiões. Guias, Caboclos ou Pretos-Velhos, n ã o é
O próprio autor afirma nesse traba- ser umbandista" . . . " P a r a o amigo lei-
lho: Umbanda — Religião e Magia, edita- tor ter uma idéia das tolices cometidas,
do por volta de 1973: " N ã o , nós n ã o so- muitas vezes, por homens de real capaci-
mos inspirados por nenhum Guia, salvo dade, vejam o engano cometido por Má-
se ele o fez intuitivamente, coisa que n ã o rio de Andrade, um dos maiores folcloris-
podemos afirmar, nem negar. Somos mé- tas nacionais:

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Lá vai o Sol, Amana-r-uba;


E vem a L u a , Nõmileka;
Ele vai girar Amaô;
Ele vai girar Tupaberaba;
na porta dum banda 5. Iemanjá . . . . Parandy;
ele vai girar P e r u d á ou Rudá;
quando o correto é: Jurema;
J á foi o Sol Mukunã;
Já veio a L u a Yara;
ele vai girar . . . Ceucy;
ele veio girar Ayacó;
6. Iori Tupã-t-ayra;
N a Linha de Umbanda
Mair-mimi;
ele veio girar oi . . . (bis)
Micur-mimi;
Livro: Música de Feitiçaria no Brasil, Uarikidizan;
p.105/6" Peditã;
Yariri;
C o m o se nota pretensão n ã o falta ao Yari.
Sr. Cunha, embora ele faça alguns co- C o m relação a Iorimá o autor não
mentários pertinentes principalmente propõe uma substituição por Orixás
quanto à necessidade de uma melhor for- indígenas, mas aponta entidades que na
mação doutrinária e conhecimento teoló- verdade n ã o são chefes de legiões, mas ou
gico por parte dos médiuns e dos babalo- são Orixás menores ou Orixás que deixa-
rixás. ram de ser cultuados h á muito tempo, co-
O autor p r o p õ e a seguinte substitui- mo é o caso de Xaluga, Orixamim, Ajá
ção do nome dos Orixás africanos por (que n ã o são mais cultuados) ou Ifá, que é
indígenas: um Orixá menor.
Já se apontou que a entrada de novos
1. Oxalá Mayra ou Bayra estratos sociais na Umbanda causou o
Sumé; surgimento de alguns subtipos, sem, no
Jurupari; entanto, provocar um cisma (5:114).
Porominare; Detectou-se três subtipos principais,
Macunaíma; cujos nomes embora n ã o fossem plena-
Arayara; mente aceitos, na época, eram esclarece-
Typyxuara. dores. Hoje os nomes encontram-se di-
2. Ogum de Lei Maranguigana fundidos e aceitos por adeptos e estudio-
Mai angay sos:
Marangapará; 1.° Karbanda — Basicamente busca
Buopé; o ideal Kardecista, alicerçado num ritual e
Marangatatá; doutrina típicos da Umbanda. Às vezes há
Marangacaá; a supressão do ritual umbandista, porém,
Jambamburi. as "entidades incorporantes" são típicas
3. Oxoce Yapinary; da crença (índios e pretos-velhos). Geral-
Guaracy; mente a roupa (calça e camisa) é branca,
Tamandaré; sendo muitas vezes substituída apenas por
Guajupiá; um avental dessa cor. N ã o se utiliza a pól-
Ibitu-ramui; vora, defumação, bebidas alcoólicas, co-
Micur; midas, pontos cantados e riscados. Além
Tfon-Twa; disso, n ã o se usa o termo cavalo para de-
4. X a n g ó Cambaranguangue; signar o médium em transe, é "apare-
Tupãssununga; l h o " , o mesmo acontecendo com a ex-
Nibetad; pressão " p a i - d e - c a b e ç a " , substituída por

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"protetor". Supervaloriza a mediunidade Exus possam ser doutrinados, limpando o


consciente, as sessões desenvolvem-se ge- consulente.
ralmente ao redor de uma mesa onde n ã o Pedem regularmente despachos a se-
existem imagens. Os Exus n ã o recebem rem colocados nas encruzilhadas, rios e
qualquer reverência ou culto, sendo dou- cemitérios. Pouco uso de bebidas e do fu-
trinados apenas quando perturbam as mo; o altar (pegi) está situado em compar-
pessoas. São adeptos da teoria do "conti- timento contíguo, no qual ardem velas ao
nuum m e d i ú n i c o " , sendo os despachos, lado de imagens de santos e pontos risca-
ebós e amalás totalmente proibidos. Re- dos.
comendam preces e orações, porém proí- Apesar dessas distinções os subtipos
bem o uso de p a t u á s . integram-se perfeitamente dentro de uma
unidade religiosa que é a Umbanda, pois
2. ° U m b a n d l é : Fusão de elementos não há cismas, nem formação de seitas,
da Umbanda e do C a n d o m b l é . Apresenta porque o transe é o elemento polarizador
uma roupagem vistosa, colorida de acor- e comum a eles. Os médiuns transitam l i -
do com a predileção do "santo" (cor voti- vremente pelos subtipos, dependendo
va), realização de rituais secretos, veda- apenas de um pequeno ajuste individual.
dos aos profanos, como a reclusão do ini- Pode-se observar que, na verdade,
ciado (fazer a "camarinha"). M a n t é m no existem apenas elementos seletivos e n ã o
templo objetos sagrados ligado aos Orixás impeditivos para o livre trânsito dos adep-
(machado de X a n g ô , espada de Ogum tos, sendo ao que tudo indica, o fator eco-
etc...). Os sacrifícios seguem os preceitos nômico o mais importante no estabeleci-
ortodoxos, dando-se muita importância mento das preferências.
ao padê (despacho para Exu). O Babalori-
É de assinalar que os pretensos inte-
xá possui um assento especial, colocado
lectuais, filiam-se preferencialmente a
em nível mais alto. Usam-se comidas tipi-
Karbanda, preferindo se autodenomina-
camente africanas (vatapá, mugunzá, fa-
rem Espiritas ou Kardecistas, o mesmo
rofa com azeite de dendê etc...). Usam-se
acontecendo com as pessoas de certo pres-
os búzios para determinação da filiação, a
tígio social.
um santo. H á ainda a raspagem da cabeça
U m fato que vem chamando a aten-
do néofico com a introdução de uma pe-
ção é o destaque dado, tanto na Umban-
dra (santo), usam-se atabaques especial-
da, quanto nos seus subtipos, ao culto dos
mente consagrados e cantos rituais (pon-
Caboclos, pois eles são sempre considera-
tos).
dos os "pais de C a b e ç a " da maioria dos
3. ° Mesa Branca da Pesada: Dos três iniciados e por extensão dos indivíduos de
subtipos é o que ocorre com menor inten- maneira geral, mesmo dos que n ã o parti-
sidade. H á supressão de boa parte do ri- cipam da crença umbandista. Quem são
tual, embora se use roupas brancas e al- os caboclos?
guns adereços (colares de contas, dentes Segundo a tradição umbandista, ca-
ou pedras). A sessão é realizada em torno boclos são os espíritos dos indígenas aqui
de uma mesa, forrada com uma toalha desencarnados, que viveram na época da
branca, ao redor da qual estão três mé- colonização portuguesa*. Eles se manifes-
diuns em transe, geralmente, a entidade é tam com um determinado esterótipo den-
o " í n d i o " e um cambono (doutrinador). tro do ritual religioso que pode, em linhas
Os consulentes entram, um por vez e são gerais, assim ser descrito: postura ereta,
atendidos pelos três médiuns simultanea- ar imponente, grande conhecimento de er-
mente. Recebe tal d e n o m i n a ç ã o pelo fato, vas, conhecedores da arte de confeccionar
de que, os médiuns podem mudar da U m - instrumentos protetivos (breves e patuás,
banda para Quimbanda, a fim de que possuem coragem e intrepidez (enfrentan-

* As vezes pode-se detectar um caboclo ligado aos indígenas da América do Norte, mas isto, n ã o é muito freqüente.

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ocorridas nos cultos umbandistas a partir da d é c a d a de 60. Perspectivas, S ã o Paulo, 7:81-93, 1984.

do obsessores e Exus violentos de maneira Além disso, t a m b é m em outro senti-


firme e implacável) e finalmente possui- do o indianismo tinha c o n t e ú d o ideológi-
dores dos conhecimentos da vida e da co: o índio foi, no romantismo, uma ima-
morte e senso ético. Eles vem se tornando gem do passado e, portanto, n ã o apresen-
os " G u i a s " e mentores "espirituais" por tava qualquer ameaça a ordem vigente,
excelência. P o r é m esta imagem do índio sobretudo à escravatura. Os escritores po-
não encontra correspondência na realida- líticos e leitores identificavam-se com esse
de brasileira, mas é a imagem idealizada e índio do passado, ao qual atribuiam virtu-
romântica, advinda da literatura indige- des e grandezas; o índio c o n t e m p o r â n e o
nista de Alencar e Dias. que, no século X I X como agora, se arras-
Dante Moreira Leite afirma que: " o tava na miséria e semi-escravidão, não
romantismo foi movimento tão rico e constituía um tema literário. Finalmente a
contraditório, e apresentou tantas varia- idéia de que o índio n ã o se adaptava à es-
ções nacionais e individuais, que é prova- cravidão servia também para justificar a
velmente inútil pretender definí-lo através escravidão do negro, como se este vivesse
de uma ou duas características gerais. feliz como escravo. Esta última suposição
Apesar disso, o conceito que, para quase estava destinada a uma longa vida nas
todos, representa mais de perto o roman- ideologias sobre o passado brasileiro e iria
tismo é o desequilíbrio. H á fundamental- ser desenvolvida já em pleno século X X
mente, o desequilíbrio entre o ideal do ro- por Gilberto Freyre. A desadaptação do
mântico e a realidade que pode atingir; índio teve duas explicações: uma, o seu es-
daí a revolta diante do destino, ou diante pírito de liberdade e sua coragem; outra, a
das limitações sociais impostas ao indiví- sua preguiça. No romantismo predomi-
duo, bem como de sua atitude de fuga, nou a primeira"( 10:171-2).
ora para o passado, ora para a utopia e os Assim, pode-se observar em " O Can-
movimentos de libertação. C o m o oscilam to do Guerreiro"(l 1), da qual reproduzir-
entre a nostalgia do passado e o anseio de se-ão apenas os trechos mais significati-
um futuro diverso, dificilmente os român- vos, as qualidades que o autor transfere
ticos podem ser classificados como revo- ao nativo, vestindo-o sempre com uma
lucionários ou reacionários. Entre os ro- roupagem medievalesca:
mânticos encontramos tantos os libertá- I
rios — capazes de dar a vida pela indepen- A q u i na floresta
dência de um povo — quanto os saudosis- Dos ventos batida,
tas, cujo ideal se localizaria na Idade Mé- Façanhas de bravos
dia, ou, ainda antes, no passado do mito- não geram escravos,
lógico n ã o admira, por isso, que Napo- Que estimem a vida
leão tenha um de seus heróis prediletos: Sem guerra e lidar.
também ele apresentava contradições po- Ouvi-me, Guerreiros
líticas insuperáveis, e podia ser visto como Ouvi meu cantar.
um tirano ou libertador..."(10:163-77). II
. . . " O indianismo apresentava uma Valente na guerra
imagem positiva do povo brasileiro: amor Quem há, como eu sou?
à liberdade, apego à terra e a valores indi- Quem vibra o tacape
viduais. Além disso, as lutas entre índios e Com mais valentia?
portugueses poderiam mostrar a autenti- Quem golpes daria
cidade da oposição que se estabelecera no Fatais, como eu dou?
século X I X , dando-lhe a consagração do Guerreiros, ouvi-me;
tempo. Cavalcanti Proença lembra que, Quem há, como eu sou?
ao escolherem o nome para seu jornal, os
Andradas, aceitaram o Tamoio, pois a tri- A q u i se notam os atributos e virtudes
bo desse nome tinha combatido os portu- projetados ao indígena, na falta de outro
gueses. elemento para glorificar. O selvagem é

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ocorridas nos cultos umbandistas a partir da década de 60 Perspectivas, S ã o Paulo, 7 81-93, 1984

exaltado, enquanto que ficam subentendi- II


das a fraqueza e a impotência para lutar
do africano, que, por isso, é escravo. O r a Seu viver é batalha aturada,
isto, não corresponde a realidade históri- Dos contrários à traça aventando;
ca, pois os escravos sempre se rebelaram, É dispor a cilada arriscada,
resistindo e infligindo revezes aos domi- Onde o inimigo se venha meter!
nadores, isto é, à aristocracia açucareira. Levam noites com ele sonhando
Esqueceu-se o poeta dos Quilombos de Potiguares que o viram de perto;
Palmares? Potiguares, que asselam por certo
A liberdade atribuída ao nativo é a Que Tabira só sabe vencer!
decorrência lógica de suas próprias condi- VII
ções de vida, seus hábitos, enfim, sua cul-
tura. Mas o mais importante é o fato de o Vivem homens de pPcôr da noite
nativo conhecer muito bem o solo brasi- Neste solo, que a vida embeleza;
leiro, enquanto o africano, arrancado de Podem servos debaixo do açoite,
seu habitat era obrigado, em primeiro lu- Nêmias tristezas da pátria cantar*!
gar, a adaptar-se a um novo e hostil am- Mas o índio que a vida só preza
biente, com a agravante de não permane- Por amor de combates, e festas
cerem coesos em termos culturais, pois Dos triunfos sangrentos e sestas
aqui chegando eram vendidos, sendo en- Resguardadas do sol no palmar
tão separados os filhos dos pais, maridos
de esposas e irmãos de irmãs, formando É necessário, talvez, reforçar a idéia
um novo conjunto, num engenho onde se de que a sociedade e a história n ã o se
agrupavam, às vezes, até elementos de tri- transformam de maneira ocasional e for-
bos rivais. tuita, mas à custa de lutas (12:1-15). O
índio recebeu tratamentos especiais da
Num período inicial houve uma ten-
tativa de escravizar o índio, mas a própria Coroa Portuguesa, conforme se observa
metrópole acaba enviando os jesuítas pa- pelos Decretos e Ordenações. Ora, para
ra catequizar e proteger, só podendo ser os africanos a Coroa e seus prepostos re-
caçado o gentio que fosse hostil aos por- servaram muito trabalho e parca alimen-
tugueses. tação, além da selva lhes ser totalmente
desconhecida. Disso decorre a visão ideo-
A exaltação da coragem e da bravura lógica e estereotipada do poeta de que o
do gentio prossegue ainda em Gonçalves índio ama a liberdade e o africano suporta
Dias, na poesia Tabira, onde t a m b é m a bem o cativeiro e a chibata. P o r é m , e isto
depreciação do negro é evidente: é muito importante, Palmares somente
consegue resistir enquanto há disputas en-
E Tabira guerreiro valente, tre a aristocracia e os comerciantes, parti-
Cumpre as partes de chefe e solda- cipando estes últimos de um ativo comér-
do; cio com os Quilombolas. Quando os co-
É caudilho de tribo potente, merciantes e a aristocracia se unem, os ne-
Tabajaras — o povo senhor! gros são derrotados e os quilombos arra-
Ninguém mais observa o tratado? sados, o que foi facilitado pela expulsão
Ninguém menos de perigos se ater- dos holandeses.
ra, Tomando-se Alencar, nota-se a se-
Ninguém corre aos acenos da guer- melhança com Gonçalves Dias no que se
ra, refere a uma idéia r o m â n t i c a e idealizada
Mais depressa que o bom lidador! com relação ao índio.

* O poeta não se apoiou na historia para fazer tais afirmações, pois aconteceram inúmeros levantes de negros pelo Brasil

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E m " O G u a r a n i " , o índio Peri é um aumentado pela impossibilidade moral


cavalheiro medieval pelas suas virtudes, que a sua condição criava, pela barreira
qualidades etc..., conforme pode-se notar que se elevava entre ele, pobre colono, e a
nas seguintes passagens do livro: filha de D . A n t ô n i o Mariz, rico fidalgo de
. . . " E m pé, no meio do espaço que solar e razão. Para destruir esta barreira e
formava a grande a b ó b a d a de árvores, en- igualar posições, seria necessário um
costado a um velho tronco decepado pelo acontecimento extraordinário, um fato
raio, via-se um índio na flor da idade. que alterasse completamente as leis da so-
U m a simples túnica de algodão, a ciedade naquele tempo mais rigorosas do
que os indígenas chamavam aimará, aper- que hoje; era preciso uma dessas situações
tada à cintura por uma faixa de penas es- em face das quais os indivíduos, qualquer
carlates, caía-lhe dos ombros até o meio que seja sua hierarquia, nobres e párias,
da perna, e desenhava o talhe delgado e nivelam-se; e descem ou sobem à condi-
esbelto como um junco selvagem... ção de homens...
... Assim, durante um curto instante, ... E m Álvaro, cavalheiro delicado e
a fera e o selvagem mediram-se mutua- cortês, o sentimento era uma afeição no-
mente, com os olhos nos olhos um do ou- bre e pura, cheia de graciosa timidez, que
tro; depois o tigre agachou-se, e ia formar perfuma as primeiras flores do coração, e
o salto, quando a cavalgata apareceu na do entusiasmo cavalheiresco que tantas
entrada da clareira... poesias dava aos amores daquele tempo
... Estendeu o braço e fez com a m ã o de crença e lealdade... Nesta noite Álvaro
um gesto de rei, que rei das florestas ele ia dar um passo que, na sua habitual timi-
era, intimando aos cavaleiros que conti- dez, ele comparava quase com um pedido
nuassem a sua marcha... o índio bateu com formal de casamento; tinha resolvido fa-
o pé no chão em sinal de impaciência, e zer a moça aceitar, malgrado seu, o mimo
exclamou apontando para o tigre, e levan- que recusara, deixando-o na sua janela;
do a m ã o ao peito: — É meu!... meu só! esperava que, encontrando-o no dia se-
... O tigre desta vez n ã o se demo- guinte, Cecília lhe perdoaria o ardimento,
rou... F o i cair sobre o índio, apoiado nas e conservaria a sua prenda...
largas patas de t r á s . . . E m Peri, o sentimento era um culto,
... mas tinha em frente um inimigo espécie de idolatria fanática na qual não
digno dela, pela força e agilidade e segu- entrava um só pensamento de egoísmo;
rança na esquerda a longa forquilha, sua amava Cecília n ã o para sentir um prazer
única defesa... ou ter uma satisfação, mas para dedicar-
... Esta luta durou minutos; o índio, se inteiramente a ela, para cumprir o me-
com os pés apoiados fortemente nas per- nor dos seus desejos para evitar que a mo-
nas da onça, e o corpo inclinado sobre a ça tivesse um pensamento que n ã o fosse
forquilha, meteu a m ã o debaixo da túnica uma realidade.
e tirou uma corda de ticume que tinha en- Loredano desejava; Álvaro amava;
rolada à cintura em muitas voltas... O Peri adorava. O aventureiro daria a vida
índio sorria, vendo os esforços da fera pa- para gozar; o cavalheiro arriscaria a mor-
ra arrebentar as cordas de maneira que te para merecer um olhar; o selvagem se
não podia fazer um movimento, a n ã o se- mataria se preciso fosse só para fazer
rem essas retorções do corpo, em que de- Cecília sorrir (1:59-60).
balde se agitava (1:37-41). Peri salva Cecília inúmeras vezes de
N o C a p . I X , A m o r (1:59), mostra os todos os perigos, pondo sua vida em ris-
sentimentos dos apaixonados de Cecília: co, sem nada exigir em troca; não pou-
" E m Loredano, o aventureiro de bai- pando o autor elogios para glorificar o
xa extração, esse sentimento era um dese- índio. Assim, no Cap. II: "Enquanto fa-
jo ardente, uma sede de gozo, uma febre lava, um assomo de orgulho selvagem da
que lhe queimava o sangue; o instinto força e da coragem lhe brilhava nos olhos
brutal dessa natureza vigorosa era ainda negros, e dava certa nobreza ao seu gesto.

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ocorridas nos cultos umbandistas a partir da década de 60. Perspectivas. S ã o Paulo, 7:81-93, 1984.

Embora ignorante, filho das selvas, era Desde esse dia, Peri enramou todas
um rei; tinha a realeza da f o r ç a " (1:99). as suas setas de penas azuis e brancas;
Ou, ainda o exacerbamento do amor seus ornatos, além de uma faixa de plu-
platônico: " A cada palavra o índio tocou mas escarlates que fora tecida por sua
a taça e bebeu um trago de vinho sem fa- mãe, eram ordinariamente das mesmas
zer o menor gesto de desgosto; ele beberia cores" (1:135-46).
veneno à saúde do pai de Cecília" (1:100), A descrição do ataque de Peri aos A i -
ou: " P e r i temeu ofender o m o ç o ; para moré para salvar D . A n t ô n i o e sua
desculpar a sua franqueza, disse-lhe com família, tornam-no a imagem de um
um tom comovido: — Escuta, Peri é filho Amadis de Gaula, um Lancelot ou um
do sol, e renegava o sol se ele queimasse a Siegfried nativo: "preparou-se para o
pele alva de Ceei. Peri ama o vento; e combate monstruoso de um homem só
odiava o vento se ele arrancasse um cabe- contra duzentos" (1:210).
lo de ouro de Ceei. Peri gosta de ver o . . . " O s guerreiros lançaram-se para
céu; e n ã o levantava a vista, se ele fosse vingar seu chefe; mas um novo espetáculo
mais azul do que os olhos de C e e i " se apresentava a seus olhos, Peri, vence-
(1:119). dor do cacique, volveu um olhar em torno
A identificação do indígena com o dele, e vendo o estrago que tinha feito, os
cavaleiro medieval é uma constante e feita cadáveres dos aimorés amontoados uns
de maneira direta, sem metáforas. " O ca- sobre os outros, fincou a ponta do mon-
valheiro depois deste exame cruzou os tante ao chão e quebrou a lâmina. Tomou
braços e contemplou o índio com admira- depois os dois fragmentos e atirou-os ao
ção profunda. rio... Três vezes quiz ajoelhar, e três vezes
as curvas de suas pernas distendendo-se
— Peri, disse ele, o que fizeste é dig-
como molas de aço o obrigaram a erguer-
no de ti; o que fazes agora é de um fidal- se. Finalmente a lembrança de Cecília foi
go. Teu nobre coração pode bater sem mais forte do que a vontade. A j o e l h o u "
envergonhar-se sobre o coração de um ca- (1:211-12).
valheiro português. Tomo-vos todos por
testemunhas, que vistes um dia D . Antô- A q u i é que se patenteia o espírito de
nio de Mariz apertar no seu peito um ini- renúncia e resignação de Peri, pois feito
prisioneiro ele contava ser devorado pelos
migo de sua raça e de sua religião como a
Aimoré. Ele ingerira forte veneno para as-
seu igual em nobreza e sentimentos.
sim, com sua morte matar todos os A i m o -
O fidalgo abriu os braços e deu em ré e salvar a amada e sua família do desejo
Peri o abraço fraternal, consagrado pelo de vingança dessa tribo. N ã o consegue,
estilo da antiga cavalaria, da qual já na- porém, realizar seu intento porque o f i -
quele tempo restavam vagas t r a d i ç õ e s " . . . dalgo ordena uma sortida à taba e Peri é
" U m dia a menina, semelhante a uma libertado, após o que, atendendo ao pedi-
gentil castelã da Média Idade, tinha se di- do de Cecília, toma o contraveneno
vertido em explicar ao índio, como os (antídoto).
guerreiros que serviam uma dama, costu- Mas a grande renúncia de Peri lem-
mavam usar nas armas as suas cores. bra sobremodo o velho ritual da cavala-
— T u dás a Peri as tuas cores, senho- ria, assim, quando tudo parece perdido,
ra? disse o índio. D . Antônio conta a Peri que se ele fosse
— N ã o tenho, respondeu a menina; cristão confiaria em suas mãos a vida de
mas vou tomar umas para te dar; queres? Cecília: " O rosto do selvagem iluminou-
— Peri te pede. se; seu peito arquejou de felicidade; seus
— Quais achas mais bonitas? lábios trêmulos mal podiam articular o
— A de teu rosto, e a de teus olhos. turbilhão de palavras que lhe vinham do
Cecília sorriu. íntimo d'alma.
— Toma-as, eu te as dou. — Peri quer ser cristão! exclamou
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ele. D . A n t ô n i o lançou-lhe um olhar úmi- cidade dos brancos; sua irmã fica com ele
do de reconhecimento. no deserto, no meio das florestas. ... —
— A nossa religião permite, disse o Tu és rei destas florestas, destes campos,
fidalgo, que na hora extrema todo o ho- destas montanhas, tua irmã te acompa-
mem possa dar o batismo. Nós estamos nhará".
com o pé sobre o t ú m u l o . Ajoelha, Peri! Finalmente, como n ã o poderia deixar
O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, de ocorrer, o sobrenatural atuando sobre
que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. o cavaleiro (a semelhança de Parsifal,
— Sê cristão! Dou-te o meu nome. Siegfried, Galaad, Lancelot), é submetido
Peri beijou a cruz da espada que o fi- a mais terrível prova, uma espécie de dilú-
dalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e vio. Refugiado com sua amada no topo de
sobranceiro, pronto a afrontar todos os uma palmeira, ele é obrigado a usar toda
perigos para salvar sua senhora. a sua força para arrancá-la e assim, a deri-
— Escuso exigir de ti a promessa de va, na furiosa torrente, salvarem-se, se-
defenderes minha filha. C o n h e ç o a tua al- guindo o exemplo do ancestral mítico Ta-
ma nobre, conheço o teu heroísmo e a tua mandaré (1:274).
sublime dedicação por Cecília. Mas quero Quanto a Iracema (1:1065 — 116), é
que me faças um outro juramento. uma exaltação à fidelidade da índia, e seu
— Qual? Peri está pronto para tudo. amor desvairado pelo inimigo de seu po-
Jura que, se n ã o puderes salvar mi- vo. Seu amor vai a ponto de enfrentar e
nha filha, ela n ã o cairá nas mãos do ini- até matar membros de sua tribo e até pa-
migo? rentes para defender o guerreiro branco
Peri te jura que ele levará a senhora a Martim. Abandona o pai, os irmãos, a
tua irmã; e que se o senhor do céu n ã o dei- sua gente, para ir morar com o branco,
xar que Peri cumpra a promessa, nenhum primeiro entre os potiguaras, inimigos de
inimigo tocará em tua filha, ainda que pa- seu povo, e depois na solidão das praias.
ra isso seja preciso queimar uma floresta' As partidas e ausências do esposo vão mi-
nanc'o as forças de Iracema, que depois
inteira.
do parto de seu primeiro filho Moacir, vai
— Bem, estou t r a n q ü i l o . Ponho mi-
definhando até a morte. É o trágico, em
nha Cecília sob tua guarda; e morro satis- Alencar, pois a virgem que enfrentara to-
feito. Podes partir" (1:253). dos os perigos, sucumbe, vitimada pelo
Alencar mostra de maneira insofis- amor e pela saudade.
mável o espírito de renúncia do cavaleiro A imagem de Iracema é tão irreal e
para servir sua amada, acima de outros estranha que, apesar da afirmação do au-
valores incrustados na sua personalidade tor que é uma lenda indígena, pairam dú-
livre e indômita: vidas quanto ao cunho verídico (até da
" — N ã o chores, senhora, disse o lenda), pois até mesmo o nome da heroína
índio aflito; Peri te falou o que sentia; não é palavra indígena, mas sim um ana-
manda e Peri fará a tua vontade. Cecília grama da palavra " A m é r i c a " .
olhou-o com uma expressão de melanco- A análise das obras de Alencar e
lia que partia a alma. Gonçalves Dias desnudam a ideologia vi-
— Queres que Peri fique contigo? Ele gorante no movimento r o m â n t i c o , a com-
ficará; todos serão seus inimigos; todos o pensação da falta de uma idade média no
tratarão mal; desejará defender-te e n ã o Brasil que abrigasse uma ordem cavalhei-
poderá; quererá servir-te e n ã o o deixa- resca; com suas bravatas e tropelias, levou
rão; mas Peri ficará. seus adeptos a transporem para os indíge-
— N ã o , respondeu Cecília; não exijo nas as virtudes e as qualidades dos cava-
de ti esse sacrifício. Deves viver onde na- leiros europeus. É esse o Caboclo (índio)
ceste, P e r i " (1:267). da Umbanda, ancestral místico que as eli-
Mais adiante, o espírito de renúncia tes vêm transpondo para a Religião, uma
toca t a m b é m a castelã que afirma: " — espécie de compensação pelos seus alija-
Peri, não pode viver junto de sua irmã na mentos do processo decisório nacional.
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ocorridas nos cultos umbandistas a partir da década de 60. Perspectivas, São Paulo. 7:81-93, 1984.

III — C O N C L U S Õ E S b) adoção de regras morais mais rígi-


das;
Como pode se evidenciar, as conclu- c) simplificação do ritual com aboli-
sões se sucederam no decorrer da apresen- ção do sacrifício de animais;
tação, mas pode-se destacar por sua im-
portância as seguintes: d) o aparecimento dos subtipos de
1. A adesão de estratos sociais médios culto, embora sem se constituírem em sei-
(classe média) ao culto umbandista pro- tas.
porcionou alterações profundas na práti- 2. A substituição do preto-velho pelo
ca religiosa com relação a vários aspectos, índio, como principal guia espiritual na
tais como: maioria dos templos, p o r é m , não do índio
a) abolição do uso do fumo e do ál- real, mas do índio idealizado pelo movi-
cool em muitos templos; mento r o m â n t i c o da literatura brasileira.

D E L G A D O S O B R I N H O , A . T . — Religion, literature and ideology: some indications about the chan-


ges which have oceurred in the "umbandistas" (a Brazilian religion) cultes since the sixties.
Perspectivas, S ã o Paulo, 7:81-93, 1984.

ABSTRACT: Since the sixties the middle class has been invading the "umbandista" religion and,
for this reason, there have been some alteralions in the cult, in the doctrine and in the temple organiza-
tion, The indian has become the central figure in the religious practice, not the real indian but the one
who was idealized by the Brazilian romantic movement.

KEY-WORDS: "Umbanda", spirits; legions; falanges; ideology; romanticism; literature and in-
dianism.

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