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Cemitérios:

fontes de contaminação
ambiental?

Lucia Salles França Pinto


Superintendente

Serviço Funerário do Município


de São Paulo (SFMSP)
2014
Introdução
• Mística dos cemitérios
• Teoria miasmática x Teoria bacteriológica
• Poucos estudos publicados sobre o tema:
nacionais e internacionais
• Problemática levantada inicialmente no
Brasil pelo estudo de Alberto Pacheco
• Estudos recentes realizados pela Santa Casa
de Misericórdia e outros estudos
internacionais contrariam fortemente os
resultados desse estudo.
Pontos principais: “a mística”
• Produto da coliquação (necrochorume)
• Contaminação do solo e água subterrânea
• Presença de patógenos
• Resíduos de exumação Cemitério da Consolação
Crédito: Artur Vitor Iannini
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
(Ueda et al., 2011):
Comparação entre a microbiota da terra nos
cemitérios - locais virgens e locais onde são
enterrados os corpos
• Objetivo: identificar e comparar os microrganismos nos
cemitérios São Pedro e Vila Nova Cachoeirinha tanto em
áreas com corpos enterrados como em áreas em que nunca
houve sepultamento;
• Coleta nas áreas em que ocorreram sepultamentos ocorreu
durante a exumação de corpos de pessoas que morreram
por doenças infecto-contagiosas transmissíveis, como AIDS,
tuberculose e hepatite viral.
• Foram coletadas 130 amostras de solo dos dois cemitérios,
em várias profundidades, sendo 49 de terras “virgens” e 81
de locais com corpos sepultados.
Ueda et al., 2011
• Conclusões:

A microbiota do solo dos cemitérios é constituída por


vários microrganismos (cocos Gram positivos,
bacilos Gram positivos, bacilos Gram negativos,
bactérias anaeróbias estritas e fungos);
 Não foram encontradas diferenças entre a
microbiota das terras virgens e das terras com corpos
sepultados;
Não foram encontrados microrganismos patogênicos
nas terras provenientes de locais de sepultamento.
Comprovação: não há registro de adoecimento de
sepultadores que entram em contato direto com o
solo do cemitério no processo de sepultamento e
exumação.
Santa Casa de Misericórdia (Ueda et al.
2011):
Comparação dos micro-organismos isolados de
caixões de madeira e de zinco em cemitérios no
Município de São Paulo
• Objetivo: verificar se existe diferença entre os
microrganismos encontrados nos caixões de madeira e zinco
nas exumações dos corpos;
• Foram examinadas 605 amostras de 180 exumações em 5
cemitérios
• Conclusões: Não se observou diferenças entre os
microrganismos encontrados nos caixões de madeira e zinco e,
apesar da menor quantidade de amostras dos caixões de zinco,
as porcentagens de microrganismos isolados mantiveram-se
proporcionais nos diferentes tipos de caixão.
Dent (2002): The hydrogeological context
of cemetery operations and planning in
Australia
• Objetivo: avaliar o impacto potencial de
contaminação dos cemitérios sobre as águas
subterrâneas;
• Foi realizado um estudo abrangente das águas
subterrâneas de nove cemitérios australianos,
entre outubro de 1996 e agosto de 1998.
• Foram realizadas amostras periódicas de 83 poços
e lagoas, num total de 305 amostras, testadas para
pelo menos 38 componentes inorgânicos e 5
bacteriológicos.
• Principais resultados:

Não foi identificada nenhuma presença consistente


de indicadores microbiológicos na maior parte dos
cemitérios ou nos tipos de solos mais gerais e zonas
saturadas;
Houve casos importantes em que os metais nas
amostras de referência eram consideravelmente elevados
(em média) em comparação com as amostras do interior
dos cemitérios, particularmente para Cr, Mn e Ni,
mostrando que a atividade cemiterial não libera
tais elementos no ambiente;
Apesar de largamente distribuídas nos diferentes locais,
solos e amostras, houve apenas baixos níveis de
indicadores da presença de bactérias, incluindo
nas situações onde era mais provável que fossem
encontrados;
Se a distância de separação entre o túmulo e o lençol
freático é suficientemente espessa e se o cemitério
possui áreas de amortecimento em seu perímetro,
então, na maioria dos meios geológicos naturais, o
movimento dos produtos de decomposição
para fora da área do cemitério será mínimo e
com baixo risco de causar condições
patogênicas ao ambiente ou às pessoas.
Qualquer risco seria resultado de condições
desconhecidas ou incomuns;

Apesar dos microrganismos terem possibilidade de


permanecer viáveis e transportáveis por muitos anos
após o sepultamento, são atenuados pelos solos
e, eventualmente, morrem ou perdem
viabilidade, e após anos expostos às condições
naturais tornam-se inconseqüentes.
As águas subterrâneas também apresentam um grande
número de características naturais ou induzidas por
condições externas aos cemitérios. As características
dos aqüíferos regionais subjacentes ou a natureza dos
solos não podem ser descartadas. As águas amostradas
não refletem necessariamente apenas as influências
dos cemitérios e dos sepultamentos próximos;

No contexto urbano, o cenário predominante dos


grandes cemitérios, as questões do uso da terra no
entorno (e nos anos passados) tem forte
impacto sobre as áreas dos cemitérios; qualquer
medição de poluentes deve ser interpretada com isso
em mente.
• De acordo com o autor,

“Os trabalhos publicados (Pacheco et al., 1991 e


outros) levantam questões importantes para
consideração, particularmente àquelas relacionadas
à integridade das fontes de abastecimento de água
subterrânea. Porém, de uma perspectiva puramente
científica, todos eles tem um grau quantificável de
inadequação em termos de metodologia, rigor e
conclusões que inspiram um grau considerável de
preocupação. Os resultados brasileiros estão
em desacordo com os dados e as conclusões
de todos os outros estudos, em todo o
mundo” (Tradução literal de Dent, 2002, p. 57, grifo do autor).
• Conclusão:

“As conclusões do estudo são claras. A quantidade


de produtos de decomposição que ultrapassa
os limites dos cemitérios é muito pequena,
estes são identificáveis e mensuráveis, mas, na
maioria dos casos, são rapidamente atenuados no
ambiente de sub-superfície. De forma geral, os
cemitérios apresentam baixo impacto de
contaminação ambiental, desde que
corretamente localizados e operados (...) Os
dados e argumentos do estudo apóiam
fortemente a idéia de que os cemitérios
apresentam impacto ambiental mínimo”
(Tradução literal de Dent, 2002, grifo nosso).
Estudos internacionais
1. Canadá: preocupações relacionadas á contaminação do
solo e águas subterrâneas a partir do uso formaldeído
(formol) na preparação dos corpos

Ministério do Ambiente de Ontário e Beak


Consultants, ambos em 1992:
O primeiro estudo investigou parâmetros químicos e
bacteriológicos em seis poços de água subterrânea
utilizados para abastecimento à jusante dos cemitérios.
Não foi encontrada nenhuma evidência de contaminação.
O segundo estudo investigou aspectos similares no maior e
mais antigo cemitério de Toronto, incluindo também
metais prejudiciais ao meio ambiente e outros elementos.
Para a maior parte dos testes de solo e águas subterrâneas,
não houve resultados preocupantes, ou que poderiam ser
ligados de forma convincente a produtos de decomposição
dos cemitérios
2. Alemanha: Braun (1952)

Braun (1952) conduziu uma investigação para


estabelecer a probabilidade de migração dos
produtos de decomposição dos cemitérios para
um poço de abastecimento municipal. Concluiu-
se que, apesar da proximidade do cemitério –
que ocupa uma área de 8000m2 e está a 150m
dos sistemas hidráulicos – não houve conexão
hidráulica à fonte de abastecimento e os
“germes” do cemitério não provocaram
contaminação.
3. Holanda: van der Honing (1986)

• Principais preocupações na Holanda referiam-se à


baixa altitude das terras, ao fato de muitos cemitérios
serem circundados por águas superficiais e a
possibilidade de influências adversas de terrenos
agrícolas próximos aos cemitérios.
• As principais conclusões foram de que não haviam
concentrações aumentadas de parâmetros físico-
químicos, microbiológicos ou de toxicidade próximos
aos cemitérios; e que nenhuma ou quase nenhuma
influência foi observada. Em muitos aspectos, as
águas subterrâneas interiores aos cemitérios são
mais limpas que as águas superficiais de referência.
Organização Mundial da Saúde (1998):
The impact of cemeteries on the
environment and public health
• Objetivo: breve introdução ao estado do
conhecimento com relação à poluição da água por
cemitérios e os mecanismos operantes para
diminuir o potencial de poluição.

• Principal conclusão:
• “O potencial de poluição dos cemitérios
existe, mas em cemitérios bem manejados,
com condições de solo adequadas e arranjos
de drenagem, o risco é provavelmente
pequeno”.
Resíduos de exumação
• Resolução SS 28/2013 da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo, item 11.11:

“os resíduos sólidos resultantes da exumação dos


corpos, isentos de restos humanos membros,
ossos ou tecidos orgânicos, são classificados
como não perigoso e devem ter destinação
ambiental e sanitária adequada, em aterro
sanitário de resíduos domiciliares ou
equivalente”.
Pacheco et al. 1991:
Qualidade bacteriológica de águas
subterrâneas em cemitérios
• Objetivo: avaliar a qualidade sanitária e higiênica
de águas subterrâneas de três cemitérios das regiões
da Grande São Paulo e Baixada Santista.
• 67 amostras analisadas no período de janeiro a
dezembro de 1989, provenientes dos cemitérios Vila
Formosa (CFV), Vila Nova Cachoeirinha (CVNC),
ambos em São Paulo e Areia Branca (CAB), na
Baixada Santista.
• Resultados:

Diferenças geológicas e no nível do lençol freático


influenciaram na qualidade bacteriológica das águas
subterrâneas estudadas;
Não foram detectados vírus em nenhuma das amostras
de água subterrânea;
Na maioria das amostras foram detectadas a presença
de estreptococos fecais e clostrídios sulfito redutores e
ausência de coliformes totais.

• Conclusões:
Condições higiênicas e sanitárias das águas estudadas
foram insatisfatórias para os três cemitérios estudados;
O nível do lençol freático e as condições geológicas do
terreno exercem papel importante na qualidade
bacteriológica das águas subterrâneas.
o Considerações:
• Patógenos encontrados são de origem fecal;
• Não se considera fontes de contaminação externas ao cemitério e
nem usos pretéritos  NEXO CAUSAL?
• Problemas de ordem metodológica;
• Trabalhos subsequentes seguem a mesma linha;
• Trabalhos nacionais e internacionais discordam destes
resultados.

Se não há um estudo das águas subterrâneas à


montante do cemitério, das atividades do entorno e
dos usos pretéritos da área, como afirmar que o
cemitério é a fonte da contaminação ambiental?
• Exemplo: Cemitério do Araçá
Fundado em 1887
Área: 222.000 m2
Número de concessões: 25.730
Número de sepultamentos desde o início da operação: 458.579
“A simples presença de microrganismos no solo não
significa necessariamente ‘poder de infectividade’, ou
seja, a capacidade dos microrganismos de causarem
doenças é função de múltiplas variáveis, de difícil
estudo. Noto muito erro na interpretação dos
resultados. O homem ‘vivo’, este sim, modifica,
contamina e destrói o ambiente. A presença de áreas
urbanas próximas aos mananciais causa
modificações significativas no ambiente, não
necessariamente a presença de cemitérios, que
podem até determinar preservação ambiental. Ou
seja, o homem vivo é o problema, e não o
homem morto”.
(Prof. Dr. Carlos Delmonte, 1995)
Conclusão
• Natureza vem lidando com a morte e decomposição de corpos há
milhares de anos;
• Questão da morte foi sendo mistificada ao longo da história;
• Estudos sobre cemitérios no Brasil muito influenciados pelo
estudo de Alberto Pacheco, que apresenta inconsistências
metodológicas;
• Risco depende, principalmente, das condições de localização e
manejo dos cemitérios;
• Controle rigoroso da localização dos túmulos é feito pelo SFMSP,
em cumprimento à Resolução CONAMA 335/03 (art. 5º, I), dada
por “o nível inferior das sepulturas deverá estar a uma distância
de pelo menos um metro e meio acima do mais alto nível do
lençol freático, medido no fim da estação das cheias”;
• Isso significa que qualquer área que apresente lençol freático
aflorante ou em contato com os túmulos é interditada e os
sepultamentos descontinuados, para evitar qualquer risco de
contaminação.
Conclusão
• Pluma de nutrientes liberada por um corpo em
decomposição é tão pequena que não pode ser
considerada poluição (Dent, 2002);
• Os resíduos de exumação são considerados resíduos
comuns, não perigosos, e podem ser dispostos em aterros
sanitários de resíduos domésticos;
• Solos dos cemitérios não apresentam organismos
patogênicos,
• A maior parte dos patógenos morre da presença do ar e
sua concentração é reduzida rapidamente com o aumento
da distância do túmulo (Environment Agency UK, 2004;
• Em cemitérios bem localizados e operados, o risco de
contaminação é mínimo;
• Nexo causal é fundamental!
• A morte é um processo natural, que deve ser entendido e
desmistificado.
Referências
• DELMONTE, C. Putrefação e suas consequências para o meio
ambiente. I Seminário Nacional Cemitério e Meio Ambiente, 1995.
• DENT, Boyd B. The Hydrogeological Context of Cemetery
Operations and Planning in Australia. Vol. 1. 2002. 473 p. Tese (Doctor
of Philosophy in Science). The University of Technology, Sydney.
• ENVIRONMENT AGENCY UK. Assessing the Groundwater Pollution
Potential of Cemetery Developments. Bristol, UK, 2004. 24p.
• PACHECO et al. Qualidade bacteriológica de águas subterrâneas em
cemitérios. Revista de Saúde Pública, n.25, v.1, 1991, p. 47-52.
• UEDA, S. M. Y. et al. Comparação entre a microbiota da terra nos cemitérios:
locais virgens e locais onde são enterrados os corpos. Arq. Med. Hosp.
Fac. Cienc. Med. Santa Casa São Paulo, n.56, v.2, 2011, p. 74-79.
• UEDA, S. M. Y. et al. Comparação dos micro-organismos isolados de caixões
de madeira e de zinco em cemitérios no Município de São Paulo. Arq. Med.
Hosp. Fac. Cienc. Med. Santa Casa São Paulo, n.56, v.1, 2011, p. 24-28
• WHO – World Health Organization. The impact of cemeteries on the
environment and public health: an introductory briefing. Denmark,
1998. 15 p.
OBRIGADA!

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