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AS ESCRITAS DO ÓDIO:

PSICANÁLISE E POLÍTICA

Coleção
Margens: Psicanálise, cultura e política
Dirigida por Miriam Debieux Rosa
Editora
Maria Cristina Rios Magalhães

Conselho Editorial
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro (UNIFOR)
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli (PUC-MG)
Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho (UFF)
Prof. Dr. Luis Cláudio Figueiredo (USP, PUC-SP)
Profa. Dra. Elisabeth Roudinesco (École Pratique des Hautes Études, FR)
Profa. Dra. Ana Maria Rudge (PUC-RJ)

Comissão Científica
Prof. Dr. Jorge Broide (PUC-SP)
Profa. Dra. Erica Burman (Universidade de Manchester - Inglaterra)
Profa. Dra. Ana Maria Medeiros da Costa (UERJ-RJ)
Prof. Dr. David Pavón-Cuéllar (Universidad Nicolaita-MX) confirmar
Prof. Dr. Paulo Endo (USP-SP)
Prof. Dr. Christian Hoffmann (Universidade Paris - França))
Prof. Dr. Ian Parker (Universidade de Laicester-UK)
Prof. Dr. Daniel Omar Perez (Unicamp-SP)
Prof. Dr. Esteban Radiszcz (Universidad de Chile) confirmar
Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle (USP-SP)
Prof. Dr. Edson Luiz André de Souza (UFRGS-RS)
Profa. Dra. Sandra Djambolakdjian Torossian (UFRGS-RS)

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Processo Fapesp n. 2016/07663-3
MIRIAM DEBIEUX ROSA
ANA MARIA MEDEIROS DA COSTA
SERGIO PRUDENTE
(ORGANIZADORES)

AS ESCRITAS DO ÓDIO:
PSICANÁLISE E POLÍTICA
© by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
1a edição: setembro de 2018

Capa
Ana Maria Rios Magalhães

Produção editorial
Araide Sanches

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


R788c Rosa, Miriam Debieux.
A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica
do sofrimento / Miriam Debieux Rosa. – São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.
200p ; 14x21 cm, – (Margens: psicanálise, cultura e política)

ISBN 978-85-7137-398-3
1. Psicanálise. 2. Clínica psicanalítica 3. Dimensão sociopolítica.
4. Sofrimento. I. Título. II. Série.
CDU 159.964.2
CDD 616.8917

Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507

Editora Escuta Eireli-ME.


Rua Ministro Gastão Mesquita, 132
05012-010 São Paulo, SP
Telefax: (11) 3865-8950 / 3862-6241 / 3672-8345
e-mail: escuta@uol.com.br
www.editoraescuta.com.br
SUMÁRIO

Apresentação ...........................................................................................9
Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa,
Sérgio Eduardo Lima Prudente
Parte I
Ódio e escrita da experiência
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política ....15
Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins
O discurso do ódio, paixão contemporânea .....................................31
Doris Rinaldi
Odiai-vos uns aos outros .....................................................................41
Oscar Angel Cesarotto
Considerações sobre transmissão e
posição cínica no discurso ...................................................................51
Ana Maria Medeiros da Costa
O retorno das vociferações ..................................................................65
Mauro Mendes Dias
O que é o ódio? De onde ele vem? ......................................................71
Emília Estivalet Broide
Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo ........................79
Sérgio Eduardo Lima Prudente
6 As escritas do ódio

Escuta psicanalítica e alteridade:


imigração e intersecções de gênero, raça e sexualidade ..................91
Ilana Mountian
Parte II
Ódio e segregação
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento ...........................107
Eduardo Leal Cunha
Racismo e sexismo: desafios da constituição psíquica de
mulheres negras e homens negros ...................................................127
Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza
Gestos de ódio à pele escrita: o berro do chão, a cicatriz aberta ..147
Ana Luiza Andrade
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias:
verdade, fragmentação e intolerância na política ...........................165
João Angelo Fantini
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio:
redes sociais digitais e política ..........................................................181
Patrícia do Prado Ferreira
RAP: o “efeito colateral” da segregação ...........................................199
Marta Quaglia Cerruti
Respostas coletivas às intrusões no erotismo: as 11 garotas de
Bertioga e a vacina do HPV ..............................................................221
Adela Stoppel de Gueller
Culpa, crimen y castigo en los destinos
de la ley según Ricardo III de Willam Shakespeare ........................231
Esteban Radiszcz
Parte III
Ódio e política
Ódio na política, políticas do ódio ...................................................261
Caterina Koltai
O mal-estar na democracia ...............................................................269
Ivan Estevão
Violência, democracia e linguagem .................................................287
Paulo Endo
Sumário 7

“Cultura da Paz” ..................................................................................309


Daniel Coelho
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do
“poder exacerbado” no Brasil ............................................................323
Pablo Castanho
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso sobre o
Estado de exceção social brasileira dos anos 2015-2016................347
Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner,
Christian Ingo Lenz Dunker
O trabalho clínico junto às populações afetadas
pela violência de Estado .....................................................................365
Jorge Broide
Sobre os autores ..................................................................................377
APRESENTAÇÃO

Miriam Debieux Rosa


Ana Maria Medeiros da Costa
Sergio Eduardo Lima Prudente

Em nossos dias vivemos condições limites que colapsam


um tempo de pensar, instituindo a pressa e a passagem a ato.
Fundamentalismos, fanatismos, guerras, golpes de estado e violên-
cia ocupam o centro das notícias globais e das experiências no laço
social. Este livro pretende levantar uma série de indagações sobre
manifestações contemporâneas de violência, em que o ódio passa
ao centro da cena.
Freud escreveu o seguinte, no texto “A propósito do meca-
nismo psíquico dos fenômenos histéricos”, nos seus estudos sobre
a histeria, de 1893: “aquele que lançou uma palavra de injúria em
lugar de flechas contra o inimigo foi o fundador da civilização; a
palavra é então o substituto do ato e, sob certas condições, o subs-
tituto único” (Freud, 1893, p. ??). O princípio colocado por Freud falta pág.
nessa frase é otimista, na medida em que a palavra não impediu
que as guerras continuassem existindo. Tanto o âmbito da palavra
— no seu aspecto de injúria; quanto o da escrita — seja em textos,
traçados ou imagens — continuam a produzir passagens ao ato, na
sua evocação de uma violência originária, expondo os limites de ar-
ranjos civilizatórios.
A produção do livro As escritas do ódio: psicanálise e política
teve início no V Colóquio Internacional Escrita e Psicanálise e III
10 Miriam Debieux Rosa, Ana Maria M. da Costa, Sergio E. L. Prudente

Colóquio Psicanálise e Sociedade: clínica, cultura e política realiza-


do no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, entre
os dias 28 a 30 de novembro de 2016, que efetivou o diálogo e a
produção conjunta da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência e
do Laboratório de Psicanálise e sociedade do IP-USP. O resultado
foi a reunião de pesquisadores de 15 Programas de Pós-Graduação
de várias áreas, de 3 estados brasileiros e 3 países diferentes, con-
tando com a presença de 32 palestrantes e uma conferência de
abertura atesta que o objetivo do encontro, que consistia em reunir
os principais grupos de pesquisa em psicanálise, atuantes nas uni-
versidades brasileiras, em torno do debate sobre as questões con-
temporâneas em torno do ódio, em diversos campos, foi atingido
com grande sucesso.
O livro dará seguimento às discussões atuais voltadas para a
temática do ódio e fenômenos relacionados tais como: fundamen-
talismo, fanatismos, guerras, e violência dentro da perspectiva do
laço social. O seu objetivo é debate em torno das escritas contem-
porâneas do ódio nos diversos campos: clínica, cultura, política, ar-
tes, literatura, filosofia, sociologia, gênero etc.
A organização e edição desses artigos, coloca-se como uma
tentativa de escandir os tempos e produzir debates entre pesqui-
sadores, que possa resultar numa intervenção mais ampla no laço
social. Alguns fundamentalismos evocam escritas sagradas para
justificar atos extremos. A escrita contém uma báscula entre solu-
ção e violência. Solução porque pode servir como contorno e paci-
ficação de algo que resta não inscritível simbolicamente. Do ponto
de vista da psicanálise, pode ser pensado como algo de um real que
não cessa de não se escrever e que acossa o sujeito, na tentativa de
produção de algo que o represente no campo dos valores, consti-
tuintes do discurso que faz laço social. Mas também violência,
porque pode intervir como ato de criação, desarranjando soluções
compartilhadas até então. Um traçado no mapa — num acordo de
guerra, por exemplo — pode fazer desaparecer línguas e costumes,
impondo aos sujeitos o apagamento de heranças simbólicas. Temos
exemplos disso em diferentes tempos históricos. Nesse sentido, sua
força faz parte de uma violência originária que insiste, constituindo
uma fragilidade específica dos falantes.
Apresentação 11

Assim, o livro apresenta um mapeamento dos recortes e pers-


pectivas que caracterizam as pesquisas em psicanálise no que se
refere à temática do ódio, distribuídos em vinte e dois capítulos,
dentro de três eixos principais de trabalho. A Parte I, Ódio e escrita
da experiência, conceitua a experiência do ódio e estabelece as suas
interfaces contemporâneas. A Parte II, Ódio e segregação, identifica
os objetos do ódio e modalidades de propagação no campo público.
A Parte III aborda mais diretamente uma temática constrangedora
do laço contemporâneo, Ódio e política.
Entendemos que esse livro pode contribuir para análise de
um fenômeno recente na história contemporânea, o ódio sem in-
termediários propagado nos vários campos da vida social. Deve
contribuir para as análises dos processos políticos, sociais e inter-
subjetivos atuais.
Parte I
Ódio e escrita da experiência
Licença para odiar:
uma questão para a psicanálise
e a política

Miriam Debieux Rosa


Sandra Alencar
Raonna Martins

Estamos em tempos de exaltação e empobrecimento do dis-


curso na política, em temas relativos aos direitos humanos, na vida
pública e na clínica. Não somente o ódio está no ar, mas a possibi-
lidade de dizê-lo sem censura no âmbito dos debates políticos, nas
instituições em geral, com expressiva repercussão na mídia e nas
redes sociais.
Essa questão nos afeta em todas as esferas, das relações e dos
laços sociais, do cotidiano às questões da vida pública. O tema ga-
nha relevância em nosso meio particularmente desde as últimas
eleições (2015), quando a precariedade do debate político passou a
ser ocultada pelos explícitos discursos de ódio, racistas, xenófobos,
puritanos e preconceituosos, promovendo tensão social e incerte-
za não apenas quanto ao futuro econômico do país, mas também o
social e o político. Este texto visa apontar algumas contribuições da
Psicanálise à face política e subjetiva do ódio.
Acontecimentos alarmantes fruto desse contexto tomam a
cena. Na primeira semana de 2017 cerca de 100 pessoas foram mor-
tas nas prisões brasileiras, várias decapitadas; os jornais estamparam
a pilha de corpos de homens presos no Norte do país; notícias tími-
das revelam assassinatos de índios e líderes comunitários país afo-
ra; são cotidianos os embates da polícia espoliando os moradores do
16 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

bairro da Luz, conhecido como “Cracolândia” em São Paulo, e, sem-


pre, estão na mira dos ataques violentos os jovens negros e pobres
das regiões periféricas das grandes cidades. Esses são os alvos/cor-
pos sobre os quais recai a violência, responsabilizados que são pelo
mal-estar social. Frente à violência e morte perpetradas contra esses
sujeitos, acompanhamos comoções públicas que se satisfazem e se
sentem contempladas com a incitação: “vamos eliminar o mal!”.
Recentemente, em 2018, a “solução” para as violências elege as
favelas do Rio de Janeiro como território livre para ação das forças
armadas. Na segunda-feira, dia 19 de fevereiro deste ano, o coman-
dante do Exército, general Villas Bôas, disse ser necessário dar aos
militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova comis-
são da Verdade”. Essa referência tem relação com o fato de que, de-
pois da lei da Anistia, de 1979, foi criada a essa ferramenta que se
ocupou em investigar casos de tortura e mortes no período da dita-
dura militar (Lobo, 19/02/2018).
As questões estruturais do país e do Rio de Janeiro — desigual-
dade econômica e social, racismo, falta de verbas para as políticas de
moradia, educação, saúde e segurança — que fomentam as violências
em inúmeras instâncias não são mencionadas, tampouco os objetivos
da medida de segurança que se configura mais como um espetáculo
de manipulação política para satisfazer a parcela da população acu-
ada e medrosa do que um planejamento para a gestão da segurança.
Em seu livro Territórios em conflito: São Paulo, espaço, histó-
ria e política, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik (2017) contri-
bui com suas elaborações a respeito da crise econômica e política
que uma sociedade como a nossa produz e vivencia. Para ela, pre-
pondera atualmente a emergência de uma solução fascista, ou seja,
buscar um culpado, ativar ódios e preconceitos. Todavia, é preciso
ter em mente que esses fenômenos não acontecem por acaso. Para
a parte conservadora de nossa sociedade é de fundamental impor-
tância construir um espetáculo e com ele nos entreter, enquanto no
Congresso Nacional tramitam e avançam pautas de desconstituição
de direitos, criminalização dos movimentos sociais, privatização de
bens comuns etc.
Para que seja possível reunir condições de resistência — sem
temer — é preciso defender o que já fomos capazes de construir,
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 17

apostando em possibilidades de formulação e experimentações de


alternativas que apontem para outro futuro (Rolnik, 2017). E para
que isso seja possível, entendemos que é necessário descortinar a
fumaça dos ódios, compreendendo-os a partir de outras chaves,
como esperamos apresentar neste texto.
Não só no Brasil o ódio está presente nas cenas políticas.
Cenas macabras de violência são realizadas em nome da luta políti-
ca e/ou religiosa, fartamente divulgada, que horrorizam e se repetem
no cenário mundial. Dia 13 de novembro de 2015, frente ao ataque
violento em Paris, vimos a comoção com a morte dos jovens, mas
também, a disseminação do medo seguida da incisiva declaração
de Hollande, presidente da França na época: “Estamos em guerra
...” — o que provocou inúmeras polêmicas. Contudo, junto com as
controvérsias, percebemos que não houve reflexões sobre o papel da
França na história e na política atual no Oriente Médio, e de mui-
tos outros fatores imbricados naquele acontecimento. Propaga-se
a disseminação da cultura do medo, a política repressiva e a discri-
minação aleatória aos imigrantes — que tornam, todos, suspeitos.
A eleição em 2016 do atual presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, entre outros mecanismos, parece ter oferecido combustível
ao ódio desenfreado e a discursos ressentidos e destrutivos.
A contribuição da Psicanálise às questões sociais e políticas
é a de introduzir seu método, de modo a elucidar os modos atuais
de enredamento do sujeito, do seu gozo, desejo, saber e verda-
de, nas estratégias de poder nestes tempos sombrios (Rosa, 2016).
Constata-se que a licença para odiar substitui ou apaga a árdua fun-
ção civilizatória do ideal e suscita questões políticas e clínicas. Seria
esse o mundo dos desiludidos, dos ressentidos, da perda/castração
constitutiva e dos ideais sociais? O que se passa com a função paci-
ficadora do ideal do eu que não oferece contrapontos e resistências
frente à atual licença para odiar?
Temos sustentado que o império da intolerância contemporâ-
nea e a lógica da guerra se instauram atualmente em um composto
que articula três elementos: 1) as inflexões do liberalismo radical,
que se apoia no sujeito da ciência, e que tem a paranoia como ma-
triz do conhecimento humano, tal como desenvolve Lacan (1965-
66), em detrimento da experiência do sujeito; 2) a paranoia, que
18 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

obtura o saber e alimenta a perspectiva da insegurança — em uma


sociedade sob ameaça, diz Saflate (2015), o medo torna-se o afeto
político central; e , 3) o empuxo ao ódio como proposta de gozo no
laço social que apaga os conflitos sociais e políticos e se fixa como
um objetivo em si, desarticulando os ideais coletivos e civilizatórios
(Rosa, Alencar, Lemos, 2018; Rosa, Penha, Lemos, 2018).
Os ódios postos em ato — problemática clínica e políti-
ca — geram do fanatismo ao terrorismo. Atos que visam destruir
o intolerável ou injusto no espaço público, em busca do bem. A
Inquisição católica, Hitler, Bin Laden, Bush — todos agem pelo
bem da humanidade extirpando o mal. O equívoco a respeito do
bem continuará provocando guerras bem-intencionadas em que a
razão estará dos dois lados embora não esteja em nenhum.
Assim consideramos que os ódios devem ser tratados pela
política, e seus mecanismos elucidados pela clínica psicanalítica.
Nessa direção, vamos abordar a instrumentalização política do su-
jeito pela via das paixões, e mais especificamente pelos ódios, que
podem substituir ou apagar a função civilizatória do ideal. O tra-
tamento do conceito de ódio pelo plural permite, segundo Dias
(2012): “fazer algumas distinções que, embora muitas vezes funda-
mentais, tendemos a desconsiderar” (p. 21).
Sem desconsiderar outras dimensões do ódio, propomos duas
notas enfatizando, primeiramente, o ódio como paixão que instaura
o império da ignorância e da destruição do outro e, segunda nota,
a desilusão como fomento à política do ódio substituindo as metas
para o futuro.

Nota 1. O ódio como paixão e verdade: o império da


ignorância e a destruição do outro

As paixões situam-se na dimensão do ser e têm duas faces: a


ignorância em detrimento do pensamento e a redução do lugar do
outro enquanto alteridade. As paixões são eminentemente narcí-
sicas e reforçam o eu. Geram convicções sobre a verdade, suspen-
dendo temporariamente a barra entre significante e significado. O
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 19

apaixonado, na lógica da identificação imaginária, aspira à abolição


dos limites e tenta curar-se do humano: trata-se da paixão do ser.
O ódio do qual trataremos está enlaçado entre as três paixões
do ser: o amor, o ódio e a ignorância. Afirma Lacan, em Os escritos
técnicos de Freud (1953-54, p. 309) que “é somente na dimensão do
ser, e não daquela do real, que as três paixões fundamentais podem
ser inscritas — na junção do simbólico e do imaginário, essa linha
de intersecção que se chama o amor — na junção do imaginário e
do real, o ódio — na junção do real com o simbólico, a ignorân-
cia.” Retoma, no Seminário 20, a paixão da ignorância, em que o
ser não quer saber de nada: o ódio sólido dirige-se ao ser, “que eu
chamo de ex-sistir” (Lacan, 1975, p. 164). Nessa medida, o ódio re-
sulta da impossibilidade de mediação simbólica no encontro com o
real, deixando o sujeito na inflação imaginária; situa-se na junção
do imaginário e do real, enquanto se enlaça à ignorância, essa na
junção do real com o simbólico.
O ódio é o triunfo do significado. Instaura uma euforia, um
júbilo — a felicidade da convicção, da certeza; o suposto desprendi-
mento das identificações com o semelhante; a certeza da autonomia
do sujeito em relação à demanda do Outro. Sem qualquer referên-
cia à impossibilidade, o ódio tenta refazer o ser onde havia um su-
jeito barrado; torna supérfluo o tempo de compreender, abrindo
para o gozo.
Há dois desdobramentos dessa posição que se encadeiam:
a articulação com a ignorância, em vez de com o pensamento, e
o direcionamento do ódio ao outro. O ódio produz o rei desse
império do significado que nada poderá abalar. Desse império
advém a certeza/ crença, irmã da ignorância, de que a solução está
na destruição do outro em vez da experiência com o outro. Não se
processa a operação de significação simbólica do que vem do Outro
e a lei deixa de ser referência.
Por que o ódio ao próximo? Lacan (1968/69) adverte no se-
minário De um Outro ao outro, que “o próximo é a eminência in-
tolerável do gozo” (p. 219). O que está em pauta nessa suposição é
o suporte de uma presença que tanto pode ser obstáculo como via-
bilizadora, impedimento ou passagem para a sobrevivência do bem
comum.
20 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

A face mortífera do ódio é baseada em uma crença: a de que


a divisão do sujeito é efeito da ação malévola do outro, que ameaça
sua integridade e seu bem-estar. A presença do outro sinaliza a di-
visão do sujeito e este, no caso do ódio, é o seu mal — ele não quer
saber da sua divisão. O ódio suspende a divisão subjetiva (Dias,
2012), ou seja, permite que o sujeito se autorize a não ser barrado
em seu narcisismo, que recuse pagar o quinhão de trabalho e de
perda de gozo que lhe cabe para a pertença na sociedade.
Esse processo implica a degradação do laço com o outro. O ou-
tro fica responsável pela não realização das idealizações por meio das
quais supõe que é possível viver em sociedade e, ao mesmo tempo,
obter satisfação integral. Uma inserção sem perda de gozo, na qual
parte deste é justamente que o outro não o tenha – o gozo é privati-
zado, o que fundamenta políticas paranoicas e segregacionistas e, do
ponto de vista da política, o ódio à democracia (Rancière, 2016).
Ou seja, o ódio como paixão retroalimenta a lógica paranoica
na qual, para se preservar, o outro deve ser neutralizado, destruí-
do. Instala-se uma lógica paranoica de acusação ao outro, em que
“o sujeito nega a si mesmo e acusa o outro” (Lacan 1948, p. 117). O
outro, esse que, com sua diferença, atrapalha o imaginário de feli-
cidade, a ilusão narcísica de autonomia e de uma sociedade civili-
zada e sem conflitos. O discurso do poder induz certezas sobre a
necessidade de expulsar/ eliminar quem atrapalha tal ilusão. Casa-
se com o gozo narcísico que impõe que o outro não o tenha, que
não haja partilha — que seja privatizado. O outro se confunde com
o inimigo que ameaça e deve ser eliminado — o morador de rua,
os imigrantes, os “fora da lei” e que têm seu corpo atacado inces-
santemente. A verdade desses sujeitos é desqualificada por práticas
discursivas que os segregam como loucos, atrasados, bandidos, do-
entes, estranhos — nomes da exclusão.
Nessa composição o outro encarna o mal radical, que justifica
o ódio contra ele, base do radicalismo e segregação. O ódio pode
ser investido de modo a “propiciar identificações coletivas como
uma função de grupo na qual, em uma busca de saber, uma certa
recusa que se mede no ser, para além do objeto, é o sentimento que
agrega mais fortemente a tropa: esse sentimento é conhecido, sob
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 21

uma forma patética: nele se entra em comunhão sem comunicar, e


ele se chama ódio” (Lacan, 1956, p. 482).
Por sua vez, a ignorância, paixão correlata, exclui tudo o que
contradiz a crença paranoica — a certeza substitui o pensamento.
O pensamento só existe fora da convicção, em convite ao enigma, à
interlocução, à problematização. A certeza da lógica paranoica acu-
sa o outro, esse que atrapalha o imaginário de viver em um estado
de bem-estar social, saúde integral e felicidade.
As justificativas para o ódio e suas expressões como o fana-
tismo, a intolerância e o racismo, por vezes usam como ardil frá-
geis argumentos supostamente religiosos, científicos, etc. Mas não
precisam de argumentos para sua certeza. A certeza se aproxima da
crença, diz Freud (1927-31), é a crença de uma verdade fixa onde as
ideias estão mais próximas do delírio do que da fantasia. São uma
fantasia delirante, dado o modo de certeza e convicção do fanáti-
co: nada o demove e pode eliminar aqueles que não o acompanham
nessa crença.
A ignorância convicta, sem argumentos, instala-se com a ra-
dicalidade do que procura forcluir: o lugar estrutural do outro ou,
podemos dizer, desconsiderar que o outro é extimo — exterior e ín-
timo. Ou seja, o objeto do ódio não é inteiramente externo ao sujei-
to — é extimo; a impressão de que o outro é inteiramente externo a
mim é uma produção paranoica do sujeito, fruto da fusão entre sa-
ber e verdade. A ignorância em jogo é a de que o outro é eu, ou seja,
que o odiado no outro é constitutivo do sujeito que não se sustenta
sem ele. Uma falsa divisão, uma dicotomia se processa: outro/mal e
eu/bom. A dicotomia evita a necessária divisão do sujeito no qual,
em cada um, o bom e o mal habitam concomitantemente.
Desse modo, a destruição do outro é parte da destruição de si
mesmo, de sua humanidade. Como diz Lacan (1953),
a dimensão imaginária é enquadrada pela relação simbólica, e é
por isso que o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do ad-
versário. Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o
ódio quer o contrário, seja seu rebaixamento, seja a sua desorienta-
ção, o seu desvio, o seu delírio, sua negação detalhada, sua subver-
são. É nesse sentido que o ódio, como o amor, é uma carreira sem
limite. (p. 316)
22 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

Destrói um, mais um, outro, mais outro, até a terra devastada
— pois não há sujeito sem o outro. Ao modo de Clarice Lispector
(1999), dizemos que, ao destruir o suposto lado do mau, destrói-se
tudo. Ela nos ilumina quanto a isso. Ao saber que um “facínora fora
morto com treze tiros”, ela diz:
se há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo
tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no
quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha,
o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no
nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro
digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu
irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o
outro. (p. 123-4)
E acrescenta a sua posição política — Porque eu quero ser o
outro.
Na direção da complexidade que está em jogo na questão da
verdade, retomamos a análise anterior sobre a guerra civil. O âma-
go desta descoberta está na constatação de que a violência é, funda-
mentalmente, fratricida. Aqui, política e psicanálise nos ajudam a
entender. Tento explicar: a ambivalência está no cerne do sujeito e da
agressividade que habita cada um, ou seja, amor e ódio são dirigidos
ao mesmo objeto e o ódio está sempre presente como potencialidade.
Há duas consequências: não há vencedores na destruição do
outro, pois o objeto destruído não lhe é inteiramente externo e a
destruição retorna de vários modos, seja sobre o sujeito, sobre a co-
munidade a que pertence e ressoa por gerações. Por em ato amor,
ódio ou destruição é escolha e responsabilidade do sujeito — mas
o ultrapassa. Põe em jogo de um lado a trama pulsional do sujeito
e também a trama política, ideológica ou cultural de uma dada co-
munidade que sustenta tal ato. Torna-se um fato social, de respon-
sabilidade coletiva (Rosa, 2016, p. 63).
O que está em pauta é o fundamento da guerra, do ódio, da
destruição do outro e possíveis saídas. Não é simplista e permite
diferentes camadas de leitura — política, histórica, psicanalítica.
Isso posto, retomamos: o ódio é uma problemática clínica e
política, pois instala-se numa economia psíquica e num laço so-
cial que gera discursos e atos. E, mesmo em tempos de laços sociais
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 23

movidos pelo ódio, há uma escolha ético-política quanto ao que e a


quem nos alinhamos.
Na direção de buscar saídas, não há apego a sentidos imagi-
nários, mas a determinação à descoberta da verdade, da história. A
dialetização opera pela presença do enigma e pela determinação do
desejo de saber em oposição à certeza opaca própria da ignorância.
Veremos que a busca da verdade não traumatiza; pelo contrário, dá
nomes e lugares, constrói história, separa o passado do presente,
permite localizar as feridas e elaborar as dores — inibe as repeti-
ções sintomáticas.
Se não se trata de solução, no sentido de erradicação do ódio,
diz Dias (2012) que
é mesmo porque o ódio comparece como elemento decisivo em nos-
sa constituição, articulado por Freud como precedendo o amor. É ele
que faz barreira e quer destruir o que vem do exterior, impedindo
que a crença de uma suposta ligação sem ruptura, possa ser abalada.
Nesse sentido, a ligação entre ódio e exterior esclarece um ponto de-
cisivo, qual seja, a evitação do estrangeiro como constitutiva. (p. 32)
O autor articula que, na clínica, o ódio pode estar articulado à
separação. Ou seja, o ódio move o sujeito a desprender-se das iden-
tificações imaginárias com o semelhante para se precipitar na dire-
ção convicta, mas desejante — condição da emancipação do sujeito
em relação à demanda do Outro.
Abre-se outra dimensão da análise. No empuxo ao ódio ao
outro está em jogo, particularmente, a manipulação do desamparo
constitutivo, transformado em medo da alteridade, como veremos,
tanto no odioso como no odiado, este último lançado ao apaga-
mento discursivo quando não à morte — nesse ponto que o ódio se
enlaça na política.

Nota 2. Desilusão e a política do ódio


substituindo as metas para o futuro

Retomemos outro ponto do laço social. Qual seja, disse-


mos que o empuxo ao ódio substitui ou apaga a árdua função
24 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

civilizatória do ideal e se fixa como um objetivo em si mesmo, de-


sarticulando os ideais civilizatórios e coletivos. Mas podemos in-
verter e situar a base do processo na desilusão sobre a eficácia do
processo civilizatório, em grande parte fruto de um luto do que foi
a experiência do socialismo real e das experiências liberais.
Vamos à segunda nota destacando a diferença entre crença e
ilusão/desilusão e a distinção entre o ideal e o despertar do desejo.
Ela é fundamental para refletir sobre os descaminhos da socieda-
de quando tomada pela descrença e desilusão, berço das paixões,
e na direção de uma resistência à instrumentalização social do
gozo. Seguimos agora abordando a descrença e desilusão frente à
sustentação da sociedade nos valores da civilização e o sentimento
de insegurança que, por vezes, passa a gerir a aceitação de políti-
cas segregacionistas. Somos os desiludidos da eficácia do processo
civilizatório, ressentidos de nossos ideais, do tempo perdido nas
lutas?
A desilusão da guerra é a primeira parte do texto de Freud
chamado “Reflexões para tempos de guerra e morte” (1915). A de-
silusão indicada no título se refere à capacidade das nações e indiví-
duos de tratarem o estrangeiro com o máximo de crueldade. O que
parecia impensável para “as grandes nações de raça branca, domi-
nadoras do mundo...” mostrou-se factível com a guerra, diz Freud
(p. 128), referindo-se à Primeira Guerra Mundial.
A aflição psíquica nomeada “desilusão” estende-se aos ideais
culturais (no plano do ideal-do-Eu) e à mortalidade do Eu (plano
do Eu-ideal). Destacamos que perder um ideal é diferente de perder
uma crença ou delírio. Essa outra diferença é fundamental para elu-
cidar os descaminhos da sociedade quando tomada pela descren-
ça, pela desilusão da humanidade. Os discursos de um dado tempo
procuram equiparar-se ao campo simbólico da cultura e da lingua-
gem, naturalizando essas atribuições e evitando dar visibilidade aos
embates sociais e políticos presentes em sua base. A invisibilidade
dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, in-
dividualizando seus impasses e, em alguns casos, patologizando ou
criminalizando suas saídas. Ou, em outros casos, inflando seu nar-
cisismo de modo a lhe parecer natural a distribuição perversa dos
bens e do gozo, a submissão do outro à posição escravizada.
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 25

A problemática no laço social, portanto, diz respeito ao cam-


po da política, e pode gerar impasses na relação com o outro e sua
posição desejante. Desiludir-se é agarrar-se à fantasia delirante,
como já trabalhamos.
Essa questãonos alerta para dois problemas. Um é a promoção
do encobrimento de outra ilusão, de autoengendramento, de poder
superar a dependência simbólica ao Outro, fazendo supor ao sujei-
to que, no fim, o objeto estará lá, pleno, realizado. Não diz respeito
ao ideal, mas à idealização, processo que envolve o engrandecimen-
to e a superestimação do objeto.
O outro problema refere-se ao modo de conceber o ideal do
eu, como a fascinação e alienação a uma massa. Diferente disso, ve-
mos a importância desse conceito em indicar a demarcação simbó-
lica de uma posição na relação com os outros, designada por um
traço com valor de significante. O ideal do eu, embora fundado
narcisicamente e pelo desejo do Outro, traduz-se pela possibilidade
de produzir e buscar objetos fálicos e lugares que tomam a forma
de ideais que orientam os laços com o Outro, os laços sociais, sus-
tentados pelo desejo e pelas identificações. Dessa forma, não há su-
pressão do laço com o outro, nem escravização a este.
A desilusão sobre a eficácia do processo civilizatório renova
as questões sobre como seria um mundo que obtura o mal-estar so-
cial impondo as realidades de uma estrutura já dada? O que seria
um mundo de desiludidos? E, para além do mundo de desiludidos,
como despertar do sono da ilusão para a aventura do desejo e para
traçar perspectivas de futuro?
Desiludir-se é manter a ilusão sob a forma de frustração e
ressentimento. Sem que opere a castração, fica mantida a ilusão e
elidido o ideal. A mistura dessas instâncias generaliza a desilusão e
veda as possibilidades de outros caminhos na direção do despertar
das alienações. O desiludido quer se iludir novamente e o seu olhar
fascinado alimenta o ódio passional ao outro. Este que, suposta-
mente, o impede de refazer o ser onde havia um sujeito barrado.
Avançamos nesse ponto dizendo que o discurso totalitário faz
uso desse desejo de ilusão e estimula a crença em fatos ditos obje-
tivos, impondo a adesão do sujeito a esse discurso. Responsabiliza
(e odeia) os que não se adaptam por sua impossibilidade de serem
26 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

plenos e felizes, tidos como ameaças à civilização.


Essa é uma chave para se pensar a intolerância e os precon-
ceitos. A convicção da exterioridade da realidade tenta mascarar o
vazio ao redor do qual se estruturam as relações sociais e as várias
formas de se compor uma sociedade. Assim, torna-se uma impos-
tura defender a concretude, a realidade de um modo específico e
datado de contornar esse vazio, ou defender esse modo como o
único modelo, o civilizado, o melhor para todos.
Também uma chave para pensar a intolerância e os preconcei-
tos vem de um alerta de Zizek (1992): não basta a intenção de não
ser intolerante, mas trata-se de refletir sobre a função do preconcei-
to no campo subjetivo e no campo social.
Uma concepção de mundo sintetiza, organiza e soluciona os
problemas da existência, fenômeno essencial ao processo civiliza-
dor. Essa é a função das grandes referências construídas na história
da humanidade — os livros que dão força às narrativas nas quais se
sustentam as diretrizes gerais do campo civilizatório — e também
as religiões, hoje a ciência. No entanto, tais referências podem ser
reduzidas, segmentadas e compor distorções que as transformam
em seitas com fanáticos ou no cientificismo que promete superar
a morte, a imagem perfeita, o desempenho ideal, a felicidade toda.
Da função da crença, diz Freud que estas são “ilusões, re-
alizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais urgentes da
humanidade”, devidos aos quais se tornou necessário “agarrar-se a
existência do pai, e ao “prolongamento da existência terrena numa
vida futura...” . Dito mais amplamente:
Essas (crenças), proclamadas como ensinamentos, não cons-
tituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensa-
mento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes
desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força des-
ses desejos. Como já sabemos, a impressão terrificante de desampa-
ro na infância despertou a necessidade de proteção — de proteção
através do amor —, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconheci-
mento de que esse desamparo perdura através da vida tornou ne-
cessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai
mais poderoso. Assim o governo benevolente de uma Providência
divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; o estabelecimento
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 27

de uma ordem moral mundial assegura a realização das exigências


de justiça, que com tanta frequência permaneceram irrealizadas na
civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa
vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas reali-
zações de desejo se efetuarão (1927-31, p. 43).
Mas essas ideias estão mais próximas do delírio do que da
fantasia ou de uma fantasia delirante, dado o modo de certeza e
convicção que o fanático pode imprimir à sua crença — nada o de-
move e este pode matar, torturar até os amados que não o acompa-
nham nessa crença.
Em “O mal-estar na civilização” (1929) é justamente sobre
esse ponto que Freud alerta. Na civilização, as técnicas de domínio
tornam os homens como deuses, mas não mais felizes, pois a civi-
lização, ao se aperfeiçoar — podemos dizer, ordem e progresso —,
elege a massa e se torna violenta e destruidora.
Será a estratégia do discurso totalitário limitar as alternativas
do sujeito a uma suposta realidade? Dizendo melhor, a distorção
promovida nos discursos totalitários potencializa e faz coincidir o
ideal do eu com o objeto de gozo que paralisa os processos criativos
e desresponsabiliza o sujeito da apreciação própria e de seu com-
promisso. Isso homologa o sujeito que se sacrifica a custo do sofri-
mento, com o perigo de se colocar como instrumento do gozo do
Outro.
A desilusão e o fracasso são previsíveis, caso não se atenda à
suposta realidade, como ilustra a fala de uma paciente que, preocu-
pada com o filho adolescente, relata sua vida sob a égide do signifi-
cante decepção. Jovem, engravidou de um rapaz que mal conhecia.
Hoje, serve a família dos outros, arrumadinha como a que quis ter.
Planos ou sonhos, tem para o filho que também anda, é certo, de-
cepcionando. Sonhos para ela mesma fazem evocar loucura. Toca
uma vida que já acabou, uma vida desiludida. A referência a um
ideal de família a impossibilita de atribuir valor fálico aos aconteci-
mentos de sua vida e a submete à idealização e exclusão do que lhe
é apresentado como critério de sucesso e felicidade.
A idealização aliena o jogo livre e criativo do desejo de criar.
Se o desiludido quer se iludir novamente, a psicanálise aposta em
um mais além das ilusões, que convoca à experiência com o outro
28 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

e sua diferença. Freud repropõe o ditado latino: “Se queres pre-


servar a paz, prepara-te para a guerra” Diz: “Se queres suportar a
vida, prepara-te para a morte” (Freud, 1915, p. 301). É preciso ha-
ver um ato de assentimento ao nada e a instauração de um lugar
vazio, quando então a morte passa a sustentar a vida. Uma aposta
que, em vez da idealização e da desilusão, o sujeito pode se relançar
ao enigma do traço que o marca e liberar o desejo de criar um novo
mundo. Trabalho esse de remissão do sujeito à verdade de seu dese-
jo que o remete a uma historicização de seu desejo e à consequente
abertura para a criação de novos sentidos da existência.
Com esses elementos podemos retomar a perspectiva de re-
lançar a palavra diante dos discursos radicais atuais, convocando
a polissemia da palavra. Retomamos a frase de Lacan em Ciência
e verdade (1966): “Por nossa posição de sujeito somos sempre res-
ponsáveis. Que chamem a isto como quiserem, terrorismo” (p.
873). Lacan faz uma torção no termo terrorismo que permite outro
tipo de conversa, conversa que parte da responsabilidade e supõe
enfrentar as facetas desse problema, mesmo sabendo que há um
preço — às vezes uma acusação.
No entanto, em lugar da reflexão, assistimos a uma políti-
ca repressiva e vivemos um estado de alerta que suspende direitos
políticos e humanitários. Com medo e assustada, parte da popu-
lação apoia essas medidas sem qualquer mediação. Nessa direção,
Rancière nos alerta, no livro Ódio à democracia (2016), que debater
a política da gestão do sentimento de insegurança é muito diferen-
te de gerir a segurança. Na primeira, o medo e a insegurança são
convertidos na “lógica da guerra” incitando à deriva identitária e
cheia de ódio. “O ódio deve ser tratado pela política”, afirma o au-
tor. Isso implica questionar as causas, os discursos e os procedi-
mentos que engendram o ódio, ou seja, trazer à tona o desemprego,
as desigualdades e as discriminações. Desse modo pode-se restituir
a alteridade e a possibilidade de um mundo partilhado, elaborar o
mal-estar, elucidar a instrumentalização subjetiva para cooptar os
sujeitos nessa política e estabelecer metas sociais.
De outro lado, podemos falar em uma clínica psicanalítica ad-
vertida da incidência dos discursos políticos, que estabelecem rela-
ções de poder e de governança especialmente devastadores sobre os
Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política 29

excluídos. Nessas circunstâncias, encontra uma primeira direção:


separar a alienação estrutural do sujeito ao discurso do Outro, da
alienação ao discurso social e ideológico (Rosa, 2016). No primeiro
há dialética de alienação-separação: no segundo vige o domínio e
a desresponsabilização de sua posição e atos sob o já conhecido, o
cumprimento de ordens.
Os psicanalistas têm contribuído para elucidar e intervir em
certos discursos e práticas que promovem o apagamento do sujeito,
de seu discurso, de sua vida, fazendo presença nos vários campos
do social, seja nos seus grupos de formação, nas universidades, no
campo jurídico, político, na saúde pública, mental, na assistência
social, nos direitos humanos, ou articulação com outros campos
de saberes. É o enlace com o outro que pode combater o desenlace
administrado pelo outro.
Detectar, intervir e reconhecer a face mortífera do ódio é
prática política e clínica. Esta dupla direção permite nos reposi-
cionarmos em relação ao discurso de um dado tempo, dissolver
identidades, desarticular gozos, recuperar memórias, repensar as
bases do pacto social vigente e conceber formas de transformação
social. Isso porque tais práticas desmascaram o conflito social e
permitem que o sujeito político retome a cena não mais como víti-
ma ou algoz, mas como testemunha de um tempo.

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Freud, S. (1929-30). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1966. Vol. 21, p. 81-178).
30 Miriam Debieux Rosa, Sandra Alencar, Raonna Martins

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O discurso do ódio,
uma paixão contemporânea1

Doris Rinaldi

Há mais de 60 anos, no primeiro de seus Seminários, Lacan


(1953-54) afirmava que “somos muito suficientemente uma civili-
zação do ódio” (p. 316). Afirmação com ressonâncias extraordiná-
rias, ainda mais em um momento em que assistimos à destruição
de civilizações promovidas pela expansão desenfreada das grandes
corporações multinacionais que buscam a incessante valorização
do Capital e, em contrapartida, à ferocidade das ações do Estado
Islâmico no Oriente Médio, na Europa e no norte da África. Da
mesma forma o recrudescimento do racismo nos Estados Unidos
e dos discursos fascistas e nazistas na Europa, em cujo centro está
a questão da imigração, acende, para nós, um sinal de alerta em re-
lação às manifestações de ódio e intolerância que atravessam atual-
mente o campo político e ideológico em nosso país.
São inúmeros os exemplos que poderíamos citar, em pro-
liferação desde que se instaurou no Brasil um processo de

1. Este trabalho tomou com ponto de partida o texto “Ódio, paixão con-
temporânea”, elaborado em coautoria por Doris Rinaldi, Rosana Aguiar
e Manoel Ferreira, membros de Intersecção Psicanalítica do Brasil (IPB)
e apresentado na Jornada Interna da Comissão de Enlace Regional de
Convergencia (Rio de Janeiro, junho de 2016). As alterações introduzidas e
os acréscimos feitos são de minha inteira responsabilidade e fizeram dele,
em parte, outro texto.
32 Doris Rinaldi

questionamento da ordem política sustentada por um projeto so-


cial-democrata, que promoveu algumas alterações no quadro de
imensas desigualdades em que a sociedade brasileira sempre este-
ve mergulhada. O golpe parlamentar-jurídico-midiático, que des-
tituiu uma presidente eleita democraticamente, se deu, desde que
foi tecido, em meio ao crescimento avassalador do discurso do ódio
— ódio de classe, ódio de gênero, ódio à diferença, ódio ao proje-
to popular democrático que pode dar um pouco de voz e lugar às
classes populares. Estamos hoje mergulhados em um calderão de
ódio, cujo exemplos são muitos: um dos mais emblemáticos foi o
assassinato de um rapaz — universitário que apoiava e participava
do movimento estudantil de ocupação das escolas e universidades,
como forma de protesto contra as propostas políticas do novo go-
verno —por seu próprio pai, que suicidou-se em seguida. A ele so-
mam-se os assassinatos políticos de líderes comunitários, sindicais,
camponeses, quilombolas e indígenas em diversas regiões do país.
O último deles atingiu uma vereadora do Rio de Janeiro, negra, fa-
velada, homossexual, defensora dos direitos humanos, em especial
da população pobre que vive nas comunidades e sofre a violência
cotidiana da polícia. Crimes com características claras de execu-
ções, que evidenciam a presença do ódio nas relações políticas, no
exercício da violência contra aqueles que ousam defender os direi-
tos humanos e políticos de populações mais pobres.
Não há dúvida que as manifestações de ódio e violência não
são novidade e sempre estiveram presentes na sociedade brasilei-
ra, fortemente hierarquizada. O brasileiro está longe da imagem do
“homem cordial” cunhada por Sergio Buarque de Holanda, quan-
do interpretada apressadamente. Mas hoje chama atenção como
a disputa política assumiu formas drásticas de ódio, incentivado
e até mesmo promovido pela grande imprensa hegemônica, asso-
ciada a uma elite conservadora, ciosa da defesa de seus interesses
privados, supostamente contrariados pelas mudanças promovidas.
Esse calderão de ódio se derrama sobre as diversas instâncias da
vida social, com seus efeitos nas relações cotidianas, ultrapassan-
do os limites simbólicos, entre eles os próprios limites da lei jurí-
dica, que crescentemente vem sendo subvertida e, em nome dela,
legitima-se um estado de excessão. É como se parte da sociedade
O discurso do ódio, paixão contemporânea 33

tivesse perdido o pudor, ou mesmo a máscara, que de certa forma


nos preservava.
Foram essas questões que nos convocaram a refletir sobre o
tema desse Colóquio “Psicanálise e Política: as escritas do ódio”, fo-
calizando o ódio como paixão contemporânea, ainda que primária,
como indica Freud.
Freud, no texto “A pulsão e seus destinos” (1915) situa o ódio
como uma paixão primária, mais antiga que o amor, que deriva de
uma repulsa primordial do eu narcisista ao mundo exterior, expres-
sando o desprazer sentido nas relações com os objetos. Nesse mo-
mento, articula-a às pulsões de auto-conservação do eu. Mais tarde,
em “O mal-estar na civilização” (1930), reafirma o ponto de vista
de que o ódio é anterior ao amor, ao dizer que “a inclinação para a
agressão constitui, no homem, uma disposição pulsional original e
autossubsistente, e ... é o maior impedimento à civilização” (Freud,
1930, p.144). Vincula, todavia, a agressividade à pulsão de morte,
conceito que formula em 1920, situando a pulsão agressiva como
principal representante da pulsão de morte. Para ele, pulsão de
morte e Eros (pulsões de vida) partilham o governo do mundo dos
homens e determinam os movimentos do desenvolvimento cultu-
ral. Se Eros é o esteio da civilização, ao promover a aproximação
entre os homens em grupos cada vez maiores, a pulsão de morte
age silenciosamente, mas de forma insistente, atravessando as pul-
sões de vida e mesclando-se a elas.
Para o que nos interessa discutir, convém lembrar que é nesse
texto que Freud se refere às três fontes do sofrimento que nos atin-
gem, enfatizando que é o laço social, ou seja, os relacionamentos
entre os homens, a principal fonte de sofrimento para os homens,
para além dos poderes de destruição da natureza e da fragilidade de
nosso corpos, condenados à decadência. Ele ressalta a dificuldade
que temos de admitir que as normas criadas por nós mesmos não
foram capazes de prevenir esse sofrimento, o que o leva a suspei-
tar que haja algo de inconquistável no laço social, que diz respeito à
nossa própria constituição psíquica (Freud, 1930).
Lacan apresenta o seu primeiro estudo sobre a agressivi-
dade na mesma época em que introduz sua contribuição inau-
gural à teoria do narcisismo, com o exto “O Estádio do Espelho
34 Doris Rinaldi

como formador da função do eu”, apresentando no Congresso


Internacional de Zurique em 1949. No clássico escrito “A agres-
sividade em psicanálise” (1948), concebe a agressividade como
tendência correlativa à identificação narcísica que determina a
estrutura do eu. O eu se constitui pela identificação à imagem do
outro, em um movimento de alienação que comporta uma tensão
agressiva decorrente da rivalidade imaginária entre o eu e o outro,
que subjaz à identificação. Identificação e agressividade estão, por-
tanto, intrinsicamente ligadas. Dez anos depois, no Seminário 5, As
formações do inconsciente (1957-58), observa que a agressividade
que surge na relação imaginária com o outro não dá conta da totali-
dade do poder agressivo e que é preciso distinguir a agressividade,
constituinte de toda relação com o outro, da violência, o que há
de essencial na agressão. “A violência é de fato o que há de essen-
cial na agressão, pelo menos no plano humano. Não é a fala, é até
exatamente o contrário. O que pode produzir-se numa relação inter
-humana são a violência ou a fala” (Lacan, 1957-58, p. 468).
Esses são alguns fragmentos teóricos que nos ajudam a refle-
tir sobre as manifestações de ódio na contemporaneidade, princi-
palmente enquanto associadas à violência que, como indica Lacan,
surge em lugar da fala, suprimindo a necessária mediação da ins-
tância simbólica.
Retomando a afirmação freudiana de que o laço social no
qual se sustenta a civilização é, paradoxalmente, a principal fonte
de sofrimento para os homens, gostaria de trazer à discussão al-
guns aspectos do laço social tal como se apresenta hoje, sob a vi-
gência do discurso capitalista em sua copulação como o discurso
técnico-científico.
Vivemos hoje em um mundo em que a universalização pro-
movida pela tecno-ciência se conjuga aos imperativos de uma eco-
nomia capitalista globalizada, sob o reino absoluto do mercado.
Como consequência, temos, de um lado, o discurso do excesso que
se apresenta como um imperativo, indicando uma maneira sinto-
mática de responder à cultura do consumo, que remete a um gozo
desmedido. De outro, como nos alertou profeticamente Lacan em
1967, temos a segregação, como consequência da universalização
introduzida pela ciência, da qual os campos de extermínio nazistas
O discurso do ódio, paixão contemporânea 35

são apenas os precursores. Diz Lacan (1967): “Nosso futuro de


mercados comuns encontrará o seu equilíbrio numa ampliação
cada vez mais dura dos processos de segregação” (p. 263).
Os avanços tecnológicos, que, com a invenção da internet,
revolucionaram as tecnologias da informação na segunda metade
do século XX, possibilitaram a criação em larga escala da comu-
nicação virtual, através das redes sociais, permitindo a conexão de
pessoas em partes as mais distantes do mundo. Se esta nova forma
de comunicação possibilita, de um lado, a circulação livre da infor-
mação, aproximando o distante, de outro, constrói-se basicamente
a partir de “encontros” que se fazem na virtualidade, engendrando
um novo tipo de “laço”. Quais os efeitos que isso pode ter nos su-
jeitos e no laço social?
Um dos aspectos a considerar é que ela prescinde da presença
do outro e favorece o anonimato. As redes sociais articulam-se fun-
damentalmente pelo princípio da identificação e as conexões se fa-
zem entre semelhantes, que compartilham principalmente imagens
e signos. A primazia do imaginário deixa na sombra a dimensão
simbólica e especialmente a dimensão real do outro, evidenciada
no enigma que envolve a presença. Como vimos nos elementos
que trouxemos das formulações de Freud e Lacan, a exacerbação
do imaginário, sem um esteio simbólico, favorece a emergência da
agressividade e do ódio. Quando o real da diferença se apresenta,
o espelho se parte e, na falta da função mediadora da fala, o que
surge é a tentativa de eliminação da alteridade. A comunicação vir-
tual através da Internet favorece o uso da palavra como forma de
violência, através da injúria, do insulto, da difamação, na tentativa
de rebaixar o outro, desumanizá-lo. Sob o manto da “rede” pode-
se dizer qualquer coisa, na tentativa de destruir o outro, caluniá-lo,
sem responsabilização, nem compromisso com a verdade, porque a
verdade passa a ser aquela que um número grande de pessoas “cur-
tiu” e/ou repassou para seus “amigos”.
Não é por acaso que na era da universalização virtual, que
acompanha a universalização do mercado, se intensifiquem como
anunciou Lacan (1967), os fundamentalismos, sejam eles religiosos,
políticos ou econômicos, apoiados em uma construção paranoica
onde o bem está dentro e o mal vêm de fora e deve ser eliminado.
36 Doris Rinaldi

Alguns cientistas políticos têm utilizado a expressão “discur-


so do ódio” para analisar esse momento, onde emerge uma “se-
mântica política niilista” definindo-o como o discurso que sustenta
a violência e até mesmo o extermínio do outro, simplesmente por
ser ele o outro (Santos, 2013).2 O discurso diz respeito à apropria-
ção dos recursos, dos códigos linguísticos dispostos culturalmente,
cujos sujeitos fazem uso singular, mas também a práticas discur-
sivas hegemônicas que alimentam discursos de desqualificação.
Historicamente, os dispositivos utilizados para dar sentido à pul-
são de morte se transformam à medida que o discurso social se
modifica no uso do sintoma para aniquilar o que impede o gozo.
Notadamente, a violência é um fenômeno que se produz nas rela-
ções sociais, sendo que uma de suas dimensões é a aniquilação, ou
seja, dar fim à existência do outro.
Aqui retornamos a Freud em “O mal-estar na civilização” para
verificar a atualidade de suas formulações, quando aponta a agres-
sividade como o principal obstáculo à civilização. Se o princípio
do prazer é a lei do bem, do bem-estar, Freud formula o concei-
to de pulsão de morte como aquilo que está para além do princí-
pio do prazer, instaurando-a no âmago do sujeito, assim como no
âmago da civilização, em seu mal-estar. Se esta força nos confron-
ta permanentemente com os princípios de nossa própria destrui-
ção, é ela também que, a partir desse lugar vazio, inominável da
Coisa, sustenta secretamente o movimento desejante de constru-
ção significante que rege a vida. A tentativa de foracluir esse vazio
do simbólico, a partir de um discurso único que recusa a diferen-
ça, tem como efeito o seu retorno no real, sob a forma do ódio,
do crime, da barbárie e do genocídio, não só como os campos de

2. Santos, Wanderley Guilherme. Os discursos do ódio foram às ruas. www.


ocafezinho.com 09/07/2013. A expressão “discurso do ódio” foi tomada
por referência à legislação existente em países como Canadá, Dinamarca,
Nova Zelândia, Alemanha e Inglaterra que visam proibir e punir publica-
ções que apresentam “insultos contra indivíduos e grupos com o objetivo
de provocar o ódio contra eles, e eventual violência, simplesmente porque
são quem são”.
O discurso do ódio, paixão contemporânea 37

concentração nazistas testemunharam, mas também as formas mais


atuais, que evidenciam de forma radical a recusa à diferença, seja
na questão da imigração nos países europeus, no recrudecimento
do racismo nos Estados Unidos, ou na guetificação da população
pobre e principalmente negra das favelas brasileiras, entre outros.
No mundo atual o discurso da tecno-ciência, que se tornou
dominante, em sua copulação com o discurso capitalista sob o im-
pério do mercado, tomou o lugar do corpo, da alma e, até mesmo,
do desvio do mal, com outros disfarces, diferentes dos de tempos
atrás (Roudinesco, 2008). Há, hoje, uma espécie de negativo da li-
berdade, com o aniquilamento, a desumanização, o ódio, a destrui-
ção, a crueldade e o gozo desmedido. Nesse sentido, o real da vida e
as adversidades constantemente são negados, como se não existisse
uma fragilidade interior, que não pode aparecer.
No discurso capitalista os objetos oferecidos no mercado
como descartáveis alimentam a falta de gozo de que se nutre a má-
quina capitalista, através da promessa de um gozo garantido. Tal
como Lacan o formaliza em 1972 (Lacan, 1972), é um discurso em
curto-circuito, em que o endereçamento de S1 no lugar da verdade
a S2 no lugar do outro (também chamado lugar do gozo) coloca o
gozo a seu serviço, a partir da produção de gadgets, identificados
com o mais-de-gozar, que supostamente satisfariam o sujeito. Ele
não exige “renúncia pulsional, ao contrário, instiga a pulsão, im-
pondo ao sujeito determinadas relações com a demanda, sem se dar
conta de que, ao fazê-lo, sustenta, sobretudo e em primeira mão,
a pulsão de morte” (Alberti, 2000, p.???). Da avidez pelo mais-de- falta pág.
gozar resulta cada vez mais uma eterna insatisfação, expressa pelo
nunca é o suficiente, tudo é pouco. O que nos interessa destacar é
que a relação biunívoca entre o S1 e S2, em que o lugar da verdade é
ocupado pelo significante do mestre moderno, o capital e sua pro-
messa de gozo, faz com que o sujeito reste fixado a essa verdade,
desconhecendo a sua divisão e atuando a ordem do mestre: goze,
consuma!
Neste curto-circuito, o que sobressai é a compressão do es-
paço entre o instante de ver e o momento de concluir, que elide o
tempo para compreender, ou seja, elide o simbólico. Os tempos ló-
gicos destacados por Lacan, com as sua passagens e hesitações, não
38 Doris Rinaldi

mais sustentam a asserção de uma certeza antecipada de uma ver-


dade sobre si, pois ela já é dada. Sem hesitação o sujeito soçobra
junto com os impossíveis que não podem ser articulados senão na
afirmação de particularidades no todo do discurso unificante ca-
pitalista. É nessa situação que os termos violência e agressividade
se confundem e o ódio se faz presente na dimensão do laço social.
A afirmação das particularidades egoicas e a elisão do tempo para
compreender precipitam a violência, que é negação da alteridade,
mas presa de si mesmo.
Em 1954, Lacan refere-se ao que denomina paixões do ser:
amor, ódio e ignorância, articulando-as aos três registros: real, sim-
bólico e imaginário (RSI). Enquanto o amor está situado na jun-
ção entre o simbólico e o imaginário, com o real encoberto, o ódio
está justamente na junção entre o real e o imaginário, deixando o
simbólico na sombra. A quebra do espelho promovida pelo real
desencadeia uma exacerbação do imaginário, uma vez que a des-
truição do outro é um polo da estrutura do eu. O ódio, como nos
diz Lacan, é uma carreira sem limites e quer a destruição do ser do
outro, no sentido do “seu rebaixamento, da sua desorientação, do
desvio, da negação detalhada, da sua subversão” (Lacan, 1953-54,
p. 316).
Hoje constatamos a importância das observações de Lacan ao
vermos ressurgir no mundo e, em especial, na vida política e so-
cial do nosso país, a banalização do discurso do ódio, em que a exa-
cerbação do imaginário enceguece, pois cor da pele, gênero, opção
sexual, classe social, posição política, expressão de ideias que se di-
ferenciam do discurso único, sustentado pelos interesses do capital
e veiculados pela grande mídia, são motivos para manifestações de
violência e promessas de destruição. Essa situação nos faz indagar
sobre o que nos espera... e, ao mesmo tempo, nos convoca à res-
ponsabilidade como analistas.
“Quando tomamos a palavra, tomamos lugar, língua e po-
der” (Wajcman apud Coutinho, 2002, p. 25). Lacan, em 1953, em
“Função e campo da fala e da linguagem”, refere-se à responsabili-
dade do analista que, ao engajar-se em sua prática, não pode des-
prezar a subjetividade de sua época, na dialética que o compromete
com tantas vidas em um movimento simbólico. Como psicanalista
O discurso do ódio, paixão contemporânea 39

deve conhecer bem sua função de intérprete da discórdia das lín-


guas no que denomina “a espiral de sua época na obra contínua de
Babel” (Lacan, 1953, p. 322).

Referências

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<www.berggasse19.psc.br>, 2000. Acesso em ?????. completar

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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. Vol. XXI.
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Jorge Zahar, 1998.
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Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 322.
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1972. In: Lacan en Italia. Roma: La Salamandra, 1978. p. 32-55.
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Janeiro: Jorge Zahar,. 1986.
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______. Conferencia en la Universidad de Milán del 12 de maio de 1972, In
Lacan en Italia ( 1953-1978), Roma: La Salamandra, pp.32-55.
Roudinesco, E. A parte obscura de nós mesmos, uma história dos perversos?
Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Santos, W. G. Os discursos do ódio foram às ruas. Disponível em: <www.oca-
fezinho.com>. 09/07/2013.Acesso em: ??????? completar
Wajcman, G. apud Jorge, M. A. Discurso e Liame Social. In: Rinaldi,
D.; Coutinho Jorge, M. A. Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2002. p. 25.
Odiai-vos uns aos outros

Oscar Cesarotto

Datação mítica
I. Cain x Abel
II. Horda primitiva
I’. Decálogo: Não matar
II’. Pacto social e obediência retrospectiva
III.O império da lei
Datação lógica
O fratricídio precede ao parricídio?
Datação histórica
Após tantos anos de esplendido isolamento e solilóquio au-
toral, Freud teve pacientes, discípulos, colegas. Nas reuniões das
quartas-feiras, todos dialogavam, expondo ideias germinais; Adler,
Steckel e Jung, interlocutores privilegiados, encartados e descarta-
dos em 1914, na altura de “Introdução ao narcisismo”. Hoje, lemos
tal artigo inesgotável de maneira anacrônica, desde Lacan. O pio-
neirismo possibilitou os avanços deste, inaugurando seu seminário
com a “tópica do imaginário”, baseada em três escritos coinciden-
tes: “A agressividade em psicanálise” (1948); “O estádio do espelho
como formador da função do eu” (1949); “Algumas reflexões sobre
o eu” (1951). Cotejando as leituras, surgem questões correlatas que
42 Oscar Cesarotto

o texto freudiano, dedicado às modulações da libido, nem mencio-


na na época; ausentes, ainda que implícitas até futuras elaborações.
Naquele momento e por enquanto, tudo era amor e paz, embora
prestes a acabar.
Antes: Além do embate contra Adler e Jung, dissidentes, o
assassinato primordial de “Totem e tabu” já fazia parte da teoria.
Por sua vez, a contribuição de Wilhelm Steckel foi bem escutada
(O ódio é anterior ao amor), ecoando Heráclito (A discórdia ante-
cede à harmonia); mais tarde, o apotegma de Hobbes (O homem é
o lobo do homem), por sua vez, inspirado em Plauto (Homo homi-
nis lupus). Pela defasagem entre a antecipação do eu perante o des-
fraldar da libido, Freud chegou a cogitar, na ocasião, numa “pulsão
de domínio” (Bemächtigungstrieb), decorrente do desenvolvimento
psíquico e somático; identificável e projetável também nos outros,
como expansão egoísta da pulsão de autoconservação, sob a forma
de sadismo, ódio e agressividade.
Durante: A Primeira Grande Guerra matou a Belle Époque e
qualquer eventual confiança na humanidade. A produção freudiana
daqueles tempos sombrios mirava dois alvos coincidentes: por um
lado, os artigos técnicos, de conteúdo pragmático, endereçados aos
praticantes; por outro, os ensaios metapsicológicos, assumidamen-
te especulativos, nos desdobramentos da doutrina. Todavia, ficou
inviável completar todos os capítulos do plano inicial sobre as ca-
racterísticas das pulsões e seus destinos, com tanta morte matada
e morrida nos campos de batalha, como prova viva do fracasso da
sublimação...
Depois: Tânatos formatou, em tempos de trégua, a psicologia
das massas; na década seguinte, prevendo uma nova conflagração,
o mal-estar na cultura incorporou a dialética do limite real da vida,
pessoal ou plural. Para além do princípio do prazer, a pulsão de
morte, desde agora e até nunca, condensará o sinistro: a anulação
do próximo, inaceitável pelas pequenas e grandes diferenças dos
narcisismos.

*
**
Odiai-vos uns aos outros 43

Em 1915, Freud escreveu sobre a guerra e a morte, fatos irre-


mediáveis, seu cotidiano. Também, ampliando o horizonte concei-
tual, “As pulsões e suas vicissitudes”. Dentre as muitas articulações
do texto, destaca-se o seguinte raciocínio: O ódio seria a antítese
do amor; depois, se tomados em conjunto, a indiferença poderia ser
uma antítese mútua. Nada a objetar; contudo, caberia acrescentar
outra antítese, se considerado o medo como alternativa em oposi-
ção ao amor.
Eros, citado nominalmente por Platão e por Freud, enlaça
corpos e almas, multiplicando seu alcance onde a vida estiver, en-
quanto desejo houver. A potência da equação amorosa é infindável,
eterna quando dura; flexível, orgânica, maleável e palpável, a libido
é a energia que move o mundo, permeia o eu e inclui os outros.
Em contrapartida, o medo paralisa, contrai, inibe, suprime. A
imobilidade leva à repetição, à persistência na impotência, à peque-
nez do ente, à infelicidade do ser. O estreitamento, mental e corpo-
ral, cristaliza a angústia num desamparo derradeiro, no temor e no
terror, tristes paixões dos espíritos acuados, desconfiados de todos
e cada um: rigor mortis.
Ódios e medos são pesadelos diurnos, narcisismos afetados
e defesas desesperadas do amor próprio, ameaçado por gozos
alheios, o paraíso perdido pelo inferno dos outros. Anos mais
tarde, na correspondência com Einstein, as respostas freudianas
para o porquê da guerra: ritos de sangue, sacrifícios religiosos,
intolerância, caos social, deuses irascíveis, fronteiras conflitantes,
vencedores e vencidos, a lei do mais forte e melhor armado.
Definições: A agressividade, correlativa do imaginário, é
a disputa pelo lugar de um em detrimento de outro. O ódio é a
não correspondência entre semelhantes, precedida pela inveja e
o mau olhado. No sadismo, alguém consegue impor sua vontade
avassalando qualquer um, começando pelos mais fracos. A domi-
nação, no escopo coletivo, é quando a minoria dos poderosos de-
termina a sorte da maioria dos oprimidos. Psicopatia e sociopatia:
Varejo e atacado das formas de abuso sem empatia nem resiliência.
Terrorismo: Quando corpos aleatoriamente despedaçados voam no
real, detonando o convívio, graças às desgraças deflagradas pelos
que desprezam todas as regras da civilização.
44 Oscar Cesarotto

Tanto para Freud quanto para Lacan, os períodos depois das


guerras foram momentos fecundos para matutar e observar as pul-
sões desregradas muito além dos consultórios, na ressaca moral pe-
rante o colapso da cultura, pela violência dos povos e as irredutíveis
tendências da espécie. Conclusão de ambos: o animal social conti-
nua, desde sempre, animal.

*
**

Totem e tabu e Robin Hood

Em 1875, aos 19 anos, Sigismund Freud viajou à Inglaterra,


a Manchester, onde ficou hospedado com o meio-irmão Philipp e
a sobrinha Pauline. A cidade, feia e poluída, berço da Revolução
Industrial, contrastava em tudo com vida vienense. Naquela época,
na alvorada de perspectivas extraordinárias de progresso nos co-
nhecimentos, as teorias de Charles Darwin o atraíram fortemente,
mas não só: a história inglesa, com suas casas reais e batalhas, sim-
plesmente o fascinava, chegando a se projetar na figura de Oliver
Cronwell em algumas cartas. Também lera, antes de viajar, A si-
tuação das classes trabalhadoras em Inglaterra, de Friedrich Engels.
Muitos anos mais tarde, em “Totem e tabu”, coincidiria com o men-
cionado e Darwin, acreditando pia e ficcionalmente que teria havi-
do, na pré-história da humanidade, uma “horda primitiva”, forma
de gregarismo e modo de produção, origem do estado, da tradição,
da família e da propriedade; do patriarcado, da culpa e do totemis-
mo, também. Décadas depois, Claude Lévi-Strauss refutaria, com
todo respeito, a universalidade do último item.
O jovem Freud apreciava os relatos lendários dos bretões: Em
1192, o rei Ricardo Coração de Leão partiu para a VII Cruzada,
deixando o trono ao seu irmão João, apelidado de Sem-Terra, por
ser o segundo na sucessão, de repente no proveito da oportunida-
de de reinar e tiranizar. Na volta de Terra Santa, Ricardo foi pre-
so por Enrique VI, soberano do Sacro Império Germânico, que
pediu alto resgate pela sua investidura. Enquanto o povo coletava
Odiai-vos uns aos outros 45

contribuições, João aumentava os impostos, desagradando se-


nhores feudais e servos da gleba; proprietários autónomos, como
Robin de Locksley, resistiram ao espólio, passando à clandestinida-
de com um grupo de alegres compinchas no bosque de Sherwood.
Amparados pela fitogeografia que tão bem conheciam, embos-
cavam caravanas de ricos comerciantes e comboios de prósperos
burgueses, para angariar fundos e pagar o preço da liberdade do
legítimo monarca. Assim nasceu e cresceu a fama de Robin Hood...
Enquanto isso, a prepotência do interino foi demais para os
duques e condes que, cansados das continuas taxações e exações,
deixaram de brigar entre si para se aliarem, marchando com suas
tropas para tomar London e colocar o usurpador contra a parede,
com uma espada na garganta até ceder. Aquele rei comprometeu-
se, por escrito, a respeitar todos os outros que também poder ti-
nham; ainda mais, unidos. Um pacto, um acordo, um contrato foi
lavrado: a Carta Magna, a comissão de nivelar as atribuições reais e
a participação das forças de fato dos insubmissos. Sempiterna, este
é o paradigma de todas as constituições ocidentais, com a peculia-
ridade de não ter sido aprovada democraticamente por nenhum
congresso, nem revisada, acrescentada ou modificada desde então.
Como consequência, o Parlamentarismo como sistema misto de
governo, com as atribuições da monarca circunscritas pela Câmara
de Lordes, os Pares do Reino: do absolutismo à equidade; a fra-
ternidade dos muitos, não isolados, mas agindo em conjunto para
derrocar o tirano.
Para o Sigmund Freud metapsicológico, isto era, por analogia,
o modelo de adequação das pulsões, de início anárquicas, se orga-
nizando em faces e complexos até a sua coagulação sintonizada e
sintomatizada com as imposições da cultura. Após o isso extrapo-
lado, o eu acerta suas contas com a realidade, enquanto o supereu,
o agente da pulsão de morte, inquilino íntimo, antagoniza o su-
jeito do inconsciente, premido pelo desejo. O ideal do eu, alheio e
éxtimo, se atingido, poderia ser, para além do recalque, a sublima-
ção bem sucedida. Se não, inibições, taras e angústias...
Filogênese e ontogênese acertando os ponteiros, comme il
faut, norteadas pela ideologia em voga. Nada contra, já que a fun-
ção dos mitemas e das ficções consiste, precisamente, em manter
46 Oscar Cesarotto

coeso o tecido das significações politicamente corretas, na junção


do simbólico e do imaginário, para a produção do sentido partilha-
do e comum a todos os que o consomem. Como decorrência ime-
diata, a crença na função pacificadora do ideal do eu, cujos valores
justos seriam a garantia da paridade dos narcisismos, limitando o
além destes. O status quo seria então possível, como bem supremo,
no acalanto do discreto charme da estória oficial.
Acorde com a certeza delirante de Darwin, Engels e o estú-
dio de animação dos Flintstones, Freud achou por bem achar como
achado o Pai Primevo, o Ur-Orangutango dono de todas as fêmeas
e mutilador de todos os filhos, que teria sido um só, o poderoso
Um. Para fins de fabulação e story-telling, sucesso garantido, roteiro
coerente com o darwinismo social, a luta pela supervivência, com
a vitória previsível daquele mais apto, superior em tamanho e for-
taleza. Caberia, entretanto, uma leitura diferente, considerando su-
jeitos coletivos, não um único agressor; por exemplo, um grupo ou
exército mal intencionado. Entre pessoas, seria possível sustentar
que “quando um não quer, dois não brigam”; contudo, não costuma
acontecer em situação bélica, especificamente, nos casos de invasão.
Aqui, para ilustrar a treta, é solicitada a imaginação do leitor:
Era uma vez... uma comunidade rural, vivendo do agro e da
pecuária, pacífica e pacata, sincronizada com as estações e as fes-
tas depois da colheita. Paganismo explícito, já que o termo pagão
quer dizer campônio, em harmonia com a flora e a fauna sem pre-
cisar ficar perto de nenhum deus solitário ou patrão mandão. Vida
dura, trabalho braçal, alegria natural. Até que um dia chegaram...
os Outros, com outras intensões, péssimas. Tinham espadas, ca-
valos, armaduras, mastins, superioridade técnica e numérica. Em
situações assim, não adianta querer não brigar, pois a decisão, uni-
lateral, é de quem ataca. Quando a defesa e o contra-ataque são
superados, os vencedores ditam as regras. Às vezes, os derrotados
eram mortos; em ocasiões, escravizados, ou, para a total submissão,
os bagos eram extirpados, para obtenção de consenso e mansidão.
As mulheres, poupadas para uso, abuso e prenhe. As crianças, in-
corporadas à força no novo clã. Conquista em moto contínuo, ao
longo dos tempos, pax brutalis.
Odiai-vos uns aos outros 47

Desenvolvimento da situação ilustrada: Noutra versão,


não tem extermínio; porém, os invasores tomam conta do lugar,
manu militari, antes de se retirar. Levam o que tiver e afirmam
voltar depois da próxima safra, para pegar quase tudo; de não ser
assim... Dízimo? A décima parte, como imposto à segurança, ou
nada mais que um décimo do que teriam depois de expropriado
o noventa por cento? Em qualquer caso, a intensidade da ameaça,
eficaz como gesto imaginável, constrange e oprime sem chegar à
via de fato. A força das palavras torna literal o pavor fantasmáti-
co, anunciado como má nova que, ao moldar o presente instanta-
neamente alienado, leva à demissão ao desejo alheio, extrativista e
despótico.
Eis que, fora do mundo humano, tudo tem seu ritmo, jamais
apropriado por ninguém: não é possível ameaçar uma planta para
fazê-la crescer mais rápido que a própria natureza permite, nem ex-
torquir um animal com um castigo futuro, pois estes vivem numa
atualidade imediata, aqui e agora, sem amanhã. É exclusividade
humana sermos vulneráveis àquilo que foi dito sem ainda aconte-
cer e que, para ser evitado a qualquer custo, faz preferível entregar a
bolsa pelo preço da vida em risco, como forma existencial de anula-
ção. O medo, a promessa do pior, hipoteca o porvir.
Recapitulação
Metapsicologia
Quem obedece? Como resulta evidente, o eu, cujo desenvolvi-
mento avantaja a libido para se projetar na antecipação, como pre-
tensão e fragilidade narcísica, do espelho até a servidão voluntária.
História
O imperialismo pode até ser a etapa superior do capitalismo,
mas começou muito antes... A dominação não é simplesmente uma
constante histórica: é a própria estrutura hierárquica das socieda-
des, o poder dos poderosos, até prova contrária (a Era de Aquário?).
Imaginário
No confronto com o semelhante que é diferente, convém criar
anteparos e regras de convivência, às vezes, compensatórias de ini-
quidades aziagas. Utopias são os maiores exercícios de realizações
48 Oscar Cesarotto

do desejo, invocando perfeições vindouras; já o passado, ausente


desde sempre, auspicia a criação de panteões e narrativas.
Consideração
As constituições, o estado de direito no império da lei, são re-
digidas sine qua non depois dos fatos de força consumados, servin-
do para impor o consenso aos que, de maneira inapelável, deverão
acatar. Funcionam como uma tentativa de simbolizar, legitimando, a
violência real, para indicar a direção obrigatória ao parque humano.
As sagas dos povos e das nações são bem mais conhecidas e
documentadas do que as viagens no tempo, fantásticas demais. As
especulações no singular servem para esquecer que os laços sociais
são construídos por uma pluralidade de indivíduos divididos, afe-
tados pelo lugar que ocupam em castas e classes. Na condição de
falantes, sexuados e mortais, determinados por fatores materiais,
nosso mundo desnaturado compreende conflitos, contradições, di-
lemas e soluções políticas de compromisso.
Mitos e lendas, novelas e filmes costumam tematizar o ideal
de resistência à opressão e posterior vitória dos justos, muitas vezes
se unindo contra os agressores, talvez liderados por uma figura ca-
rismática, ao estilo de Robin Hood. Liberdade e luta, ordem e pro-
gresso, se e quando houver, como saldo dialético do struggle for life
sem, até hoje, final feliz para os condenados da terra.

Referências

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Brown, N. O. Love’s body. New York: Random House, 1966.
Cesarotto, O.; Souza Leite, M. P. Algumas reflexões sobre o ego. In: Jacques
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Engels, F. El origen de la família, la propiedad e el estado. Madrid: Pasionária,
1950.
Fantini, J. A. (Org.). Raízes da intolerância. São Carlos: UfSCar – 2015.
Odiai-vos uns aos outros 49

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______. (1953-54). O Ssminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar, 1984.
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Pujó, M. Para una clínica de la cultura. Buenos Aires: Grama, 2006.
Souza Leite, M. P. O deus odioso e o diabo amoroso. São Paulo: Escuta, 1990.
Considerações sobre transmissão
e posição clínica no discurso

Ana Maria Medeiros da Costa

O que me proponho a trazer, a partir da psicanálise, diz res-


peito a uma articulação entre a posição no discurso e as formações
de linguagem. A posição no discurso diz respeito aos determinan-
tes inconscientes de uma lógica do discurso, que incidem no lugar
do sujeito na fala, que dizem da alienação ao que constitui laço
social, a partir da dominante do discurso. De outro lado, as for-
mações de linguagem situam o que é resistente a essa lógica, produ-
zindo a relação às cenas fantasmáticas, bem como às constituições
sintomáticas. Proponho-me, desta forma, a situar o que resiste e
insiste nos laços discursivos, produzindo retornos de uma geração
a outra. Farei uma abertura mais ampla, para depois me deter em
suas especificidades.

Posição na fala e crise contemporânea

Hanna Arendt reuniu em seu livro Homens em tempos som-


brios (1987) ensaios biográficos escritos em diferentes ocasiões,
em que presta homenagens a alguns autores, por terem conseguido
contribuir para a produção do pensamento em momentos de exce-
ção. Destaca que os “tempos sombrios” dizem respeito à fala pública
52 Ana Costa

dos dominantes, que ao muito mostrar encobre, eliminando a fun-


ção do espaço público, como um lugar intermediário do exercício
do debate e da política. No seu dizer, o lugar da fala, desta forma,
torna-se “simples fala”, que “surge no âmbito público, determinan-
do todos os aspectos da existência cotidiana, antecipando e aniqui-
lando o sentido ou o sem-sentido” (p. 8). Assim, sua proposição de
“tempos sombrios” não diz respeito somente às monstruosidades
cometidas pelos totalitarismos, mas àquilo que se tornou o espaço
público, como lugar em que a fala é “simples fala”. Num tal contexto,
“a luz do público obscurece tudo”. Nos diferentes recorridos biográ-
ficos valoriza a possibilidade de um espaço intermediário, que possa
ser situado entre o mundo e um indivíduo que se retrai em seu
pensamento solitário. Um espaço de fala e debate, em que o tema
da verdade não se situaria como verdade única, seja ela derivada da
crença da religião, ou da certeza da ciência. Um espaço em que a fala
se dirigiria ao outro, buscando algo que a difere.
Pode-se reconhecer, nos ensaios biográficos de Arendt, uma
pergunta — no âmbito da filosofia — sobre o que se tornou a questão
da verdade a partir de rupturas, tanto com tradições, quanto pelos
efeitos das guerras do século XX. A escolha de biografias, para abor-
dar o tema, situa que a partir disso “tal iluminação pode bem provir,
menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e
frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas
e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão
pelo tempo que lhes foi dado na Terra” (p. 9). Seria, aqui, outra con-
cepção de verdade, destacando a relação entre verdade e posição de
cada um em sua experiência singular. De todos os mencionados,
Walter Benjamin se destaca como aquele em que vida e obra teste-
munham efeitos de rupturas, que ainda hoje insistem produzindo re-
tornos. Nesse sentido, os elementos propostos por este autor podem
servir como interpretantes de algo que diz respeito a nosso tempo.
Arendt refere algumas figuras benjaminianas que em sua
produção articulam vida e obra de uma maneira singular, em que
individual e coletivo se enlaçam. Destas figuras enfatizo a do co-
lecionador, condizente com o “pescador de pérolas”, como aquele
que pesca do depósito de fragmentos do desastre, esse depósito de
detritos, fragmentos que se destacam daquilo que o laço discursivo
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 53

não dá conta e que ali ficam até que o “pescador” os traga como um
interpretante do que restou, do que não se enlaça à “simples fala”.
Sua obra inacabada “Passagens” é um testemunho desses restos,
como uma versão de um real em causa no século XIX, que retorna e
insiste nos séculos posteriores.
Mas como fazer passar esses restos? E aqui Arendt traz uma
particularidade da posição de Benjamin, que vai situar também nos
outros autores abordados, o dom de pensar poeticamente: “Esse
pensar, alimentado pelo presente, trabalho com os ‘fragmentos do
pensamento’ que consegue extorquir do passado e reunir sobre si”
(p. 176). Fragmentos que remeteriam a um fenômeno originário
e não à História, não a uma recuperação nostálgica. O originário,
em Benjamin, diz respeito a algo que incide na nossa referência à
linguagem.
Os ensaios de Arendt trazem questões que também interes-
sam à psicanálise. Situar a articulação entre experiência singular e a
relação ao laço discursivo coloca em causa muitos elementos de que
a psicanálise se ocupa, sendo a referência a Walter Benjamin uma
via de interlocução importante. Antes de passar às contribuições da
psicanálise, farei referência a outro autor — Giorgio Agamben —
que também se utiliza de construções benjaminianas. Em seu artigo
O que é o contemporâneo ocupa-se de pensar o que resiste na apreen-
são que fazemos do tempo em que vivemos. Também se utiliza do
tema da “sombra”, remetendo-o à questão do originário. Esse autor
propõe que em toda apreensão do contemporâneo temos uma zona
de sombra, algo inapreensível nas análises que fazemos do tempo em
que se vive. Com este autor, trago aqui outro elemento na referência
ao pensamento, o tema do saber. Numa releitura de Benjamin, ele si-
tua o originário do lado de nossa relação à linguagem, na medida em
que a referência ao saber inclui o que da origem resta incognoscível.
Assim, o escuro pode equivaler-se a um olhar inatingível, suspenso
— na sua expressão — a um “ainda não” e um “já não mais”. Um
tempo inexistente, mas ainda assim operante, que insiste na nossa
relação ao saber. Ou seja, acrescenta-nos ao tema da verdade, que si-
tuei em Arendt, a articulação entre saber e tempo.
“Sombrio” e “escuro”, no campo dos autores, remete às con-
dições de produção da fala e do pensamento, na relação que
54 Ana Costa

tecemos entre saber e verdade. São temas que interessam tanto à


filosofia quanto à psicanálise. Essas condições dependem dos laços
discursivos em que estão inseridas, sofrendo os efeitos de seus giros,
bem como de suas rupturas. Nas articulações do pensamento e da
fala o sujeito depende do lugar em que se situa discursivamente,
bem como do endereçamento de sua produção. O endereçamento
tem importância fundamental nessa relação saber-verdade.
A referência a estes autores permite destacar alguns elementos
que interessa aprofundar. De um lado, a questão de um originário
— que só pode situar-se como mítico — fazendo parte da relação
à linguagem, produzindo efeitos de suspensão do tempo, em que o
saber assume contornos particulares. De outro, o tema da verdade
rompendo com uma suposição de revelação, passando à posição da
cata de fragmentos, restos que se decantam daquilo que o discurso
social não dá conta.
Os dois termos que destaco nos autores — verdade e saber
— também estão em causa em produções da psicanálise, na me-
dida em que dizem respeito às condições de enunciação resultan-
te da inscrição em laços discursivos. Estas questões a psicanálise se
ocupa, considerando que fazem litoral com outros campos. As con-
dições de enunciação dependem da inscrição em laços discursivos
e, nessa medida, particularizam-se em cada tempo e cultura. Por
essa condição litoral, Lacan os trabalhou em suas proposições. São
termos de que Freud não se utilizou enquanto suportes conceituais,
escolhendo partir de interpretações dos sintomas como formações
de linguagem, que os neuróticos lhe endereçavam em transferência.
Freud interviu num tempo de prática médica em que os sintomas
histéricos quebravam a bússola que orientava essa prática. Propor
essas formações como resultantes da sexualidade infantil, contex-
tualizada no drama edípico, foi a base de seu arcabouço concei-
tual. Essa base reconfigura as representações do corpo, na medida
em que a inclusão do sintoma como uma formação de linguagem
leva o corpo a ocupar um estatuto muito específico na psicanáli-
se, diferente de qualquer outro campo do saber. Paradoxalmente,
é do corpo em sua condição oscilante, nunca completamente
inscrito nas representações culturais de todos os tempos históricos,
limitado em seu tempo de vida, que os falantes se servem em suas
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 55

criações. Sua fragilidade específica serve muito bem como objeto


de busca de saber. No entanto, sua potência enigmática, nunca
totalmente revelada pelas representações de qualquer ciência,
torna-o maleável à tela de fantasias. O que faz funcionar essa má-
quina, o que a faz emperrar? Freud responderia com as pulsões,
Lacan acrescentaria os gozos. Esse acréscimo faz diferença na
abordagem dos termos destacados acima, implicados na relação
entre saber e verdade.
Numa primeira aproximação, Freud propõe uma verdade in-
consciente, insistente num conflito entre as pulsões e a função de
representantes de linguagem. Estes últimos realizam a fantasia e ao
mesmo tempo a encobrem, resultando nos sintomas como “for-
mações substitutivas”. Essa aproximação ao tema de uma verda-
de dos sintomas não foi suficiente como efeito clínico e a vigência
de repetições o fez propor o mal-estar na cultura, ampliando a
questão clínica e articulando-a a questões sociais. Lacan, por sua
vez, segue um desenvolvimento semelhante, chegando na rela-
ção do sujeito ao discurso como laço social, em que enunciação e
gozo aparecem disjuntos. Assim, o tema da verdade — constante da
posição do sujeito na fala — assume uma condição específica, na
proposição de uma lógica da enunciação, como verdade não toda.
É importante sublinhar que a verdade não toda é distinta do que
poderíamos pensar como meia verdade, na medida em que somente
na enunciação se apresenta o que ele propôs como “não toda”, nunca
se constituindo como absoluta, na medida em que se realiza enquan-
to fala. Ou seja, diz respeito a uma contingência que se expressa na
condição do sujeito enquanto falante, no seu endereçamento ao outro,
operando no momento em que enuncia. A articulação entre saber
e verdade torna-se mais complexa. Não só o sujeito fala sem saber
desde que lugar lhe vem a enunciação (a referência ao Outro), bem
como uma opacidade insiste na condição objetal de seu gozo. Saber
e verdade, ao mesmo tempo atrelados e disjuntos, mantém o sujeito
suspenso entre uma imagem do corpo nunca concluída, um dizer
contingente e uma condição de busca de satisfação jamais obtida.
Quero destacar uma abordagem lacaniana, dizendo respeito
à referência aos efeitos mais amplos do laço social, situada prin-
cipalmente na proposição sobre os discursos. O contexto desta
56 Ana Costa

proposição lacaniana é a ebulição produzida por maio de 68. No


seminário dedicado ao tema dos discursos, Lacan retoma a relação
saber/verdade e as operações de clivagem. A verdade não toda
e o furo no saber, criados pela incidência do significante e de um
real implicado no gozo, são paradigmas da relação do sujeito ao
discurso que o submete. Assim, a articulação saber/verdade é um
tema recorrente em suas abordagens.
Algumas palavras sobre o tema do endereçamento. Parece-
nos uma variável importante de considerar. Direi, inicialmente, que
o endereçamento afeta o lugar desde onde se fala e, por essa razão,
afeta seu produto. O endereçamento faz parte de uma atribuição de
saber, situável no campo do Outro, como lugar estabelecido a partir
da inscrição do sujeito no discurso, sendo que o interlocutor fun-
ciona como suporte dessa atribuição. Reconhecemos essas condi-
ções nos efeitos resultantes do trabalho em transferência, na clínica
psicanalítica. O endereçamento do sujeito ao Outro do discurso,
buscando resolver uma condição de exílio resultante da clivagem
saber/verdade, ao longo do trabalho produz efeitos de báscula entre
irreal e impossível. Ou seja, a incidência do Real na deriva pulsio-
nal, articulada ao furo no Simbólico. Essa báscula dirige o cami-
nhar, esgotando efeitos sintomáticos por ela criados. Poderíamos
resumir, de forma rápida, propondo que num percurso de análise,
na insistência do encontro de um Outro que não responde, o su-
jeito pode fazer a experiência desse mutismo originário. Situo aqui
uma aproximação à proposta de Agamben. Desse caminhar resul-
tam restos, fragmentos (como em Benjamin) impossíveis de tratar
na demanda do amor de transferência. O que fazer com o resto, o
que fazer com o lixo (a litter, como em Joyce), o que fazer com a le-
tra (Lacan)? Talvez, como propõe Arendt, reconstituir um dom de
pensar poeticamente.

Lógica do tempo e posição no discurso

Trago elementos do texto lacaniano para indagar questões que


nos afligem nos últimos acontecimentos sociais. Recebo, em minha
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 57

clínica, ressonâncias distintas. De um lado, analisantes que viveram


a repressão da época da ditadura militar, tempos de prisão e tortu-
ra. De outro lado, jovens universitários que participam de ocupa-
ções e que estão nas ruas, na linha de frente, recebendo a violência
da polícia. Entre essas duas gerações um vazio, que é vivido de for-
mas distintas. Na geração que viveu sua juventude nos anos 1970, a
incredulidade e o medo, que interpreta um retorno daquilo que se
supunha superado. Entre os jovens, a vontade de fazer História, de
criar outro sentido que não repita erros precedentes. Essa configura-
ção me remete a alguns comentários tecidos por Lacan num capítu-
lo do seminário Mais, ainda. Em primeiro lugar, que a configuração
de um mundo só é concebida na relação ao significante, que deter-
mina um centro, seja ele qual for, como forma imaginária. O centro
determina que isso gire, definindo um sentido, um vetor de nosso
mundinho, na expressão de Lacan, delimitando nosso universo
desde as concepções que fazemos do espaço, estrelas e planetas, até
nossa vida em família. Por essa razão ele diferencia revolução e sub-
versão. Propõe a revolução como um retorno, o que conhecemos em
psicanálise como repetição. De outro lado, situa a subversão, como
movimento de corte, de ruptura. No sentido da subversão, o que se
coloca diz respeito a um “isso cai”, que é instaurado pela relação à le-
tra. Então, do lado da revolução isso gira, do lado da subversão isso
cai. Poderia acrescentar: do lado do significante “isso gira”, do lado
da letra “isso cai”. São movimentos que fazem parte do trabalho em
psicanálise.
Partindo desses supostos, interessou-me indagar o tema da
transmissão, como relativo à transposição desse vazio instaurado
entre gerações. A transmissão, aqui, dizendo respeito ao que não
se resolve e que tem efeitos de retorno na passagem das gerações.
Assim, tomo a especificidade da relação saber/verdade que entra
em causa na articulação do tempo lógico, para transitar por algu-
mas questões. Mas a verdade como não toda, que é uma maneira
de situar o que resta de um Real que insiste. É assim que podemos
reconhecer a memória como retorno de uma fratura. Falar sobre
transmissão leva a primeiro plano a relação saber/verdade.
Atualizo aqui a leitura de proposições lacanianas sobre o tem-
po lógico, que não pode ser reduzida à publicação nos Escritos, na
58 Ana Costa

medida em que Lacan o retomou ao longo de seu ensino. Sua pri-


meira versão — que consta nos Escritos — foi elaborada logo ao fi-
nal da segunda grande guerra (março de 1945), resultante de uma
solicitação de Christian Zervos para publicação no Cahiers d’Art.
Não o retomarei na íntegra, somente destacando os principais ele-
mentos que o compõem. Para isso, me utilizarei também da leitura
que Lacan procede sobre ele no capítulo do seminário Mais, ainda,
intitulado O amor e o significante. Deste último, sublinho a propo-
sição lacaniana sobre a função da pressa, no ato de afirmação do
sujeito em sua posição de fala. A condição da afirmação dizendo
respeito à posição do sujeito na enunciação.
No texto referido, Lacan situa a impossível relação de três
prisioneiros, fundamentado em que cada sujeito só pode mover-se
para uma saída na medida em que reconhece que intervém como
o objeto a que ele é, ao olhar dos outros dois. Portanto, trata-se do
objeto a não especularizável, tal como Lacan propõe no seminário
sobre a angústia, em que o tema do reconhecimento ali não se situa
na imagem unificada. Ou seja, não se trata da referência à identifi-
cação. Como se sabe, os três prisioneiros não conseguem deduzir
qual cor portam às costas por verem em seus companheiros dois
discos brancos, sendo que poderiam portar tanto outro disco bran-
co, quanto um preto. Os dois brancos funcionam como o signifi-
cante Um, a partir do qual o sujeito não pode afirmar sobre seu ser,
na medida em que reconhece que esse ser se reduz ao objeto do
pensamento dos outros dois. Nesse sentido, eles não estão na cena
como indivíduos, mas sim na relação que o significante tece com
o que escapa ao olhar – que funciona como objeto a. Esse objeto
que não tem consistência de imagem, que não tem representação
no espelho. A pressa como função, nesse sentido, somente opera na
medida do reconhecimento da dependência de algo sem represen-
tação, responsável pela captura nesse coletivo. Essa conformação
admite somente uma saída coletiva.
O tema do saber é complexo, porque requer desdobra-
mento de tempos lógicos, que implica em posições distintas em
sua abordagem. Para pensar nesse desdobramento precisa-se uti-
lizar a relação entre posição no saber e experiência efetiva, o que
inclui tanto o insabido do inconsciente, quanto o pulsional. Vou
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 59

abordá-lo a partir de um exemplo. Continuando no tema da con-


vivência de diferentes gerações, evoco o filme Tragocomigo, de Tata
Amaral. Indico vivamente assistir a esse filme, que passou desper-
cebido, mas que traz uma reflexão importante sobre os efeitos do
que vivemos. Ali se trata justamente de transmissão.
Relato brevemente o tema do filme, a fim de apresentar as
questões que ele evoca, no desdobramento de distintas referências
temporais. Ele começa quando um diretor de teatro — de nome
Telmo — é entrevistado, para um documentário, sobre sua parti-
cipação na luta armada, nos anos 68/69. Quando lhe perguntam a
respeito de um nome — Lia — que teria sido sua companheira, so-
brevém um lapso, um branco na memória. Não consegue lembrar
de quem se trata, mas vai buscar em recortes da época a tentativa
de reconstituição da memória. Ficamos sabendo, depois, que seu
lapso de memória dizia respeito a sua indagação se a morte de Lia
fora sua responsabilidade, quando entregou, sob tortura, uma ação
em que ela acabou participando, mas que em seu cálculo ela não
estaria designada. Quando, logo depois da entrevista que deu, foi
convidado para reinaugurar um teatro, com a montagem de uma
peça, decide encenar episódios de seu engajamento quando jovem
na luta armada, como uma tentativa de lembrar. Para isso, contrata
jovens atores, que encenarão ele e seus companheiros da época, in-
clusive sua relação amorosa com Lia.
O que quero destacar incide justamente na relação desse dire-
tor com os jovens atores — que viveram em outro tempo — quan-
do tenta transmitir a narrativa da história que vão encenar. Vemos,
ali, uma disparidade na relação à memória: a linguagem e a posi-
ção dos jovens atores que ele escolhe, para encenar a peça, repre-
sentam outro contexto. Ressaltam-se expressões corriqueiras dos
filmes de Hollywood (os guerrilheiros são nomeados terroristas, os
que assaltaram um banco são nomeados de “ladrões”, o que causa
desgosto em Telmo — “o dinheiro era para uma causa, não era pra
comprar tênis, ou carro. Estávamos numa ditadura, tinha pessoas
sendo torturadas e mortas”). Passa, também, uma crítica ao acon-
tecido. O jovem que encena Telmo quando estudante, não entende
seu personagem. Por que ele não entende? Aqui se coloca em cau-
sa uma dinâmica que expõe um gap entre gerações, um impossível.
60 Ana Costa

Poderíamos propor: tal como no tempo lógico, temos prisioneiros


encerrados entre paredes invisíveis — as condições do discurso —
que se debatem com um “eu, no seu lugar”. O jovem critica: “o que
ficou do que fizeram, o que resolveu?” Telmo rebate: “vocês perten-
cem a uma juventude alienada”. Então esse fechamento eu-outro
constitui o “eu, se estivesse no seu lugar”. São os prisioneiros pre-
cisando do outro para se reconhecer e tentando eliminar o impos-
sível de saber. Esse exemplo me serve para situar relações ao saber,
escandido em diferentes posições discursivas, dizendo respeito a
uma lógica de tempo implicada em distintas relações, cristalizadas
em diferentes gerações.
A proposição de Lacan sobre o tempo lógico me ajudará a
precisar essa questão. A partir dela se colocam diferentes lógicas
temporais resultantes da relação entre olhar e saber. A saída no
primeiro tempo, situa o enunciado “se sabe”, ficando a enunciação
reduzida ao instante de ver, que implica a não inclusão do sujei-
to nesse campo do saber. Desta forma, o enunciado “se sabe” fica
completamente do lado do Outro social. Isso faz, por exemplo, com
que não nos impliquemos em muitas coisas que compõem nosso
cotidiano, tais como a violência urbana e tantas outras coisas que
vemos, mas que fazemos como se não nos dissesse respeito, não
nos concernisse. Aqui, situamos a diferença entre “eu vejo, eu sei”,
para momentos em que a posição de um “isso me olha” diz respeito
a “isso me concerne”. Lacan trabalhou com essas equivalências na
língua francesa (ça me regarde, que diz dos dois sentidos destaca-
dos: me olha e me concerne).
Tomarei o tema da evidência, como um instante de ver, na re-
ferência à pantomima. Por meio desta, é possível encarnar algo que
funcione como totalidade, num acoplamento do traço simbólico
ao objeto olhar. Lacan situou no bigode de Hitler, por exemplo, um
traço de totalidade hipnótica. Por meio dele se conduziram as mas-
sas na atuação de um fantasma em comum, que concedeu na elimi-
nação do outro como resto do discurso. Assim, a pantomima pode
ser essa pequena besteira guindada a um traço/objeto que encarna
a ilusão de totalidade. Mas ela só funciona em condições em que o
saber se coloca de uma maneira específica no discurso. É um efeito
do que podemos nomear como posição cínica em relação ao saber,
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 61

na clássica afirmação: “eu sei, mas mesmo assim”. Esse “eu” que diz
“sei” reconhece que o traço que o sustenta depende da pantomima,
então ele busca brandi-lo à exaustão, porque faz seguidores. Isso
porque lá onde o traço torna-se índice de fascínio, na medida em
que nada parece encobrir, serve para acalentar a ilusão de que nada
falta.
Retomando o filme, podemos dizer que, num primeiro tempo
— instante de ver — se sabe que houve ditadura, se sabe que houve
luta armada, se sabe que houve desaparecidos e que foram mortos.
Aqui estamos no campo da informação, de um “se sabe” anônimo
e desimplicado. Pertence ao que poderíamos nomear de evidência,
que os meios de informação manipulam — uns mais, outros me-
nos — de acordo com seus interesses. É a evidência pertencente ao
instante de ver, um “eu vejo, eu sei” sem implicação e que poderia
ter qualquer texto para justificar diferentes posições. Toda a propo-
sição da informação, constituída pela mídia, permite uma clivagem
entre enunciado e experiência. O jogo da informação, veiculado co-
tidianamente pela TV, ou meio digital, constitui uma relação a um
saber desimplicado, um saber que não constitui experiência. É, en-
tão, o campo da experiência que evoco para situar onde se dá uma
implicação. Porque nesse “eu vejo, eu sei”, que se constitui como
evidência, o sujeito está excluído. Ou seja, dispensa a experiência,
economiza, ou mesmo dispensa a inclusão.
Freud tratou de uma relação particular com o saber, na cons-
tituição de uma clivagem responsável pela manutenção de repre-
sentações opostas, tal como situei na pantomima da posição cínica.
Há uma particular elisão do sujeito na relação com o olhar, com a
manutenção lado a lado de registros contraditórios. Isso que per-
tence ao campo do olhar (evidência) situa um instantâneo da ima-
gem em que “se sabe”, dispensando a experiência. Essas questões
dizem respeito a quando a saída se dá no primeiro tempo, o instan-
te de ver do tempo lógico.
No filme, temos também o lugar do personagem Telmo, cons-
tituindo uma outra posição no saber, na medida em que viveu aqui-
lo que trata de construir na peça. Suporíamos que só ele sabe, visto
que presenciou. Ele sabe, mas também não sabe: o branco na me-
mória traz uma formação do inconsciente, algo do campo de uma
62 Ana Costa

verdade não toda, produzida sintomaticamente. O branco na me-


mória representa o insabido do inconsciente, que reconhecemos
como um efeito de censura, pela pergunta que surge velada: serei
eu o responsável pela morte da mulher que eu amava? A constru-
ção da peça vai levá-lo a constituir uma outra forma de experiência,
atualizada na transmissão aos jovens, característica de um tempo
de compreender. Não é simplesmente lembrar, não é simplesmente
informar. A construção ficcional da peça inscreve algo em comum
num campo de experiência compartilhada. O que é impossível de
ser transposto por qualquer saber — que constitui o gap entre gera-
ções — a construção da peça permite resgatar, porque implica cada
um numa construção que não é somente de Telmo.
É curioso reconhecer que tem algo que une os personagens. O
branco na memória do lado de Telmo e uma falta no vivido do lado
dos jovens. A pergunta sobre quem matou Lia precisou ser tramita-
da, para sair do individual sentimento de culpa e passar ao tema da
responsabilidade, tema que também implica os jovens, porque eles
fazem parte dessa história, quer queiram ou não. É interessante que,
aos poucos e no engajamento na construção da peça, os jovens aju-
dam Telmo na reconstituição do que ele não lembrava.
Outro elemento a destacar do filme, situa-se no momento
em que a peça vai ser mostrada para ser aprovada pelo responsá-
vel em sua promoção. Telmo sugere a mesma construção como em
Hamlet, em que uma peça é encenada para que o rei revele sua cul-
pa no assassinato do pai de Hamlet. Lacan se utilizou dessa peça
num seminário O desejo e sua interpretação em que transita pela
dificuldade do tema do luto, na medida em que sua não realização
cria uma suspensão do tempo ao discurso do Outro. Lacan diz que
Hamlet está preso no tempo do Outro. O luto irrealizado, ali, con-
diz com esse fechamento do discurso, em que nada é transposto
na medida em que retorna ao sujeito, que encarna o sentimento de
culpa. Nesse sentido, o que tem vigência diz respeito à crueldade do
supereu, do qual, paradoxalmente, o sujeito é solidário. Num pri-
meiro tempo, o luto precisa ter uma dimensão coletiva. O primeiro
tempo é o encontro de uma ausência que nada conseguirá recobrir.
O corpo do morto e o Outro do código encontram-se estritamen-
te no mesmo lugar. Nada que se represente dará conta da ausência
Considerações sobre transmissão e posição cínica no discurso 63

radical que o morto evoca. A radicalidade dessa ausência de um


significante no Outro, que permita transpor a ausência que o morto
opera na percepção, ocupam o mesmo lugar. O primeiro tempo do
luto diz do reconhecimento de um furo no código e, por isso, não
se está sozinho. Depois cada um pode seguir seu caminho.
É interessante como a psicanálise utilizou-se de peças que fa-
lam desse furo no saber, que guinda alguém a ocupar o lugar do
herói trágico, duplicando a morte da qual se faz culpado. Temos
Édipo, prisioneiro de um saber de oráculo e do qual não quer saber.
E Hamlet, que sabia demais, o que o impedia de agir. Enfim, são
posições no saber que implicam nesse destino trágico.
Se tomarmos o que abordei até aqui, reconhecemos que a me-
mória é dependente de uma transmissão num ponto muito particu-
lar, naquilo que evoca uma fratura, na forma como estou tomando
uma verdade não toda. Há uma correlação entre inscrição, memória
e identificação, o que vai trazer à cena a necessidade de uma expe-
riência que produza algo em comum. A transmissão depende destas
relações.
Costuma-se dizer, em relação a fatos sociais, que o povo tem
memória curta. É um dito expressado principalmente nos momen-
tos eleitorais. Apesar de ser um dito pejorativo, ele expressa uma
questão irredutível. Ou seja, diz respeito àquilo que faz com que
nos movamos pela repetição. Muito me indaguei sobre a razão da
sobrevivência de organizações neonazistas que, apesar de todo o
acontecido na última grande guerra, se espalham pelo mundo. Ou
mesmo o que vivemos atualmente no Brasil. Como é possível que
isso ainda retorne? O que interessa sublinhar aqui é a especificida-
de da repetição. Os acontecimentos sociais também trazem as mes-
mas contradições vividas por cada sujeito, na sua perplexidade de
ser submetido, insistentemente, a repetições que o fazem padecer.
A fratura não tem resolução, mas ela pode ser propulsora de um
fazer algo com o que insiste. Nesse sentido, o tema do luto assume
uma função fundamental como possibilidade de saída coletiva.
64 Ana Costa

Referências

Agamben, G. O que é o contemporâneo? In: O que é o contemporâneo e outros


ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
Arendt, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
Freud, S. Escisión del yo en el proceso de defensa. In: Obras Completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
Lacan, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______. O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
______. O Seminário. Livro 20. Mais... ainda... Rio de Janeiro: Jorge Zahar
, 1985.
______. Le Séminaire. Livre VI. Le désir et son interprétation. Paris: Le Champ
Freudien Editeur, 2013.

Filme: Tragocomigo. Direção de Tata Amaral. Pandora Filmes, 2013.


O retorno das vociferações

Mauro Mendes Dias

Reconhecer as vociferações como uma questão que retorna


implica admitir que sua presença já se fez notar antes. Não estive-
ram sempre da forma como se apresentam agora. Em diferentes
momentos da história constaram com maior ou menor duração.
Em algumas experiências, como a do nazismo, estenderam o tempo
da matança, através do ódio exterminador.
As vociferações são a posta em exercício, nos corpos, de uma
captura dos sujeitos por um discurso que exclui suas vozes, elimi-
nando-as. Tais discursos, que eliminam a presença do sujeito, já
foram realizados antes pela Inquisição, pelo nazismo, pelos totali-
tarismos e pelos genocídios. Ou os sujeitos se contavam pelo todo,
fosse ele religioso ou politico, ou suas respectivas presenças pas-
savam não importar mais, tornando-se descartáveis, passíveis de
punições extremas. É certo que diferentes instrumentalizações par-
ticiparam na produção de cada uma das modalidades de exclusão
dos sujeitos, pela voz. Isso porque, valer-se da voz na Idade média,
para fazer constar uma posição diferente da religiosa, não implica-
va na mesma determinação para sustentar uma posição contrária à
matança, nos genocídios.
A condição de ser portador de uma voz, para a qual se pode
consentir ou se silenciar, não é algo que se resume a estar disposto
66 Mauro Mendes Dias

a sonorizar a fala , ou não. Antes ainda, é preciso que se possa reco-


nhecer um lugar e uma função ao Outro. A condição de reconhecer
e assumir um lugar na relação com o Outro implica estabelecer um
laço, que é tanto discursivo, quanto libidinal. E, quanto mais essa
relação se dialetiza, ou seja, quanto mais a diferença entre o sujeito
e o Outro modula as limitações e os avanços, mais se vai firmando
o solo a partir do qual o sujeito poderá comparecer, ao mesmo tem-
po, com uma significação diferenciada pelo discurso, tanto quanto
na sua economia de gozo.
Pela psicanálise, as vociferações não se articulam segundo a
maneira pela qual se encontram definidas no código, sinônimas de
estridências e de gritarias. por haver um sujeito que se articula pelo
desejo que a sua captura por um discurso que elimina sua particu-
laridade implica em não haver possibilidade de manifestação das
diferenças, sejam estas discursivas ou libidinais. As vociferações são
a posta em cena de uma política das relações baseadas no tudo ou
nada. Trata-se de uma politica de atos que visam à solução, na pers-
pectiva que esse termo assumiu no nazismo, qual seja, como solu-
ção final, extermínio. Não é necessário que haja fornos crematórios
para que tal política se prolifere. É necessário, sim, que a política de
destruição assuma diferentes participações no cotidiano dos sujei-
tos, de forma a que a eliminação avance sem interdito, dificultando
o reconhecimento e a introdução de limites para sua presença.
Para entender a modalidade pela qual as vociferações com-
parecem hoje no laço social, é preciso reconhecer que elas não se
resumem à entrada em cena de discursos radicais, tão somente.
Junto a estas, como seu afeto dominante e decisivo, encontramos
a presença do ódio. Para tanto, basta notar que o ódio sustenta,
como gozo, atos que se justificam a partir de discursos redutores,
os quais têm como base o situar no exterior a causa da privação das
próprias satisfações. A forma pela qual essa estrutura funciona, de-
pende de sua atualização no decorrer das épocas. O que nela se re-
pete é a atribuição da causa da privação como vinda de um Outro
que se supõe que se excede com aquilo que falta do lado do sujeito.
Portanto, para eliminar tal desproporção é preciso lançar mão da
destruição desse Outro que quer o meu mal, na medida em que re-
cusa o meu reconhecimento.
O retorno das vociferações 67

A princípio, determinados fenômenos são mantidos como in-


trigantes e sem explicação, somente porque aqueles que se debru-
çam sobre eles insistem em reduzir suas abordagens, uma vez que
não contam com o mais além do discursivo. Isso significa que ex-
plicar o nazismo como monstruosidade que apareceu baseado numa
perversidade de Hitler e seus colaboradores é o mesmo que não re-
conhecer seu alcance verdadeiro. Se não se conta com um gozo que
satisfaça os sujeitos por terem a oportunidade de, enfim, consentir
na matança suspendendo qualquer tipo de limite, não se reconhe-
ce que a entrega ao inumano participa de nossa constituição, nem
sempre mantida sob controle, tampouco por inteiro. Realizar tal tipo
de consideração não permite sequer acreditar que, de repente, sem
causa, os humanos possam admitir a presença, neles, do inumano.
Para que a política tenha se tornado o lugar onde o ódio es-
trutura o conjunto das ações é preciso ter podido contar, de saída,
com uma insatisfação radical de seus representantes, na sua grande
maioria. Ou seja, é preciso que a confiança que se atribuía a eles te-
nha decaído de valorização ao extremo.
Mas não somente isso. É preciso, também, que tudo aquilo
que era suposto de ser satisfeito através da política, enquanto
forma de manejar os direitos do cidadão, tenha encontrado, mais
uma vez, em diferentes momentos, a falência de suas expectativas.
Ainda assim, não seriam suficientes tais condições, caso cada um
dos sujeitos não constatasse que é através das ações violentas que
alguma satisfação pode ser obtida, mesmo correndo o risco de
punição. Portanto, em vez de contar com o ódio, sob a forma de
indignação, trata-se agora de apostar na eliminação dos impasses
valendo-se do ódio como afeto que promove a destruição.
Para tanto, trata-se de contar com sujeitos que não visam mais
ao diálogo, mas sim com o que é possível de ser conquistado à força,
em curto prazo. Destituídos da prática do diálogo, e tendo reduzido
o campo dos afetos ao ódio, os sujeitos vociferam seus direitos atra-
vés de atos que não têm mais tempo nem espaço para, e no Outro. 
Equivocadamente, acreditou-se que tanto as depredações dos
direitos, como a eliminação das vozes dos sujeitos, iriam se susten-
tar por via de um equilíbrio precário com as privações. Não se con-
tava que uma das formas de os sujeitos reconquistarem seu lugar
68 Mauro Mendes Dias

diante do Outro haveria de ser produzida pela destruição deles,


através do ódio. O ódio é esse afeto que restitui ao sujeito seu ser.
Tendo ódio, ele passa a existir e ser reconhecido como portador de
alguma verdade, mesmo que restrita. Dessa maneira pode-se indi-
car que os impasses promovidos pelo capitalismo são responsáveis
pela geração da internacionalização do ódio, enquanto fenômeno
que tipifica nosso momento histórico, como alternativa de resti-
tuição de uma parcela de ser. O problema é que, através das voci-
ferações no lugar das vozes, cada um dos sujeitos desaparece sob
um mesmo afeto que promete sua satisfação, para ser em seguida, e
sempre, movido por essa condição que o elimina de ser o portador
de uma palavra que o distingue.
Acreditar que se valer do Direito para reconquistar lugares e
funções que foram subtraídos no laço social é continuar acreditan-
do que a entrega incondicional a um discurso pode restituir o que
se visava sustentar como verdade.
A passagem das vociferações para as vozes que diferenciam os
sujeitos introduz a perda de um gozo que visa à destruição como
sinônima de solução. Para tanto, será preciso reconhecer que aquilo
que opera no sujeito, tanto quanto na coletividade, vai para além
de conceber o plano das satisfações como análogo de satisfação
das necessidades. E ainda, a tal passagem, das vociferações para as
vozes, não implica a eliminação do ódio, mas sim sua sustentação
pelo discurso, ou seja, pelas diferentes práticas de indignação que
podem promover, ou não, a presença do lugar da verdade, de ma-
neira a que possa ser escutada por um Outro, a quem se dirige.
Tais articulações decidem pela retomada do lugar e da função
da voz e do olhar sob a perspectiva da psicanálise, como elementos
que estruturam uma política.

Referências

Lacan, J. (1964). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da


Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
______. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
O retorno das vociferações 69

Lacan, J. (1962-63). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2004.
Instituto Vox. (17 março 2017). As vociferações e seus tratamentos possíveis.
[arquivo em vídeo] Disponível em: <www.voxinstituto.com.br>. Acesso em:
completar
?????
O que é o ódio?
de onde ele vem?

Emilia Estivalet Broides

Em que momento a opinião, a ação ou as escolhas do outro do


qual divergimos se transforma em agressividade, injúria, difamação
tornando impossível suportar a presença do outro? Que fronteira
é essa entre a discordância com a ideia e a humilhação e/ou elimi-
nação física ou simbólica do outro? Briga, violência, injúria, difa-
mação são os nomes do ódio? São modalidades, que o fazem surgir
a cada vez em um novo aspecto, em suas diversas facetas? O que é
o ódio? De onde ele vem? É possível interrogá-lo? É possível sair
dele?
Os ódios em suas diversas manifestações não geram expe-
riência nem ensinamento, se infiltram e silenciam seus destina-
tários. A ausência de palavra é material e marca da fronteira que
transforma o outro semelhante em destinatário de meu rancor.
Entre eu e o outro: nada em comum, tampouco qualquer forma de
reconhecimento.
Desde a clínica, tais questões relativas aos ódios concernem
ao psicanalista e o interrogam: a transferência negativa, a rivalidade
infantil, a servidão do ciúme, a certeza paranoica são alguns enlaces
dos ódios na clínica psicanalítica. Também, concerne ao psicanalis-
ta a reflexão quanto a dimensão social dos ódios, pois não há como
desconsiderar as coordenadas discursivas inscritas em cada época
72 Emília Estivalet Broide

e os consequentes efeitos psíquicos, subjetivos, políticos e cultu-


rais. Logo, concerne ao psicanalista indagar-se sobre os efeitos das
formações identitárias fechadas e pregnantes, cujo ódio é elemento
fundante, que negam e excluem o outro do mundo compartilhado.
Sejam elas étnicas, religiosas ou ideológicas.
Tal reflexão convoca a responsabilidade do analista de situar
sua escuta clínica nos interstícios da vida cotidiana, nas diferentes
situações sociais nas quais se produzem intolerâncias baseadas em
fraternidades que se fundam sobre a segregação, e rivalidades que
produzem a eliminação das diferenças. Isso tanto na escuta singular
de um sujeito em particular, quanto na análise que o analista aporta
à leitura do mal-estar na cultura.
A sociedade brasileira se estruturou baseada na eliminação do
outro e no esvaziamento do diferente: indígenas, depois os negros
escravizados. Os ecos continuam fortes ainda hoje. Cleto (s/d), em confirmar
seu Ensaio sobre o ódio no Brasil do século XXI refere que:
O Brasil assassina 50 mil pessoas por ano, lincha uma por dia e até
agora não foi capaz de dar o nome de “guerra civil” para nenhum
dos eventos que o lavaram de sangue, mesmo os mais distantes. E
isso diz muito mais do que parece. Ao se combater o ódio enquan-
to expressão de um problema moral individual ignora-se a sua ca-
pacidade coletiva de mobilização e, principalmente, a boçalidade
deste mal, que, se não chegou agora, nunca deu tantos sinais de que
não vai mais embora.
A violência inscrita na sociedade brasileira tida como cor-
dial e pacífica, torna qualquer análise sobre a realidade atual um
exercício bastante complexo. Não nos arriscaremos a entrar nessa
discussão, mas cabe no trabalho psicanalítico nas situações sociais
críticas, colocar em questão os “ecos” (como nos diz Cleto) e as
ressonâncias dessas violências fundantes e as suas repercuções nas
manifestações do ódio vividas atualmente.
Pode-se ver claramente hoje as formas pelas quais a violência
amalgamada na sociedade brasileira se mantém discursivamente
inscrita nos sujeitos: do assassinato dos jovens negros nas regiões
periféricas à violência a grupos LGBT e à população pobre deste
país. Entender tal questão como estrutural é bastante distinto de so-
mente buscar pelo seu sentido. O ódio se estrutura e se infiltra de
O que é o ódio? De onde ele vem? 73

modo sutil, ao mesmo tempo de forma marcante na sociedade bra-


sileira e no psiquismo dos sujeitos.
Muitas vezes, por exemplo, profissionais da área da saúde e
da assistência social, que trabalham em territórios de extrema po-
breza e vulnerabilidade, relatam o sofrimento psíquico vivido por
eles como uma espécie de fracasso pessoal, vergonhoso e indigno.
Penso que a escuta analítica desse sofrimento também deve estar
articulada a sua conexão com o laço social mais amplo e com os
efeitos do que está inscrito em nossa sociedade como memória,
como tradição.
• A recepcionista de uma unidade básica de saúde (UBS) chega
para atendimento com a psicanalista porque tem crises de pâni-
co. Estas surgiram após ser agredida por um usuário que buscava
ser atendido por um médico, mas o profissional não se encon-
trava no local. O usuário indignado com a ausência do médico,
após agredir a recepcionista verbalmente arranca-lhe um tufo de
cabelo.
• Uma agente comunitária de saúde (ACS) busca atendimento. Foi
diagnosticada com depressão. Chora compulsivamente, não vê
graça em nada. Perdeu o sentido na vida. Anos antes era volun-
tária na igreja católica e fazia caridade. Atualmente trabalha em
uma unidade básica de saúde (UBS), faz visita domiciliar, mas
não consegue mais ir para o trabalho desde que foi ameaçada por
um traficante que mora em uma rua próxima a sua. No momen-
to em que fazia o levantamento das condições de moradia e de
saúde da família cadastrada em sua área de atuação, o traficante
(que era integrante desta família) lhe disse para não se meter em
sua vida e deixou-a “presa” durante a visita domiciliar por duas
horas. Invertendo a posição, passou ele a interrogá-la.
• Uma equipe do consultório na rua não consegue mais realizar o
curativo para tratar uma lesão de um morador de rua que tinha
sido recentemente hospitalizado porque ele foi expulso da praça
onde morava, após uma briga com outros colegas de infortúnio:
os “donos da praça”. Num misto de desânimo e raiva, dizem que
seu trabalho não faz sentido devido à violência a qual tanto eles,
quanto os seus usuários, estão expostos, inviabilizando o trabalho
o tratamento.
74 Emília Estivalet Broide

• Um grupo de adolescentes em conflito com a lei, atendido em um


serviço de medidas socioeducativas, após estruturar com a equipe
técnica uma atividade externa à instituição, chega à mesma usan-
do drogas e “causando” durante a circulação pela cidade. A equi-
pe se sentiu extremamente agredida pela atitude dos meninos,
uma vez que prepararam a atividade com esmero e dedicação.
Nestas situações temos os trabalhadores (agentes do Estado)
na sua relação com a população atendida pelas políticas públicas. O
que acontece nestes casos, nos quais uma espécie de campo de bata-
lha se institui entre aquele que presta assistência e o destinatário da
política pública?
As situações acima sinalizam o esvaziamento do regime sim-
bólico no qual o reconhecimento e a legitimidade não são mais
traço evidente, determinando formas de violência e ódio que mere-
cem consideração e análise na escuta realizada. No dizer de Lacan
(1953):
Há uma dimensão imaginária do ódio, na medida que a destrui-
ção do outro é um polo da estrutura mesma da relação intersubje-
tiva... o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário.
Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer
o contrário, seja seu rebaixamento, seja a sua desorientação, o seu
desvio, o seu delírio, a sua negação detalhada, a sua subversão. (p.
360)
Portanto, para reestabelecer os aspectos psicanalíticos na es-
cuta a estes trabalhadores não basta somente escutar a depressão,
ou o pânico, vividos pelos profissionais, ou ainda pelos usuários
dos serviços. Tampouco é ouvir o que falam das brigas entre mora-
dores de rua e o ressentimento sofrido diante dos adolescentes que
não se adequaram a norma e aos “bons costumes”, mas é revisitar
e cernir a temática do ódio em sua dimensão clínica em conexão
com o laço social, com os “ecos” do passado brasileiro que não ces-
sa de se inscrever. Com isso, encontrar o ponto no qual colocar em
análise o ódio na clínica o torna um operador ético e político, uma
vez que indaga a própria clínica, as políticas públicas e o laço social
A clínica ao dar relevo à palavra e ao tratar o mal-estar sin-
gular vinculando-o à dimensão histórica, econômica e social dos
sujeitos, faz com que sejam interpretáveis os fenômenos do ódio
O que é o ódio? De onde ele vem? 75

vividos cotidianamente, constituindo o melhor antídoto contra a


sua instrumentalização. Dessa forma, lidar com o ódio não é abolir
ou eliminar o conflito, mas ao contrário é explicitar suas bases.
A depressão, o pânico e a impotência, muitas vezes vividas pe-
las pessoas que atendem nas mais diversas situações sociais críticas
não devem ser vistos exclusivamente como problema do individuo,
mas em sua dimensão de desigualdade social, uma vez que, a desi-
gualdade social caprichosamente vai se presentificar no contato hu-
mano e na constituição das subjetividades.
Nesse sentido, ao abordar os fenômenos cotidianos do aten-
dimento psicanalítico a equipes que trabalham “nas trincheiras”, ou
ao realizar supervisões a estas equipes em diversas instituições, fa-
z-se necessário levar em conta a dimensão do ódio em sua dupla
inscrição pessoal e histórico-social.

Coerção, silenciamento

Baumann (2013) refere que há pouco tempo as forças militares


incorporaram ao seu vocabulário a expressão “danos colaterais”. Os
“danos colaterais” são a morte humana e prejuízos nas intervenções
armadas que embora involuntários são previsíveis. Portanto, se justi-
ficam e são considerados válidos, mesmo que gerem efeitos não pre-
tendidos. “Aparentemente, os riscos são neutros e não intencionais, e
seus efeitos, aleatórios; na verdade, porém os dados do jogo dos ris-
cos são viciados” (p. 12), uma vez que há uma afinidade seletiva en-
tre desigualdade social e a possibilidade de se tornar vítima de uma
bala perdida, de uma chacina, ou de uma catástrofe natural.
Mas, que mágica faz ser possível que a morte de alguns se tor-
ne natural e banalizada? E a de outros não? Destacamos que estes
“danos colaterais”, não ocorrem somente nos contextos militares,
mas estão vivamente presentes em nossa sociedade. Eles se revelam
cotidianamente num misto inflamável de discriminação racial e au-
mento das vulnerabilidades psíquicas e sociais.
Alguns nomes dos nomes dos “danos colaterais” da socieda-
de brasileira, não tão involuntários assim, são os adolescentes em
76 Emília Estivalet Broide

conflito com a lei atendidos nos serviços de medidas socioeduca-


tivas, os moradores de rua e, também, um conjunto de trabalha-
dores da saúde e da assistência social que estão na linha de frente,
como representantes do Estado, nos diversos territórios violentos
da cidade.
Nosso interesse, nesse momento, de forma muito pouco he-
roica é buscar elementos que nos permitam questionar, a partir da
psicanálise, os efeitos mais sutis do ódio, ou seja, identificar como
ele sorrateiramente se instala nos vínculos transferenciais, espe-
cialmente, entre os destinatários das política públicas e os técnicos
que atendem nos serviços de saúde e assistência social, uma vez
que perpassados pela história brasileira, por essa memória, por essa
tradição os técnicos, muitas vezes, são os depositários de relações
muito arcaicas, e ao mesmo tempo muito vivas, presentes na nos
territórios brasileiros nos quais a vulnerabilidade social é marcada-
mente presente.
Dessa forma, destacamos que o vínculo entre eles não passa
incólume as formas discursivas e aos significantes presentes no laço
social mais amplo e, muitas vezes, põe em evidencia que há uma
lógica no discurso social fundada na ameaça de uma eliminação/
rejeição primordial.
Em outro trabalho (Aranha, Broide, Guerra, Moreira, 2015), a
partir da prática orientada pela psicanálise junto aos jovens autores
de atos infracionais interrogamos a modalidade transferencial que
se estabelece entre estes jovens e as equipes técnicas dos serviços res-
ponsáveis por executar as medidas socioeducativas em meio aberto.
Indicamos que os técnicos se encontram sob suspeita, sob o
olhar vigilante dos jovens. O adolescente em conflito com a lei an-
tecipa a relação com o técnico do serviço, estabelecendo-a a partir
da suspeita, daquilo que vê no olhar do Outro (Estado, sociedade,
etc.). A suspeita sempre antecipa uma consideração sobre o outro.
Manifesta-se quando não se está seguro sobre alguém, quando há
algo que não se sabe, mas que, no entanto, se antecipa como mal e
negativo.
A atitude de apatia, desprezo, desvalorização e suspeita do
jovem em conflito com a lei, em relação aos técnicos dos serviços,
pode ser compreendida como resposta aquilo que chega a ele como
O que é o ódio? De onde ele vem? 77

interpelação do Outro Social. Naquela ocasião, propusemos fazer


trabalhar a transferência e, com isso, bascular a transferência: de
negativa à positiva, operando a passagem do sujeito suposto suspei-
to ao sujeito suposto saber. Bascular é colocar em movimento e não
eliminar a tensão existente entre amor e ódio na transferência.
Lacan adverte que devemos por em jogo a agressividade do
sujeito a nosso respeito, já que essas intenções compõem a trans-
ferencia e o nó inaugural do drama analítico (1948, p. 110). Dessa
forma, não buscando eliminar a transferencia negativa, mas in-
cluindo-a como parte do fenômeno transferencial e a desdobran-
do-a em seus tempos e função. Portanto, para fazer transitar a
transferência do sujeito suposto suspeito, ao sujeito suposto saber, é
necessário tomar para si o vínculo transferencial estabelecido.
Mas, no presente trabalho, ao pensar a relação entre os tra-
balhadores da área saúde e os destinatários das políticas públicas,
pretendo abordar um outro aspecto que compõe o fenômeno trans-
ferencial presente nesta relação, ou seja, a violência estrutural pre-
sente nesse particular laço com o outro semelhante.
Para tanto, vou utilizar uma imagem de Didi-Huberman
(2009) em seu livro Ser crânio, quando ele aborda a obra do escul-
tor italiano Penone. Ele diz que para Penone fazer uma escultura é
fazer uma escavação. Fazer uma escavação é fazer uma anamnese
do material onde se afundou a mão.
Todo inquérito sobre os vazios pressupõe o cheio. Esse cheio é o
próprio escultor, porque com seu cinzel, com suas mãos ele exer-
ce a pressão que cria os volumes. O vaso pode ser visto como um
substituto das mãos do oleiro, como uma soma de impressões,
como uma matriz capaz de recriar (quando se pega o vaso) a pele
do oleiro. (p. 55)
Essa referência, de que o vaso pode ser visto como um subs-
tituto das mãos do oleiro, como a soma de impressões, como uma
espécie de matriz onde se inscreve a pele do oleiro, parece bastan-
te interessante para pensar quais as marcas que a história de nos-
so país inscreve neste vínculo tão singular como o vínculo entre
aquele que atende nas situações de vulnerabilidade social e os usuá-
rios dos serviços.
78 Emília Estivalet Broide

Lacan (1959-60), no seminário A ética da psicanálise, também


se utiliza do oleiro. Apoiando-se na metáfora de Heidegger, na qual
o vaso se cria em torno do vazio ele vai aproximar o vaso ao pri-
meiro significante modelado pelas mãos do homem. Assim como o
oleiro cria o vaso em tono de um furo, o homem cria os significan-
tes modelando o real (a Coisa, Das Ding). Com palavras sobre as
coisas, vai bordeando esse real instituindo um lugar paradoxal, um
interior excluído.
Proponho, então sujar as mãos de barro para fazer o vaso e
contornar o seu furo. Tomar o furo como o ódio que funda e estru-
tura o laço social. Pensar o ódio em sua dimensão real, e não em
sua faceta imaginária, situando a responsabilidade do analista em
bordear este real do ódio. Colocá-lo a trabalhar. Desativar a infla-
ção identitária. Deslocar a certeza do sujeito para algum ponto de
indagação.

Referências

Aranha, M. C; Broide, E. E.; Guerra, A. M. C.; Moreira, I. G. Do sujeito


suposto saber às possibilidades de suposição de saber. In: Direito e psicanálise
II: o adolescente em foco. Curitiba: CRV, 2015.
Bauman, Z. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.
Cleto, M. Ensaio sobre o ódio no Brasil do século 21. Disponível em: <http://
www. Revistaforum .com. br/semanal/ensaio-sobre-o-odio-no-brasil-secu-
lo-21>. Acesso em 9 ago. 2016.
Didi-Huberman, G. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Belo
Horizonte: C/Arte, 2009.
Lacan, J. (1948). A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.
______. (1959-60). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008.

Psicanalista. Doutora em Psicologia Social pela PUCSP.


Mestre em Saúde Pública pela FSPUSP. Integrante do Laboratório
de Psicanálise e Sociedade da USP, membro da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).
Um breve ensaio acerca das
fraternidades do corpo

Sergio Eduardo Lima Prudente

Em diversas passagens de sua obra, Lacan pontua alguns diag-


nósticos de época que parecem verdadeiras profecias. Sua atenção
ao contexto histórico é fundamental para uma prática voltada para
o sofrimento, que articula estrutura e subjetividade de modo pecu-
liar. Muito além da experiência individual experimentada subjeti-
vamente, vai a verdade que o sujeito pode atingir, essa verdade de
sua história que não está toda em seu desenrolar, mas no lugar que
se marca aí, nos choques dolorosos experimentados ao se conhecer
suas repetições. Logo: “acontecimentos se engendram numa histo-
ricizacao primária, ou seja, a história já se faz no palco em que será
encenada depois escrita, no foro intimo e no foro externo” (Lacan,
1953, p. 262).
Seguindo esta via, recortamos uma observação a respeito do
racismo em que Lacan (1971-72), ao final do seminário Ou pior,
apresenta uma direção que parece se confirmar em nossos dias:
já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um
futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ain-
da não viu suas últimas consequências, e que, por sua vez, se enraí-
za no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. (p. 227)
O presente ensaio tem como objetivo discutir o que Lacan
quis dizer com “fraternidade do corpo” a partir de aspectos como
80 Sérgio Eduardo Lima Prudente

os afetos e as identificações. Estes dois pontos nos permitirá situar


o racismo com um sintoma de nossa época, fruto de uma raciona-
lidade que produz uniões narcísicas como reação a angústia, a frus-
tração e ao medo.
Ainda nos vapores de maio de 68, é importante lembrar que
Lacan formula uma teoria dos discursos já iniciada em seu décimo
sexto seminário. O ponto central dessa teoria é o aparelhamento
do gozo pela linguagem, em uma perspectiva que articula o espí-
rito da época a uma teorização estrutural do sujeito. Duas facetas
fundamentais se unem aqui, a da subjetividade e a do sujeito. Para
Sidi Askofaré (2009, p. 170), sujeito define a estrutura que sustenta
a fala, ou seja, o falasser, o efeito do significante, suporte material
da função da fala e que, por isso, enquanto houver fala, haverá sem-
pre sujeito. Já a subjetividade é “uma forma histórica e determina-
da de traços, de posições e de valores que os sujeitos de uma época
têm em comum, em suas relações com o Outro, como discurso” (p.
170). Portanto, estamos nos referindo ao efeito do significante que
sustenta a fala em um sujeito historicamente situado em nosso con-
temporâneo, com suas contingências, “traços, posições e valores”.
No alinhamento dessa “profecia” lacaniana, está a crítica feita
ao momento histórico que situa os efeitos deletérios da cópula en-
tre mercado e ciência, que podemos observar por meio do Discurso
do Capitalista (Lacan, 1972), em especial, dois pontos relativos aos
afetos: 1) a perda da vergonha que gera uma vergonha de viver. Tal
vergonha nutriria um mal-estar de um gozo superegoico da falta-
-a-gozar. Gozo de um sujeito contra si mesmo que tenta tirar algo
dessa vida vergonhosa, da qual ele se satisfaz ferozmente, sem saber
que em última instância, ele renuncia ao seu desejo. 2) a alteração
do amor, ao dizer que: “Toda ordem, todo discurso aparentado ao
capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coi-
sas do amor, meus bons amigos. Vocês veem isso, hein, não é pouca
coisa” (Lacan, 1997, p. 49). Notem que são dois afetos eminente- não consta nas
referencias
mente sociais. A vergonha é o afeto social por excelência. Ela diz
respeito aos efeitos de uma assunção de si pelo Outro, em seu olhar
e em sua voz. Já o amor, Lacan o redefine em Encore (1972-73)
como reconhecimento, como “signos pontuados enigmaticamen-
te, da maneira pela qual o ser é afetado enquanto sujeito do saber
Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo 81

inconsciente” (p.197). “Todo amor se baseia numa certa relação en-


tre dois saberes inconscientes” (idem).
Logo, esses dois afetos sociais são pontuados por Lacan como
os que sofrem uma alteração num determinado contexto que ele
define como tendo início na revolução industrial. O processo de
“degenerescência do significante-mestre” é o condutor dessas alte-
rações afetivas. Colette Soler (2010) afirma que a degenerescência
não tem um sentido moralista, como uma perda de caráter ou um
desvirtuamento. O termo é um diagnóstico de época que, segundo
Soler, evoca raça “no sentido próprio, original, degenerar é perder
as qualidades da raça” (p. 256). Raça, neste sentido, é a raça do mes-
tre, do significante mestre, do que dele se origina, se gera. Assim,
o que degenera é o elemento (S1) que é o próprio princípio de or-
denamento da cadeia significante, seu princípio de legibilidade que
nos permite apreender uma estruturação, um entendimento por
meio de uma narrativa, o ponto de capton no campo da linguagem,
pois é o S1 que permite as revoluções estruturadas por utopias, mas
também revela seu ponto de repetição.
A degenerescência é um processo que se inicia na transfor-
mação da relação S1-S2, ou do mestre com o saber (do escravo).
Lembrando que esta não é uma relação de obediência, S1 não co-
manda S2 (o saber). S1 intervém em relação ao S2, é o significan-
te pelo qual o sujeito recorre ao saber que não sabe, ao chegar ao
ponto em que o não-saber do enigma convoca um posicionamento,
uma resposta. A consequência da degenerescência é uma alteração
na função de nomeação pelo Nome-do-pai. Ou seja, há um nomear
-à (nommer-à) que já não tem relação com o Nome-do-pai: “Ao
Nome-do-pai se substitui uma função que não é outra senão aquela
de nomear-à” (Lacan, 1973-74, lição de 19/04). Aqui o “nomear-à”
poderia ser traduzido como “nomear-para”. Lembremos que Lacan
nomeou de “degenerescência catastrófica” como a resultante da for-
clusão do Nome-do-pai em benefício do nomear-para.
A passagem de nomeação pode ficar a cargo da mãe, pois ela é
suficiente para designar o caminho para essa nomeação. A exclusão
do pai que faz da mãe o objeto de desejo torna o outro da relação,
um objeto qualquer, substituível pois não deixa marcas. Se o desejo
é desejo do Outro, o desejo da mãe pode ser suficiente para se fazer
82 Sérgio Eduardo Lima Prudente

valer como desejo do Outro. Portanto, o nomear-à, ao substituir a


função do Nome-do-pai, revela um desejo do Outro não barrado
imposto ao sujeito.
Essa substituição, na degenerescência, provoca consequências
no narcisismo. Se na relação a (outro) ---- a’ (eu) o Sujeito (S) se
remete ao Outro (A barrado) como origem do enigma do desejo,
do objeto desejável e do amor, do sujeito visto pelo Outro. Agora,
temos uma relação em que esse Outro não mais barrado, ocupa o
lugar de confirmação narcísica, com uma mediação problemática
de uma castração que enfraquece o nome-do-pai. Como conse-
quência, temos a necessidade constante de confirmação da imagem
especular na relação a---- a’ para sustentar o encanto de uma ima-
gem cujo enfraquecimento cobra constantemente a confirmação
dela pelo Outro.
As alterações afetivas que culminam na vergonha de viver e
na rejeição “das coisas do amor” se alinham com a tenebrosa ob-
servação de Lacan sobre as fraternidades do corpo e o racismo. Ao
responder sobre o racismo, Lacan assinala que “a precariedade de
nosso modo, que agora só se situa a partir do mais-de-gozar e já
nem sequer se enuncia de outra maneira, como esperar que se leve
adiante a humanitarice de encomenda de que se revestiam nossas
exações? (Lacan, 1973, p. 533).
O “nosso modo” demarca um tempo histórico que nos su-
gere pensar a questão dos afetos e as consequências em termos de
racismo, situando-os a partir da revolução industrial. Época que
também inaugura os movimentos modernos de migração (não
de escravidão). Ou seja, é um racismo pensado no espírito técni-
co/científico do capitalismo. E no bojo dessa observação estão
dois pontos: 1. A instabilidade identitária; 2. A universalização do
sujeito.
Desde a revolução industrial, o processo de passagem da fa-
bricação do artesanato à produção da manufatura engendrou uma
erosão nas tradições familiares. Há nisto, um processo de esvazia-
mento da tradição, anteriormente realizada pela transmissão ge-
racional. Essa é uma das consequências do que Marx denominou
como alienação ao capital, em que este, como equivalente geral,
assume o lugar de referência da atividade tradicional, reservada
83

anteriormente à família. Isto nos conduz a algumas observações re-


lativas à vergonha e a honra.
A instabilidade identitária se reagrupa a partir de objetos
e saberes que homogeneízam o gozo pelo mercado e pela ciência.
O gozo do Outro, agora, é invariável e se repete como idêntico a
si. É esta universalização do sujeito que coaduna com o que Lacan
(1970, p. 436) chamou de “ideologia de supressão do sujeito” pela
ciência. Esse processo só é possível, pois o sujeito que estamos tra-
tando aqui é o do cogito, do discurso da ciência que aborda o ser
desde onde ele afirma: eu penso, eu sou. A homogeneização do
gozo e a universalização do sujeito anulam e apagam singularidades
a partir de um princípio de “unaridade”
Logo, o gozo do Outro, como diferença é encoberto pela
produção de saberes que produzem identidades, classes, níveis
de desenvolvimento, grupos, raças, etc. relativizando por meio de
comparações, um Outro que goza, que localiza o ponto de vergo-
nha do marcado como desqualificado, e situando lugares e posi-
ções discursivas. Esta é a “humanitarice de encomenda” que Lacan
(1973, p. 533) assinala.
A resposta a instabilidade identificatória é a promoção de se-
gregações severas. Na proposição de 9 de outubro, Lacan (1967)
observa que a consequência do remanejamento dos grupos sociais
pela ciência, e da universalização que se produz disto, se encaminha
na seguinte direção: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará
seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de
segregação” (p. 263).
A segregação diz respeito justamente ao racismo, e aqui po-
demos incluir no mesmo espectro o sexismo, o machismo, desde
onde compreendemos a sexuação como um aspecto que, quando
observado pelo caráter biológico e da diferença anatômica dos se-
xos, atende a uma lógica de complementaridade. Lógica que é in-
coerente com a relação do inconsciente com o gozo. Logo, homem
e mulher seriam duas raças não biológicas.
Assim, não é de se espantar as novas emergências de discur-
sos segregacionistas, muitos deles, apoiados em ideias de tradição
que se apresentam a partir de leituras de um passado que chega
a nosso tempo de modo segmentado e sujeitas as mais variadas
84 Sérgio Eduardo Lima Prudente

interpretações. Nisto consiste uma questão de poder muito forte,


pois tais discursos tradicionalistas postulam modos de se lidar com
a relação sexual estabelecendo prescrições sobre os modos de gozar.
Modo semelhante ao que o mercado da ciência propõe.
Deste modo, o sujeito fica constantemente sob uma disciplina
do gozo que o extravia do seu ponto mais íntimo e estranho. Fora
da regulação dos discursos da tradição e da ciência, seu gozo é vivi-
do como horror da divisão do sujeito.
Deste modo, O que liga este sujeito dividido a um outro, na
medida em que, na apreensão do corpo, ele fica sob a ameaça de
censura, de desprezo, por não ser suficientemente sexuado?

A fraternidade

Para Lacan, somos todos filhos do discurso. É em torno do pai


discurso que a unaridade se dá e onde se baseia o que há de univer-
sal. O “uniano” une e nega. Ele marca um que diz não, que é rejeição
de um princípio de identidade (fazer diferença é diferente de negar),
é o que podemos ver no mito do Pai, ele tem uma função de uniar.
Portanto, o princípio da verdade do pai discurso é a diferen-
ça. Esta diferença é desde onde se marca uma coordenada de gozo
como sendo aquilo em razão do qual o Outro é o Outro, um Outro
interior ao próprio sujeito, intimo exterior, estranho, êxtimo.
O Outro não é nada mais que essa duplicidade. Há Um, mas
não há nada do Outro. O Um dialoga só, pois recebe sua própria
mensagem de forma invertida. Esse mesmo Um se enuncia no uni-
versal, mas para nega-lo — para dizer que não há todos. Esses to-
dos não têm nenhum traço comum. Têm a retenção deste que é o
único traço comum, o traço chamado unário. O traço se reafirma
pelo Um. Lacan assinala que “Há Um. Há Um e nada do outro. Isso
quer dizer que há de todos os modos, esse sentimento que chamei
de unaridades, o suporte disto que é preciso que se reconheça, o
ódio, tanto que este ódio é parente do amor” (Lacan, 1977, p. 77).
Este “há Um” não é simples, ele designa também os uns
que fixam o gozo, as letras do sinthome, que o “Um diz” que tem
Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo 85

a ver com a solidão, com nada do outro, o sentimento, mais pre-


cisamente. O ódio visa a unaridade complexa do outro, ou o que
ele pode ter dessa unaridade. Ha ainda uma relação de afeto entre
unaridades, uma relação que coloca a existência do outro, e no ódio
ela é de execração, essa relação, que no amor, tal como redefinido
em Encore, é de reconhecimento, no que podemos entender, com
Badiou (2013), como um reconhecimento de diferenças radicais.
a experiência de uma possível passagem da pura singularidade
do acaso para um elemento que possui um valor universal. Tendo
como ponto de partida algo que, reduzido a si mesmo, é um encon-
tro apenas, quase nada, aprendemos que é possível experimentar o
mundo a partir da diferença, e não só da identidade. (...) ele nos
conduz ao campo de uma experiência fundamental daquilo que é a
diferença. (Badiou e Truong, 2013, p. 17)
Ao retomar o traço unário, a partir da leitura de “Psicologia
das massas e análise do ego” Lacan (1961-62) aponta que ele tem
muito mais a função de marca uma diferença, uma distinção do que
não é. É a própria marca de divisão do sujeito pela linguagem que
se acentua não como signo, mas como suporte da diferença. Esse
caráter estrutural do traço unário é o que Lacan afirmou ser “algu-
ma coisa inserida radicalmente nesta individualidade vital com esta
função significante, (...) Vorstellungs-repräsentanz: é isto que é recal-
cado, é o número perdido do comportamento tal” (p. 80).
Assim, temos dois Uns: o Um da repetição em função de uma
estrutura significante (que unifica o ideal); e o Um do gozo no falar,
a produção de S1, traço que retoma a diferença e esgota a experiên-
cia de identidade. É sobre o traço unário que se dará a função de
nomeação. É na marca singular do traço que o nome próprio pode
se estabelecer como traço distintivo. O nome, em sua natureza ra-
dical, é da ordem da letra. Em seu assujeitamento à linguagem, o
sujeito é convidado a falar tendo como suporte de distinção e no-
meação o traço e a letra. No entanto, esses elementos mantém o
objeto sempre além das possibilidades de satisfação do desejo, fal-
tando. É nisso que consiste a retomada repetitiva do gozo.
Se elencarmos categorias fenotípicas, observaremos como
elas passam a categorias morais na medida em que o significante
86 Sérgio Eduardo Lima Prudente

que as referendam no mundo, precipitam as narrativas ontológicas


que engendram lugares, posições e funções na cultura. O negro, o
imigrante, o homossexual, o nordestino, o “menor de idade”, al-
vos recorrentes de abusos e atos de violência. Tais categorias, ape-
sar de não serem novas, se atualizam como alvos em nossa cultura,
servindo de objeto unificande e fascinante para paixões violentas.
Se esse constante conflito identitário coloca o indivíduo em cons-
tante encontro com uma divisão, podemos supor também, deter-
minações identitárias que situam o sujeito e localizem o conflito,
direcionando-o, preferencialmente, para um outro dotado de carac-
terísticas eleitas estrategicamente nas dinâmicas de poder.
Em “Tempo lógico e a asserção de uma certeza antecipada”
(1945) vemos que antes do ato há uma hesitação, um recuo em um
tempo de medo e angústia pela incerteza. No espectro dessa hesita-
ção, medo e expectativa formam um par que sustenta projeções de
futuras consequências de um ato que ainda não se deu. Esta é uma
tentativa de proteção diante do pavor do incerto, uma tentativa que
resguardar sentidos que sustentam uma identidade. O ato além da
hesitação não garante o encadeamento estrutural e ideológico dos
sentidos prescritos pelo significante mestre. Via pela qual, para La
Boétie (1999), garantiria uma proteção por meio de uma servidão
voluntária. Tal aspecto revela o buraco sobre o qual a ideologia se
assenta.
O Um do ato no déficit identitário é o Um da desobediência,
do arriscar-se como diferença em um contexto que garante a estabi-
lidade narcísica.
O Um da fraternidade passa pela aprendizagem de uma cora-
gem que incorpora a submissão voluntária e a cumplicidade com as
práticas de exercício do poder. É o que na cultura, encontramos sob
a forma de assertivas como: homem não chora, mulher é sexo frágil,
etc. É a coragem da obediência que, na verdade, se revela covardia.
O buraco que expõe a própria sutura é o ponto mais radical
das identificações e da experiência social. Assim, Se a realidade é
concebida pelo idêntico a si, o não-idêntico da unaridade seria o
elemento que fura a política retornando por meio de vestígios do
resto. Por isso, o resto se torna ameaçador e eliminável, pois estre-
mece a realidade da fraternidade dos idênticos.
Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo 87

No conceito de político elaborado por Schmitt (1992), obser-


vamos uma relação entre amigo/inimigo dada pelo combate. Apesar
de levar em conta a instabilidade, a disputa e o conflito como aspec-
tos do político, Schmitt considera o assassinato um meio de resolu-
ção de conflito. A consequência dessa perspectiva é a consideração
eliminação do outro como solução para o conflito político, o que
nos leva a uma ideia de homogeneização e estabilidade mediante a
eliminação do suposto problema localizado no outro. É o próprio
fim da política. Um dos problemas do modelo schmittiano é que a
busca de homogeneidade identifica o inimigo não como um adver-
sário irredutível à condição inerente da disputa política, mas como
um resto que pode ser apagado. Ponto decisivo em nossa perspecti-
va pois, consideramos que este resto não é apenas algo que sobra de
uma operação, mas é o próprio móbil do gozo que se repete.
Em outras palavras, a tentativa de homogeneização política é,
sobretudo, eficaz por falhar sempre, por produzir, localizar e ope-
racionalizar meios de sua eliminação do “inimigo”. É diante disso
que Laclau (2005) pôde afirmar: “A lógica do objeto a e a lógica he-
gemônica não são apenas semelhantes: são simplesmente idênticas”
(p. 143).
O dejeto retorna como objeto, é no furo da política e da reali-
dade que falta o objeto expõe a pura diferença do traço identifica-
tório unário. Ou seja, a consistência das representações do sujeito
está fundada em um furo. Por isso, Lacan afirma que a metafísica
se ocupa de tentar tapar o furo da política. Mas, Lacan (1971-72)
também nos lembra que “a ontologia não é, simplesmente, senão a
careta do Um, é porque, evidentemente, tudo o que se faz sob um
comando é dependente do Um” (p. 205).
Para Lacan (1971-72) o Um sutura o significante ao objeto de
gozo unindo demanda e desejo. O que fornece uma ilusão de uni-
cidade, uma dimensão simbólica da antecipação, que no estádio do
espelho conduz a uma espécie de assunção jubilatória de sua ima-
gem especular. Ponto onde a sutura encontra sua função de man-
ter e ordenar a ficção, ou seja, a ordem fantasmática que estrutura
a realidade. Júbilo próprio da experiência auto-erótica em que o eu
passa por um “escoadouro da mais íntima agressividade” (Lacan
1960-66, p. 823). Logo, consideramos que há uma experiência
88 Sérgio Eduardo Lima Prudente

auto-erótica e afetiva na apreensão identitária, que afirma as vias de


determinações de identidade.
Segundo Wine (1988, p. 88), a identidade dá um basta no flu-
xo contínuo da pura diferença. É o point de capton produzidos pelo
que Laclau chamou de significantes flutuantes, ou seja, significan-
tes que inscrevem nossas demandas. Isto permite uma operação em
que a metáfora substitui a diferença pela identidade, mediante uma
experiência afetiva que se mantém nas sucessivas substituições na
cadeia significante: S1-S2-S3...Sn.
Entretanto, se o ficticius que estrutura a realidade elege um
Um exterior, pode ocorrer uma coagulação do significante no ob-
jeto. É uma forma estruturada no discurso do mestre, mas que, ao
colocar o Um fora, opera uma verwerfung da castração produzin-
do um apagamento da diferença interna que opera no laço com o
outro. É o que sustenta as fraternidades do corpo, compromete as
coisas do amor, arregimenta o ódio, encobre a ignorância, institui a
impudência e dissemina o medo.
Projetando a negatividade interna do desejo no outro, não só
se reedita e direciona a agressividade da rivalidade, como repete-se
e atua-se a mítica onipotência tirânica que, no complexo de Édipo,
faz com que o sujeito metaforize e desloque o objeto mítico perdido.
Contexto em que o ódio e a ignorância parecem estar
intrinsecamente conjugados de acordo com as estratégias de ad-
ministração política do gozo. O que Lacan (1953-54) já apontava
como o fundamento do moralismo ocidental
os sujeitos não têm, nos nossos dias, de assumir o vivido do ódio
no que pode ter de mais abrasador. E por quê? Porque já somos
muito suficientemente uma civilização do ódio. O caminho da cor-
rida para a destruição não está verdadeiramente bem traçado entre
nós? O ódio se reveste no nosso discurso comum de muitos pre-
textos, encontra racionalizações extraordinariamente fáceis. Talvez
seja esse estado de floculação difusa do ódio que satura em nós o
apelo à destruição do ser, como se a objetivação do ser humano na
nossa civilização correspondesse exatamente ao que, na estrutura
do ego, é o pólo do ódio. (p. 316)
O ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adver-
sário. Ele continua. Vieira (2001) observa que o ódio é uma
Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo 89

imaginarização do real que, necessariamente, diz respeito à relação


entre eu e outro, na medida em que o real no imaginário é sempre
encarnado por um outro que não eu.
Em sua relação com a agressividade, o que se vela com O ódio
é o lugar do Outro da Lei. Diante disto, se há uma degenerescência
do significante mestre, este seria um processo privilegiado para a
produção de Uns convenientes com uma estrutura que não remete
mais à Lei, mas às leis propostas pelos saberes nos campos políti-
cos e morais. Contexto em que o Outro como lugar da Lei, agora,
seria proposto como mais um outro, velando a possibilidade amo-
rosa da fusão e acirrando a agressividade imaginária. O ódio, dessa
forma, é o apagamento do Ser do outro, mas não sem a fascinação
imaginária movida por um sofrimento angustiado e cheio de medo
em relação ao gozo desconhecido desse outro.
Na administração das paixões o que está em jogo é a oferta
e o manejo das possibilidades de sobrevivência à ameaça de fusão,
do fazer Um. Com isso se imaginariza as ameaças de acordo com
nacionalidade, sexualidade, cor da pele, forma física, ideologia po-
lítica, etc. É o que Zizek (1998) denomina de fantasia ideológica, ou
seja, um processo de administração dos antagonismos no campo
social que, ao localizar a causa do Mal-estar no outro, constrói ima-
ginariamente um objeto alvo do ódio.

Referências

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90 Sérgio Eduardo Lima Prudente

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Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
Žižek, S. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Escuta psicanalítica e alteridade:
imigração e intersecções de
gênero, raça e sexualidadre

Ilana Mountian

Introdução

Este capítulo1 é uma adaptação da apresentação realizada


no V Colóquio Internacional Escrita e Psicanálise e III Colóquio
Psicanálise e Sociedade: Clínica Cultura e Política – Psicanálise e
Política: as escritas do ódio na Universidade de São Paulo em 2016.
A partir da proposta do colóquio, reflito sobre como a psicanálise
e a psicologia podem se posicionar frente ao tema do ódio e que
análises podem oferecer, considerando os vários aspectos dos con-
textos sociais e os efeitos subjetivos. Para isso, apresento alguns as-
pectos sobre a posição discursiva do sujeito como Outro e como a
psicanálise pode oferecer elementos para a escuta do sujeito e seu
desejo. Destaco a importância da contínua reflexividade da/o psi-
canalista, considerando a sua própria posição na relação com o
Outro.
A psicanálise pode contribuir tanto para análises sobre as
relações sociais, quanto para o entendimento do sujeito nessas

1. Agradeço à Elena Calvo Gonzalez, Marcus Teshainer e Aline Travaglia


pelas importantes contribuições nesse texto.
92 Ilana Mountian

relações. Nessa breve apresentação aponto questionamentos para


a prática clínica, focando na importância em se considerar as rela-
ções sociais para a escuta do sujeito.
Para uma aproximação sobre as possíveis perspectivas de en-
gajamento crítico com o tema, considero importante primeiro cir-
cunscrever as relações sociais, e, no caso do simpósio que deu lugar
a este capítulo, pensar como o ódio aparece nessas relações. Para
isso, considero fundamental pensar como essas relações sociais
aparecem historicamente, assim como a reatualização discursiva de
muitas das relações desiguais de poder nas quais o ódio está funda-
mentado. O segundo aspecto que levanto é a necessidade de uma
leitura crítica sobre essas dinâmicas, que requer um posicionamen-
to da própria visão que é utilizada. Isso nos leva ao terceiro aspecto
central nessa apresentação, que é sobre as intervenções psicanalíti-
cas e suas contribuições nesse debate.
Em trabalhos anteriores (Mountian, 2015) debati como a
psicanálise, assim como a psicologia, pode ser utilizada de uma
maneira que contribui a manter essas relações de poder intactas,
fixando-se em medidas meramente adaptativas ou simplesmente
ignorando as relações de poder nas quais o sujeito está imerso. Ao
mesmo tempo, a psicanálise, na sua praxis e teoria, pode também
oferecer um espaço de contestação e subversão dessas relações, em
que a relação sujeito-sociedade é considerada, permitindo uma es-
cuta em que o político não se encontra fora das relações. Gostaria
de atentar aqui à dimensão do político, que muitas vezes não é re-
conhecida nesse campo, e que ao meu ver é fundamental para o
modo como a psicanálise se engaja com as relações de poder. Aqui
temos duas tarefas: primeiro a incorporação do político na psicaná-
lise, e segundo entender a posição da psicanálise e da/o analista no
campo da política e das relações com o Outro.
Para desenvolver as questões postas à psicanálise, pensando
na prática clínica, darei alguns exemplos sobre ódios e exclusões
nas relações cotidianas que muitas vezes são naturalizadas e invisi-
bilizadas. Apresento alguns exemplos de como o sexismo, racismo
e xenofobia se atualizam cotidianamente com base em exemplos
do trabalho e pesquisa realizados com imigrantes em São Paulo,
Escuta psicanalítica e alteridade 93

situando-os a partir de contribuições e desafios colocados pelas


teorias feministas e pós-coloniais e decoloniais.

O Outro:
intersecções de gênero, sexualidade, raça e classe

Nas supervisões clínicas que participei como supervisora para


o trabalho de uma intervenção da psicanálise numa moradia para
imigrantes, assim como em outros trabalhos e pesquisas (Mountian
e Rosa, 2015; Mountian, 2017) onde foquei nos discursos sobre os
imigrantes, principalmente na área da saúde, pude notar como al-
gumas ideias específicas sobre imigrantes são reiteradas por pro-
fissionais da saúde e pelo discurso popular. Ainda que não possa
aqui desenvolver essa análise de discurso com amplitude, gostaria
de ressaltar alguns exemplos destas pesquisas que mostram como
esse “Outro” é conceituado discursivamente. Esse posicionamento
do sujeito será a base para podermos refletir sobre possíveis aproxi-
mações da psicanálise frente ao campo discursivo atual.
O primeiro exemplo que gostaria de trazer é uma reflexão so-
bre o próprio conceito de quem é considerado “imigrante” no Brasil
contemporâneo. Uma resposta frequente a essa pergunta é: “imi-
grante é o boliviano, haitiano, congolês”. Podemos notar que euro-
peus e norte-americanos são raramente falados como “imigrantes”,
o que já nos revela um imaginário específico sobre o imigrante. Se
desconstruirmos um pouco mais esse discurso é possível notar que
quem é entendido como “imigrante” seria indivíduos pertencentes
a povos com traços indígenas e negros. Aqui vemos a reprodução
de um racismo específico que indígenas e negros sofrem no Brasil.
Permeando essas construções racistas e xenofóbicas, a relação de
classe social se faz presente, e os efeitos dessas construções têm im-
pacto direto nas possibilidades de inserção social e no imaginário
sobre o sujeito.
Seguindo esse exercício, poderíamos nos perguntar se este pa-
drão se repete quando o assunto é gênero. Nesse ponto é notável
como gênero e sexualidade são muitas vezes ignorados, havendo
94 Ilana Mountian

uma invisibilização e naturalização dessas categorias sociais. Sendo


assim, podemos perguntar qual é a posição da mulher na imigra-
ção e como relações sexistas impactam no processo de imigração
e assentamento. É relevante apontar que, para algumas mulheres
que sofreram violência doméstica, a imigração era vista como uma
opção de escape a essa violência (assim como as complicações ju-
rídicas que elas têm nos processos de refúgio quando sofrem vio-
lência doméstica, c.f. Burman, 2010). Em relação à sexualidade é
importante ressaltar que muitas vezes a imigração é vista também
como uma possibilidade de sobrevivência ou ascensão social para
os sujeitos que sofrem diversos tipos de violência LGBTQIfóbicas
(Mountian, 2016). Levando em conta gênero, questionamos então
qual o imaginário sobre mulheres e pessoas LGBTQIs imigrantes.
Outros exemplos sobre como as relações de poder se apre-
sentam discursivamente nas concepções sobre imigração podem
ser vistos tanto nas ideias de que “o boliviano traz tuberculose ao
Brasil”, ao invés do entendimento de que o boliviano contrai tuber-
culose no seu local de trabalho no Brasil, quanto nas ideias de que
“as mulheres imigrantes são mais submissas”, “o machismo deles é
muito forte, é cultural, não tem nada a fazer”. Uma frase do tipo “o
machismo deles é muito forte”, nos leva a pensar em como a palavra
“cultural” é utilizada, assim como à necessidade de questionar tam-
bém como as relações de gênero e sexismo atravessam as relações
cotidianas no Brasil.
Nestes exemplos há diversos aspectos para serem analisados,
porém, na direção do objetivo deste capítulo, destaco o contínuo
posicionamento do imigrante como o “Outro” no discurso, diferen-
te de “Nós”: é colocado no discurso como vítima ou ameaça, como
exótico, como estranho (Mountian e Rosa, 2015). Esse imaginário
social pode ter impacto nas políticas públicas e no próprio trabalho
na área da saúde, psicologia e psicanálise, precisando uma reflexão
explícita sobre essa construção de alteridade sob o risco de reiterar
as relações desiguais sociais no tratamento do imigrante.
É notável como nessa construção da/o imigrante enquanto o
“Outro”, este aparece como um grupo homogêneo no discurso, en-
quanto “Nós” podemos ser heterogêneos, ambíguos, contraditórios.
Essa dinâmica reifica o sujeito enquanto o Outro no discurso. Com
Escuta psicanalítica e alteridade 95

isso não quero dizer que as relações de poder não estejam presentes
na construção histórica dessas posições discursivas. Como Butler
(2006) aponta em seu debate sobre política identitária, há opressões
históricas, social e culturalmente localizadas que os grupos sofrem.
Um exemplo disso seriam as diversas formas de opressão de mu-
lheres em sociedades patriarcais. No entanto, as posições identitá-
rias do sujeito não são homogêneas. Colocando como tarefa “no
interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de
identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram,
naturalizam e imobilizam” (Butler, 2006, p. 22).
A teoria psicanalítica pode contribuir a interrogar essa cons-
trução de alteridade através da (re)atuação cotidiana de relações de
poder, atravessadas por categorias como gênero, raça, classe e se-
xualidade. Como Ahmed (2000) aponta, para evitar o “fetichismo
do estranho” é necessário interrogar as relações sociais que estão na
fundação de tais encontros, “relações sociais que são ocultadas por
esse exato fetichismo” (p. 6). Por outro lado, a psicanálise é central
para dar conta da importância da dimensão do desejo (Freud 1900;
Lacan 1962) para o sujeito, visando a desconstrução de posições fi-
xas discursivas, nesse sentido, o questionamento sobre qual o dese-
jo do Outro, torna-se fundamental.
Em relação à escuta psicanalítica, destaco aqui a importância
em se considerar as especificidades do encontro com o imigrante,
os efeitos subjetivos do próprio processo de imigração e a necessi-
dade em rever o nosso entendimento do sujeito enquanto o Outro,
o que não quer dizer anular as diferenças. Neste ponto, retomo os
desafios deixados à psicanálise, mais precisamente sobre como é
possível escutar o Outro.

O Outro e a psicanálise:
política e posicionamento

Para se pensar a escuta psicanalítica, é fundamental primeira-


mente situarmos o debate proposto, e considerarmos como as cate-
gorias sociais (no exemplo acima vimos as relações interseccionais
96 Ilana Mountian

de gênero, sexualidade, raça e classe) aparecem no cotidiano e na


história. Nesse sentido, é de extrema importância o entendimento de
como essas categorias foram tratadas no campo da saúde, da medici-
na e da psicologia ao longo da história (Saavedra e Nogueira, 2006).
Aqui podemos notar como em diversos momentos essas ca-
tegorias não foram consideradas na medicina: o homem era tido
como referência universal, ignorando as especificidades daqueles
sujeitos que não faziam parte dessa concepção universal. Até hoje
podemos apontar efeitos desse modo de conceber os sujeitos no
desenvolvimento de diversas políticas públicas. Ao mesmo tempo,
é importante observar como, quando grupos populacionais espe-
cíficos, como mulheres, LGBTQIs, imigrantes, negros, apareceram
na medicina, o faziam muitas vezes como inferiores, desviantes ou
mais próximos à loucura (Saavedra e Nogueira, 2006; Teo, 2008;
Rohden, 2003; Littlewood e Liepsedge, 1989). Vemos, portanto
como essas categorias não são neutras no discurso, estando fre-
quentemente invisibilizadas ou patologizadas. Do mesmo modo,
é fundamental questionarmos como essas categorias aparecem e
quando somem nos diversos campos da ciência (Haraway, 1989).
Assim, para o posicionamento da psicologia e psicanálise,
apenas falar em inclusão de gênero e raça não nos revela necessa-
riamente a situacionalidade da análise feita. Para isso, é importante
explicitar como a análise sobre essas categorias será realizada. As
teorias feministas e antirracistas oferecem contribuições fundamen-
tais nesse debate, frisando a importância em se considerar as rela-
ções de poder das construções sociais do entendimento de gênero,
sexualidade, raça, etnia e classe, assim como essas categorias foram
produzidas pelo conhecimento científico, sendo fundamental por-
tanto situar a posição tanto da teoria quanto da/o pesquisador/a
(Haraway, 1988; Harding, 1986).
Com esse desafio posto, ou seja, do desenvolvimento de
análises críticas para a desconstrução de discursos fixos para a
emergência do sujeito, sugiro retomarmos o slogan feminista o
pessoal é político para refletirmos sobre as possíveis contribuições
da psicanálise. Ao desestabilizar a tradicional divisão pessoal x
político, doméstico (feminino) x público (masculino). O pessoal
é político amplia tanto o que é considerado da esfera do pessoal,
Escuta psicanalítica e alteridade 97

incorporando a intrínseca relação do sujeito com a sociedade, ou


seja, a compreensão da construção social das categorias (Butler,
2008; Foucault, 2009), quanto o que é considerado político, extra-
polando a política institucional para o campo das relações cotidia-
nas (Federic, 1975; Mouffe, 1998; Benhabib e Cornell, 1987). Nesse
sentido, é relevante notar, como afirma Yuval-Davis (1997, p. 2)
que, apesar das mulheres “reproduzirem as nações biologicamente,
culturalmente e simbolicamente”, paradoxalmente não são incluídas
no campo político, ainda que sejam representantes da ordem social
e da moral nacional nos papeis atribuídos de cuidadoras da família.
McClintock (1995) nos lembra da tradicional divisão das ci-
ências humanas em que o marxismo responderia ao político, às
relações sociais, enquanto que a psicanálise trataria do campo pri-
vado, da subjetividade (vemos aqui uma feminização da psicaná-
lise). Analisando o fetichismo, McClintock (1995) indica como a
noção de fetichismo (no seu sentido, por exemplo, de fetichismo
da mercadoria) é endereçada ao espaço público, por exemplo ao
campo da economia, enquanto o fetichismo na psicanálise é cen-
trado no espaço doméstico. O fetichismo estaria, para McClintock,
numa encruzilhada (crossroad), onde espaço público e privado se
encontram.
Essa divisão entre política e psicanálise pode ser vista também
em relação a outros aspectos. Retomando o exemplo das pesquisas
sobre imigração, quando a experiência migratória não é levada em
consideração, há o risco da rápida patologização. Isso levaria a to-
mar o sintoma como algo intrínseco ao sujeito e não enquanto re-
lacionado ao processo de imigração. Separar o pessoal do político,
o doméstico do público, o individual do coletivo implica em certos
riscos à prática psicanalítica. Por um lado, a psicanálise pode não
fornecer uma escuta que considere esses aspectos sociais. Por outro,
e para além do campo psicanalítico, a restrição da política entendi-
da apenas como institucional, obvia as relações sociais e subjetivas,
que passam a ser desconsideradas.
O desafio que enfrentamos é o de considerar também as re-
lações sociais na construção da subjetividade, incorporando, por-
tanto, o entendimento de que essas relações também são políticas.
Nesse sentido, o posicionamento nessas relações da/do psicanalista,
98 Ilana Mountian

assim como do/a pesquisador/a, também deve ser visto na própria


intervenção psicanalítica. Para tanto, ressalto a importância da con-
tínua reflexividade da nossa escuta sobre essas relações para poder-
mos circunscrever as possibilidades em escutar o Outro.

Sobre a escuta:
posicionamentos da psicanálise

Spivak (2010) em Pode o subalterno falar?, nos alerta dos en-


clausuramentos epistemológicos da escuta sobre o Outro. Nessa li-
nha, podemos pensar não somente o questionamento fundamental
sobre a possibilidade de fala da subalterna, mas também a possi-
bilidade de escuta: podemos ouvir o subalterno? Com base nestes
questionamentos podemos refletir sobre a prática psicanalítica,
interrogando a perspectiva do analista, que é situada, e ainda, do
próprio entendimento de cultura e saúde mental, que são também
noções localizadas historicamente e socialmente. Para isso, ressalto
dois aspectos: a reflexão sobre a posição da/o analista e as possibili-
dades de escuta psicanalítica.
Autoras/es feministas e pós-coloniais têm debatido sobre as
possibilidades de escuta do Outro, apontando o risco da reprodu-
ção de posições fixas discursivas sobre o Outro, em particular o
risco de sua inferiorização e patologização. Este debate é visto tam-
bém na psicanálise, por exemplo, psicanalistas feministas apontam
como as relações sexistas das sociedades patriarcais operam na
construção da subjetividade (Rose, 1994; Frosh, 1995), estudos pós-
coloniais e decoloniais apontam os efeitos das relações coloniais na
subjetividade (Fanon, 2008; Seshadri-Crooks, 2000) e algumas au-
toras indicam a importância de análises que possibilitem a emanci-
pação dos sujeitos (c.f. em Parker, 2011).
Nessa direção retorno ao questionamento sobre como escu-
tar o Outro, apresentando um convite ao debate sobre quais escutas
são possíveis e suas possibilidades emancipatórias. A escuta psica-
nalítica é direcionada ao sujeito e seu desejo (Freud, Lacan) e aqui
desafios são colocados frente à escuta de sujeitos continuamente
Escuta psicanalítica e alteridade 99

colocados na posição do Outro. Rosa (2002) nos lembra da impor-


tância da oferta de uma escuta que suponha “romper barreiras e
resgatar a experiência compartilhada com o outro, deve ser uma
escuta como testemunho e resgate da memória” (p. 47), e, seguin-
do nessa direção, uma escuta do sujeito e seu desejo. Esse posicio-
namento de escuta requer uma reflexividade constante, tanto para
considerar as relações de poder em que o sujeito se encontra sem
reduzi-lo a essas, quanto para o olhar sobre os desejos e resistências
da/o própria/o analista (Rosa 2002; Rosa e Mountian 2008).
Refletindo sobre a posição da/o analista, trago algumas re-
flexões de Oakley (1981) sobre metodologia em pesquisa a partir
do seu estudo de campo com mulheres sobre maternidade. Oakley
apresenta resultados de pesquisas realizadas com mulheres numa
sociedade patriarcal, onde muitas vezes elas são vistas como infan-
tilizadas, imaturas e desamparadas — esta experiência é também
vista em outros grupos minoritarizados — assim como questiona-
mentos sobre a própria noção de objetividade científica como for-
mas masculinistas de pesquisa, trazendo a pergunta de como a/o
pesquisador/a pode escutar o Outro. Questiona também a posição
de poder do pesquisador em campo, incluindo dentro da análi-
se dessas relações de poder em contextos de pesquisa o gênero do
pesquisador e da entrevistada, onde “entrevistadores definem o
papel dos entrevistados como subordinados” (p. 40), e a extração
da informação é tida como objetivo principal, desconsiderando em
momentos o próprio sujeito entrevistado. Nessa direção, a autora
interroga como é a pesquisa quando mulheres fazem entrevistas,
e ainda, quando feministas são as pesquisadoras. No entanto, nos
alerta Oakley (2015), a resposta a esses posicionamentos nas rela-
ções não é única, sendo que a análise sobre essas relações de po-
der deve ser feitas levando em conta a complexidade das relações
entre pesquisador/a e pesquisada/o em relação à diversidade das
intersecções de categorias sociais tais como gênero, sexualidade,
raça, classe, religião, política, idade e outros. Levando as reflexões
de Oakley para o campo da escuta psicanalítica, podemos, a partir
de seus questionamentos, refletir sobre a posição da/o analista e sua
situacionalidade. Vale notar que essas preocupações foram levanta-
das no decorrer da história da psicanálise (cf. Freud, 1920).
100 Ilana Mountian

Incorporar esse tipo de reflexões à psicanálise pode contri-


buir a torná-la um espaço emancipatório através da escuta, e cru-
cialmente, de uma escuta possível de ser feita em que as relações de
poder são consideradas, não havendo uma simples reprodução de
posições subjugadas ou dominantes.

Considerações finais

Este capítulo teve o objetivo trazer subsídios para pensarmos


a escuta psicanalítica enquanto possibilidade de escuta sobre o
Outro. Para tanto, parto dos estudos feministas e pós-coloniais que
trazem importantes críticas para reflexões sobre a prática psicana-
lítica. Nas teorias críticas feministas e pós-coloniais e decoloniais é
enfatizada a preocupação sobre intervenções que não consideram
as relações de poder em que o sujeito se encontra sendo, portanto
fundamental, análises que considerem os contextos sociais e as ca-
tegorias sociais em intersecção, como de gênero, sexualidade, raça e
classe.
Assim, torna-se fundamental o debate sobre política na psi-
canálise e a política da psicanálise, sendo necessária uma contínua
reflexividade sobre sua práxis e teoria, considerando as categorias
sociais em intersecção em seu contexto social para a escuta do
sujeito.
Este desafio foi colocado à psicanálise em diversos momentos,
desde a sua concepção: como a escuta psicanalítica pode contribuir
para a escuta dos sujeitos vistos como Outro em discurso? Aponto
dois aspectos fundamentais para pensar esse desafio: primeiro, da
reflexão contínua sobre a própria posição de analista, incluindo sua
posicionalidade (sua posição social), situacionalidade (a forma de
análise) e desejos e resistências e, segundo, da escuta que considera
as relações de poder e o contexto social do sujeito, sem reduzi-lo a
uma posição identitária fixa, permitindo que o sujeito se posicione
frente à sua história e seu desejo.
A psicanálise tem diversos desenvolvimentos teóricos para essa
escuta. Dentre estas destaco a importância da noção de verdade,
Escuta psicanalítica e alteridade 101

enfatizando a verdade do sujeito, e o entendimento psicanalítico


sobre desejo do sujeito, elaborados inicialmente por Freud. No en-
tanto, a prática clínica coloca desafios para a abertura a essa escuta,
em que a posição da/o analista deve ser continuamente examinada.
Temas como a posição de analista e transferência foram temas cen-
trais da prática psicanalítica (Freud, 1912), destacando-se a impor-
tância dos apontamentos clínicos sobre a posição de analista como
sujeito suposto saber como elaborada por Lacan (1964 e 1967).
O engajamento com outros campos disciplinares sobre a exis-
tência humana na sua diversidade promove processos de reflexão à
prática psicanalítica. Tendo essas tarefas colocadas à prática clínica,
a escuta psicanalítica é vista como um desafio e como possibilidade
de encontros com o sujeito.

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Parte II
Ódio e segregação
Ódio e identidade:
impasses no reconhecimento

Eduardo Leal Cunha

O que exatamente nos faz eleger o ódio como tema de uma


colóquio universitário ou de um livro? Ou seja, que tipo de proces-
so ou de acontecimento estamos vivendo agora, no tempo presente
— em nosso país — que faz com que elejamos o ódio como objeto
privilegiado de nosso trabalho teórico?
Numa primeira aproximação dessas perguntas, parece-me que
temos aí ao menos três respostas possíveis: a primeira seria o au-
mento da intensidade desse afeto contraposto ao amor e vincula-
do à destruição do outro ou ao gozo com o sofrimento deste. Neste
primeiro caso, a questão que nos interroga poderia ser formulada
assim: odeia-se mais, odiamos mais hoje, do que odiávamos ante-
riormente? É sobre o aumento ou banalização desse sentimento que
devemos nos interrogar?
Um segunda possibilidade seria o aumento da destrutividade,
ou seja, não propriamente a suposição de que odiamos mais, senti-
mos mais ódio — ou amamos menos — mas a constatação de que
somos mais violentos ou destrutivos com o outro. Portanto, nesse se-
gundo caso, a questão a ser respondida seria: somos hoje mais violen-
tos, mais destrutivos hoje, do que éramos há cem ou duzentos anos?
Nesse caso, não é propriamente o ódio o objeto do nosso inte-
resse, a causa da nossa inquietação, mas a violência, a destruição, a
108 Eduardo Leal Cunha

crueldade. Ainda que não possamos excluir do nosso horizonte de


interrogações o porquê de recorremos a esse afeto em particular ao
enunciarmos/explicarmos esse incremento da violência, localizan-
do assim inevitavelmente suas razões em certa economia dos afetos
individuais.
Com isso, por fim, se desenha uma terceira possibilidade: o
que estaria em questão seria não o fato de que odiamos mais, de
termos mais frequentemente ou mais intensamente sentimen-
tos ruins em relação a nossos semelhantes, nem que hoje agimos
de modo mais destrutivo ou violento em relação a esses do que fa-
zíamos antes, mais sim o modo como a cada dia recorremos mais
frequentemente ao afeto do ódio como explicação, da violência e
destrutividade que dirigimos uns aos outros.
Por outro lado, o modo como enunciamos uma questão, nós
sabemos, em geral define a direção a ser tomada para respostas
possíveis. Por isso, inclino-me imediatamente para a terceira al-
ternativa. Ou seja: o que me parece perturbador e digno da nossa
atenção é sobretudo o modo como cada vez mais recorremos ao
ódio para conferir inteligibilidade — e, em última instância, justifi-
cativa — a pensamentos e atos que vão na direção da eliminação do
outro ou, ao menos, da violência contra ele.
Desse modo, o que proponho neste pequeno ensaio é refletir
— mesmo que brevemente e sem o rigor de uma demonstração —
sobre o como ou o porque do ódio ter se tornado uma forma preva-
lente, reconhecida, de conferir inteligibilidade ou, mais do que isso
até, de justificar nossos impulsos destrutivos em direção ao outro.
Procurarei ainda indicar alguns elementos para que possamos
pensar também em que medida esta forma de compreensão da des-
trutividade e da violência, a partir de um sentimento como o ódio,
pode ter como efeito secundário a circunscrição dessa violência e
destrutividade à esfera dos afetos, à semântica do íntimo, ao domí-
nio do eu e de suas paixões, fazendo com que retiremos essa destru-
tividade e essa violência do contexto social e cultural no qual ela se
manifesta e no qual ela também poderia encontrar sua motivação,
sua razão.
Para tanto, talvez seja preciso antes de tudo responder a uma
pergunta bastante simples: do que falamos, afinal, quando falamos
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 109

em ódio. Qual a materialidade desse afeto e que formas toma em


nosso cotidiano? Ou dito, de outro modo, que tipo de violência ou
de destrutividade justifica essa recurso ao ódio enquanto categoria
central para descrever formas dos laços intersubjetivos e sociais na
atualidade.
Penso evidentemente nos crimes de ódio e em algumas ma-
nifestações explícitas de intolerância, como os ataques à vinda da
filósofa Judith Butler ao Brasil em 2017 ou os confrontos, às vezes
verbais às vezes físicos entre apoiadores e críticos seja do ex-presi-
dente Lula e do Partido dos Trabalhadores, seja do movimento que
levou ao golpe parlamentar e à deposição de Dilma Roussef, pois é
preciso reconhecer que independente da nossa posição ou convic-
ção políticas, o significante ódio entrará em nossos pensamentos e
palavras, para dar conta de nossos atos e omissões.
Penso, porém, sobretudo em certa verborragia presente nas
redes sociais, embora não apenas nelas, na qual o ódio aparece
como descritivo da percepção de que não há conciliação possível
entre o eu e outro. Assim, esse afeto aparece em nossa vida cotidia-
na, no nosso mundo dito virtual, como um companheiro presente e
solidário das divisões de classe e religiosas, das questões do gênero
e de suas dissidências, do racismo, dos preconceitos de todo tipo e
das divisões políticas partidárias e ideológicas; mas ele é também
amigo íntimo das inimizades grupais ou pessoais, dos conflitos de
opinião, das relações entre grupos, vizinhos, rivais etc.
Desse modo, me parece que o ódio se configura efetivamente
como um descritivo particularmente importante da nossas formas
atuais de relação com o outro, alguém de quem nos sentimos se-
parados ou diferentes, alguém de quem nós devemos nos manter o
mais separado possível, alguém com quem não desejamos nos con-
fundir ou com quem não queremos ser identificados; ou, agora já
em termos mais simples e ao mesmo tempo estritamente psicanalí-
ticos, alguém com quem não queremos, desejamos ou simplesmen-
te não podemos nos identificar.
Com uma tal delimitação de supostas formas de manifestação
do ódio, ou melhor, do campo de fenômenos e relações cuja des-
crição nos faz recorrer a ele, nos aproximamos, às vezes de modo
bastante evidente, outras nem tanto, do vínculo entre a enunciação
110 Eduardo Leal Cunha

do ódio e os processos de construção e afirmação identitária, o que


nos daria uma primeira chave de leitura para entendermos sua pre-
valência como afeto contemporâneo, e, mais do que isso, como ca-
tegoria central de explicação da destrutividade presente em nossos
dias, e ainda tão simplesmente, como dito acima, como figura cen-
tral da nossa relação com a alteridade.
Nos referimos à lógica das identidades, que tem regido as for-
mas de relação consigo mesmo e com o outro desde o início da era
moderna, se afirmando assim como forma hegemônica de enuncia-
ção da experiência subjetiva e de ordenamento do laço social e se
configurando cada vez mais como elemento nuclear da luta políti-
ca, a partir da construção e afirmação de um identidade individual
a qual se converte rapidamente em chave de pertencimento a gru-
pos determinados e critério para exclusão de outros grupos.
Com isso, a ideia de identidade aparece na atualidade efetiva-
mente como ponto estratégico de articulação entre política e subje-
tivação, isto é, entre modos de regulação do laço social e das formas
possíveis de viver junto e formas de enunciação da experiência subje-
tiva, tecendo assim um entrelaçamento radical entre a gestão do co-
letivo e a construção do individual. Nos termos de Zigmunt Bauman
(2002):
A identidade tornou-se um prisma através do qual os outros as-
pectos da vida contemporânea são compreendidos e examinados.
Assim, o debate sobre a justiça e a igualdade tende a ser conduzido
em termos de «reconhecimento» de identidade; falamos de cultura
em termos de identidades diferentes com seu hibridismo e ‘creo-
lização’ — enquanto o processo político é ainda e mais frequente-
mente teorizado em torno dos problemas dos direitos do homem
(o direito a uma identidade separada) e das políticas de vida (a
construção, a negociação e a afirmação da identidade). (p. 55)
De volta ao nosso tema principal, nossa hipótese de trabalho,
portanto, é que o fato de estarmos presos à lógica identitária nos faz
eleger o ódio como afeto primordial na nossa relação com a alteri-
dade e como responsável por dar sentido aos atos e pensamentos
violentos e destrutivos, em certa medida justificando-os.
Isso, principalmente por duas razões, que eu procurarei desen-
volver aqui ainda que muito brevemente: em primeiro lugar, pelo
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 111

fato de que toda construção identitária, de pertencimento identitá-


rio, se articula necessariamente a uma operação de exclusão, com o
estabelecimento de fronteiras e a produção do estrangeiro, rapida-
mente convertível em inimigo, isto é, aquele que em sua diferença
ameaça minha segurança e, consequentemente, minha própria iden-
tidade, isto tanto no nível macro das ditas identidades nacionais,
quanto no nível micro da experiência individual. Isto quer dizer
muito simplesmente que a violência — virtual ou real, atuada ou
imaginada — contra o outro, em direção àquele que se situa para
além da fronteira do pertencimento identitário é um elemento cen-
tral e necessário aos próprios processos de construção identitária.
Em segundo lugar, porque ao colocar no centro da cena
o indivíduo, a lógica identitária não só instala as relações de
pertencimento e de exclusão no centro da luta política como faz
com que tal luta possa ser circunscrita a uma semântica dos afetos
individuais e aos valores de um eu pretensamente soberano e
senhor de si. A partir daí, embates sociais, incluindo aqueles mar-
cados pela violência e pela destrutividade podem ser descritos pri-
mordialmente como conflitos entre indivíduos e justificados não
apenas por interesses mas sobretudo por afetos individuais.

Identidade, pertencimento e exclusão

Anthony Giddens (2002) define a identidade como uma


narrativa reflexiva do eu que na modernidade procuraria dar aos
indivíduos a segurança ontológica, o sentido de continuidade exis-
tencial e também de posicionamento no mundo social, que lhe foi
retirada com o desaparecimento ou perda de poder dos contextos
de confiança que marcavam as sociedades ditas tradicionais ou pré-
modernas: a comunidade local, as relações de parentesco, os siste-
mas religiosos e a tradição (Giddens, 1991)
Além do desaparecimento dessas instâncias de agenciamen-
to e garantia do nosso posicionamento subjetivo, do nosso lugar
no mundo, a modernidade seria ainda marcada pelo que Giddens
(????) denomina mecanismos de desencaixe os quais se estabelecem que ano?
112 Eduardo Leal Cunha

a partir da separação entre tempo e espaço e retiram “a atividade


social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais
através de grandes distâncias tempo-espaciais” (p. 58). Nesse novo
ambiente cultural, as relações interpessoais já não se dão num con-
texto de proximidade e vizinhança, como aquele que marcava a vida
na comunidade tradicional, as interações de dão muitas vezes na au-
sência do outro, do nosso interlocutor, por exemplo, fazendo com
que esse outro seja para nós, fundamentalmente um desconhecido.
O que nos interessa desta rápida — e certamente insufi-
ciente — descrição da formulação do sociólogo britânico em tor-
no da experiência identitária é a ênfase na ideia de segurança,
tornada ainda mais vital, pelo contraponto com a afirmação de que
experimentamos na sociedade contemporânea uma permanente
sensação de risco, a qual seria, para Giddens, a principal marca
subjetiva da modernidade, cada vez mais presente na atualidade,
definida por ele, aliás, como uma modernidade radicalizada.
Certamente, a perda de referências ou a instabilidade e mes-
mo o desaparecimento de paisagens culturais que permitiam nos
localizarmos no mundo são fatores que contribuem para tal sensa-
ção de risco, tanto quanto a fluidez que caracteriza o que Bauman
denomina de mundo líquido. Há, contudo, um elemento de pro-
dução de insegurança que me parece decisivo e diz respeito dire-
tamente a nosso objeto de discussão: uma relação com a alteridade
que se baseia na figura do estrangeiro, o qual se converte rapida-
mente em ameaça.
Isto se dá por duas vias, as quais podemos tentar percorrer a
partir de dois diferentes eixos da experiência identitária moderna:
em primeiro lugar, a construção de nossa identidade individual,
aquela efetivamente descrita como narrativa reflexiva do eu; em se-
gundo lugar a construção de uma referência identitária mais ampla,
igualmente uma ficção narrativa, a identidade nacional, em cuja
construção o outro aparece da mesma maneira na figura do desco-
nhecido e como ameaça ocupa um lugar fundamental nos proces-
sos de construção identitária, no caso da formação da nação e de
seu povo de modo, inclusive, mais explícito.
No que se refere à construção dessa narrativa reflexiva do eu
que Giddens nomeia autoidentidade, é preciso considerar que com
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 113

o desaparecimento dos contextos de confiança, ao lado da opera-


ção dos mecanismos de desencaixe, a confiança no mundo passa a
contar com outras instâncias de agenciamento e garantia: as fichas
simbólicas, como o dinheiro, que garantem as relações de troca e de
valor em contextos de ausência, e os sistemas peritos, cujo modelo
é conhecimento científico-instrumental, que tenta tornar passível
de previsão e controle um mundo que já não é regulado por qual-
quer instância transcendente, no qual a fé e a fortuna, já não são
operadores confiáveis.
Assim, segundo Giddens “a manutenção da confiança e, como
veremos, da confiança em si mesmo, central para a autoidentidade,
funda-se numa determinada forma de domínio da natureza e de si
mesmo marcada pela possibilidade de um conhecimento capaz de
garantir previsão e controle” (Cunha, 2009, p. 35). Ora, o outro,
percebido antes de tudo na figura do estrangeiro, representará pre-
cisamente o ponto em que este conhecimento não existe ou não é
suficiente.
Evidentemente, a base de tal segurança ontológica, a qual a
confiança nos sistemas abstratos visa manter, se forma na infân-
cia e na relação primordial da criança com a mãe, a partir de um
jogo recorrente de presença e ausência que inoculará a criança com
a certeza de sua própria existência e continuidade no tempo, for-
mando uma espécie de casulo protetor e garantindo a estabilidade
do eu (Giddens, 2002). A mãe será assim, o oposto dos desconheci-
dos que dali para frente aparecerão sempre como ameaça à relação
do individuo com um mundo que ele, para seu próprio bem, deve
aprender a prever e controlar.
A melhor forma de lidar com a ameaça — e a angústia dela
derivada — será tornar conhecido o desconhecido, familiar o es-
trangeiro. Se o risco está sempre associado à imprevisibilidade e
à perda do controle, a sensação de segurança, por sua vez, estará
sempre vinculada ao conhecimento e mas especificamente a uma
forma de conhecimento sustentada no que Adorno e Horkheimer
denominam razão instrumental, centrada na busca de meios ade-
quados para a consecução de fins determinados, voltada para trans-
formação da natureza e regulada pela ideia de eficácia (Adorno;
Horkheimer, 1985).
114 Eduardo Leal Cunha

Nesse contexto, a relação a nossos semelhantes, resposta mo-


derna à ausência dos antigos contextos socioculturais pré-moder-
nos responsáveis por ordenar e assegurar a relação consigo mesmo
e com o outro, será a construção do que Giddens descreve como
intimidade, uma relação de confiança mútua sustentada na pre-
visibilidade fornecida pelo conhecimento adquirido no convívio
diário e mediado reflexivamente pelos sistemas peritos que orien-
tam o deciframento deste outro. O indecifrável, aquele com o qual
não convivo, aquele que não posso alcançar com o conhecimento
de que disponho, permanece como ininteligível e, portanto, como
ameaçador e fonte de angústia.
É preciso observar, no entanto, que da mesma forma que o
conhecimento produzido pelos sistemas peritos é constantemente
atualizado, nesse tipo de relação com o outro na qual a confiança
e minha própria segurança dependem da previsibilidade deste
outro, estabelecida por uma relação de intimidade, ali também a
instabilidade é a regra.
Nas relações de intimidade do tipo moderno, a confiança é sempre
ambivalente, e a possibilidade de rompimento está sempre mais ou
menos presente. Os laços pessoais podem ser rompidos, e os laços
de intimidade podem voltar à esfera dos contatos impessoais — no
caso amoroso rompido, o íntimo torna-se de súbito novamente um
estranho. (Giddens, 1991, p. 144)
Se a figura do estrangeiro aparece já em relação à autoiden-
tidade, à nossa identidade individual, subjetiva, como metáfora
privilegiada para explicitar o modo de relação do sujeito com a
alteridade produzido pela experiência identitária fundada na
modernidade, no caso de uma outra dimensão da identidade, a
dita identidade nacional — em seguida correntemente desdo-
brada em uma etnicidade — , essa figura aparece em toda a sua
literalidade.
Basta pensar nos vínculos necessários entre a genealogia da
ideia moderna de identidade e a história da construção da forma
política do estado-nação, fundado em um território e um povo, le-
gitimado pela produção e ratificação de fronteiras, com a produção
imediata de domínios de pertencimento e de exclusão, a partir do
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 115

qual se pretende estabelecer uma diferença inconciliável entre os de


dentro e de fora.
Assim, a nossa identidade nacional, figura basal do que seja
nosso posicionamento no mundo social, é produto direto do es-
tabelecimento de um território e num certo sentido se faz a par-
tir da construção de um muro, seja ele feito de concreto, arame ou
símbolos.
Ao traçar a genealogia da forma nação, Etiénne Balibar nos
mostra claramente seus vínculos com a experiência moderna e
suas marcas diferenciais, desde o sistema de produção capitalista
e a mundialização a partir da expansão colonial até a relação ins-
trumental com o mundo visando sua transformação. Nessa genea-
logia, a forma política do estado antecede a produção de um povo
e de uma suposta etnicidade, num conjunto de empreitadas, tanto
materiais quanto simbólicas que refletem um esforço permanente
de integração e coesão. Nesse sentido, Balibar (1997) destaca o fato
de que a invenção de um povo é posterior à própria constituição
do território nacional. Primeiro inventou-se a França, depois os
franceses, não havendo portanto nenhuma anterioridade de uma
pretensa essência comum ao fato político que reúne determinada
população sob certa instância soberana.
Trata-se, de um esforço de integração e coesão que exige
não apenas a demarcação de fronteiras como também a sua per-
manente vigilância, o que se desdobra na demarcação a mais cla-
ra possível de limites de pertencimento e critérios para exclusão. A
identidade nacional, uma narrativa como a autoidentidade descri-
ta por Anthony Giddens, se refere então a uma ficção que procura,
apoiada na idealização de uma origem, conferir legitimidade aos
vínculos entre determinado grupo e o seu território criando assim
reciprocamente uma nação e um povo, conferindo-lhes ainda con-
tinuidade e permanência a serem legitimadas numa história oficial
Identidade nacional e identidade individual aparecem ambas
inscritas no desenvolvimento das formas modernas de soberania,
compreensão do mundo e governo tanto de si quanto dos outros.
Sendo que, além da busca de continuidade no tempo e do seu cará-
ter narrativo, ficcional, outros traços comuns aproximam esses dois
tipos de formação identitária, tornando-as, do ponto vista político
116 Eduardo Leal Cunha

ou mesmo ideológico, categorias muito próximas: o apoio na ra-


zão instrumental e a aposta na previsibilidade, vigilância e con-
trole como base da sensação de segurança; a importância da ideia
de limite e de fronteira; a percepção do outro, do não pertencente,
como ameaça permanente a essas fronteiras e a essa previsibilidade,
portanto ameaça também à continuidade, integridade e permanên-
cia que a narrativa ficcional procura produzir através da garantia de
continuidade entre presente, passado e futuro.
Torna-se então lógico, nos dois caos, que as operações de ex-
clusão sejam tão importantes quanto aquelas de inclusão, pois não
se define nenhum pertencimento sem marcar, se a possível a ferro e
a fogo, aqueles que não o conseguirão. Por isso, para Balibar (1997),
são inevitáveis os vínculos entre a lógica identitária e seus efeitos
de segregação, os quais, com a mediação da categoria de etnicidade,
desembocaram historicamente em formas diversas porém recor-
rentes de racismo, cuja base seria o trabalho permanente de hierar-
quização, exclusão da diferença e proteção contra o outro.
Nos constituímos, tanto como indivíduos quanto como cida-
dãos, afirmando a nossa diferença e demarcando os limites e con-
dições nas quais podemos reconhecer um outro como semelhante,
como passível de se inscrever no mesmo círculo de pertencimen-
to ao qual nos referimos. Inversamente, também nos constituímos,
subjetiva e socialmente, mantendo a uma distância segura aquilo
ou aquele que nos ameaça e coloca em risco nossa integridade, uni-
cidade e permanência.
Nesse sentido, por fim, não deixa de ser curioso, embora ao
mesmo tempo previsível, que mesmo na psicanálise e em seu mar-
co fundador, a obra freudiana, a semântica da fronteira e da exclu-
são, articulada a uma referência constante ao ódio, se faça presente
na descrição dos modos de construção de si, bem como uma sé-
rie de termos vinculados à guerra. Como no modelo de construção
do eu descrito no texto de 1915 sobre as pulsões onde os processos
de construção do eu se articulam a processos de expulsão, sendo o
externo o locus do desprazer e aparecendo a figura do ódio como
elemento significativo nos processos de demarcação das fronteiras
do eu: “o mundo externo se divide para ele em uma parte prazerosa
, que incorporou em si, e um resto que lhe é estranho. Ele segregou
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 117

uma parte integrante do próprio eu, que lança ao mundo externo e


percebe como inimiga” (Freud, 1915, p. 75).
Referências como essa aparecem em diversos momentos da
obra freudiana, sobretudo naqueles em que as relações entre indi-
víduo e sociedade são postas em jogo e o viver junto aparece como
uma problema de difícil solução. Não cabe aqui percorrer em deta-
lhes esses momentos, mas certamente expressões como narcisismo
das pequenas diferenças e a referência ao funcionamento das massas
a partir do amor identificatório aos de que a ela pertencem e do ódio
aos que dela são excluídos são exemplos imediatos e relativamente
conhecidos.

Entre o conhecido e os desconhecidos

A questão da relação com o outro não é, no entanto, apenas


um problema da formação psíquica do indivíduo, da mesma forma
que a relação com o estrangeiro não se reduz a um tema de política
internacional. Nos dois casos, o que está em jogo é a nossa relação
com a alteridade, e esta — como nos mostram diversos fenômenos
contemporâneos como as ditas guerras étnicas e a crise das migra-
ções e dos refúgios, para não falar das diversas segregações que tes-
temunhamos cotidianamente — é sobretudo uma questão ética. Até
mesmo, ao menos para um autor como Terry Eagleton, a questão
fundamental que alimenta a nossa reflexão ética desde o surgimen-
to da filosofia moral moderna: o problema dos desconhecidos.
É assim que Eagleton (2010) define didaticamente a questão
ética como uma interrogação sobre porque e como agir corretamen-
te, agir bem, com relação àqueles que não conhecemos, cujas vidas
não têm impacto positivo direto e imediato sobre nossas existências.
Tendo isso em mente, podemos pensar que uma resposta
predominante na cultura e na política contemporâneas procura se
apoiar frequentemente na ideia do respeito à diferença, o qual se-
ria correlato da possibilidade de afirmar nossa própria identidade,
num raciocínio que talvez possa ser reduzido de modo simplório a
essa espécie de mantra que nos ensina que cada um deve respeitar
118 Eduardo Leal Cunha

o outro em sua singularidade e diferença para que seja respeitado


também em sua particularidade, isto é, em sua identidade.
Singularidade e particularidade se tornam assim equivalentes
a identidade, que, como vimos, é uma ideia que tem uma história e
traz consigo uma série de implicações. De todo modo, o fato é que
assim que se mantém o primado da identidade não só no campo
da reflexão ética mas sobretudo no domínio da ação política redu-
zindo o problema dos desconhecidos ao tema da diferença e do seu
reconhecimento pela via seja da incorporação, integração do des-
conhecido ao conhecido, retirando-lhe seu caráter de propriamen-
te estrangeiro, intruso, ou demarcando territórios e fronteiras que
permitiriam a coexistência de uns e de outros, iguais e diferentes.
Nesse quadro, o ódio ao diferente aparece muitas vezes como
uma espécie de dano colateral da afirmação identitária, uma espé-
cie de acidente de percurso a ser administrado, pela ditas políticas
multiculturalistas, por exemplo. O que nos dá a esperança eventual
de pensar numa espécie de política de redução de danos capaz de
controlar ou contornar os efeitos nocivos das lutas por reconheci-
mento que orientam o embate político atual.
Quanto a isso, meu argumento é bastante simples e na ver-
dade pouco original, mas talvez nos custe um pouco levá-lo sufi-
cientemente a sério: tal administração do ódio e da segregação
produzidas por políticas identitárias estará sempre fadada ao fra-
casso porque o ódio ao outro não é um efeito secundário da pro-
dução de identidade, ele é muito simplesmente, sua condição de
existência, seu modo de construção.
Na racionalidade identitária e, paradoxalmente, nas políticas
de reconhecimento delas derivadas, ambas centradas no indivíduo
e no eu, o ódio é afeto necessário à produção e manutenção das
fronteiras. E talvez não importe se nos referimos aos limites de uma
nação ou às fronteiras do eu. Com o ódio se estabelece e se legitima
um limite para as identificações possíveis, produzindo um corte ra-
dical entre eu e outro, eventualmente situando esse outro para além
da fronteira do humano no qual me reconheço.
Assim, o equívoco maior do que Nancy Fraser (2002) chama
problema da substituição — a substituição da luta por justiça econô-
mica pelas lutas por reconhecimento social e cultural — talvez não
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 119

esteja apenas em negligenciar políticas de redistribuição ratifican-


do e aumentando a injustiça econômica e as diferenças estruturais
ao privilegiar de modo exclusivo políticas de valorização simbólica
— às quais podem inclusive afetar negativamente a própria redistri-
buição das riquezas (Fraser, 2006) — mas em legitimar um modo
de relação consigo mesmo e com o outro no qual a desqualificação
do outro é elemento constitutivo da construção de si.
Ou seja, políticas de reconhecimento não seriam nocivas fun-
damentalmente por produzir injustiça econômica e problemas na
distribuição das riquezas, oportunidades e liberdade, mas por pro-
duzir paradoxalmente falso reconhecimento e injustiça social, cul-
tural e simbólica, ou seja, menos participação na vida em comum
e menos liberdade. Isso, pelo simples fato de que a própria ideia de
vida em comum se vê sabotada pelas operações de exclusão e des-
qualificação da alteridade necessárias à construção identitária. Para
voltar aos termos de Eagleton, os desconhecidos, não é que eles se
transformem em inimigos, eles são definidos como tal por princípio.
Inimigos por serem perigosos, porque ameaçam a minha inte-
gridade, tanto a nível individual quanto coletivo. Aqui, a ênfase no
ódio nos conduz a um outro afeto que aprece desde muito tempo
na filosofia política como central à própria ideia de governo e aos
desafios do viver junto: o medo.
O ódio é desse modo, o afeto que ajuda a demarcar os limites
do pertencimento identitário e nesse sentido se apoia constante-
mente em outro afeto estratégico à construção dos modos de orga-
nização social a partir da modernidade e que ganha cada vez mais
destaque com a expansão da governamentalidade liberal e da ideia
de sociedade de risco, o medo, “base e motivo para a constituição
do eu responsável, confiável e racional” (Lemke, 2017, p. 72).
Representando a primazia do eu proprietário de si mesmo no
centro da cena social, o medo produz ainda, por outro lado, efeitos
importantes na organização dessa cena social:
O medo também tem uma importante função segregadora. Ele di-
vide a sociedade em grupos homogêneos particulares, em comuni-
dades de iguais sociais, étnicos, religiosos ou econômicos, que são
governados pela suposição de não periculosidade. (p. 72)
120 Eduardo Leal Cunha

Presente em nossa cultura politica desde Hobbes (Safatle,


2015), quando se referia às leis e à perspectiva da punição no re-
gime de poder descrito por Foucault como jurídico-discursivo
(Terrel, 2010), hoje, no regime da governamentalidade neoliberal
que marca o registro da biopolítica (Foucault, 2004), o medo se ex-
pande para todo o corpo social e é objetificado na gestão econômi-
ca, racional, dos riscos.
No entanto, algo parece sobrar nesse cálculo econômico, que é
exatamente a presença inevitável do outro. Em relação a esse outro,
que não se pode evitar e que devemos temer, o medo parece se con-
verter em ódio.
Nesse sentido, o que vemos hoje, a banalização do ódio e da sua
semântica representa ao mesmo tempo a hegemonia da racionalidade
identitária e seu ponto de esgotamento. Multiplicam-se as identida-
des e com isso multiplicam-se as fronteiras, as segregações, as rivali-
dades e o ódio enquanto afeto destinado a dar sentido a tudo isso.
Dessa forma, num primeiro tempo, o ódio descreve os impul-
sos necessários à produção das identidades, ao ordenamento e de-
marcação territorial do indivíduo e dos grupos. Em seguida, em seu
recrudescimento, denuncia a falência da lógica identitária e a das
fronteiras que se multiplicam e se fortificam infinitamente, ao mes-
mo tempo em que deixam àqueles que as habitam o sentimento de
estarem cada vez mais fracos e vulneráveis.

Os afetos, o íntimo e o político

Mas isso talvez não seja tudo, e mesmo reconhecendo o lugar


central do ódio no funcionamento tanto da subjetividade quanto da
sociedade contemporâneas — aqui, de modo evidente, mutuamen-
te implicadas —, seja necessário ainda considerar que a própria re-
ferência aos afetos como fator central da explicação cotidiana que
damos aos nossos modos de relação com o outro e aos conflitos daí
originários, não é vazia de significação.
A antropóloga israelense Eva Illouz tem se dedicado há al-
gum tempo a mostrar como a valorização dos afetos é mais um
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 121

traço da nossa experiência moderna, o qual, desde Marx, Weber e


Durkheim, marca as tentativas de conferir inteligibilidade à nossa
vida em comum:
Paralelamente aos conhecidos conceitos de mais-valia, explora-
ção, racionalização, mal-estar ou divisão do trabalho, a maioria das
grandes narrativas sociológicas da modernidade conteve, em tom
menor, uma outra história: as descrições ou os relatos do advento
da modernidade em termos dos afetos. (Illouz, 2011, p. 7)
Tal traço moderno de valorização dos afetos, ganha, no en-
tanto, segundo Illouz, um sentido particular a partir de dois movi-
mentos que ganham força na primeira metade do século XX cujos
efeitos talvez sejam percebidos com mais força neste começo do sé-
culo vinte e um, sendo que a meu ver a elevação do ódio à categoria
central da inteligibilidade sociopolítica contemporânea é um deles.
De um lado, temos a tentativa de sistematização da esfera afe-
tiva que, objetivando nossos sentimentos, pretende torná-los passí-
veis de mensuração e de controle, o que, aliás, se articula ao mesmo
movimento de instrumentalização do mundo ao qual se associa a
racionalidade identitária: “O ato reflexivo de dar nome aos afetos,
a fim de manejá-los, confere a eles uma ontologia, isto é, parece fi-
xá-los na realidade e no eu profundo de seus portadores, fato este,
diríamos, que contraria a natureza volátil, transitória e contextual
dos afetos” (p. 51).
Por outro lado (aproveitando a referência já presente a um “eu
profundo”), num segundo movimento, os afetos são cada vez mais
circunscritos a uma experiência individual de autorrealização, no
quadro do que Illouz descreve como a consolidação, em nossa vida
social, do que denomina discurso terapêutico.
Traçando uma equação complexa, a qual infelizmente, não
posso reproduzir aqui em todos os seus aspectos, Illouz procura
nos demonstrar como a partir de registros e fenômenos diversos
— tais como a difusão da psicanálise na cultura norte-americana, o
movimento feminista, a entrada dos psicólogos nas fábricas, o for-
talecimento de uma cultura corporativa centrada no individuo e o
desenvolvimento das literaturas de autoajuda — nossas identidades
e nossas relações sociais foram gradativamente reconfiguradas a
partir de uma extrema valorização dos sentimentos do eu e de sua
122 Eduardo Leal Cunha

colocação no centro da cena social, subvertendo de uma vez por to-


das os limites e distinções entre o público e o privado.
Mensuráveis, objetiváveis e passíveis de controle pelo próprio
individuo, os afetos perdem sua dimensão não reflexiva e profun-
damente cultural para se converter em atributos gerenciáveis do ca-
pital humano individual, ao mesmo tempo em que, utilizados como
categoria explicativa de fenômenos sociais acaba por circunscrevê
-los à esfera da vida íntima.
Desse modo, poderíamos aplicar ao ódio, o mesmo raciocínio
utilizado por Thomas Lemke — seu análise da forma neoliberal de
governamentalidade — para falar do medo e de como lidamos com
esse outro afeto tão estratégico à nossa realidade social e à nossa ra-
cionalidade política: “Lidar com o medo torna-se um problema de
psicologia individual ou uma questão médica, ao passo que as con-
dições materiais e os objetivos estratégicos da produção do medo
permanecem invisíveis” (Lemke, 2017, p. 72).
Não se trata de desconsiderar a dimensão afetiva da nossa
experiência social, mas sim de ficar atento ao significado de privi-
legiarmos tal dimensão, sobretudo quando passamos a entender o
sentimento como inteiramente referido ao eu, como dado objetivo
de uma realidade exclusivamente individual, pois:
O afeto é uma entidade psicológica, sem dúvida, mas é também, e
talvez até mais, uma entidade cultural e social: através dos afetos
nós pomos em prática as definições culturais da individualidade,
tal como se expressam em relações concretas e imediatas, mas sem-
pre definidas em termos culturais e sociais. (Illouz, 2011, p. 10)
Nessa perspectiva, a referência constante ao ódio não aponta-
ria unicamente para o fato de submetermo-nos ao modo como a
racionalidade identitária justifica a destrutividade dirigida ao outro
mesmo tempo em que a afasta do domínio dos embates sociais e a
circunscreve ao plano dos afetos individuais.
Nesse sentido, é importante evitarmos pensar o ódio como
possuindo algum caráter primário ou essencial. Talvez seja estra-
tégico, ao contrário, pensar o ódio essencialmente na sua dimen-
são significante, enquanto categoria capaz não apenas de conferir
inteligibilidade à destruição ou ao não reconhecimento do outro,
mas como operador central de um discurso no qual tal destruição
Ódio e identidade: impasses no reconhecimento 123

é descolada da dimensão social e circunscrita, ao menos aparente-


mente, ao plano do funcionamento individual, ao registro do eu e
suas paixões.
Ou seja, não lhes proponho ignorar ou mesmo desmentir
a destrutividade e a violência que permeiam nossa relação com o
outro no contemporâneo, sobretudo esse outro que se materiali-
za nos desconhecidos e naqueles nos quais não encontramos tra-
ços comuns ou os recusamos tornando impossível qualquer laço
identificatório.
O que tentei propor neste breve ensaio é que estejamos aten-
tos por um lado ao caráter indissociável dos vínculos entre os pro-
cessos identitários e mecanismos de distanciamento, exclusão,
silenciamento e mesmo destruição do outro; e, por outro lado, es-
tarmos também atentos a como a semântica do ódio e dos afetos
individualizados acaba por circunscrever cada vez mais, especial-
mente nas últimas décadas, nossa experiência subjetiva e dos nos-
sos laços afetivos e sociais, à esfera do eu, o que parece contribuir
ainda para a redução de nossa vida política à esfera da intimidade.
Para concluir, vale lembrar que a escolha do ódio como ob-
jeto de estudo não se deu por puro capricho de alguns, ela refle-
te um incômodo comum com a situação sócio política brasileira e
em particular com o impasse produzido por uma aparente divisão
radical da sociedade brasileira em grupos que parecem não se em-
baraçar em dizer que se odeiam mutuamente e assim, em apontar,
também sem nenhuma vergonha, seus impulsos mais destrutivos e
violentos na direção do outro.
Nesse sentido, talvez valha a pena considerar que a prevalên-
cia do registro dos sentimentos pessoais tem presença antiga em
nossa interpretação da nossa sociedade e da nossa cultura e que
isso tem provocado desde sempre impacto e efeitos significativos
não só sobre como compreendemos as relação sociais no Brasil,
mas sobre a própria realidade efetiva dessas relações. Não devemos,
talvez, recusar tal interpretação, mas não podemos, inversamente,
aceitá-la sem ressalvas, até pela contradição evidente entre o ódio
que hoje vemos permear os nossos vínculos e a imagem de homem
cordial que aprendemos a associar tão fortemente à nossa identida-
de de brasileiros.
124 Eduardo Leal Cunha

Pergunta-se, então, por exemplo, qual o valor descritivo e, sobretu-


do, qual o valor politico de um conceito como o de homem cordial,
quando se pensa sob a perspectiva das relações de dominação. A
regulação das relações sociais pelo afeto, em vez de por princípios
abstratos, é um traço universal e espontâneo da cultura brasileira
ou está determinado pelo lugar de classe (no caso dos mais fortes,
porque não lhes interessa a impessoalidade republicana; no dos
mais fracos, porque não têm força para contestar os mais fortes)?
(Bosco, 2017, p. ??) falta pág.

Podemos aplicar, então, aos nossos discursos sobre o ódio, o


mesmo cuidado que já tomamos em relação à ideia de que somos
pessoas cordiais, destinadas à superação das nossas diferenças e à
conciliação sociopolítica. Nós, brasileiros, não somos tão bons, mas
pode ser que tampouco nos odiamos tanto, ou tão fundamental-
mente. Talvez apenas tenhamos atualmente uma dificuldade maior
em perceber as barreiras que nos separam dos nossos concidadãos
ou em aceitar as transformações que nos permitiriam ultrapassar
essas barreiras. Assim, nos refugiamos em nossas casas, em nossa
vida íntima, em nossos sentimentos, cada vez menos acessíveis aos
desconhecidos.

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Terrel, J. Politiques de Foucault. Paris: Presses Universitaires de France, 2010.
Racismo e sexismo: desafios da
constituição psíquica de
mulheres negras
e homens negros1

Ana Paula Musatti Braga


Priscilla Santos de Souza

Não existe lei Maria da Penha que nos proteja


Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza
De ler nos banheiros das faculdades hitleristas,
‘Fora macacos cotistas’2

Esta não é uma fala de uma paciente em análise, mas poderia


ser. Trata-se, na verdade, de um trecho da letra de uma música de
Eduardo, ex-integrante e fundador do grupo de rap Facção Central.
Poderia ser a fala de uma paciente em análise e, sendo assim,
o que um analista poderia escutar dela?
Não seria extremamente violento ao escutar um sujeito cujo
lugar na rede discursiva e no imaginário social encontra ecos nos

1. Este artigo é uma segunda versão do trabalho “Racismo e Sexismo: sobre


os desafios para tornar-se uma mulher negra” apresentado no Colóquio
Psicanálise e Política: as escritas do ódio. As modificações e acrésci-
mos sobre o texto inicial são fruto das pesquisas que foram realizadas no
Laboratório Psicanálise e Sociedade, do IPUSP, durante o ano de 2017.
2. Música Mulheres Negras. Letra de Eduardo (Carlos Eduardo Taddeo) feita
a pedido da interprete Yzalú (Luiza Yara Lopes Silva).
128 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

versos acima, ignorar as consequências dessas ressonâncias? Não


seria deixá-lo diante de um desamparo que, não sendo somente so-
cial, constitui-se como um desamparo discursivo (Pujó, 2000; Rosa,
2016)?
Trata-se de levar a sério a formulação lacaniana de que o
Inconsciente é a política (Lacan, 1966-67). E, para isso, acreditamos
que a fala desses versos apontam para lugares identificatórios que,
ainda que sejam contingentes, inscrevem e marcam o sujeito em
determinadas posições em uma rede discursiva de poder e de saber,
num país marcadamente desigual, tanto do ponto de vista econô-
mico, como racial e de gênero.
Ao escolhermos como tema de pesquisa as possíveis con-
tribuições da psicanálise sobre mulheres negras e sobre homens
negros, o que primeiro aparece é a necessidade de tomar determi-
nadas sensações, vivências e acontecimentos de cada um ou cada
uma, a partir de um prisma que não seja somente individual, mas
justamente articulado ao campo social.
Isto porque o individual é o que remete ao ser que é indiviso,
que é todo, completo, inteiro, e mais, que remete também a um ser
supostamente fora do laço social. E para nós, ao invés de tomar o
sujeito na sua individualidade, estamos propondo tomá-lo na sua
singularidade, considerá-lo como um sujeito dividido e que só
pode ser concebido no laço social, no encontro e na relação com
um outro. Ou, como disse Lacan em 1954: “Já encontraram, vocês,
seres totais? Talvez seja um ideal. Eu nunca vi nenhum. Eu não sou
total, não. Nem vocês. Se fosse total, estaria cada um no seu canto,
total, não estaríamos aqui juntos, tentando organizar-nos, como se
diz.” (Lacan, 1954-55, p. 307).
Como então tomar a fala de um sujeito singular, incluindo o
que é mais íntimo e próprio ao sujeito, mas inscrito no campo só-
cio-histórico? Ou, o que Jorge Alemàn (2013) nos coloca como a
relação entre o singular e o comum, a solidão e o comum. O co-
mum estamos considerando aqui a partir da rede discursiva e do
imaginário social, na perspectiva política e pulsional.
O risco de que, ao tentar incluir o imaginário social no qual o
sujeito estaria inscrito, cairíamos numa política identitária, em que
as identificações contingentes seriam tomadas fixamente, como se
Racismo e sexismo 129

constituíssem uma identidade, cristalizada e imutável, é certamen-


te gigantesco. Isto ocorreria se, ao ouvirmos os versos acima “não
existe lei Maria da Penha que nos proteja de nos submeter aos car-
gos de limpeza”, os tomássemos somente a partir deste nos-nós que
responderia completamente pelo sujeito.
O que pretendemos defender, no entanto, é que ignorar este
nós, não faz o sujeito aparecer, mas sim o contrário, o faz desapare-
cer, na medida em que fica submetido a uma aridez de significantes
dignos possíveis com os quais precisaria contar para se perguntar
sobre sua existência e o desconhecido que o habita. Ou seja, se ao
tomarmos a fala somente a partir deste nós, o sujeito pode desapa-
recer num todo homogêneo, como “as mulheres negras” ou como
“os homens negros”; por outro lado, também não é possível igno-
rar os efeitos dessas posições na rede discursiva, sob pena do sujeito
emudecer por não ter nem mesmo como nomear experiências de
exclusão social, racismo e segregação. O sujeito, que é visto como
se não tivesse direito a uma vida que seria mais do que de necessi-
dades supostamente biológicas emudece, silencia ou se opõe através
de atos violentos, mas dificilmente pode, enquanto é visto assim,
enunciar algo. Atribuir a um sujeito particular algo que é efeito de
uma ordem social implica numa privatização do conflito que culpa-
biliza o sujeito pelas condições que o atravessam e o antecedem. A
mulher dos versos acima, se submete aos cargos de limpeza por um
auto boicote, masoquismo, sentimento de inferioridade, um gozo
por estar num papel de submissão? Ou ela está inscrita num nós
que sente os efeitos de outro que a quer submeter?

A violência da psicanálise: o silêncio sobre homens


negros e mulheres negras

O risco de que este “nós” possa produzir uma fala que aliena e
homogeniza o sujeito, trazendo uma suposta resposta diante da au-
sência de identidade dele consigo mesmo, não é para ser ignorado,
é para ser enfrentado com todo rigor teórico que a psicanálise tem
condição de fazer. Como aponta Fanon (2008), “... pensamos que
130 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

só uma interpretação psicanalítica do problema negro pode revelar


as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos.”
(p. 27). Ou seja, este risco não pode ser justificativa suficiente para
recuar, e faz muitos anos que nós, psicanalistas, temos persistido
nesse recuo. A complexidade de incluir o campo de desigualdades
sociais no campo psicanalítico já exige articulações sem dúvida ou-
sadas, e considerar a desigualdade racial como não sendo equiva-
lente ou subsumida a esta é um desafio a mais.
Qual seria a justificativa para que ainda hoje, quase trinta
anos depois do livro da psicanalista Neusa Souza (1990) ter sido
publicado — obra que aponta as intrincadas relações entre psica-
nálise e a questão racial — sigam sendo produzidos estudos em que
se abordam os homens e mulheres brancos com uma condição fi-
nanceira confortável tratados sob a rubrica genérica de “sujeitos”,
“as mulheres” ou “os homens” e isso não sendo mencionado expli-
citamente nos artigos e muitas vezes nem mesmo percebido. Que
se queira produzir pesquisa sobre elas e eles, mulheres brancas e
homens brancos da classe média, média alta, não configura proble-
ma algum: sabemos que a presença do dinheiro ou de privilégios
raciais não é, de maneira alguma, prevenção ao sofrimento psíqui-
co. Mas que não se cometa o abuso teórico de nomear essa minoria
absoluta como se representasse o conjunto das mulheres ou dos ho-
mens brasileiros de hoje.
Diversos artigos de psicanálise que tratam das novas formas
do sintoma e fazem uma articulação entre a psicanálise e a cultu-
ra, nos quais se apontam nitidamente as diferenças históricas entre
os pacientes dos tempos de Freud e os de hoje, esquecem que esta
articulação no nosso país exige incluir uma absoluta desigualdade
de oportunidades e possibilidades que traz inúmeras consequências
aos processos subjetivos.
Fosse simplesmente uma questão dos pesquisadores não te-
rem sido alertados suficientemente sobre a importância e a produ-
ção praticamente inexistente de artigos psicanalíticos incluindo as
relações raciais, a partir das pesquisas rigorosas das psicanalistas
brasileiras Neusa Souza (1990) e Isildinha Batista (1998) os escritos
de psicanálise teriam mudado radicalmente por estas terras. Mas
isso não aconteceu.
Racismo e sexismo 131

Enquanto isso, a psicologia social fez uma virada metodoló-


gica importantíssima, tendo como marco as pesquisas coordenadas
por Iraí Carone com diversos colaboradores (Carone e Bento, 2012)
salientando que só é possível pensar a negritude, se considerarmos
a branquitude a ela articulada estruturalmente e que é essencial
pensar na pressão cultural que o branqueamento exerce na esfe-
ra psicológica do negro. Essas pesquisas apontam que o desejo de
branquear, ideologicamente atribuído como um problema dos ne-
gros, teria que ser situado como um processo inventado e mantido
pelas elites brancas. De forma que caracterizamos “a branquitude
como um lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual
a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de ex-
periências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade”
(Laborne, 2014).
Não estaríamos também nós, nos trabalhos psicanalíticos,
contribuindo para essa construção de um certo grupo que seria o
padrão e a referência, em detrimento dos demais?
Temos lembrado das palavras da psicanalista Marie Langer,
que em 1970, numa tomada de posição fundamental publicada no
livro Questionamos, nos diz: “E a neutralidade do analista? Já não
cremos nela”. E a autora segue: “a omissão do fato social se gera, ou
se mantém, por cumplicidade inconsciente do paciente e do analis-
ta, como resultado das resistências e contra-resistências de ambos”
(Langer, 1973, p. 260).
Pensamos que não podemos mais nos recusar a enxergar que
estamos incluídos e implicados nesta sociedade racializada, queira-
mos saber disso ou não e que muitos de nós usufruem do privilégio
da brancura, o qual traz consequências de oportunidades desiguais.
Para nós a psicanálise é clínico-política e não podemos sucumbir e
recuar frente às dificuldades que essa percepção na clínica nos co-
loca, pois este recuo poderia significar conivência com a manuten-
ção ou agravamento de uma determinação racial de vida e de morte
que perpassa os encarceramentos e os homicídios, a violência racis-
ta, a dominação, a opressão, e uma divisão da nossa sociedade em
que, como bem nomeou Miriam Debieux, somente alguns seriam
vistos como tendo direito à cidadania, ao prazer, ao gozo, à palavra
(Rosa, 2002).
132 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

Se não podemos atribuir a uma falta de aviso este silêncio so-


bre a cor nas produções psicanalíticas, também não podemos atri-
bui-lo a sua pouca importância. Prestar atenção para essa suposta
minoria, os homens negros e as mulheres negras, significa olhar
para uma parcela da população que supera os 50 % de pessoas au-
todeclaradas negras.3
Já foram apontados outros supostos motivos para essa pouca
produção articulando a psicanálise e a negritude: um dos centrais,
a questão financeira. Uma vez que há uma forte articulação entre a
cor e a desigualdade econômica, as pessoas negras chegariam em
número muito menor aos consultórios psicanalíticos. Sim, mas aí
se abrem duas questões: a psicanálise não está só nos consultórios
particulares, está também nos trabalhos que analistas realizam em
escolas, abrigos, postos de saúde, Caps, Caps infantis, centros de
acolhida e nas clínicas-escola das faculdades de psicologia. A outra
questão sobre o argumento de que seriam poucos os casos atendidos
nos consultórios, também merece atenção. A justificativa seria de
que quando esses pacientes chegam não trazem como fundamentais
as questões relativas a cor que se reconhecem. Mas, confrontando
este argumento, lembramos aqui não só dos atendimentos que temos
realizado, mas de outros analistas que têm tido essa experiência na
sua clínica. São diversos os testemunhos colhidos de pacientes que
afirmam que em atendimentos anteriores o tema de sua cor não ha-
via sido levado em conta, embora tivessem muito a dizer sobre isso.
Neste sentido, acreditamos na atualidade de Fanon (1952)
em nos oferecer algumas ferramentas conceituais para compreen-
der as ressonâncias na sociedade contemporânea daquilo que her-
damos da violência colonial. O livro Pele negra, máscaras brancas
escancara os efeitos de um mundo dominado econômica e politi-
camente pelos brancos e seus efeitos ideológicos hegemônicos onde
o homem universal — ideal a ser atingido — é um ser branco, euro-
cêntrico, que de antemão a mulher negra ou o homem negro não

3. Segundo dados do IBGE em 2014, os negros (pretos e pardos) represen-


tam 54% da população brasileira. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/
portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf>.
Racismo e sexismo 133

alcançará, mas deve tê-lo como objetivo em uma sociedade racia-


lizada. “O branco incita-se a assumir a condição de ser humano”
(Fanon, 2008, p. 27) e é assim que, para esse autor, “a alienação do
negro não é apenas uma questão individual” (p. 28).
Para nós a cor deve ser considerada como uma segunda pele,
como nos diz a antropóloga Lilia Schwarcz (2014), que constrói
realidades. Ou, nas palavras da antropóloga Rita Segato (2005), de-
terminadas características como cor da pele, tipo de cabelo, traços
faciais, fazem com que alguns sujeitos sejam reconhecidos a partir
da associação com um passado escravista, um passado de submis-
são. Os traços desses sujeitos remetem aos seus ancestrais que fo-
ram sequestrados e escravizados e constantemente são enxergados
nessa posição servil. Isso quer dizer que, por um lado, os negros
comumente seriam vistos pelos brancos como se já fossem conheci-
dos, superexpostos, como se fosse possível saber o que devem fazer
e como são, ainda que não o dissessem, uma vez que estariam no
mundo somente para servir. Por outro, haveria uma subexposição,
uma invizibilização, um processo de apagamento. A subexposição
está, portanto, sempre articulada a essa superexposição, conforme
nos aponta José Moura (Gonçalves Filho, 2008). Ou seja, este sujei-
to não é visto no sentido de alguém cuja vida seria repleta de enig-
mas, nuances, sentimentos os mais complexos e diversos, mas sim
como alguém que fica aderido a um significante fixo e único, que o
determina e engessa.

A escravização e seus rastros: a escravizada e a


santa-mãezinha

Não é preciso buscar exemplos em falas tão distantes ou dis-


simuladas, ou em fantasias inconfessáveis para ilustrar essa afirma-
ção. Lembremos a fala do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo
Paes, que circulou em 2016 na internet.4 Na entrega da chave de

4. Disponível em: <http://www.debateprogressista.com.br/eduardo-paes


-pmdb-rj-entrega-casa-e-sugere-que-moradora-trepe-muito/>.
134 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

uma casa popular da prefeitura carioca para uma moradora, Rita,


o que ele diz é paradigmático e estarrecedor. Rita é uma mulher ne-
gra que, entusiasmada, vai entrando no apartamento para conhe-
cer seu novo lar, acompanhada do prefeito que vai lhe dizendo: “Vai
trepar muito nesse quartinho... É casada Rita? Vai trazer muitos na-
morados pra cá... Rita, faz muito sexo aqui...” Depois, explicitando
ainda mais sua fantasia sexual que, covardemente, atribui a uma
fala dela, vai ao terraço, e se dirigindo ao aglomerado de pessoas
que acompanham o ato, diz: “Ela disse que vai fazer muito ‘canguru
perneta’ aqui. Tá liberado. A senha primeiro”.
É como se ele pudesse saber e afirmar de antemão do que ela
gosta, pudesse falar e invadir seu corpo, sua privacidade, seus mo-
dos de gozar, ter prazer. Como se estivesse autorizado socialmente a
adentrar um espaço que, para tantos outros e outras, é de direito es-
tar reservado. Ele se sente no direito de fazer com o corpo dela, ao
menos na fala, o que quiser. Essa suposta autorização social de falar,
mexer, olhar o corpo de uma mulher negra, vem de muito tempo e
não é sem consequências. Se na escravidão esta autorização apare-
cia de maneira explícita como um corpo que concretamente per-
tencia a um outro, seu dono, no seguimento da história aparece de
outros modos, sem dúvida mais sutis na maioria dos casos (embora
nem sempre sutis, como no caso do prefeito carioca) e de uma ma-
neira muitas vezes insidiosa. São autorizações herdeiras dessa rela-
ção de escravização, numa contiguidade social e simbólica entre as
escravizadas de outrora e as mulheres negras de hoje (Souza, 2012)
que são fruto de um passado que insiste em perdurar de maneira
não reconciliada no presente (Gagnebin, 2010), transmitido pelos
subterrâneos da cultura.
Nos tempos da escravização, havia uma divisão entre as mu-
lheres brancas — mulheres dos senhores de escravos, castas, asse-
xuadas, as santas mãezinhas, dignas de respeito — e as mulheres
negras — escravizadas, capazes de proporcionar os prazeres mais
inconfessáveis. Recairia sobre as mulheres negras, ainda hoje, uma
representação de que seriam capazes de um gozo desmedido —
ainda que a serviço de um outro — como herança das suas ante-
passadas escravizadas. Como nos lembra Ângela Davis (2016): “O
padrão do abuso sexual institucionalizado de mulheres negras se
Racismo e sexismo 135

tornou tão forte que conseguiu sobreviver à abolição da escravatu-


ra” (p. 180).
Estamos propondo que o imaginário social que recobre, con-
torna e nomeia o corpo das mulheres negras inclui essa suposta
divisão em que elas seriam aquelas capazes de proporcionar esses
prazeres ilimitados e desmedidos.
Nesse ponto, há um aspecto que nos parece pouco aprofun-
dado na bibliografia psicanalítica brasileira que aborda as mulheres
negras e também, como veremos mais adiante, os homens negros.

A mulher negra como a Outra: o Outro sexo

Ao apontar os efeitos subjetivos do racismo sobre elas, acaba-


se por se enfatizar as marcas de um corpo que, fugindo aos padrões
da beleza branca, seria visto como feio, inaceitável e indesejável,
sendo essa a explicação para diversos casos em que mulheres ne-
gras enunciam um grande mal-estar em relação ao próprio cor-
po. É assim que vemos salientados nas pesquisas de Neusa Souza,
Deivison Faustino, Isildinha Batista, José Tiago Reis Filho e de
Jurandir Freire Costa relatos de mutilação, vergonha ou muito des-
conforto em relação a traços faciais, formas do corpo ou cor da
pele. Estamos propondo uma mudança de enfoque:5 nossa hipótese
é de que o mal estar enunciado por tantas mulheres negras a respei-
to de um corpo que supostamente não atenderia aos padrões de be-
leza seria uma forma passível e possível de nomeação de algo ainda
mais insuportável e insidioso. O impossível de enunciar seria que
este mal-estar estaria relacionado a uma entrada no campo social
que a reconheceria portando um corpo sem limites, tanto no sen-
tido de ser capaz de um gozo ilimitado, quanto no sentido de que
os outros se sentiriam autorizados socialmente a acessá-lo: mexer,

5. Esta formulação encontra-se exposta de maneira minuciosa na pesquisa de


doutorado Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da
psicanálise sobre mulheres negras (Musatti-Braga, 2015).
136 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

olhar, devorar sem freios e sem pudor, como nos mostra o prefeito
carioca. Acreditamos que isso nos ajude a reler diversos casos rela-
tados nas pesquisas psicanalíticas brasileiras.
Tomemos o caso de Maria, paciente de José Thiago Reis Filho
(2005) como exemplar. Ela chega dizendo que precisa parar de se
mutilar e que sentia seu corpo como um fardo. Desde a adolescên-
cia queria ser invisível e procurava não chamar a atenção. No mo-
mento que começa a menstruar é um momento em que o espelho
fica insuportável:
Um dia se viu mergulhada em uma angústia tão grande que come-
çou a se bater, não conseguiu ver-se no espelho ou o que viu “não
era ela”. Passou a ter crises cada vez mais constantes e se “mutilava”.
(Reis Filho, 2005, p. 108)
Maria era filha de um pai negro e de uma mãe branca que fa-
zia críticas à família do marido, dizendo que as cunhadas, negras,
gostavam de se mostrar e não se davam ao respeito. O que estamos
tentando apontar é a complexidade que há em habitar o corpo de
uma mulher negra: durante séculos não houve respeito para com as
mulheres negras, então, o que significaria se dar ao respeito? Como
fazer com que o outro respeite um corpo identificado no imaginá-
rio social como aquele em relação ao qual supõe-se que não há ne-
cessidade de pudor, segredos ou respeito algum: fazendo seu corpo
invisível? Como colocar alguma barreira ao acesso desmedido em
relação ao seu corpo por parte de um outro que se sente autorizado
por uma licenciosidade social (Aragão, 1991): mutilando-o?
Ao tomar a pesquisa de Neusa Souza (1990), por exemplo,
muitas vezes o que é salientado é que seus depoentes se refeririam
ao próprio corpo com desprezo, vergonha e hostilidade ao “beiço
grosso” do negro, ao “nariz chato e grosso”, ao “cabelo ruim”, ao
“bundão”, ao “primitivismo sexual”. Sim, os depoentes apontam esta
relação com um corpo supostamente desvalorizado e o que se en-
tende é que isso seria consequência da internalização de um Ideal
de Eu branco. As marcas de um corpo negro são apontadas como
uma decepção de não conseguir alcançar os padrões deste supos-
to ideal, maciçamente imposto pela cultura. Mas lembremos do que
Isildinha Batista (1999) defende no seu texto O corpo da mulher
Racismo e sexismo 137

negra. “Seu corpo, historicamente destituído de sua condição hu-


mana, coisificado, alimentava toda sorte de perversidade sexual que
tinham seus senhores” (lembremos do ex-prefeito carioca). Ela se-
gue: “Nesta condição eram desejadas, pois satisfaziam o apetite se-
xual dos senhores e eram por eles repudiadas” (Nogueira, 1999, p.
44; grifo nosso). Seguindo esta autora encontramos a formulação
das mulheres negras como detentoras de um corpo desejável e de
um gozo invejado.
Trata-se, no nosso entender, de conceber o corpo da mu-
lher negra não sobre o prisma do que não é bom e não é bonito o
suficiente a partir dos padrões estéticos da nossa cultura, mas um
corpo reconhecido e projetado como desejável e perigozo, no senti-
do mesmo do perigo e do gozo, presentificação das fantasias inadi-
missíveis e inconfessáveis. Como lembra a pesquisadora e escritora
portuguesa negra Grada Kilomba (2016), @s negr@s acabam por
coincidir “com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também
o sujo, mas desejável” (p. 174), ou seja, com a representação da-
quilo com o qual o sujeito branco não gostaria de parecer e, assim,
permite à branquitude olhar para si como moralmente decente e ci-
vilizada, livre da inquietude que sua história produziria (Kilomba,
2016). Afinal, como Freud dissera já em 1923: “o homem normal é
não só muito mais imoral do que acredita, mas também muito mais
moral do que sabe” (Freud, 2013)
Como seria para Maria ver sua imagem no espelho quando,
socialmente, seu corpo poderia ser a representação daquilo que não
se quer admitir? Como diz Kilomba (2016): “não é com o sujeito
Negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o
que a Negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam,
mas sim o imaginário branco” (p. 175).
Aproximar-se deste corpo é aproximar-se deste imaginário,
aproximar-se do horror não pelo que seria feio, mas pelo que po-
deria despertar e causar de desejo e gozo. O horror viria ao sentir
que, ao despertar o desejo do outro, isso pudesse ser entendido
como justificativa e autorização para que este corpo fosse subme-
tido e utilizado a serviço do gozo de um outro dominador. O que
estamos apontando é que, embora se reconheça na parte teórica
destes estudos toda essa face do gozo invejado, o que fica salientado
138 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

na interpretação dos casos apresentados nas pesquisas brasileiras é


aquilo que seria feio e indesejável.
Esse íntimo, invejado mas insuportável, muitas vezes é aniqui-
lado num ato que pode ocorrer segregando e aniquilando aquele
que porta essa revelação do desejo e do gozo. Mas nunca é demais
frisar que essa aniquilação não acomete a todos de maneira igual:
não se dá ao acaso esta divisão entre os que são vistos como de-
gradados e desqualificados e aqueles valorizados, aos quais se
atribuem os emblemas fálicos da cultura, uma vez que isso está arti-
culado ao campo da dominação e manutenção de privilégios.
Em muitas situações em relação às mulheres negras, acredi-
tamos que é preciso recuperar o desejo inconfessável que está por
trás deste desprezo ou deste corpo fora dos padrões estéticos da be-
leza branca. Por mais doído que seja falar de um corpo que seria
socialmente desvalorizado, ainda parece uma via menos penosa do
que falar de um corpo que seria visto como fonte de desejos incon-
troláveis. A vergonha e a dor da mulher negra de portar um corpo
supostamente feio pode muito mais revelar o mal-estar pelo horror
e pelo medo de um corpo que poderia despertar o desejo desen-
freado e o gozo desarrimado de um outro.
É assim que vamos considerar as mulheres negras como
representantes de um gozo que seria outro, pois que seria
completamente sem amarras e sem limites, um Outro gozo.
Pensamos que é preciso recuperar a violência das reações sobre
elas, justamente a partir dessa representação, uma dominação e
submissão que se faz buscando cercear o seu gozo, supostamente
sem limites. É o que lemos na socióloga Lélia Gonzalez (1984), ao
apontar que a violência que recai sobre a doméstica precisa ser vista
como articulada a outra face desta mulher negra, a figura da mula-
ta, deusa no carnaval.
O racismo incluiria essa forma de segregar, rejeitar este gozo
que aparece como absoluto — o gozo do Outro — e escapar dele;
uma vez que trata-se de um campo sobre o qual ninguém tem res-
posta alguma e sobre o qual não há nenhum saber.
Racismo e sexismo 139

O escravizado e seus herdeiros:


efeitos e ameaças da “superioridade corporal”

No caso dos homens negros há inúmeras especificidades, mas


acreditamos que a formulação de um gozo invejado apresentada
acima pode trazer uma contribuição importante que seria extensiva
a eles. Ao nos falar de uma situação em que foi procurada por uma
senhora justamente por ser uma analista negra, Isildinha Nogueira
nos afirma que a sexualidade d@s negr@s é vista como a sexuali-
dade do animal, em que tudo seria possível: “Para nós, os negros,
no imaginário popular, a sexualidade é algo fora do comum, ani-
malizado, não está dentro dos padrões normais da sexualidade dos
humanos. O negro é o ‘quente”, é aquele que sabe tudo fazer numa
cama” (Nogueira, 2004, p. 110).
Entre os pouquíssimos artigos dedicados à subjetividade dos
homens negros que nos permitem articulações com a psicanálise,
podemos citar as pesquisas de Deivison Faustino que, juntamente
com Frantz Fanon, nos possibilitam esboçar algumas relações entre
o imaginário social que recai sobre eles, no que se refere à sexuali-
dade, e a violência a qual são submetidos.
Faustino (2014) lembra que quando o homem negro não é
invibilizado, sua representação aparece como um contraponto an-
titético do humano, uma aparição que só seria autorizada quando
“reduzida a uma dimensão corpórea, emotiva e ameaçadora, tal
como um King Kong descontrolado: tão grande, tão bruto, tão ne-
gro, com mãos rústicas e exacerbados instintos libidinais” (p. 83).
A comparação entre os sujeitos escravizados e os animais
sempre foi bastante comum no Brasil, tanto assim que é possível
encontrar uma grande semelhança entre os anúncios de fuga de es-
cravizados e desaparecimento de animais nos jornais do século XIX
(Vasconcelos, 2012). Também a historiografia brasileira por muitas
décadas contribuiu para a construção desse imaginário social: atri-
buía aos escravizados um papel passivo politicamente, os caracte-
rizando por uma animalidade e falta de freios em relação aos seus
instintos e um caráter promíscuo e ocasional das relações sexuais
(Slenes, 2013).
140 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

Essa fantasia que faria equivaler o negro ao animal expressa


a racialização da subjetividade tanto de brancos como de negros,
exaltando qualidades que seriam predominantemente corporais. O
negro aparece como se fosse uma máquina de sexo e são destaca-
das sua capacidade de dançar, suas habilidades manuais, desempe-
nho nos esportes, força física descomunal e a fantasia de que nunca
recuariam diante de uma ameaça ainda que isso pudesse implicar
no dilaceramento do seu próprio corpo (Faustino, 2015). Ou seja,
enquanto entre as mulheres brancas e negras a partilha se daria en-
tre a mulher santa-mãezinha e a mulher da vida, entre os homens
brancos e negros poderíamos dizer que a partilha se daria entre o
corpo-racional-intelectual e o corpo-animal.
Neste artigo, iremos nos ater a essa construção social que co-
locaria o homem negro como aquele que, supostamente, teria satis-
fações sexuais não reprimidas e às consequências e aos efeitos dessa
formulação. “Qualquer aquisição intelectual exige uma perda do
potencial sexual. O branco civilizado conserva a nostalgia irracio-
nal de épocas extraordinárias de permissividade sexual, cenas orgi-
ásticas, estupros não sancionados, incestos não reprimidos” (Fanon,
2008, p. 143). O desmedido do gozo atribuído ao homem negro no
imaginário social se faz presente pela fetichização e objetificação
como potência sexual e virilidade e no ideal do sexo a eles atribu-
ído. Tanto assim que Fanon destaca a desorganização do branco ao
se deparar com o corpo negro, situando a negrofobia como o po-
der da irrupção de um corpo sobre o outro: “Indo às últimas con-
sequências, diríamos que, através do seu corpo, o preto atrapalha
o esquema postural do branco” (p. 141). Deste modo, o negro seria
entendido como o não-eu do branco, o inassimilável.
A violência racista estaria relacionada a uma resposta a essa
construção imaginária do negro como detentor de um gozo pleno
e invejado: “será que o branco que detesta o negro não é domina-
do por um sentimento de impotência ou de inferioridade sexual?
Sendo o ideal de virilidade absoluto, não haveria aí um fenômeno
de diminuição em relação ao negro, percebido como símbolo fá-
lico?”. E o autor segue perguntando: “o linchamento do negro não
seria uma vingança sexual?” (Fanon, 2008, p. 139). O que nos pare-
ce fundamental frisar é que ainda que essa superioridade corporal
Racismo e sexismo 141

esteja no plano imaginário, como bem lembra Fanon, ela constrói


realidades e ao encarnar a potência genital acima da moral e das
interdições, recai sobre os homens negros de maneira maciça uma
tentativa de cerceamento, adequação e interdição. Contenções que,
sem dúvida, têm relações íntimas com os ultrajantes números de
encarceramentos e de mortes sobre os homens negros e pobres de
nosso país.
No entanto, é importante destacar que há aqui uma diferen-
ça importante no que se refere ao imaginário social atribuído aos
homens negros e às mulheres negras: se ambos teriam um corpo
capaz de um gozo absoluto, é preciso lembrar que elas o teriam a
serviço de um outro, dominador, o qual se beneficiaria deste. E
quanto aos homens? Os traços do passado que insistem em perdu-
rar de maneira não reconciliada, como nos diz Gagnebin (2010), os
mantém na condição de servos, na posição de subalternos, como
se, ainda hoje, não tivessem direito a uma vida digna e de prazer.
No entanto, no que se refere ao seu gozo sexual, seriam detentores
de uma “superioridade corporal” e como seria possível conciliar no
imaginário social esta suposta superioridade com esta suposta infe-
rioridade? No nosso entender, diferentemente do caso das mulheres
negras, em que a superioridade corporal a elas atribuída estaria a
serviço de um outro — dominador — os homens negros não se-
riam representados como detentores de um gozo sempre submeti-
do e a serviço de um outro. Porém, também não apareceriam como
portando um gozo do qual poderiam usufruir. O gozo desmedido
a eles atribuído aparece inúmeras vezes como um gozo indomável
e, ao mesmo tempo, como um gozo em relação ao qual não teriam
direito algum. Sem freios ou obstáculos, sem vias possíveis de sa-
tisfações mesmo que parciais e provisórias, o corpo destes homens
negros fica reconhecido como extremamente perigoso, violento e
capaz de submeter qualquer outro sem limite ou pudor, necessitan-
do e legitimando diferentes formas de contenção.
Essas questões parecem encontrar eco nas formulações de
Davis (2016) ao apontar para a construção social de um mito do
estuprador negro, a partir do levantamento de estudos e artigos
acadêmicos. Os trabalhos apontados por ela recorrem à tipifica-
ção do estuprador como o homem negro, de “minorias étnicas...
142 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

um homem pobre ou da classe trabalhadora” (2016, p. 184). Em


um país de maioria negra, com uma desigualdade econômica abis-
sal demarcada na cor da pele dos indivíduos pobres, a construção
imaginária deste mito do homem negro estuprador atualiza a ne-
cessidade de “proteção” da mulher branca, indefesa diante deste
detentor de um gozo primitivo, não civilizado, capaz de tudo fazer
para satisfazer suas necessidades corporais. Promove assim o dis-
curso que legitima diversos atos de violência de homens brancos
sobre eles, ameaçados por este perigoso potencial do corpo negro.
Nunca é demais lembrar que ao falarmos de “homens brancos”,
de “homens negros”, de “mulheres brancas” e de “mulheres ne-
gras” estamos falando desta segunda pele que constrói realidades
(Schwarcz, 2014) e produz identificações contingentes, mas não re-
lações necessárias e obrigatórias no laço social.
Este mito do estuprador, apontado no trabalho de Ângela
Davis (2016) nos parece um exemplo paradigmático do imagi-
nário que recai sobre os homens negros e nos permite retomar
alguns achados de Fanon: observando o comportamento das mu-
lheres brancas diante dos homens negros quando prestou servi-
ço militar em países da Europa, aponta que haveria um pavor não
dissimulado por parte destas ao receber um convite deles, ainda
que estes fossem incapazes de fazer algo contra elas. Descreve o
quanto elas sentiriam um temor ansioso frente a eles, por enxerga-
rem neles uma potência sexual alucinante, evidentemente expressos
na fala: “‘Sabe lá Deus como [os negros] fazem o amor! Deve ser
horrível!’” (Fanon, 2008, p. 139).
Os efeitos subjetivos desta depositação imaginária sobre os
homens negros de uma potência sexual alucinante, ainda merecem
a atenção da psicanálise que, como dissemos, pouco tem se dedi-
cado a abordá-los. Fanon (2008) já afirmara que o negro ficaria
eclipsado nessa representação e que isso traria uma série de conse-
quências sobre seu psiquismo. Retomando o trabalho de Deivison
Faustino, ele aponta uma trilha que nos parece preciosa: “O negro
que por algum motivo não corresponde a alguns destes estereóti-
pos vivencia um sofrimento psíquico intenso, pois além de não ser
reconhecido como homem por ser negro, não consegue ser reco-
nhecido como homem” (Faustino, 2014, p. 92). Cabe a todos nós,
Racismo e sexismo 143

analistas homens e mulheres, brancos e negros, a responsabilidade


de não deixar passar em branco essas questões e dar seguimento às
indicações que outros, antes de nós, tão corajosamente começaram
a enunciar.

Considerações finais

É fundamental se atentar para a dificuldade de cada um em


deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, como disse Lacan,
“eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando
por subdesenvolvido” (Lacan, 1973, p. 533).
O desejo de Fanon (2008) é o mesmo que o nosso: “quero
apenas uma coisa: que jamais o instrumento domine o homem.
Que cesse para sempre a servidão de homem para homem” (p.
189). Nesse sentido, que o homem negro ou a mulher negra não
sejam tomados por subdesenvolvidos, que não sejam obrigados a
se fazer cargo do insuportável de um gozo que não é o deles. Isso
não é algo que dependa só deles ou delas individualmente e sim,
exige que não estejamos nós, brancos e negros, numa relação que
promova e alimente a dominação. Esperemos que, ao questiona-
rem e questionarmos esses valores impostos de que precisariam ser
um “macho ao quadrado” (Faustino, 2014) ou uma mulher sobre a
qual não se tem nenhum respeito — seja a partir de diversas expe-
riências coletivas, seja através de intervenções psicanalíticas clínico
-políticas — estes homens negros ou mulheres negras possam fazer
frente a esse desamparo discursivo que os assolam e os aprisionam
em significantes tão rígidos, tão alienantes e tão limitados. E que
assim, cada mulher negra e cada homem negro possa construir um
caminho psíquico que inclua seu prazer e seu gozo com sua mar-
ca singular e única, não no sentido de uma suposta unidade, mas
única no sentido da unicidade: cada um não sendo igual nem a si
mesmo, nem a mais ninguém.
144 Ana Paula Musatti Braga, Priscila Santos de Souza

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Gestos de ódio à pele escrita:
o berro do chão, a cicatriz aberta

Ana Luiza Andrade

Para Rosi Isabel Bergamaschi Chraim

“Todos os poetas são filhos das tempestades”. (Cardoso, 2012, p.


320)

Quem quiser constatar o Brasil que apodrece aos poucos, basta


viajar e assistir chegar do sertão mineiro, por exemplo, um daque-
les sinistros vagões de vidraças descidas, com um rebanho pálido,
amontoados uns sobre os outros, e protegidos por um cartaz exte-
rior que diz “Moléstias contagiosas”. (...) É tempo de nos transfor-
marmos em abismo, antes de temê-lo tanto. À beira estamos, desde
que nascemos, e agora é preciso que afirmemos, ainda que seja pela
morte, pela violência ou pelo sacrifício, que conquistemos a nossa
possibilidade de existir. Teremos que encontrar a nossa própria for-
ma de governo. Teremos de encontrar uma solução pessoal através
do mais extenso e profundo dos choques. Não há valores a salvar,
porque ainda temos que criar os nossos verdadeiros valores. Sim,
agora sei o que responder: é por isso que me bato, pelo advento
dessa consciência reivindicadora, pelo Brasil realmente na posse
dos seus males e de seu destino. Sei também que esta tragédia nos
erguerá, porque o nada não engendra o nada, mas a proximidade
da destruição cria a necessidade da defesa. Sejamos sim, um vas-
to vagão de moléstias contagiosas, um veículo imenso que exala os
148 Ana Luiz Andrade

vapores mortais da revolta e da violência — mas em movimento.


(p. 255-256)
Lucio Cardoso escreve o texto acima durante a era Vargas.
É uma convocação ao ato, ao levante, à liberação do ódio peran-
te a podridão que toma conta do país. Mais recentemente, perce-
be-se que fatos tais quais voltam à tona, e semelhantes “moléstias
contagiosas” incitam nosso ódio, sobrepujam a nossa paciência,
destemperam nossa inércia. Assim escreve Cardoso na superfície
de seu diário sobre a reação a uma situação calamitosa no Brasil.
Superfície que é pele, que é partilha do sensível (Rancière, 2009, p.
73). Didi-Huberman (2017) em seu livro Cascas relata a sua excur-
são ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, e ao refe-
rir-se a “coisas de superfície” para “inscrever os farrapos de nossas
memórias”, registra melancolia e revolta e, inclusive, o meio de ar-
quivá-los: “Coisas que caem de nosso pensamento e que denomi-
namos livros. Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de
imagens e textos montados, fraseados em conjunto” (p. 73).
Em sua busca na memória, como um arqueólogo, literalmente
caminha no livro com o desejo de revolver a terra (Benjamin, 1995),
para escutá-la, e olha intensamente para ela pois, segundo ele:
Birkenau continua um sítio arqueológico. É pelo menos o que
resta para ver, ali onde quase tudo foi destruído: por exemplo,
chão fissurado, ferido, varado, rachado. Escoriado, dilacerado,
aberto. Desagregado, estilhaçado pela história, um chão que ber-
ra. (p. 239)
Esta terra ferida em que pisava vai coincidir com o lugar das
árvores de bétulas, a matéria prima do papel ou a página do livro
que escreve: em todo o caso, lugar impregnado da memória do
genocídio nazista dos judeus, levando-o a perscrutá-la por algum
sinal que pudesse ter ficado do que ali se passou, com o desejo
melancólico de desenterrar os mortos que ali caíram. Um sítio
que conclama nossa indignação, nos enche de inconformismo, e
é parte de nosso passado. Mas o livro é, antes de tudo, feito de
cascas de bétulas (origem da palavra Birkenau) tipo de árvore da
região, e que sendo do mesmo material do papel do livro (celulo-
se) poderia ser considerado, com Gagnebin (2006), um “pequeno
Gestos de ódio à pele escrita 149

túmulo de palavras” (p. 112). Não à toa o seu nome é, de fato,


Cascas.
O sentimento odioso contra o nazismo estende-se, pois, tanto
a livros descritos como “pequenos túmulos” em seus gestos de le-
vante (Didi-Hubermann, 2017, p. 27), com o sentimento que move
Lucio Cardoso (2012, p. 729-730), em princípio, ao acenar o seu li-
vro como uma faca diante de uma Minas inerte, como a livros de
gestos melancólicos que movem Lima Barreto, Clarice Lispector e
Osman Lins, escritores que marcam e são marcados pelo fracasso
de suas respectivas personagens Clara dos Anjos, Macabéia e Maria
de França. Essas vítimas de um mundo masculino brutal provocam
um ódio inconforme no leitor. Mas essa memória arrisca-se a “per-
der[-se] no vazio” do esquecimento não fosse o livro esse arquivo,
esse “pequeno túmulo” onde se inscreve análogo gesto de potencial
levante.
No entanto, inscritas em suas páginas as vítimas, como sob
um chão de terra, sua revolta contida pelo medo é como o grito
abafado de ódio, tendo cerceado até mesmo o seu direito à voz. Pois
aí mesmo onde existe esse “direito ao grito” mencionado em um
dos títulos de Clarice Lispector1 transferem-se as marcas da pele
das vítimas às palavras arranhadas no papel, e, ao serem devolvidas
essas letras mortas à superfície da página insurgem-se ao brotarem
do mesmo “chão que berra” (Didi-Hubermann, 2017, p. 27) de um
campo de concentração onde só restam “cascas” em memória des-
ses mortos. Uma escrita, portanto, que se busca na memória com o
olhar, com a escuta, e com o ato de escrever como modo de trans-
formar a dor, para superá-la.
Lima Barreto seria considerado precursor literário tan-
to de um discurso íntimo em seu diário, cujo gesto, num misto
de impotência e ódio, precursor do próprio Lucio Cardoso, tor-
na-se também sarcástico ao fingir domesticá-lo, ao adquirir um
tom característico de que depois se utiliza Osman Lins (1975) no

1. “O direito ao grito” é um dos títulos de A hora da estrela, de Clarice


Lispector (1979).
150 Ana Luiz Andrade

tratamento de Maria de França em suas idas e vindas frustradas aos


órgãos públicos. Indefine-se então um espaço cuja memória limiar
situa-se entre público e privado, entre gestos melancólicos (de espe-
ra) e insurgentes (de acusação) entre o sentimento do ódio e o le-
vante. Assim também Clarice Lispector (1992, p. 184) com relação
à brutalidade de um mundo que estraçalha “Mineirinho” o bandido
que morre pelos disparos que excedem em muito a quantidade ne-
cessária para matar. Ao morrer 13 vezes o bandido mata inclusive
a narradora. Desde então esse tão esperado “direito ao grito” acaba
por nunca se soltar também em Macabéia em A hora da estrela.. Há
no final desse livro uma demora (Derrida, 2015) que parece infinita
no retardamento da dor na hora da morte, quando o gesto insur-
gente se contém no corpo agônico, pendurado por um fio no tem-
po, no espaço limiar entre o anúncio de sinos que “quase, quase”
badalam (Lispector, 1979, p. 103) e as explosões que, prenunciado-
ras das catástrofes, aparecem no texto contidas entre parênteses (p.
921, 992, 993).
De outra parte, o espaço insular de que fala Osman Lins
(1976) em seu estudo de Lima Barreto, poderia ser comparado ao
espaço “fora da clausura” a que se refere Peter Pal Pelbart (p. 1989)
enquadrando-se nele este gesto potencial de ódio que parte de um
mundo de força animal, machista, ameaçadora. Gesto enlouque-
cedor. Principalmente em Clara dos anjos (Lima Barreto, 1948, p.
635), e, na sequência, Cemitério dos vivos (Lima Barreto, 1956, p.
1377) não só se articula de modo similar, mas preludia a rede ar-
mada pelo biógrafo,2 análoga à que prepara a escritora-personagem
Julia Enone, verdadeira autora de Maria de França, de Osman Lins.
Redes que se armam estrategicamente para uma maior contenção
dos sofredores das “moléstias contagiosas” a que se refere Lucio
Cardoso. Note-se a propósito das doenças contagiosas que Freud
em uma palestra revolucionária nos Estados Unidos (1909) contra

2. Osman Lins (2001) cita o biógrafo de Lima Barreto, Francisco de Assis


Barbosa (autor de A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro; Tecnoprint,
1967) em artigo “Lima Barreto. Um escritor que não silenciou sobre seu
tempo”, p. 66.
Gestos de ódio à pele escrita 151

a moralidade sexual burguesa declara que “eles (os americanos)


não estariam sabendo” naquele então que ele lhes estaria “levando
a peste”.3
Entretanto, as analogias entre esses personagens empestea-
dos, isolados ou excluídos, equivalem ainda aos “abandonados” no
sentido atribuído por Agamben (2004)aos que se excluem ou são
expulsos do bando, ao serem literalmente “a-bando-nados” pela
história, aproximando-se a um estado de “vida nua” ou estado de
excessão. Acabam por se constituirem nos que poderiam ser aqui
considerados, enquanto livros inscritos no ato de escuta/olhar em
memória de suas vítimas (como o fez Didi-Huberman), como três
“livro(s) de fracassos” (Lins, 1975, p. 138) Clara dos anjos, A rainha
dos cárceres da Grécia e A hora da estrela) por se tratarem de livros
em que molduras narrativas se armam como “armadilhas” às suas
personagens tecidas inexoravelmente por um fio traiçoeiro que ser-
ve para atraí-las às “mortes [que] aí, são [as próprias] geradoras dos
textos que as relatam” (p. 141). Cicatrizes sempre re-abertas à pele
da escrita (Gagnebin, 2006, p. 112). E daí também, livros-túmulos
levantados em memória de suas vítimas.
Mas, antes de tudo, destaca-se que, cercadas e até enclausura-
das as vítimas, elas são ironicamente exiladas de modo semelhan-
te ao do próprio escritor Lima Barreto, que é quem primeiro nos
conduz `a própria arapuca do escritor como a de um ser excluído
do mundo. Por isso Lima Barreto, mais que ninguém um “filho da
tempestade” (no dizer de Lucio Cardoso) ao repelir o mundo da
dor, se veria convocado por uma escrita denunciadora, que, como
as escritas de Osman Lins e Clarice Lispector, teria face dupla: a de
escreverem sobre esse mundo e ao mesmo tempo a de serem por

3. Cito Lacan a respeito deste que ficou conhecido como o “mito da peste” de
Freud: “É assim que o dito de Freud a Jung, de cuja boca o ouvi, quando,
ambos convidados da Univerdade Clark, avistaram o porto de NovaYork e
a célebre estátua que ilumina o universo, “Eles não sabem que lhes estamos
trazendo a peste” é-lhe devolvido como sanção por uma arrogância cuja
antífrase e perfídia não extinguem seu brilho perturbador.” In: Escritos,
1998, p. 404.
152 Ana Luiz Andrade

ele escritos ou até “nele inscritos”, acabando por trabalhar a super-


fície do texto tal como uma pele em carne viva, que reage à dor, po-
rém fadada à morte; superfície dramática , ou até catastrófica, que,
como a terra dos lugares de memória, assim como a de um cam-
po de concentração, podem chegar a trazer à tona “lascas de pele,
carne germinando” (Didi-Hubermann, 2017, p. 72). Estes espaços
em que a natureza se faz fantasma da catástrofe, lembram a cena
exemplar em que, num átimo de segundo repentino, a memória
se desperta na pele, tal relâmpago anunciando a volta à dor da es-
cravidão: uma cachoeira de água límpida se transforma em água
sangrenta a cair copiosamente sobre as cabeças de visitantes de um
engenho antigo, nos dias atuais.4
O diário de Lima Barreto (1953) se torna então a passagem
da clausura do sonho à da obsessão (o mundo da loucura)... que é,
com Peter Pàl Pelbart, o “fora da clausura”, e até mesmo o leva à
vontade do suicídio confessada no seu Diário íntimo :
Há dias que essa vontade me acompanha; há dias que ela me vê
dormir e me saúda ao acordar. Estou com vinte e sete anos, te-
nho feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente
nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em ex-
plosões; sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e
responsabilidades.
(...)! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a
inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade,
isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte. (p. 135)
A catástrofe dos sonhos malogrados separam-no da huma-
nidade com H maiúsculo, gerando a insegurança de viver, levan-
do-o à loucura e à autodestruição já anunciadas nos seus romances

4. Trata-se de uma cena em O som ao redor, filme do diretor Kleber


Mendonça Filho, de 2013, que num instante de esfregar olhos de incredu-
lidade, o expectador acorda inesperadamente para uma memória viva das
dores da escravidão que ainda estavam presentes naquele engenho antigo
quando esta cachoeira relampeja a dor dos escravos ao verter sangue
nas cabeças dos figurantes. Produção Cinemascópio, produtora Emile
Lesclaux.
Gestos de ódio à pele escrita 153

(Triste fim de Policarpo Quaresma; Vida e morte de Gonzaga de Sá;


Recordações do escrivão Isaías Caminha), e mostram um corte ra-
dical entre o social e o individual, entre o exterior e o interior, o
que corresponde à passagem de um trajeto na linguagem que vai
do romance literário ao cotidiano jornalístico, e de uma literatura
realista que pretendia-se objetiva e “convencional”, a uma literatura
íntima (Freyre, 1964, p. 109). Lima Barreto recorre ao ato de escre-
ver como transformar a dor, transforma(r)/dor.
Mas o corte mencionado ocorre na própria trama romanes-
ca. Sendo resultante, por sua vez, de uma fenda que reemerge à
pele da escrita em seus “espaços de lembrar”, ele incide sobre essa
superfície de celulose ao fazer-se também terra-mãe de escritores
melancólicos (Benjamin, 2004), exibindo-o na sua separação do
mundo: cicatriz de ferida simbólica sempre reaberta na pele da me-
mória Gagnebin, 2006).5 Assim como em Clara dos Anjos (primei-
ra versão) corte semelhante vai ressurgir em Rainha dos cárceres,
de Osman Lins, com Maria de França, e em A hora da estrela, de
Clarice, com Macabéia. Trata-se, ademais, de cortes que ocorrem
na forma de “estupros” nas tramas desses romances. Alegóricos de
um mundo machista violador do mais íntimo do ser, de um mun-
do por assim dizer “estrupador”, um mundo truculento de violência
que no mais brutal de todos os atos, se faz análogo à morte, ou ao
feminicídio por interrupção brusca, este corte leva à descontinuida-
de do ser, ao descompasso definitivo; causa de um profundo abalo
entre o sujeito e o mundo.
Ora, esta violação de corpo e espírito repercute e se propaga
em cicatrizes abertas de cortes semelhantes na esteira barretiana.
Explosões irônicas em A hora da estrela para indicar uma trilha so-
nora imaginária, sensacionalista e machista; mas explosões sempre
entre parêntesis para indicar essa contenção. Ou seja, tanto nes-
te romance como em ‘Mineirinho” a pequena catástrofe individual

5. Aí Gagnebin cita Enzo Traverso para o ”acoplamento entre técnica e


barbárie diante do qual a humanidade européia sucumbiu” e a exemplifica
com a “condenação escrita na pele” em A colônia penal, de Kafka (p. 141).
154 Ana Luiz Andrade

se espelha na catástrofe de um cenário cultural e político violento


maior que oprime, subjuga, domina. No contexto em que viveu Lima
Barreto, contemporâneo da abolição dos escravos e do início da
República esta violação do ser humano se traduz num percurso his-
tórico, político e jurídico que vai do sonho à catástrofe. Lê-se, por-
tanto, no Diário íntimo de Lima Barreto (1961) notas corroborando
este percurso: “Sobre os homens: “Princípio-macho na civilização-
útil; princípio-fêmea – sonho” (p. 104). Sobre as mulheres: “Mulher
bonita é que não falta nesta vida, o que falta é a mulher de que a gen-
te goste” (p. 124). Sobre ser negro: “É triste não ser branco” (p. 130).
As notas negativas barretianas, em vista do que era socialmen-
te vigente, correspondem, nos romances, a índices autobiográficos
de elos de sonhos que se rompem, paradoxalmente, desde o próprio
Diário Íntimo de Lima Barreto. De fato, este continha, auspiciosa-
mente, à moda de Guerra sem testemunhas de Osman Lins (1974),
um projeto ensaístico de escritor empenhado subjetivamente na
busca de uma continuidade social correspondente à suas origens
tanto por serem representativas de uma época que enseja o desejo
da libertação, quanto porque , conforme a intenção barretiana, ser-
viria para o cumprimento de uma pesquisa maior, a de escrever o
“arquivo da história da negritude” (Lima Barreto, 1961, p. 33).6
Ele declara: “Nasci sem dinheiro, mulato e livre” (p. 130). Na
impossibilidade de uma liberdade de fato, ele se vê recompensado
por escrever um arquivo imaginário que o libertaria, e que vai para
além de um gesto de desejo do próprio registro de origem, à sua
ligação com uma comunidade negra: a partir de um romance ina-
cabado como o primeiro Clara dos anjos (p. 217), contido no Diário
íntimo, ou no Cemitério dos vivos (1956), define-se a memória da
negritude como tema obsessivo em todos eles, ao se construírem,
inclusive, como extensões do Diário. Em Lima Barreto, o corte en-
tre o sonho e sua impossibilidade coincide ao do confronto com
um mundo que o rejeita.

6. Cito: “No futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua


influência na nossa nacionalidade”.
Gestos de ódio à pele escrita 155

Memória do corpo: despertar a pele


— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.
(João Cabral, Morte e vida Severina)
A partir de um lugar de memória que se desperta num mes-
mo espaço ou chão de escrita, pode-se abrir ao menos três cami-
nhos ou percursos como “cascas” vindas à tona por uma escuta e
um olhar intensos dirigidos à terra enquanto pele, superfície do
sensível. Portanto, faz sentido traçar termos de comparação entre
(1) os já mencionados gestos de rememoração de Didi Huberman
(2017) lidos através das cascas das árvores no campo de concentra-
ção em Cascas; (2) os percursos de uma memória da escravidão de
Euclides da Cunha, em um texto curto sobre as impressões de um
viajante nas bordas paulistas do Parahyba, intitulado “Entre ruínas”,
de 1904,7 e (3) o texto confessadamente imaginário de Lima Barreto
(1961, p. 131) ao pisar na terra de antepassados que é São Gonçalo,
município limítrofe de Niterói no Rio de Janeiro, no dia 10 de feve-
reiro de 1908.
É preciso destacar um mesmo gesto de olhar o chão destes
personagens viajantes ou escritores/ arqueólogos/ melancólicos
que, ao fixarem-no na terra, colocam em movimento o luto8 e o de-
sejo de busca de desenterrar as memórias de um “chão que berra”...

7. Euclides da Cunha, “Entre as ruínas”. Este ensaio foi publicado pela


primeira vez no jornal O Paiz, Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1904.
Também em Contrastes e Confrontos (Porto Empresa Literaria e
Tipográfica, 1941). E, finalmente, a partir da 8. ed. do livro de 1941, em
Ruinologias ensaios sobre destroços do presente, 2017, p. 281.
8. “O luto coloca o mundo em movimento.” Traduzo as palavras de Didi-
Huberman “Le deuil met le monde en mouvement” em conferência na
internet. Disponível em: <https://vimeo.com/187967351: Séance III
Soulevements gravado em outubro de 2016. Acesso em 15 out. 2017).
156 Ana Luiz Andrade

Daí reações como: “Em Birkenau , um abatimento particular peran-


te a história sem dúvida fez minha cabeça abaixar um pouco mais
que o normal” (Didi-Huberman, 2017, p. 28). Mais adiante este
gesto se liga à lembrança dos nomes das pessoas:
Embora cerca de oitocentas pessoas chamadas Huberman cons-
tem dos registros dos mortos da Shoah, não me sinto em condições
de retornar a Auschwitz-Birkenau, como declarava legitimamen-
te Paula Biren, uma sobrevivente do campo, diante da câmera de
Claude Lanzmann. ‘Muitas vezes eu quis. Mas o que veria? Como
enfrentar aquilo? [...] Como voltar àquilo, visitar? (p. 30)
E completa:
Mas hoje, para mim, nesta página, para qualquer um diante de um
livro de história ou no território de Auschwitz, é a necessidade de
não se resignar a esse impasse da imaginação, esse impasse que foi
precisamente uma das grandes formas estratégicas — via mentiras
e brutalidades — do sistema de extermínio nazista. (p. 31)
Portanto, aqui há três histórias e um mesmo chão de memó-
ria. E se naquela ocasião Didi-Huberman confessa ter olhado as
árvores “como alguém que interroga testemunhas mudas” (p. 71),
diferente dele, pois ligado a um período da história brasileira pós
-abolicionista, Lima Barreto tem intrínsecas ligações à história de
um passado escravocrata, e já sabia que sua avó pertencia à na-
ção rebôlo, tendo sido escrava de uma família conhecida em São
Gonçalo, quando perscruta o chão em que pisava naquele momen-
to. Este dado biográfico de Lima Barreto se reflete na biografia de
Clara, que também já vinha de uma segunda geração pós-abolição.
E como se lê no Diário, ele não se resigna ao impasse do apagamen-
to dos rastros escravocratas, mas busca convictamente sua proce-
dência africana e a comenta neste passeio muito significativo a São
Gonçalo; e é este que nos lembra de perto o de Didi-Huberman a
Auschwitz, apesar da distância que os separa no tempo e no espaço:
Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída sobre
a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera
urbana, para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há tam-
bém as velhas casas de colunas heterodoxas e varandas de parapei-
to, a lembrar a escravatura e o sistema da antiga lavoura. Corre o
Gestos de ódio à pele escrita 157

caminho por entre colinas, há pouca mata, laranjeiras muitas, algu-


mas mangueiras.
Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da mi-
nha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de
algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam
vagas notícias das origens da minha avó materna, Geraldina. Era
de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram lavradores os Pereira de
Carvalho, de quem era cria.
Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais
simpatia. Eram muito novas, nenhuma delas teria visto minha avó
passar, caminho da corte, quando os seus senhores vieram esta-
belecer-se na cidade. Isto devia ter sido por 1840, ou antes, e ne-
nhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto
eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho que
me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus.
Quem sabe eu não tinha parentes, quem sabe eu não tinha gente
de meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia,
passivos e indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que
as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços vão pelo
oceano afora, sem consciência de seu destino e de sua força inte-
rior. (Lima Barreto, 1961, p. 131)
O caminho trilhado por este observador/leitor de caminhos
antigos nos traz à pele da memória o texto lido nas cascas das bé-
tulas de Didi-Huberman. Na falta das cascas, os traços de seme-
lhança com o menino que atravessa o desperta para uma possível
origem em comum, ou a própria gênese desse lugar de memória...
Mas este chão brasileiro nos aproxima historicamente dele, porém
sendo posterior ao de Euclides da Cunha. Neste último, “Entre rui-
nas”, a grafia de cruzes enfileiradas que o viajante observa é de 1904
enquanto o de Lima Barreto é de 1908. O viajante de Euclides, ao
rememorar as ruínas de uma plantação de café onde brota do chão
uma fileira de cruzes ao longo do caminho, como o de um peque-
no cemitério de escravos, reabre o arquivo de uma escravidão re-
cém-abolida (1888). Nessa lembrança análoga ao caminho de terra
percorrido por Lima Barreto e Didi-Huberman ao revisitar esses
lugares, ou mesmo cemitérios (um que já não tem mais cruzes)
existe um “eu” que se reparte em dois, entre a dor do escravo (ou do
158 Ana Luiz Andrade

judeu) e a alegria de porventura encontrar ali a possibilidade de um


nome conhecido, ou, no caso de Lima Barreto, de imaginar traços
semelhantes de prováveis parentescos. No entanto, no final, se sin-
tetizam as três superfícies lidas numa mesma e única memória his-
tórica da catástrofe, aquela suscitada pela veemência de um apelo: o
berro do seu chão.
No caso de Lima Barreto, a dos escravos africanos de origens
apagadas pela queima de arquivo que foi justificada como o apa-
gamento de uma mancha de vergonha por Rui Barbosa, e assim
também as origens de sua própria família, que se reduz a uma es-
crava de nome Geraldina Leocádia da Conceição, sua avó mater-
na. Análoga tentativa de apagar os rastros aconteceu em Auschwitz
pelos alemães (Gagnebin, 2006, p. 115-117),9 tanto que a paisagem,
as árvores, as folhas, as cascas das árvores pedem para ser lidas pe-
los que aí visitam, como últimos traços/grafias/gritos de dor des-
se chão. Daí o desejo de ler nas superfícies das cascas das árvores
como se fossem árvores genealógicas, ou arquivos-vivos dos restos
mortais de tantas famílias exterminadas. E de fato, este apelo é es-
cutado por Didi-Huberman ao mencionar o fato incontestável de
que estava pisando “no maior cemitério do mundo”, o que traz à
tona o texto de Euclides da Cunha (2017) com as suas fileiras de
cruzes, que se referem também a um cemitério, mas aqui de escra-
vos e não de judeus. De vítimas, em todo o caso. Euclides também
caminha num chão de memória por “alinhamentos primitivos”,
“por onde subiam, outrora, as turmas dos escravos”, e
tombando aos pedaços nas “corridas da terra” depois das chuvas
torrenciaes, (e) expõem agora, nos barrancos a prumo, em acervos
de blocos, a rígida ossamenta de pedra desvendada, ou alevantam-
se despidos e estéreis, revestidos de restolhos pardos, no horizonte
monótono, que abreviam entre as encostas íngremes... (p. 284)
Ora, essa observação de uma natureza fantasmagórica de ou-
tros tempos por Euclides da Cunha evoca assustadoramente o mo-
mento em que Didi-Huberman (2017) descreve as “inundações

9. Aí Gagnebin nos lembra, a propósito, o famoso poema de Brecht, “Apagar


os rastros”.
Gestos de ódio à pele escrita 159

provocadas pelas chuvas” no campo de concentração, ao terem tra-


zido “incontáveis lascas e fragmentos de ossos à superfície, de ma-
neira que os responsáveis pelo sítio se viram obrigados a aterrá-lo
para cobrir essa superfície que ainda recebe solicitações do fundo,
que ainda vive do grande trabalho da morte” (p. 63). Euclides da
Cunha denuncia naquele então: “Justifica-se, ao menos, como se,
de facto, por ali vagassem, na calada dos ermos, todas as sombras
de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza em ruínas.”
O despir-se da natureza pode ser lido na grafia euclidiana quando
pedaços escuros se desmoronam na chuva para despertar a memó-
ria na nudez da pedra despojada de suas carnes qual “ossamenta”.
Neste lugar de memória, Euclides traz à superfície os esqueletos dos
escravos mortos.
Assim também, em sua ida a São Gonçalo, Lima Barreto regis-
tra a passagem por umas casas novas que “não” teriam visto a sua
avó passar, essa sua avó que tinha sido escrava no tempo da monar-
quia, e que teria habitado aqueles caminhos com a venerável idade
de setenta anos. No entanto é notável que mesmo que estas árvores
não a tenham visto, e que ele, Lima Barreto, como observador das
ruínas da escravidão se redescubra no espaço do chão daquele tem-
po, inconformado com a falta de continuidade com aqueles de sua
descendência, ao conseguir até enxergar resíduos de si mesmo nos
traços de um molequinho que estaria passando por ali naquele mo-
mento. Se atentarmos à escuta deste chão barretiano, por uma “apa-
rente” obra do acaso, a história do Brasil e a sua biografia coincidem
(daí a importância de ele tocar aí numa questão nacional) pois a
nação rebôlo da qual provinha a avó se confunde à nação brasileira
que se povoa com os navios negreiros. Daí se poder concluir que ao
escutar os gritos desse chão de sua pele negra, Lima Barreto escre-
ve, na intensidade de uma grafia de desejo, a história dos negros no
Brasil, ou, pelo menos, um importante fragmento dela.

A hora da estrela como livro-túmulo em memória de Macabéia


Grafias, portanto, que se inscrevem no corpo do texto como
memória de catástrofes. Grafias que se gravam, que se inscrevem à
pele da escrita enquanto corpo. Grafias que se estendem também
160 Ana Luiz Andrade

aos três “livros de fracassos” mencionados desde o início também


enquanto livros- túmulos de memória com relação às vítimas de es-
tupro, na referência direta àquilo que nos toca como a violência de
um poder dominador. Mas agora as grafias se estendem a um chão
que berra na cidade, despertando-nos às ocorrências paralelas en-
tre a personagem Clara dos Anjos do romance homônimo, assim
como com Maria de França de Rainha dos cárceres da Grécia ou a
Macabéia de A hora da estrela.
Em A hora da estrela, como nos dois “livros de fracassos”
ou “pequenos túmulos de livros” mencionados, Macabéia sonha
através da moldura narrativa de Rodrigo SM e da própria Clarice
Lispector (que não quer “lacrimejar piegas), e sucumbe às previsões
sedutoras de Madame Carlota sobre um gringo rico, Hans, que se
apaixonaria por ela. Sonhadora e feliz quando, na saída, “enorme
como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a — e nes-
te mesmo instante em algum único lugar no mundo um cavaleiro
como resposta empinou-se em gargalhada de relincho” (p. 95). O
detalhe do cavaleiro em sua gargalhada de relincho leva um pos-
sível humor sarcástico de Lima Barreto ao machismo animalesco
através da truculência assumida pelo narrador Rodrigo SM : não se
trata de um estupro literal, mas, mais que isso, se trata de violação
física pelo enorme impacto da colisão que destrói, no ato, todas as
expectativas e com elas a vida de Macabéia. Enquanto Macabéia
luta por sua vida, agonizante, o narrador hesita e reconsidera, per-
versamente, se vai desistir de matá-la ou não, perguntando-se, en-
tre outras coisas, se o que escreve é um melodrama, se a deixa na
rua, desistindo de escrever sem terminar a história. Mas não desis-
te. Cito: “Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a gran-
de ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva,
leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei: eu
não preciso da piedade de Deus. Ou preciso?” (p. 100)..E essa nar-
radora é “em verdade Clarice Lispector”, a que não omite os deta-
lhes mais sórdidos do sofrimento de Macabéia nos estertores da
morte. Ela então exala, junto com sua própria vida, nas palavras de
Lucio Cardoso, os “vapores da revolta e da violência” essa sua peste
(Freud) que vem se espalhar, no vômito em forma de estrela, sujan-
do, de modo abjeto, o chão de asfalto da cidade.
Gestos de ódio à pele escrita 161

Este choque tão forte — de um mundo truculento do qual


muito cedo ela seria excluída — já se anunciava nos escritos de
Lispector desde o conto “Preciosidade” (2009) quando a menina
adolescente e dantes preciosa se vê agredida por “mãos que não ti-
nham vocação” (p. 82) e que se levanta após o confronto brutal que
a derrubou na rua, podendo esta cena ser considerada nos limiares
entre mente, escrita e corpo. Pois a volta da menina para o mundo
se faz lenta, com o arredondamento da letra, com efeito, outra letra
dele renascendo ao denunciar-se em sua escrita algo de mais resis-
tente, mais feminino.
De outro lado, ou seja, do lado do mesmo mundo machista e
sem mudanças, um recente artigo jornalístico atualiza dados bom-
básticos comprobatórios de uma gravidade factual que poderia
surpreender:
O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo.
Feminicídio não é qualquer assassinato de uma mulher; no ano
passado, houve 5.657 registros de mulheres assassinadas, e 533
deles eram feminicídios. Há feminicídio quando uma mulher é
morta por ela ser mulher. A lei do feminicídio (13.104/2015) reco-
nhece nele um crime de ódio: trata-se de odiar e matar uma mulher
por sua diferença, por ela ser mulher. Esse ódio do diferente está
presente em grande parte da violência contra a mulher: o estupra-
dor, por exemplo, não age por gostar “demais” das mulheres e não
conseguir se controlar. O inenarrável deputado Jair Bolsonaro fala
como se quisesse estuprar mulheres que acha gostosas. É um erro
primário: sem exceções conhecidas, quem estupra odeia a sua víti-
ma (e o feminino em geral) (Calligars, 2017).
A verdade dos jornais dói, porém é apenas estatística. A dor
da verdade na pele das vítimas é bem maior e fica inscrita nas cas-
cas das árvores, nos “ossamentos” das pedras, em inesperadas ca-
choeiras de sangue, na vergonha da própria exposição da nudez, no
sofrimento enfim, gravado em letras inscritas na memória, grafias
na celulose de livros-túmulos, páginas viradas do luto em adoles-
centes preciosas.
Nesta superfície, e de modo mais abrangente, o corpo do tex-
to feito chão de escrita recordará as cruzes, os cortes e as feridas
abertas indicativos das catástrofes; assim como as paredes cheias de
162 Ana Luiz Andrade

palavras, expressões humanas nos muros das prisões (Lins, 1979) e


a dura transformação sofrida deixada por elas; os “vapores mortais
da revolta e da violência” de gritos contidos nos vagões de bandos
de gente amontoada levando a peste, “doenças contagiosas” como
as étnicas, as do corpo feminino e do corpo negro ou judeu, as dos
refugiados, as inomináveis, as abomináveis, a vida nua, enfim, re-
sidual de lugares desenterrados mas sem enterro, na medida em
que, mais do que nunca, suas cicatrizes abertas se expõem numa
terra-mãe e madrasta. Neste quadro desolador em que os livros se
escrevem à pele sensível, a urgência de um gesto unânime, incon-
formado e solidário de erguer o livro como um punhal levantado
contra o mundo se faz maior.

Referências

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Rancière, J. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. de Mônica Costa
Neto. São Paulo: Editora 34, 2009.
Filme
O som ao redor (2013). Direção Kleber Mendonça Filho, Roteiro Kleber
Mendonça Filho, Produção Emile Lesclaux, Diretor de fotografia Fabrício
Tadeu e Pedro Sotero. Montadores: Kleber Mendonça Filho e João Maria.
Diretor de arte: Juliano Dornelles. Produção Cinemascópio.
Lugar de fala e apropriação
cultural nas novas mídias:
verdade, fragmentação e
ntolerância na política

João Angelo Fantini

Se a psicanálise deixou um legado talvez tenha sido descons-


truir o senso comum de que há equivalência direta entre o que se
pensa saber e a verdade que se fala. Nesta fala, diz Lacan, não há
fatos ancorando ou não, mas a atualização da história deste alguém,
uma verdade que se revela numa estrutura de ficção, uma divisão
entre o saber e a verdade.
A fantasia que se articula no inconsciente organiza o discur-
so do sujeito, e protege sua fragmentação, organizando um lugar de
onde se fala de forma integrada sobre si mesmo, contando sua his-
tória, seus feitos, suas experiências, enfim, algo que desta fala tem
um estatuto imaginário de verdade. Temos deste modo que para
Lacan saber e verdade se situa como Je e o Moi, aquilo quem em
Freud é Ego e Id. Enfim, o sujeito de Lacan não é o que na época
dele seria o “homem do Humanismo”, mas o sujeito que fala.
O objetivo deste texto é precisamente dialogar sobre o uso
das noções de “lugar de fala” e “apropriação cultural” em suas di-
mensões políticas, mas também como dimensão imaginária, bem
como os possíveis ganhos e perdas desta posição de enfrentamento,
da perspectiva do fortalecimento do discurso, da perspectiva da in-
terlocução com o outro, objeto de convencimento em um processo
que poderia ser chamado de educativo.
166 João Angelo Fantini

Especialmente nos últimos anos temos assistido a um movi-


mento interno dos chamados grupos de excluídos que congregam
especialmente negros, gays e mulheres em movimentos políticos
que atuam com identidades de gênero, raça e orientação sexual. Ao
longo da história, estes grupos tiveram seu discurso deslegitimado
pelos grupos dominantes, mas, últimos anos, estes vêm ganhando
força e ocupando lugares importantes na vida pública em diversos
lugares do mundo, inclusive o Brasil.
Embora a origem do termo “lugar de fala” não seja precisa
(nos termos que usamos hoje para nos referirmos ao seu emprego
nos movimentos políticos), é comum apontar sua origem no de-
bate feminista americano dos anos 1980. Pablo Ortellado (2017)
afirma que o conceito como conhecemos agora teria aparecido pela
primeira vez descrito pela filósofa panamenha Linda Alcoff e no
ensaio da professora indiana Gayatri Spivak (1988). Sua origem es-
taria vinculada as Teorias da Enunciação para evidenciar uma certa
posição do olhar de onde se fala, organizando formas de interven-
ção na realidade. De outro lado ainda, o conceito apontaria uma
busca pelo fim da mediação, tornando a pessoa que sofre qualquer
forma de intolerância como protagonista do discurso na sua luta.
O contraponto epistemológico positivo do argumento é o da auten-
ticidade e o do conhecimento respaldado pela experiência direta —
isto é, a ideia de que ao contrário do que pensa o preconceito, que
desqualifica quem fala por vir do lado de baixo da hierarquia so-
cial, é justamente essa condição subalterna que qualifica o discurso
sobre a opressão, porque o faz com conhecimento de causa, com
autenticidade, com a convicção e a verdade de quem experienciou,
sem mediação. (Ortellado, 2017, p. 3)
A expectativa de que experiência/vivencia pessoal daria subs-
trato de verdade à fala equivaleria dizer que experiência e compre-
ensão mantém uma relação sem divergência. Desta perspectiva, a
psicanálise poderia participar do debate a partir do pressuposto
básico de sua existência, pois como Freud percebeu na sua clínica
desde o inicio, o que é percebido como história pessoal para um su-
jeito quase sempre está enviesado pelo sintoma e pelo inconscien-
te, o que não significa que isso deva ser descartado no processo de
compreensão do sujeito a respeito da sua realidade.
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 167

A ação política nas últimas décadas parece buscar por signifi-


cantes que sejam,
capazes de reconfigurar o pacto social em direções plurais, sus-
pendendo tais recalcamentos atávicos na sociedade brasileira. A
revindicação atual de “lugar de fala”, pela afirmação de raça e de gê-
nero, parece-me ir neste sentido e deve, portanto, ser comemorada.
(Rivera, 2017, p. 4).
Porém, lembra a autora, parece que deveríamos buscar estes
significantes identitários para alcançar um novo pacto social, evi-
tando a exclusão do outro. Parte da crítica à ideia de Lugar de fala
parte do pressuposto que parece haver uma inversão do que seria
um instrumento de questionamento de um discurso hegemônico,
tomar forma exatamente deste tipo de discurso que desprestigia a
fala do outro, afirmando-se como verdade de validade única, inde-
pendente do seu conteúdo.
Neste sentido, Engelke alerta ainda que:
Longe de superar os termos do poder estabelecido, tal expediente
apenas os reproduz com sinal invertido: se antes os grupos hege-
mônicos se valiam de uma pretensão universalista para afirmar a
incapacidade do subalterno de representar a si próprio, pois que
lhe faltaria a objetividade ou a neutralidade científica necessárias,
agora subalternos recorrem ao essencialismo particularista para
negar a outrem a legitimidade do que quer que tenham a dizer so-
bre eles. Não estou sugerindo que sejam hábitos de pensamento
equivalentes; mas são ambos verticais, herdeiros de uma moldura
cognitiva hierárquica, predisposta à adesão a respostas imediatas.
(2017, p. 14)
Um problema adicional está na “linha de corte” daqueles que
pertencem a esse lugar. Isto lembra a antiga questão dos Balcãs ao
longo da história europeia, que projeta sua estranheza além da sua
fronteira, “nos Balcãs”, linha que foi se movendo ao longo do tem-
po, mas que — em algum tempo — já incluiu a Alemanha. Desta
forma, quando a Alemanha torna-se o que conhecemos como um
país poderoso, a fronteira “suja”, “ignorante”, “selvagem” é empur-
rada para o vizinho (Polônia, por exemplo). Semelhantemente,
se “nosso” lugar de fala tem estatuto de verdade, então aquele que
“não sabe do que fala” passa a ser nosso próximo (o Unheimliche
168 João Angelo Fantini

freudiano, o estranho/familiar), estigmatizado por aquilo que


Freud chamou de “Narcisismo das pequenas diferenças”, uma for-
ma de estigmatizar o outro, especialmente quando este outro ten-
ta parecer conosco ou partilhar nossas experiências. Isto é, há uma
critica de que o problema da inclusão/aceitação/integração das mi-
norias, dos excluídos, dos estrangeiros etc, passe a ser — não uma
reivindicação legitima do processo civilizatório — mas se tornar
uma estratégia de poder.
Parte desta crítica parte dos intelectuais de esquerda, que
veem neste movimento uma forma de particularismo ou luta hori-
zontal que ao invés de aglutinar a luta vertical contra o poder esta-
belecido fragmentaria a luta politica:
O conceito de lugar de fala modifica assim a natureza histórica e
epistemológica do discurso classista. Antes, na tradição marxista,
a condição de trabalhador era considerada universal ou poten-
cialmente universal porque o avanço do capitalismo proletarizava
a todos e do sentido desse processo advinha a sua força epistemo-
lógica e o seu lastro material: a perspectiva dos trabalhadores era
uma perspectiva universal. Quando a condição de trabalhador pas-
sa a ser concebida como um lugar de fala, a partir da sua posição
periférica, ela passa a ser vista como (mais) uma especificidade.
(Ortellado, 2017, p. 4)
Como discuti em outro artigo (2017) esta política identitária
defende um ideal de pureza no seu discurso que a aproxima peri-
gosamente do discurso religioso, apenas substituindo a pureza vin-
da diretamente de Deus por outra, vinda da experiência pessoal,
escondendo o fato de que ambas são uma forma, no limite, de in-
venção, pois podem ser mudadas ao sabor das circunstâncias que
exijam um refinamento da pureza para fins de poder — tal como
acontece nas guerras religiosas — a despeito dos ideais progressis-
tas que legitimam estas lutas e da existente desigualdade de direitos
que estes grupos sofrem.
De outro lado, não se pode negar — para não adotarmos uma
postura liberal — que estes grupos não têm efetivamente o mesmo
poder e acesso ao discurso que grupos historicamente hegemônicos
na sociedade. Com isso queremos dizer que efetivamente as Politicas
de Igualdade que são desenvolvidas, inclusive no Brasil, tem efetivo
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 169

papel em reduzir a desigualdade do lugar de onde se fala, ou seja, de


que ao promover a ascensão social de grupos marginalizados/despri-
vilegiados temos uma outra situação mais equilibrada de discussão
dos privilégios na sociedade. O que parece estar em jogo nos últimos
tempos tem sido a questão de — em que medida (de tempo, de nu-
mero de pessoas, de que grupos deveriam participar) — estas poli-
ticas deveriam acontecer de forma a equilibrar o jogo social, sem se
tornar elas mesmas uma reprodução do mesmo processo de segre-
gação com sinal invertido. Uma questão que aparentemente necessi-
ta de uma discussão profunda, mas que vem sendo atropelada pela
politica, especialmente aquela mais mesquinha que luta apenas pelo
poder de governar uma cidade, um estado ou um país.
A luta pela cidadania tem se inscrito, desde há muito, em um
campo marcado pelas racionalidades de estruturas hegemônicas
de poder. Neste sentido, os movimentos políticos mais recentes
reivindicam soluções construídas de forma mais local. No campo
dos meios de comunicação como lugar de expansão/reprodução do
lugar de fala isto tem implicado uma mudança da importância das
mídias tradicionais (tidas como dominadas pelo poder hegemôni-
co) para as novas mídias, tidas como lugar de comunicação mais
horizontal, que refletiriam os espaços públicos mais periféricos,
seja da perspectiva geográfica, social ou política.

Lugar de fala, subjetivação & novas mídias

Parte da discussão e dos discursos que resultam em intole-


rância de parte a parte tem sido diretamente relacionada à expan-
são novas mídias,1 sob o argumento de que atualmente estamos

1. Há uma discussão sobre o fim destes termos, tais como Novas Mídias,
Midias Tradicionais, ou seja, para pesquisadores que pensam sobre o
pós-digital não caberia mais esta distinção. Uso ainda os termos pois
acredito que ainda há distinção entre jornais, revistas, televisão, rádio etc e
Facebook, Twitter etc. Também me parece que o próprio termo “pós-digi-
tal” carrega uma carga de desilusão com as novas tecnologias.
170 João Angelo Fantini

vivendo uma espécie de ciberdemocracia,2 em que as pessoas po-


dem se comunicar diretamente e se organizar sem o controle cen-
tralizado do Estado. Esta ideia é defendida de forma positiva, na
promessa de participação politica sem mediação, mas também ne-
gativamente como lugar de expansão de particularismos/radicalis-
mos, como por exemplo, o “governo por tuítes” de Donald Trump.
É possível pensar ainda que “lugar de fala” e “apropriação
cultural” tem seu grande espaço de visibilidade nestes dias nestas
novas mídias, funcionando como espaço democrático de expansão
dos discursos antes sufocados pelas mídias tradicionais. De outro
lado, poderíamos supor que estes discursos também estariam
submetidos a processo de controle que nos dias atuais está sendo
denominado de “efeito bolha”, resultante dos programas como
EdgeRank3 que organizam os conteúdos recebidos na timeline do
Facebook e que restringem as informações que recebemos.
A dimensão do impacto as novas tecnologias e a frontei-
ra cada dia mais invisível entre o biológico/físico/digital tem le-
vado alguns pesquisadores a defenderem a ideia de que teríamos
um “novo” inconsciente, um inconsciente Tecnológico ou Cyborg.
Estes novos meios parecerem transformar em parte questões como
a satisfação de certas exigências e qualificações que balançam as

2. Também chamada de democracia virtual ou e-democracia, significa a


interface relativa à interação entre sistema político e cidadãos. São as
formas como a internet parece representar uma ferramenta que permite
que as pessoas interajam entre si e com os governos diretamente com a in-
formação que lhes é apresentada, não obstante os limites geográficos.
3. Edgerank é um algoritmo baseado em três aspectos: a afinidade, peso do
conteúdo e tempo de publicação. A afinidade é medida pelo número de
interações, ou seja, curtidas, compartilhamentos e visualizações de cada
post. O segundo fator, peso do conteúdo, se caracteriza por qual tipo de
conteúdo tem mais interação, então se fotos e vídeos têm mais curtidas,
eles serão mais relevantes, se atualizações sobre relacionamentos tem
muitas interações, essa será então uma forte candidata a aparecer no Feed.
O último fator, o tempo de publicação, tem relação com a idade da publi-
cação, notícias mais recentes tem maior probabilidade de aparecerem nos
feeds de notícias.
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 171

relações entre saber e poder (Foucault, 1998) e que limitavam a


ação do discurso de grupos historicamente marginalizados.
No que se segue, quero, portanto, tentar descrever alguns dos co-
nhecimentos e competências relacionados com a posição e a jus-
taposição, mas também quero ir mais longe. Eu quero afirmar que
eles constituem um “inconsciente tecnológico” (Clough, 2000)
cujo conteúdo é a flexão de corpos com ambientes para um con-
junto específico de addresses sem o benefício de insumos cogniti-
vos, um substrato pré-pessoal de correlações garantidas, encontros
garantidos, e, portanto, antecipações não consideradas. (Thrift,
2005, p. 213)
Se estes autores estiverem certos, se há uma espécie de compa-
tibilidade, interação ou homeostase entre o inconsciente freudiano
e este inconsciente tecnológico, poderíamos pensar que ambos se
assemelhariam nos seus processos de tomada de decisão, especial-
mente quando se trata da intolerância?
A questão deve ser recolocada: toda tentativa de emancipação es-
taria, como ato político, fadada a se fazer de modo identitário
conforme a massa? Aqui a compreensão psicanalítica da massa
traz uma contribuição de peso, ao mostrar que à coletividade não
se opõe o indivíduo, mas, pelo contrário, a ideia de in-divisão e
autonomia do Eu é complementar à formação da massa coesa. O
acoplamento freudiano entre a “psicologia das massas” e a “análise
do eu”, no título do livro de 1921, já apontava o quanto a própria
noção de “Eu” está articulada àquela do pertencimento acrítico à
massa. Para se pensar na possibilidade de subversão da lógica da
massa é necessária uma outra categoria, aquela, justamente, de que
trata a psicanálise: o sujeito dividido, descentrado. O sujeito que se
contrapõe ao Eu, cuja alienação fundamental será sublinhada por
Jacques Lacan, e que implica certa subversão — e devemos aqui
notar que a expressão lacaniana não deixava de ter ressonâncias
políticas de peso, no contexto europeu da guerra fria. O sujeito —
não idêntico a si mesmo, diferença em si. Singularidade não identi-
tária. (Rivera, 2017, p. 5)
O pressuposto freudiano de que as formações identitárias são
suportadas a partir de construções imaginarias nos alertam que a
sensação de pertencimento a um grupo sempre é enviesada pelas
imagens que asseguram uma identificação sem falta, uma forma de
172 João Angelo Fantini

reflexo, que já foram e continuam sendo à base de muitos dos mo-


vimentos políticos que desembocaram, entre outras coisas, no fas-
cismo. O simples descarte do discurso do outro pode implicar mais
do que o lugar de poder (ou empoderamento) do indivíduo ou gru-
po para uma defesa do poder como finalidade, isto é, funcionaria
numa formas de varrer o conteúdo do argumento do outro, em de-
trimento do lugar de poder que detém aquele que enuncia sua fala,
uma substituição das lutas pela elevação dos processos civilizatórios
para uma mera luta pelo poder.
Parece que a questão de fundo que acompanha a ascensão
da tecnologia está ligada a longa tradição do processo civilizatório
onde a questão da liberdade, de tempos em tempos, tem sua dis-
cussão mais acirrada. Neste caso, desde o início da construção de
maquinas, sempre restou a pergunta de quanto as supostas facili-
dades criadas pelas maquinas nos faria dependente delas. No caso
especifico da tecnologia atual, temos um acréscimo desta questão
ao questionar o quanto estas maquinas podem estar influindo na
nossa subjetividade e na forma como olhamos a realidade e ainda
mais, o quanto nossa fala e nosso lugar de fala não sofreria interfe-
rência delas.
Um dos aspectos mais relevantes parece ser a crescente inter-
ferência da tecnologia nos processos de construção da memória.
A midiatização dos processos subjetivos pelas tecnologias digitais
parecem ter inaugurado um novo tempo na construção da história
que ao invés de se referir a um relato sobre o passado, se apresenta
como uma forma de presente continuo, onde a história e a memó-
ria escapam do corpo físico para serem construídas e arquivadas
nas maquinas, as quais o sujeito “consulta” quando precisa de refe-
rência para alguma ação.
O próprio conceito de “maquina” já estava em Lacan quando
se referia ao Grande Outro, como entidade que organiza o mundo
por nós, quando ele nos dizia que a “máquina combinatória” (Liu,
2010), longe de estar à vista, trabalha nos bastidores, o que nos leva-
ria a crer que ela estaria à distância. Assim, para Freud e Lacan, uma
análise seria uma forma de seguir a cadeia significante como forma
de reintegrar a história do sujeito e ter acesso às leis determinantes
que constituem essa “maquinaria inconsciente” em cada um.
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 173

Neste sentido, quando pensamos na possibilidade do lugar


de fala tornar-se autoritário, vemos que esse lugar pode ganhar em
complexidade, se confundimos o lugar de fala como expressão de
uma verdade pessoal para uma verdade universal, suspendendo a
pluralidade de toda luta política, como certas formas de fascismo
fizeram e ainda fazem. Neste sentido, para além do reconhecimento
da experiência pessoal o lugar de fala deveria ser um lugar de diá-
logo, mesmo que, como foi dito, isto implique uma proeminência
daquele que tem a experiência.
Eis-nos diante de um impasse, bem definido pelo filósofo Ernesto
Laclau: se o particularismo for o único princípio válido, então te-
remos necessariamente que aceitar particularismos violentos, ex-
cludentes ou opressores. As demandas entre os grupos conflitantes
entrarão em choque, e o único jeito de resolver a disputa é apelan-
do para princípios de validade geral. Reconhecer a existência de
princípios universais não é algo com o qual boa parte da política
identitária parece se sentir confortável, seja porque isso impõe li-
mites à afirmação de particularismos, ou porque aproxima sua po-
lítica do campo liberal. (Engelke, 2017, p. 14)

Apropriação cultural, política e narcisismo

Os embates em torno de concepções que pretendem comba-


ter os discursos privilegiados neste começo de século apontam, de
forma especial para mais duas elaborações além do Lugar de Fala:
aqueles que pensam o movimento a partir de uma visão cultura-
lista (Apropriação Cultural) e os chamados formalistas (Teoria do
Privilegio4).
De modo semelhante, o conceito de “apropriação cultural”
tem sofrido ataques de vários setores da sociedade descontentes
com o que é chamado por vezes, especialmente nas redes sociais,

4. Não vou me deter neste artigo sobre este conceito, que afirma que que cada
indivíduo forma parte de una matriz de categorias e contextos e será de
algum modo privilegiado e outros contextos desfavorecido.
174 João Angelo Fantini

como uma “política de vigília sobre o comportamento do outro”,


o que no Brasil veio a tona depois do caso emblemático ocorrido
em Fevereiro de 2017 em que uma garota branca foi advertida por
outra garota do uso despropositado de um turbante africano: tra-
tava-se de uma pessoa com o câncer e que havia perdido os cabe-
los devido ao tratamento. O caso ganhou grande repercussão nas
redes sociais com defesas e ataques de parte a parte e acabou ser-
vindo de material para o crescimento nas redes de posts que ata-
cavam movimentos sociais.5 Estes fatos, e não somente esses, são e
possivelmente serão usados não somente na luta no “varejo” entre
movimentos sociais e seus antagonistas, mas possivelmente serão
combustível nas lutas pelo poder da política partidária, com foco
nas eleições.
Vale esclarecer desde já que apropriação cultural não diz respeito
ao fluxo de trocas, inerente ao mundo globalizado, de pessoas e ar-
tefatos, mas sim a um tipo específico de mecanismo de capturas,
simbólicas e concretas, que contribui para perpetuar relações de
poder que subjugam grupos minoritários. “A cultura negra é po-
pular”, afirma o poeta B. Easy, “mas as pessoas negras, não.” Para
ficar no exemplo racial, há uma espécie de descolamento entre os
produtores da cultura negra e os seus produtos: estes recebem uma
aura fetichista que seduzirá públicos os mais diversos, enquanto
aqueles permanecem relegados a um segundo plano de visibilidade
e reconhecimento. (Engelke, 2017, p. 6)
Promovido nas redes sociais (especialmente, mas não só ne-
las) a discussões sobre Apropriação Cultural podem ser vistos
como uma forma de espetáculo agressivo também, a encenação de
um teatro narcísico, onde cada um tenta defender — mais que suas
ideias políticas — a sua própria crença.6

5. Ver em: <https://www.quimioterapiaebeleza.com.br/polemica-da-jovem-


-que-usou-o-turbante/
6. O que determina uma “crença cega” é a relação do sujeito com a verdade,
uma forma de denegação, que implica fazer “em nome de”, de negar a
posição do sujeito no próprio ato que o produz. (Dunker, 2004). A crença
seria, então, ligada diretamente à sustentação narcísica do sujeito, encobri-
mento fantasmático da castração.
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 175

No campo da política, isso pode significar uma forma de de-


fesa de crença pessoal (por exemplo, um candidato em quem você
acreditou como sendo honesto ou progressista ou defensor dos
valores tradicionais etc.) que, não raro, resulta em uma defesa que
ultrapassa qualquer situação fática, podendo ser entendida mais
como uma defesa da integridade do Eu, uma forma de defesa nar-
císica. Essa situação não atinge somente “ignorantes”, “não analisa-
dos”, “fascistas”, “comunistas” e tantos outros significantes utilizados
nos posts agressivos encontrados nas mídias sociais, mas qualquer
um, lembrando a lição freudiana de que a informação e a educação
não necessariamente afetam o modo como percebemos o mundo:
nosso inconsciente afeta nossa percepção de mundo. Neste aspecto,
a teoria freudiana sobre o narcisismo7 poderia ser uma ferramenta
bastante útil para nos ajudar a entender, de uma perspectiva
subjetiva, conceitos como pós-modernidade, cultura digital ou,
bem recentemente, pós-verdade.
A conexão do narcisismo com a ideia de pós-verdade parece
proliferar no lugar em que o desprestígio das posturas políticas e
ideológicas coincide com a sobrevalorização das questões subjeti-
vas, ou seja, onde as questões cruciais da vida coletiva passam a ter
importância semelhante (ou menor) que a vida amorosa de celebri-
dades ou o lançamento do novo Iphone. Embora isso não se aplique
a totalidade das pessoas, o peso dessa afirmação pode ser medido
na diferença de impacto nas novas mídias, por exemplo, do que se
comenta sobre a guerra na Síria e a vida de Kim Kardashian.8

7. Sigmund Freud conceituou o narcisismo como uma etapa do desenvol-


vimento normal do lactante, em que ego e id são indiferenciados, dada
a incapacidade do bebê para discriminar objetos exteriores a si mesmo,
agindo como uma perversão típica dos estágios iniciais da psicodinâmica
libidinal. Depois do narcisismo primário, Freud se dedicou ao problema
do “represamento de libido no ego”, a partir da clínica de paranoicos e neu-
róticos, o que chamou de narcisismo secundário ou patológico.
8. Celebridade que resultou, em grande parte, da participação em reality
shows e comentários em sites de fofocas, e que, em 2016, foi considerada
uma das personalidades mais influentes nas mídias sociais.
176 João Angelo Fantini

O narcisismo encontra sentido em escala histórica na medida


em que reduz a carga emocional dirigida ao espaço público, enquan-
to aumenta as prioridades na esfera privada. Assim, a celebridade
tomou o lugar da autoridade.9 As celebridades ganham reverência
como formadores de hábitos e opinião, enquanto ao restante da hu-
manidade resta o anonimato. Nesta perspectiva, candidatos como
Trump, em vez de serem tratados como autoritários, parecem ser tra-
tados como celebridades, ou seja, ao mesmo tempo em que ninguém
acredita seriamente no que ele diz (celebridades não precisam neces-
sariamente ter valores morais socialmente construtivos), seu lugar de
destaque social permanece desejado (como ideal do Eu).10

9. A ideia de figuras de autoridade está ligada ao conceito de Ideal do Eu


como uma substituição simbólica do Eu Ideal (lugar imaginário das
projeções parentais, da completude, da ausência de falta, lugar do que o
outro espera da gente: objeto para o outro). Seria simbolizada no Ideal do
Eu, instância secundária advinda do Complexo de Édipo que resulta na
substituição simbólica do narcisismo primário, aquilo que nos diz como
devemos ser, que ideal devemos ter, que pessoa devemos ser, para poder
autorizar nosso desejo. Lugar que substitui a série parental das figuras
imaginariamente perfeitas (em autoridade, bondade, poder) e que, reco-
nhecida sua falta, são substituídos por figuras secundárias (professores,
astros, líderes, governantes), que determinam nossas maneiras de amar. Na
medida em que o Ideal do Eu se torna um lugar impossível de alcançar, nas
crises pessoais ou nos movimentos de massa, pode haver um movimento
narcísico no sentido de satisfazer o Ideal do Eu realizando uma junção
com o Eu Ideal, produzindo movimentos de grupo, de massa ou mesmo
paixão.
Autoridades seriam as figuras que representavam, de alguma maneira,
valores positivos de inserção social, mas o conceito, em si, é controverso.
Na discussão sobre o declínio da autoridade prefiro a versão de Hannah
Arendt do progressivo esvaziamento da experiência da fundação dos
romanos, resumida na trindade tradição-religião-autoridade. Freud, em O
mal-estar na civilização (1930) alertava para o perigo nas sociedades em
que as figuras de autoridade (fundadas em seu valor histórico) perdessem
sua importância. Ele chamava este fenômeno de “pobreza psicológica dos
grupos”.
10. Disponível em: http://www.comciencia.br/politica-como-religiao-
-ciberdemocracia-intolerancia-nas-novas-midias/
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 177

O resultado deste processo — como vem sendo apontado com


frequência — é um esgarçamento dos laços sociais quando não
apenas inimigos ou desconhecidos, mas mesmos velhos amigos ou
companheiros, que param de trocar ideias e se entrincheiram junto a
outros que — aparentemente — compartilham seus pontos de vista.
Este processo comandado em grande parte por algoritmos nas redes
sociais possibilita que um sujeito passe a receber mensagens de pes-
soas que ele tenha muitas vezes apenas uma ideia em comum e nada
mais. Por exemplo, se sou contra os ataques terroristas (e só por usar
este termo — terrorista —já me perfilo de um lado da questão) e re-
cebo mensagens ou replico esses conteúdos, começo a receber men-
sagens contra muçulmanos, xenófobos, nacionalistas etc.11
A crítica dos anos 1990 sobre os perigos de estar conectado
por longos períodos à rede, ou os possíveis benefícios dessa cone-
xão, vem gradativamente perdendo força. Grande parte das discus-
sões sobre a rede, hoje, passam pelo ódio e abuso on-line; a cultura
narcisista de selfies e a coleta de dados pessoais em escala industrial,
tudo isso sob a égide de um consentimento resignado ou passivo.
Sabemos que estamos viciados na rede, mas não conseguimos sair.
A net se tornou um lugar de reconhecimento,12 condição compulsó-
ria para fazer laço social.
Da perspectiva da psicanálise, quando perguntamos “quem
sou eu?”, a resposta sempre passa por “quem sou eu em relação ao
outro”. Nossas relações objetivas com o mundo e o outro, estabe-
lecem a diferença subjetiva entre eu e todos os outros. O que está
em jogo na intolerância não é que “devemos tolerar” o outro, mas

11. Levantamento realizado com o auxílio de um software de monitoramen-


to em 2016 pelo Comunica que muda (agência nova/sb), e mostra que
a intolerância política está em primeiro no ranking. Foram analisadas
393.284 menções nas redes sociais, comentários em blogs e sites. Deste
total, 219.272 tinham cunho político, sendo que 97,4% delas abordavam
aspectos negativos. Fonte: www.comunicaque muda.com.br.
12. Reconhecimento aqui é usado no sentido da obra de Hegel, na qual o
filósofo caracteriza “reconhecimento” como uma forma de autorreconheci-
mento e de reconhecimento pelo outro.
178 João Angelo Fantini

justamente o contrário: não devo “tolerar” o outro, porque, de fato,


ele é diferente de mim e me provoca angústia (não só porque ele
é “muçulmano”. Ele pode ser meu filho, inclusive). O que eu devo
esperar do outro (e de mim mesmo) é que tolere sua própria dife-
rença, isto é, aquela diferença subjetiva (Eu/outro) que provoca
angústia e que se quer depositar na conta do próximo, seja indivi-
dualmente ou no coletivo.
Tentando fazer uma conexão com este momento totalmente
novo (chamado por muitos de a 4a Revolução Industrial)13 pode-
mos pensar que os modelos de pensamento fascistas tiveram, em
parte, influência de uma forma de narcisismo patológico, que em
determinados momentos históricos puderam ganhar a dimensão
de movimentos de massa, organizados por um suposto saber que
proclama a superioridade de uma forma de pensamento em detri-
mento de outra. Com frequência, a ideia de pós-verdade é também
associada às formas autoritárias, xenófobas de governo, e a questão
da intolerância, a exemplo do que está acontecendo na Europa e no
Reino Unido, justificando movimentos políticos, fomentando can-
didatos ou plebiscitos aparentemente inelegíveis. Esta situação tem,
em contrapartida, incentivado movimentos a favor da tolerância ao
outro (estrangeiro, muçulmano etc.) — em que pesem as boas in-
tenções, que podem ou não conseguir os resultados esperados.
Dito de outra perspectiva, em termos da discussão entre uma
história universal ( uma forma de identidade humana universal) e
uma história particularista (a concepção da multiplicidade das cul-
turas), a possibilidade de que os discursos sobre a alteridade posam

13. A 1a Revolução foi associada à criação da máquina à vapor (1784) e


permitiu o surgimento das indústrias com produção mecânica. A 2a
Revolução, associada à descoberta da eletricidade (1870) e permitiu a
produção em massa com a divisão do trabalho. A 3a Revolução data de
finais dos anos 1960 e início dos anos 1970 sendo associada ao desenvol-
vimento da eletrônica digital e à chamada “tecnologia da informação”.
Por fim, a chamada a 4a Revolução Industrial pode ser caracterizada por
uma fusão de tecnologias biológicas, físicas e digitais, onde estas fronteiras
estarão cada vez mais borradas.
Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias 179

vir a ser utilizados pelos partidários de discursos discriminatórios


através da rejeição da igualdade universal, abre espaço para que
muitos estudos apontem para seu caráter perigoso da perspectiva
política, levando-os em grande parte a rejeitar (como parece ser o
caso, com algumas sutilezas, de Slavoj Zizek, por exemplo14), ques-
tionando seu potencial progressista, preferindo a ideia mais tra-
dicional de igualdade universal, que no marxismo seria traduzida
como luta de classes, com lugar de emancipação legitimo.

Referências

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14. (...) Como Hegel afirmou, o que morre na cruz não é o representante
terreno e finito de Deus, mas o próprio Deus, o Deus transcendente do
além. Os dois termos da oposição, Pai e Filho, o Deus substancial como em
si absoluto e o Deus para nós, ou revelado para nós, morrem, ou seja, são
suprassumidos no Espírito Santo. (...). Isso significa que, apesar de todo o
seu poder fundador, o Espírito é um ente virtual, no sentido de que seu
status é aquele de um pressuposto subjetivo: ele só existe na medida em
que o sujeito age como se ele existisse. Seu status é semelhante àquele de
uma causa ideológica, como o comunismo ou a Nação (Zizek & Milbank,
2014. p. 108).
180 João Angelo Fantini

Fantini, J. A. Política como Religião: Ciberdemocracia & Intolerância nas


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De promessa de “emancipação” à
disseminação do ódio:
redes sociais digitais e política

Patrícia do Prado Ferreira

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16-cada-macaco-no-seu-galho---zuckerman.shtml

A ‘democratização’

Assim que as redes sociais da internet tornaram-se mais po-


pulares, entre meados e o final da década de 1990, a maior parte do
material teórico de análise das ‘novas formas de comunicação’ que
estava sendo produzido se sustentava em certo otimismo do que
182 Patrícia do Prado Ferreira

poderia advir. Era a grande novidade, recebida com contentamento


e esperança. De leituras que nos permitem ilustrar esse ‘sentimento’,
destacamos dois autores que argumentavam com entusiasmo essa
espécie de ‘fantástico mundo novo’ de promessa emancipatória: o
sociólogo Manuel Castells e o filósofo da informação Pierre Lévy.
O otimismo de ambos se amparava especialmente na ideia de
que estávamos diante de uma força potencial que colocava a ‘socie-
dade em rede’, como sugeriu a leitura de Castells (1999), e no por-
vir de uma ‘inteligência coletiva’ da Cibercultura, como elaborou o
Pierre Lévy (1994). Tanto para um quanto para outro, a possibili-
dade de conexão entre as pessoas nesse formato de rede interligada
era razão suficiente para se confiar nas potencialidades de uma fer-
ramenta que se mostrava eficaz e poderosa na conexão de indivídu-
os, além de um instrumento de distribuição mais ‘democrático’ dos
poderes e saberes.
Neste sentido, o encantamento por esta forma de sociabili-
dade, aliado à cultura hacker e a cultura comunitária,1 fez crer em
uma possibilidade ‘emancipatória’, que parecia ser razão de entu-
siasmo no início da expansão das comunidade virtuais, mesmo que
ainda em pequena escala e permeada pela ideia da ‘contracultura’.
Para Castells (1999), “muitas das primeira conferências on-line e
BBS parecem ter surgido da necessidade de dar corpo a um senti-
mento comunitário após o fracasso dos experimentos contracul-
turais do mundo físico” (p. 48). Entretanto, na medida em que as
comunidades virtuais foram se expandindo, a relação com a cultura
comunitária foi se esvaindo.
Apesar deste distanciamento, a ideia de ‘formação autônoma
de redes’ (p. 48-49) permitia (e ainda permite) que pessoas encon-
trem suas redes ao buscarem seus interesses particulares ou que
criem redes na ausência de uma rede pré-estabelecida. A ideia de

1. Para mais detalhes sobre essa junção entre a cultura hacker e comunitá-
ria, recomendo Castells (2003). Para Castells, enquanto a cultura hacker
forneceu os fundamentos tecnológicos da internet, a cultura comunitária
moldou as formas sociais.
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 183

que as pessoas quando conectadas possam encontrar o que buscam


ou fundar aquilo que ainda não existe, pode sustentar o imaginário
da possibilidade de que poderes e saberes estão (mais) acessíveis a
qualquer um, bastando que se tenha interesse, vontade ou coisa que
o valha, para que aconteça ‘encontro’ ou ‘criação’. Tais ingredientes
parecem compor uma receita saborosa de uma espécie de revolução
antropológica, política e social.
Defendendo a ideia de um ‘coletivo inteligente’, Pierre Lévy
(1994) afirmou que “os novos meios de comunicação poderiam re-
novar profundamente as formas do laço social, no sentido de uma
maior fraternidade, e ajudar a resolver os problemas com os quais
a humanidade hoje se debate” (p. ??). Além disso, ele sugeriu que a
possibilidade de compartilhamento de informações sobre todas as falta pág.
coisas, a todo tempo e, se alimentado em sua diversidade, poderia
advir e fazer exercer a curiosidade de saber, “para não deixar dor-
mir, enterradas no fundo do oceano informacional, as pérolas de
saber e de prazer – diferentes para cada um de nós – que esse oce-
ano contém” (Levy, 1999, p. 91-92). A inteligência coletiva — que
Lévy (1994) sintetiza como “trabalhar em comum acordo” (p. 26)
ou em “entendimento com o inimigo” (p. 26) — seria uma possibi-
lidade de renovação do laço social dada a partir do conhecimento.
Se os outros são fonte de conhecimento, a recíproca é imediata.
Também eu, qualquer que seja a minha provisória posição social,
qualquer que seja a sentença que a instituição escolar tenha pro-
nunciado a meu respeito, também sou para os outros uma oportu-
nidade de conhecimento. Por meio de minha experiência de vida,
de meu percurso profissional, de minhas práticas sociais e cultu-
rais, e dado que o saber é coextensivo à vida, ofereço recursos de
conhecimentos a uma comunidade. Mesmo que esteja desempre-
gado, que não tenha dinheiro, não possua diploma, more num su-
búrbio, mesmo que não saiba ler, nem por isso sou “nulo”. Não sou
intercambiável. Tenho imagem, posição, dignidade, valor pessoal e
positivo no Espaço do saber. Todos os seres humanos têm direito
ao reconhecimento de uma identidade de saber. (p. 28)
Mais cético, Castells (1999) pontuou que a sociedade em rede
era, desde sua origem, uma sociedade capitalista na qual o modo de
produção, global e estruturado, dava (e dá) forma para as relações
184 Patrícia do Prado Ferreira

sociais. A partir disso, colocou o dilema do ‘determinismo tecnoló-


gico’, afirmando que “a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não
pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnoló-
gicas” (p. 43), argumentando, assim, a existência de uma relação de
representação da sociedade nas tecnologias. Portanto, poderíamos
sugerir que para-além de um entusiasmo com as redes virtuais e a
potencialidade de que trata Lévy, é precioso que se tome a Internet
como representação social mas em um movimento duplo, de que
representa ao mesmo tempo em que exerce influência sob o social.2
Tomemos como exemplo o período do final da década de
1990 e o começo dos anos 2000, com a ‘materialização’ da globa-
lização. O movimento que se estabelece nas redes virtuais é como
um espelho de mundo globalizado: as pessoas estão conectadas,
com ‘liberdade’ e possibilidade de usufruir, tal como na economia,
da transposição de barreiras, do encurtamento do tempo e da ideia
de aniquilamento da distância. Ao mesmo tempo, e em contraparti-
da, temos também formas de resistência como, por exemplo, o mo-
vimento antiglobalização, que se opunha sobretudo ao capitalismo
neoliberal — utilizando as redes virtuais para estabelecer formas al-
ternativas de organização coletiva.
Como descreve Paolo Gerbaudo (2017), os movimentos anti-
globalização adotavam uma abordagem ciber-libertária e separatis-
ta, na tentativa de construir uma ‘internet alternativa’, uma espécie
de infraestrutura de comunicação autônoma para-além do contro-
le do capital e do estado. Veremos que a estratégia de comunicação
dos movimentos de ocupação mais atuais — especialmente de 2011
a 2016 — se distanciaram de certa forma dessa prática de utilização
das redes sociais e, no entanto, mantiveram e trouxeram para as re-
des digitais outras características do movimento.
A relação das redes sociais digitalizadas com a economia capi-
talista é mais do que comprovada, chegando a ser intrínseca, como

2. Na minha tese de doutorado (Ferreira-Lemos, 2014) articulo como o gozo


escópico aparece nas redes sociais, também evidenciando essa relação de
mão dupla entre uma coisa e outra.
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 185

é possível vermos tanto nas propagandas que invadem disposi-


tivos como Facebook, Instagram, Twitter, Youtube e até mesmo no
comércio de dados dos usuários dessas redes. Trazendo para uma
leitura da psicanálise podemos pensar em efeitos relacionados a
‘subjetividade contemporânea’,3 inevitavelmente delineada pela dis-
cursividade capitalista. A psicanalista francesa Collete Soler (2016)
evidencia que o discurso do capitalista — como sugerido por
Lacan (1974) —, tem a marca do ‘desfazer’ de laços mas, ao mes-
mo tempo, é “aquele que multiplicou ao máximo as possibilidades
de relação, dando a eles instrumentos inéditos, sem precedentes na
história e que alargam a circunferência dos investimentos libidinais
a dimensões até mesmo planetárias” (p. 15). Soler enfatiza que es-
ses modos/meios de comunicação, de deslocamento e de informa-
ção, tornam presentes aquilo que está longe, para que a ‘elasticidade
da libido’ possa trazer de qualquer lugar produtos e pessoas. Isso
se relaciona ao discurso do capitalista, na medida em que convoca
o sujeito em seu lugar de ‘sujeito de gozo’, ao estimular uma ilusão
de completude que coloca os sujeitos não em relação a uma pes-
soa, mas com “um parceiro conectável e desconectável ao alcance
da mão” (Quinet, 2012, p. 57). Como trabalhado em outra ocasião
(Ferreira-Lemos, 2016), de acordo com Lacan (1971-72), o discurso
do capitalista deixa de lado as coisas do amor ao rejeitar a castra-
ção e promover a ilusão de ‘laço direto’ entre objeto e sujeito. Isso
incide diretamente nos laços sociais atuais e a internet, sobretudo a
dinâmica que se estabelece nas redes sociais digitais, evidenciam a
precariedade dos laços (Ferreira-Lemos, 2016).
Como é sabido, individual e social caminham lado a lado. Se
no campo ‘subjetivo’ podemos falar dessa problemática por haver
uma amplificação do discurso do capitalista — entre tantas outras
coisas que poderíamos destacar sobre como as redes sociais tem
tido efeito no campo da ‘subjetividade’ —, no campo social isso não
acontece de modo distinto, mas possui peculiaridades.

3. Para melhor compreensão dessa ideia, recomendo a leitura do texto de Sidi


Askofarè (2009).
186 Patrícia do Prado Ferreira

Diante do que nos foi proposto, esta contribuição considera


o espaço ‘infinito’ de conectividade em dois tempos distintos, mas
não excludentes. O primeiro tempo, é coincidente com uma espé-
cie de ‘primeira fase’ da expansão das redes sociais e foi o que bus-
camos destacar nessa etapa de apresentação do texto. Acreditamos
que se traduzida em imagem, certamente seria um rizoma de
troca de saberes e, quem sabe, de ‘democratização’ do poder.
Consideramos que o segundo tempo é ‘efeito’ ou desdobramento do
primeiro, sendo o momento que revela o impacto da internet e das
redes sociais de forma mais direta na esfera social e política.
Dentro desse cenário geral, optou-se por um recorte concen-
trado especialmente no segundo tempo, no qual se considera que
existiu relação e influência das redes sociais no ‘ciclo de lutas’ que
ocorreu em alguns países do mundo, entre 2011 e 2016, abrangen-
do desde o movimento dos Indignados da Espanha ao Nuit Debout
na França. Isso implica também o contexto de junho de 2013 no
Brasil, momento que permite a abertura das cortinas para a ence-
nação dos ódios.

Ocupações e manifestações: rua e rede

Trago o ciclo de lutas que se iniciou na Europa no ano de


2011, em que as redes sociais da internet foram consideradas fun-
damentais, quase nos fazendo apostar na consolidação da potência
‘emancipatória’ mencionada anteriormente. A influência das redes
sociais nesse momento não é nenhuma novidade. Como afirma
Gerbaudo (2012), no Egito, por exemplo, as mídias sociais tive-
ram a função de constituição de uma coreografia de assembleia no
processo de revolução, integrando uma juventude cosmopolita ao
redor de uma identidade comum. As redes sociais contribuíram
com sua capacidade de ênfase em material imagético, de memes a
live-streams das manifestações/ocupações (Gerbaudo, 2017), seja
no Egito, na Tunísia, na Grécia, na Espanha, nos Estados Unidos,
na Turquia ou no Brasil. Em uma analogia à categoria nacional
-popular de Antônio Gramsci, que diz da cultura como campo
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 187

fundamental de mediação para uma nova hegemonia de classe


dentro de processos históricos de transformação na sociedade,
Gerbaudo (2017, p. 147) sugere que as mídias sociais — como o
Facebook, YouTube, Instagram, Twitter e outras — possibilitaram
um espaço de intersecção entre o popular e a cultura digital, confi-
gurando a “cultura digital-popular”.
Esse novo espaço, que modificou a forma de comunicação
de protestos, produziu também soluções estilísticas baseadas nos
costumes dos usuários das redes sociais. Tais resoluções seriam de
acordo com Gerbaudo: necessidade de texto nítido para postagens;
expressão emocionalmente carregada para motivar futuros parti-
cipantes; e conteúdo visual abundante. Destaco daqui a estratégia
de ênfase ‘emocional’ que, em meu entender, serviu também como
ponto de divisa.
Essa característica se relaciona diretamente com a trama afe-
tiva das pessoas. De um lado, funciona como âncora de processos
identificatórios no sentido de compartilhamento de qualidades
comuns e, por outro, a ênfase emocional está inevitavelmente pro-
pensa à suscitar exatamente aquilo que é seu oposto, um estranha-
mento ou uma repulsa. O conhecido caso de polarização política,
que podemos reconhecer com mais ênfase na política nacional dos
últimos anos, alimenta e suporta esta ‘estratégia afetiva’ — o que
não seria possível de outro modo, pois identificações imaginárias
são atravessadas por afetos. Acontece que a estrutura das redes so-
ciais parece permitir uma maximização de identificações imagi-
nárias, em decorrência da incessante oferta de objetos para tal: de
imagens, frases, pessoas, ideias etc.. E é dessa abundância ou, como
prefiro chamar, desse excesso, que se faz ver também em demasia
aquilo que é diferente a mim. Então, somos provocados a todo tem-
po, em um jogo erótico de identificação e estranhamento.
Dentro desse cenário, considero que o ciclo de lutas é um
momento que marca um ponto de giro sobre a utilização das redes
sociais digitais. Isto é: elas passam a serem utilizadas de modo espe-
cífico em razão das manifestações e ocupações, que suscitavam en-
contros e desencontros. E, no cenário brasileiro, depois que a ‘onda
de protesto’ de 2013 aconteceu, vimos da ressaca — desde a disputa
188 Patrícia do Prado Ferreira

eleitoral de 2014 ao processo de impeachment em 2016 — emer-


gir a disseminação de um tipo específico de ódio, que nomeamos
de ódio ideológico. É necessário afirmar, no entanto, que embora o
recorte se concentre em um ‘tipo’ mais específico de ódio, ódios es-
tarão manifestos de diversas outras formas nas redes sociais (e fora
delas) — nas redes ou nas ruas — como no ódio de etnia, raça, sexo
ou classe, para citar alguns.

Redes sociais, ódio e constituição subjetiva

Sabendo do risco do argumento soar um tanto tradicional,


afirmo que ele não o é sem motivo. Talvez intente aqui colocar mais
como provocação, uma vez que apesar da existência de vários tipos
de grupos, concordo com Soler (2016) quando ela afirma que não
há ‘grupo de exceção’ ou, nas palavras dela, que “há diversos tipos,
mas todos eles supõem e favorecem o Um unificante e as identifica-
ções diversas” (p. 31). Portanto, não vejo muito como possível esca-
par de uma referência às elaborações freudianas como o ‘narcisismo
das pequenas diferenças’ ou a própria estruturação dos laços afetivos
que Freud propôs em “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921)
para pensar a questão do ódio. E afirmo isso por motivo simples,
mas não simplista: o ‘narcisismo das pequenas diferenças’ é justa-
mente utilizado por Freud para pensar a tolerância e a intolerância
tanto do plano individual quanto no coletivo e a estrutura das mas-
sas, desde Freud, necessariamente implica um outro como resto ou
a alteridade como uma ameaça. Temos aí dois elementos de base da
segregação e do racismo, que Freud explora especialmente em seus
textos ‘culturais’ — “Totem e tabu, “Mal-estar na civilização”, “O fu-
turo de uma religião”, “Moisés e o monoteísmo” etc. A psicanalista
Betty Fuks (2007) afirma que o narcisismo das pequenas diferenças
serve como ferramenta conceitual que possibilita a psicanálise vol-
tar-se para a política, especialmente quando Freud se interessa em
entender a estranheza à diferença do outro — característica que apa-
rece como fenômeno nas grandes massas modernas.
Como argumentado em outro escrito (Rosa, Ferreira, Penha,
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 189

inédito), a lógica identitária permite que se estabeleçam fronteiras


rígidas entre eu e o outro, artifício que acaba por favorecer radica-
lismos e intolerâncias. A intolerância é aqui compreendida como
um engessamento do próximo, que aparece enquanto uma ameaça
à liberdade ou como estranho por não compartilhar dos mesmos
modos de existência de um grupo hegemônico. Elege-se o outro
-inimigo para que se fortaleça o narcisismo, deixando de lado as
coisas do comum ou do amor.
É possível que a analogia entre redes sociais digitais e massa
possa parecer apressada, mas não se pode negar que seu suporte
tem estrutura similar a de fenômenos grupais mais comuns descri-
tos por Freud. Além disso, a discussão sobre a distinção absoluta
entre online e off-line é superada quando se pensa em termos de
fantasia. Pois, a realidade, como sabido, é psíquica. É por isso que
acredito estar autorizada a analogia, compreendendo que as redes
sociais online funcionariam como exposição do off-line ou ainda,
como amplificação de suas dinâmicas. Claro que há elementos pró-
prios e também nos ocupamos em observá-los.
Destaco um trecho de Castells (2013) em que ele escreve so-
bre os efeitos das emoções entre as pessoas conectadas, pois penso
que ele serve como imagem, por exemplo, da identificação baseada
em uma qualidade emocional comum. Aqui, no caso, a hipótese é
de uma união pelo entusiasmo (para ação) a partir da superação do
medo:
Quando se desencadeia o processo de ação comunicativa que induz
a ação e a mudanças coletivas, prevalece a mais poderosa emoção
positiva: o entusiasmo, que reforça a mobilização societária in-
tencional. Indivíduos entusiasmados, conectados em redes, tendo
superado o medo, transformam-se num ator coletivo consciente.
Assim, a mudança social resulta da ação comunicativa que envolve
a conexão entre redes de redes neurais dos cérebros humanos esti-
muladas por sinais de um ambiente comunicacional formado por
redes de comunicação. (p. ??)
falta pág.
O trecho é otimista, ele traz a esperança de que as coisas se
transformem para melhor. Ele diz sobre como existe a possibilida-
de de que as pessoas se unam para a mudança social. Não é sem
contexto e nem solitário, pois está diretamente relacionado às
190 Patrícia do Prado Ferreira

manifestações sociais que tomaram praças e ruas, marcando a im-


portância das redes on ou off para que se expandam outras redes de
solidariedade e de transformação. Uma das maiores comprovações
da potencialidade das redes sociais digitalizadas é que em países
como o Egito, por exemplo, elas logo foram dificultadas para evitar
a coreografia dos protestos ou, como nomeia Gerbaudo, a “coreo-
grafia de assembleia”.4
Se de um lado viu-se surgir redes de indignação e esperança,
por outro lado e arrisco dizer que inevitavelmente, também se deu
espaço à manifestação de outro afeto, que é o ódio. Como exposto
anteriormente, considero que a onda de protesto em junho de 2013
no Brasil, combinada a outros fatores como a da própria lida com
os protestos, a eleição do ano seguinte (2014), o processo de impea-
chment (2016) etc.; se desdobrou e se tornou visível (e um tanto as-
sustador) a presença de uma discursividade do ódio.
Portanto, deu-se a ver o ódio entre as pessoas constituído a
partir de uma rivalidade entre (pelo menos) dois grupos, marcan-
do a repartição/polarização do país em polos ideológicos distintos.
Como compreendo, as redes sociais digitais trouxeram à tona o que
já estava nas ruas, nos corpos dos sujeitos. Ao mesmo tempo em
que captaram a imagem da rivalidade, também serviram como su-
porte para a disseminação do ódio. Portanto, na polaridade ‘ideoló-
gica’ nacional, o denominador comum foi o ódio, prevaleceu o ódio
ao diferente ‘político’.
A psicanálise sugere que o sentimento de hostilidade com o
outro está na constituição psíquica. Freud (1929-30) afirma que “o
neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e
estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam
fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacio-
namentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence” (p.
113). Aqui está escrito sobre os sacrifícios exigidos pela cultura, a

4. A “coreografia de assembleia” toma o uso das mídias sociais como um


espaço de construção simbólica no qual se elaborava os passos seguintes
dos protestos físicos. Ou seja: era um modo de organizar como seriam os
protestos, como agir, entre outras coisas. Gerbaudo, , 2012.
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 191

dificuldade que é esse relacionamento com um grande número de


pessoas e também da sociedade em se manter ‘integrada’.
A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as li-
gações que até agora lhe concedemos. Visa a unir entre si os mem-
bros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto,
emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais
identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da
comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em
sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das
relações de amizade. (p. 113-114)
O escrito de Freud pode ser remetido ao que ele coloca no
psicologia das massas sobre a identificação por via de uma quali-
dade comum compartilhada. A formação de um grupo tenderá a
acarretar a dificuldade com a diferença justamente porque o narci-
sismo também está presente em grupo e o estranho é uma ameaça à
coesão de um grupo. Dentro disso, a lógica da hostilidade e o senti-
mento de aversão e ódio estarão presentes. Aliás, Freud afirma que
existe uma hostilidade que é primária:
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar
em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos ou-
tros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o
nosso próximo e força a civilização a um tão elevado disp6endio
[de energia]. Em consequência dessa mútua hostilidade primária
dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente
ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum
não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que
os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços su-
premos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do
homem e manter suas manifestações sob controle por formações
psíquicas reativas. (p. 117)
Neste sentido, a hostilidade, a intolerância ou ódio fazem par-
te da própria dinâmica cultural ou social. Na lógica da identificação
estará o polo oposto do reconhecimento de uma diferença, isto é, a
lógica da segregação. É nisso que está contida a impossibilidade do
mandamento bíblico “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, uma
vez que o amor é “valorizado por todos os meus como um sinal de
minha preferência por eles, e seria injusto para com eles colocar um
192 Patrícia do Prado Ferreira

estranho no mesmo plano que eles estão” (p. 114). De certa forma,
aqui se concentraria o que poderia justificar a fragilidade da socie-
dade idealizada ‘emancipada’ que foi vislumbrada tanto por Castells
como por Lévy. Pois, mesmo que digitalizada e favorável às redes e
agrupamentos, a ‘sociedade digital’ é constituída por seres humanos
e por isso é passível de suas constituições psíquicas e dos efeitos de
formações coletivas. É agrupamento que pode acirrar ou afrouxar a
potência social.
O que tivemos em imagem foi uma guerra ‘político-ideológi-
ca’, na qual dispositivos como o Facebook e o Twitter foram trans-
formados em grandes expositores da intolerância ou hostilidade
inerentes aos laços; da ‘inclinação à agressão’ que, segundo Freud é
“através da qual a coesão entre membros da comunidade é tornada
mais fácil” (p. 119), ou seja, em torno da qual também o Um unifi-
cante ou homogeneizante opera. Neste sentido, a potencialidade de
questionar o campo político e saber fazer com o conflito e crítica,
como sugere a política, deram espaço ao seu contrário. O ativismo
presente nas redes sociais passou, em grande parte, a ser apenas
uma resposta reativa sustentada pelo ressentimento e, então, o ima-
ginário tornou-se despolitizado.
Além disso, outro aspecto que contribuiu é o algoritmo uti-
lizado nas redes que acabam por sustentar a formação de ‘bolhas’.
Ao indicarem conteúdos de maior interesse aos seus usuários, os
grupos acabam falando para si, retroalimentando as similaridades
e também as diferenças e fazendo crer em sua ‘razão ideológica’. De
acordo com Ethan Zuckerman (2017):
Com a ascensão dos sites de busca, a navegação baseada em inte-
resses passou a nos conduzir à segregação ideológica, seja por cau-
sa dos tópicos que selecionamos, seja pela linguagem que usamos.
Não espere fazer amigos conservadores em um site de culinária
vegetariana, da mesma forma que buscar progressistas em um site
sobre caça pode ser frustrante.(...)
O que a mídia social oferece de diferente não é a possibilidade de
escolhermos os pontos de vista com os quais entraremos em con-
tato, mas sim o fato de que muitas vezes não estamos cientes das
escolhas.
A coesão de uma comunidade ou de um grupo, como afirma
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 193

Freud, se dá mais facilmente por via da distinção de que existe um


‘nós’ e de outro lado ‘eles’ ou ‘os outros’. Isso funciona como uma
estratégica de tentar preservar o narcisismo de certa unidade e,
consequentemente, coloca o outro no lugar do ‘estrangeiro’. O nar-
cisismo das pequenas diferenças configura-se, portanto, de modo
paradoxal: ele se dissolve dentro de uma massa pela via das relações
libidinais necessárias para que se estabeleça a camaradagem, mas
aparece quando esta mesma massa precisa eleger o outro estranho
a si. Com as bolhas que se formam em rede, o suporte para o narci-
sismo das pequenas diferenças fica maximizado e a diferença exa-
cerbada. Estão todos vistos a ‘olhos nus’.
Então, quando milhares de pessoas tomam as redes sociais
esse traço constitutivo de um grupo torna-se mais evidente, no sen-
tido da gente poder vê-lo claramente, registrado no simbólico das
palavras e das imagens. Mesmo sendo expressão de uma parcela
muito ‘peculiar’ da sociedade, a tecnologia legitima essa função de
‘representatividade’ ao nos falar e mostrar a sociedade, como mar-
cava Castells em seus textos.
Naquilo a que se refere às manifestações de ódio ideológico
a configuração dessa ‘massa digitalizada’ contou ainda com a tela
como uma espécie de aparato de proteção, favorecendo que o nar-
cisismo fosse desprovido de vergonha. E, por este mesmo motivo,
a hostilidade, o ódio, ganharam ainda mais espaço para se mani-
festarem; fica mais ‘simples’ colocar o outro nesse lugar de receptor
da pulsão de morte — como sugere a elaboração de 1930. Já dizia
também Freud, que a maior fonte de angústia dos seres humanos é a
relação com o outro. Nesse meio em que se está o tempo todo se ex-
pondo e sendo exposto ao outro — e aqui acho que a discussão sobre
a liquidez e precariedade desses laços não cabe — a gente sofre do
excesso do outro. E, ainda, ele aparece na nossa linha do tempo com
opiniões nem sempre convergentes com as nossas e, ao mesmo tem-
po, a gente ainda encontra um monte de camaradas que aparecem
nesta mesma linha do tempo com opiniões que sustentam as nossas.
Daí porque basta uma fagulha para que a gente se divida em
bandos, nas redes ou fora delas, numa organização clássica freudia-
na: eles nos atacarão, nós os atacaremos, faremos memes, páginas
contrárias, emitiremos opiniões, leremos ‘nossas revistas’, ‘nossos
194 Patrícia do Prado Ferreira

jornais’, ‘nossos sites’; porque o do outro não é bom, é conserva-


dor, é comunista, é qualquer coisa que ‘não sou eu’. Estamos certos,
eles equivocados; e cada grupo se justifica à sua maneira. Os verde
e amarelo de um lado, os vermelho de outro; e ainda uma porção
‘nem lá, nem cá’, um grupo que também carece de uma unidade e
que se garante nesta coesão de nichos.
Assim, a aposta ‘esperançosa’ de Castells, Lévy e também de
muitos outros teóricos, ativistas e militantes, acaba sendo um lu-
gar que não é de via única, claro. Existe a potencialidade de que as
pessoas se juntem para uma causa legítima e transformadora, por-
que realmente permite certa transgressão espaço-temporal, mas ao
mesmo tempo, é também desse mesmo formato que emergem as
manifestações carregadas de afetos ‘pouco referenciados’ como o
ódio. É evidente que há uma expansão ou ‘democratização’ dos sa-
beres, dos poderes que ‘parecem’ como acessíveis a todos, na medi-
da em que as pessoas podem ter a possibilidade de sair do lugar de
receptoras passivas das informações formatadas pelas mídias tradi-
cionais ou por qualquer outro lugar de saber.
No entanto, a configuração de grupo não se transforma, ela
apenas ganha novos elementos e um deles, como destaquei e que
acho que é providencial, é a sensação de proteção que a tela pos-
sibilita. O grande objetivo de qualquer grupo de agitação política
que se dá nestes meios é que eles saiam das telas e ocupem as ruas,
que além de pintar o monitor, se colora e ocupe a cidade com as
próprias cores; que as ideias prevaleçam sobre dos outros. Essa é
uma disputa do campo político. Entretanto, ela deixa de ser política
quando passa a ser regida somente pelo ressentimento, pelo senti-
mento de hostilidade. Uma coisa é que para suportar a coesão de
grupos seja preciso que se eleja o ‘inimigo comum’ que fortaleça o
imaginário da unidade; que se saiba por quais razões se ‘odeia’ ou
discorda; outra coisa é odiar e praticar a hostilidade sem nenhum
questionamento ou simplesmente pela diferença, é aí que a disputa
deixa de ser do campo político e torna-se absolutamente gratuita
e despolitizada, com a única chance de cair numa discursividade
reativa e de trocas de ofensas, sem nenhuma implicação social
contundente.
Neste sentido, compreendo que o antagonismo necessário
De promessa de “emancipação” à disseminação do ódio 195

ao campo político é deixado de escanteio. As disputas se susten-


tam também em razão do antagonismo — é o que encontramos na
base da teoria marxista do conflito social dos operários contra os
burgueses, do feminismo contra o machismo, dos negros contra o
apartheid, dos comunistas contra os nazistas, de socialistas contra
capitalistas — e mais atualmente dos cidadãos contra a oligarquia. É
pelo antagonismo que se têm política, na medida em que ele indica
a impossibilidade de constituição de uma totalidade plena (Mouffe e
Laclau, 1985), o antagonismo é “testemunha da impossibilidade de
uma sutura final, é a ‘experiência’ do limite do social” (p. 203).
Como definiu Castells 2003), a internet não pode ser consi-
derada “nem utopia nem distopia, (...) é a expressão de nós mes-
mos através de um código de comunicação específico, que devemos
compreender se quisermos mudar nossa realidade” (p. 11). É por
isso também que à parte de ter tecido minhas considerações com
este caráter que parece pessimista, por não apontar uma superação
dessa composição grupal — que eu também não sei porque a gente
sempre insiste que massa, grupo e até mesmo a multidão são quase
sempre geradores de efeitos negativos — não significa que a única
leitura a ser feita é que o viés ‘revolucionário’ ou ‘emancipatório’
originário tenha saído de cena ou que as redes sociais tenham se
tornado só uma espelho da ‘hostilidade’ social. Elas são também
isso e elas possuem justamente a capacidade de escancarar a
organização dos sujeitos na coletividade. E com a suspensão da
vergonha, o que tem aparecido com mais força é esse poder-dizer,
manifestar, a rejeição e o ódio ao outro, ao diferente. Mas, para con-
trabalancear, esse não é o único possível. Acreditar nisso seria con-
denar a sociedade, a online, a off-line, tanto faz — e não conseguir
extrair daí qualquer tipo de possibilidade.
O meu exercício aqui foi tentar fazer essa leitura a partir dos
elementos apresentados por Freud, especialmente na estrutura
de um grupo. E, dizer que os grupos sociais digitais possuem es-
tas ‘novas roupagens’ mas se manifestam de formas ‘velhas’, não é
condená-los, mas apontar a forma de organização coletiva que pa-
rece sim ter os traços descritos por Freud. Deslegitimá-los é quase
crer que existe um possível (que a psicanálise não consegue precisar
qual é), que em algum momento sujeitos emancipados desfilarão
196 Patrícia do Prado Ferreira

‘livremente’ por ruas arborizadas. Os elementos ‘hipnóticos’, o con-


tágio, o ‘narcisismo’, o ódio compõem os grupos, mas não devemos
tomá-los como efeitos rígidos, únicos e pré-estabelecidos. Tem
também a parte que a gente respira e confia.

Referências

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Acesso em: 5 mar. 2018.
Rap: o “efeito colateral” da
segregação

Marta Quaglia Cerruti

Eu sou apenas um rapaz latino americano


Apoiado por mais de 50 mil manos
Efeito colateral que seu sistema fez
(Capítulo 4, versículo 3. Racionais MC’S)

Há décadas as periferias Brasil afora têm sido assoladas pela


enorme carência de aparatos básicos do Estado, pelo trânsito livre
de armas, pela violência, pela truculência da polícia — agente da
violência, e vítima desse estado de coisas —, pelo enorme contin-
gente de jovens assassinados. Um cenário escandaloso, para dizer
o mínimo, que perpassa o cotidiano de seus habitantes. E cada vez
mais o espaço urbano é dividido, e os mais pobres são relegados a
áreas de habitação distantes do centro, desprovidas de recursos mí-
nimos que garantam direitos básicos de cidadania.
Por detrás dessa segregação espacial está — além da especu-
lação imobiliária e do fracasso das políticas urbanas —, o medo da
violência, que leva as classes mais favorecidas a desenvolverem tec-
nologias de exclusão social, impondo divisões, restringindo a cir-
culação urbana, bem como, de maneira crescente, criminalizando
categorias sociais. Caldeira (2000) considera que desigualdades,
200 Marta Quaglia Cerruti

separação e controle de fronteiras tornaram-se categorias estrutu-


rantes da composição do espaço urbano.
Um cenário no qual a segregação faz do jovem uma das maio-
res vítimas, sobretudo os jovens negros e pobres moradores das
periferias. É alarmante o número de jovens que vêm sendo crimi-
nalizados, ou mesmo mortos,1 em nossas periferias hoje. Vários
estudos têm mostrado que no Brasil prevalece a visão — bastante
tendenciosa e distorcida — de que jovens pobres, em particular jo-
vens negros, são delinquentes e violentos, o que os torna mais ex-
postos a morte violenta, ou a serem alvo sistemático de torturas e
maus-tratos (Anistia Internacional, 2000; Vicentin, 2005). É tam-
bém freqüente a leitura do ato infracional cometido pelo adolescen-
te como um sintoma de desvio pessoal (Vicentin e Rosa, 2010), o
que embasa reiteradas demandas pela redução da maioridade pe-
nal, ou ainda a formulação de medidas socioeducativas que têm
como pressuposto a associação entre periculosidade e ato infracio-
nal (Vicentin, 2005; Vicentin e Rosa, 2009).
Tais visões da juventude que habita as periferias acabam por
ser a marca das políticas públicas assistenciais voltadas a esse seg-
mento da população, pois a maioria tem suas ações junto aos jovens
focadas, sobretudo, em dois aspectos: a coerção e o castigo como
condição para o restabelecimento do laço social; e intervenções de
natureza corretivo-pedagógicas que só têm em conta aquilo do que
o jovem é privado. Tais ações tendem a perpetuar uma gramática
que vincula a juventude a ações delinquentes, carregando consigo a
violência decorrente de ações segregatórias, seja nas políticas públi-
cas ou no espaço de convivência na cidade. Ademais, muitas vezes
aquilo que as políticas públicas consideram ser a abordagem mais
eficiente junto aos jovens não dialoga com usos, valores e costumes
dos próprios jovens, criando um abismo entre o que é ofertado e a
realidade na qual eles vivem.

1. No Brasil são assassinados, em média, 82 jovens por dia. Do total dos


mortos, 77% são negros. Fonte: HTTPS://anistia.org.br/campanhas/
jovemnegrovivo.
RAP: o “efeito colateral” da segregação 201

São abordagens que trabalham a partir de uma definição de


subjetividade que ressalta um caráter que é apenas negativo: do que
o jovem é privado, o que ele deve receber para poder ocupar um
lugar de cidadania, bem como, no caso do jovem em conflito com a
lei, o que ele deve receber para que possa restabelecer o laço com o
outro. Com certeza há, sim, uma grave carência de dispositivos bá-
sicos do Estado voltados aos jovens nas periferias, tais como saúde,
educação e lazer. Mas é preciso considerar que enfatizar tão somen-
te as privações pode derivar em ações que se aproximam mais de
uma gestão filantrópica da pobreza.
Tendo em vista tal preocupação, este trabalho pretende pro-
blematizar, a partir de uma leitura psicanalítica, a representação da
juventude periférica que vem sendo difundida no corpo social. O
intuito é desconstruir visões que predominam hoje sobre os jovens
negros e pobres: eles são vistos como perigosos ou delinquentes por
boa parte do corpo social. Consideramos que ainda prevalecem
abordagens da questão que desprezam, no mais das vezes, formas
singulares de construir laços que vêm interrogando a visão de que
as periferias são o lugar da barbárie e do caos, com destaque para
a juventude que lá habita. Para tanto, vamos nos aproximar de um
movimento cultural que, a partir da virada do século XX para o
XXI, vem ganhando cada vez mais força nas periferias: o Hip-Hop,
destacando a produção de um grupo de rap já conhecido em todo o
território nacional, os Racionais MC’s.

As marcas de uma divisão

A abissal desigualdade social brasileira reverte em uma ima-


gem cindida de si própria que fala, de um lado, de uma socieda-
de organizada e modernamente constituída; e, em seu negativo, de
anomia, violência e atraso. Tal negativo, correntemente entendido
como resíduos de outrora que resistem ao processo de moderniza-
ção, tem seu maior expoente na pobreza e na brutal desigualdade
social. A pobreza, assim entendida como marca de nosso atraso, é
abordada enquanto algo externo à paisagem do social, o que traz
202 Marta Quaglia Cerruti

como consequência nefasta o fato de que a desigualdade social não


é entendida e analisada como parte integrante e inscrita na perpe-
tuação de injustiças e iniquidades que vivemos cotidianamente.
As marcas clássicas do atraso brasileiro não deveriam ser conside-
radas como arcaísmo residual, e sim como parte integrante da re-
produção da sociedade moderna, ou seja, como indicativas de uma
forma perversa de progresso. (Schwartz, p. 126)
A pobreza e a desigualdade social são um entrave que vem
desafiando um discurso, preponderante ainda hoje, que faz do
progresso e do desenvolvimento um projeto nacional. Ora, a po-
breza faz parte da nossa história, acompanha seu curso passo a
passo, denunciando de forma contundente o fato de nossa organi-
zação social não ser capaz de fazer valer parâmetros igualitários
de cidadania. A pobreza assim considerada — uma intercorrência
à margem da vida social — acaba por ser interpretada como algo
próximo de um dado bruto da natureza e não como condição estru-
turante da organização social, perpetuando as mais variadas formas
de violência.
Habitando esse limbo, a pobreza fica alojada em um não lu-
gar nas relações sociais, e nela são projetadas todas as nossas in-
competências para o cumprimento de um projeto moderno. Tida,
assim, como um obstáculo que encena, de forma trágica, o avesso
do Brasil que se pretende moderno, a pobreza deve ser educada, tu-
telada e vigiada. Por não ocuparem um cenário no qual eles sejam
um elemento de análise crítica, aos pobres é ofertada, no mais das
vezes, a assistência social. A pobreza se transforma em carência, e
abordá-la não é viabilizar o acesso à justa cidadania, mas minorar
a penúria. Um ciclo perverso no qual a justiça se traveste de ca-
ridade, e os direitos, em auxílio àqueles impedidos de acessá-los.
Reproduz-se, assim, a lógica da exclusão e da desigualdade nas
próprias iniciativas mobilizadas para minorar tais mazelas.
Tal entendimento da pobreza, como signo de atraso, apor-
ta uma ambiguidade fundamental, dado que por um lado, o povo
é considerado humilde, mas bestializado; e, por outro, se o povo
procura sair desse lugar protestando, passa a ser visto como agru-
pamento de baderneiros e ignorantes movidos pela desrazão.
RAP: o “efeito colateral” da segregação 203

Sabemos, ao longo de nossa história, as interpretações que foram


feitas dos movimentos de protesto: foram considerados ou cons-
pirações ilegítimas, inconfidências, ou explosões de fanatismo
arcaico
A obra Os sertões de Euclides da Cunha expõe de forma em-
blemática essa dicotomia civilização/barbárie. O projeto inicial
de Euclides da Cunha era fazer uma série de reportagens sobre o
movimento liderado por Antonio Conselheiro. De reportagem, a
obra se tornou um retrato exemplar de tendências conflituosas a
nossa realidade, daí a famosa frase com que o relato se encerra:
“Canudos não se rendeu, teve que ser destruída”. Diante do mas-
sacre de Canudos, Euclides teve uma percepção lúcida do quão
conflituosa é a sociedade brasileira, do abismo social que até
hoje persiste, elevando a condição sertaneja a estatuto da nossa
contradição.
A desproporção entre as forças do Exército e os recursos dos ser-
tanejos representava o abismo que havia entre o Brasil formal e o
Brasil profundo. Euclides, que inicialmente julgava o Conselheiro
uma ameaça à jovem República, um ‘foco monarquista perigoso’,
acabou se convencendo de que se tratava de um movimento de
gente pobre e abandonada. E a reportagem que ele fez in loco vira
denúncia de um crime. Essa é a atualidade de ‘Os sertões’: tornar o
passado uma realidade de certa forma contemporânea do historia-
dor. (Bosi, 2002, p. 10)
Castoriadis (1982), em seu trabalho Instituição Imaginária da
Sociedade, aborda a noção de imaginário em um sentido bastante
peculiar: o imaginário não é o oposto do real, não é derivação de algo,
mas é a criação e o próprio fundamento do que, por meio das mais
variadas criações discursivas, nomeamos realidade.
O imaginário não é imagem. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/ima-
gens, a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’.
Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus pro-
dutos. (Castoriadis, 1982, p. 13)
Essa abordagem propõe que a coesão da sociedade é man-
tida pelas diferentes instituições que a compõem e que estão
204 Marta Quaglia Cerruti

inclusas nessa lógica de funcionamento imaginário. Ou seja, o fun-


cionamento do tecido social opera através de criações que, uma
vez atuantes no corpo social, passam a ser compartilhadas por um
coletivo social e anônimo. Nesse sentido, o imaginário envolve a
criação do real, bem como marca um lugar de entrecruzamento de
ideais, em uma composição que é tanto histórico-social quanto an-
corada no mundo fantasístico do sujeito.
Com efeito, o que prevalece no imaginário social é que, dadas
as privações, as periferias são um lugar em que reinam a barbárie
e o caos. Ora, isso desconsidera o fato de que as periferias e suas
fronteiras são acima de qualquer coisa uma construção imaginária,
uma idéia, uma vez que regiões são construções imaginárias huma-
nas. Tal configuração imaginária adquire uma história própria, cria
tradições de pensamento e uma rede de usos, costumes e lingua-
gem que se tornaram uma presença nas e para as políticas públicas,
bem como para os habitantes das áreas centrais da cidade. A difu-
são da imagem do jovem negro e habitante da periferia como uma
categoria de análise, pesquisa e formulação de políticas públicas
tem como resultado, em grande medida, polarizar uma distinção:
o jovem da periferia vai ganhando contornos de um positivismo
identificatório, difundindo a concepção de que sua existência é um
incômodo, um problema a ser sanado com urgência. Essa aborda-
gem coloca esses jovens em uma posição degradada de objeto de
estudo e intervenções, bem como vai transformando regiões geo-
gráficas em entidades tratáveis.
Caminhar na contramão da grande parte das posições que
o debate público atual propaga frente aos problemas das assim
chamadas periferias urbanas não é uma tarefa fácil. A maioria
das práticas e das reflexões políticas acerca desse território e seus
habitantes é fortemente marcada por uma visão de viés inter-
vencionista: políticas públicas de segurança e saúde, iniciativas cívi-
co-pedagógicas postas à disposição de uma população considerada,
em sua maioria, como inculta e cada vez mais perigosa.
E é justamente tomando essa contramão que as narrativas
do rap têm demonstrado uma capacidade discursiva de expressar
com inteligibilidade um fenômeno inaudito, a partir da articulação
de conceitos como: Vida Loka, Zé Povinho, Preto tipo A, Neguinho,
RAP: o “efeito colateral” da segregação 205

mano, quebrada, ter moral, entre outros tantos que, além de ofere-
cer sentido às experiências de jovens das periferias, também per-
mitem a partilha pública dessas experiências. E isso em uma chave
na qual a fala não se dirige apenas à periferia, mas também fala pela
periferia.
Com efeito, abordar os jovens desde outra perspectiva, que
realce seu modo de fazer laço social, pode interrogar a premis-
sa de que a violência é algo dado, e de que sem a presença de um
poder soberano o caos se instala inexoravelmente. E é isso que
tais movimentos, singulares e orgânicos das periferias — que não
se resumem a formas de expressão da privação e da exceção, mas
constituem soluções originais e criativas, e com forte compromisso
com a transformação social — vêm sistematicamente interrogando.
Ademais, tais soluções nos oferecem material para refletir sobre as
condições de possibilidade de formação de grupos que permitam
escapar da irracionalidade das massas, uma forma de coletivizar os
sujeitos sem que para isso seja preciso haver uma uniformidade de
ideais particulares, quer seja sob a forma de imposição de um único
objeto de satisfação, quer seja pela miragem de um mesmo ideal.

O avesso na cidade: efeito colateral

Partindo da ideia de que o movimento Hip-Hop pode fun-


cionar como instrumento de resistência ao anonimato, ou a cate-
gorias classificatórias e, por isso, segregadoras, a chamada cultura
da periferia surge como movimento de resistência dos jovens em
serem tomados como categorias do abjeto, reinventando o imagi-
nário que lhes é imposto — o de estarem à margem da sociedade
através de uma linguagem que os apresenta em sua singularidade
e diferença.
As letras do rap discutem temas como o preconceito, a violên-
cia e a segregação racial e seus efeitos deletérios, com destaque para
a violência urbana. A maioria das produções é feita sobre a base co-
mum de experiências urbanas de segregação racial, bem como da
memória da escravidão.
206 Marta Quaglia Cerruti

O que salta aos olhos é que, apesar da exclusão social e étni-


ca, os jovens vêm construindo espaços de lazer e cultura que pres-
cindem de financiamento, favores e apoios do poder público, e que
surgem como uma resposta local singular às transformações que
experimentam. Quando os rappers dizem “nós somos a favela” mar-
cam sua filiação a segmentos socialmente excluídos ao longo da
nossa história.
A criação de um movimento como esse, que vem envolvendo
jovens no mundo inteiro, pode ser decodificada como uma forma
de rebeldia criativa por meio da qual, frente a uma situação limite
na qual há, de um lado, uma exigência constante de simbolização
imposta pela constituição pulsional e, de outro, o desamparo e as
incertezas do real, os jovens respondem sem se refugiar nas várias
formas de idealização, ou seja, sem procurar amparo em um Outro
absolutizado.
Isso porque entendemos que o Hip-Hop não é apenas o
reflexo de uma estrutura social, mas também sua recodificação,
trazendo à tona em suas manifestações o avesso do imaginário da
vida urbana sem violência, predicado tão caro para as elites. Além
disso, entendemos que o Hip-Hop não é apenas lazer, expressão
ou denúncia (o que não significa desprezar esses aspectos), mas
tem também a função de articular o jovem ao laço social via
transmissão: um testemunho que se apresenta e procura dar voz ao
inaudito, criando um compromisso entre a memória do sujeito e
aquela a ser construída no espaço público.
De fato, o movimento Hip-Hop, em sua prática, da qual desta-
camos as narrativas do rap produzido pelos Racionais MC’s, sugere
que esse pode ser um recurso bastante original para dar tratamento
ao excesso, à violência e à exclusão social, propiciando a criação de
laços comunais que se contrapõem à lógica segregatória imposta a
esses jovens. Trazendo à tona aquilo que a cidade insiste em recal-
car, bem como transmitindo em sua narrativa a história de sécu-
los de opressão, as produções desse movimento nos colocam frente
àquilo que o ordenamento cindido da cidade procura manter dis-
tante, como nos alertam os Racionais MC’s quando se apresentam
como “o efeito colateral do seu sistema”.
RAP: o “efeito colateral” da segregação 207

Vida loka: errâncias racionais

As letras de rap compostas pelo grupo Racionais MC’s se con-


figuram como um documento precioso da segregação social, por
registrarem as implicações do processo crescente de uma fortifica-
ção urbana que separa a elite em condomínios fechados em áreas
privilegiadas da cidade, e as classes populares em zonas periféricas.
Suas produções enfocam processos identificatórios que interrogam
fortemente o mito da democracia racial (um retrato tão difundido
da doce e alegre mestiçagem como marca da nossa nação), relatan-
do a experiência de desamparo desse enorme contingente de peri-
féricos urbanos. Uma forma bastante singular de produzir uma fala
sobre a exclusão.
O primeiro CD do grupo a atravessar as fronteiras mura-
das da cidade é Sobrevivendo no Inferno, cujo trabalho Diário de
um Detento, feito a partir de texto de Jocenir (então detento no
Carandiru, e que presenciou o massacre de 111 presos2), tornou o
grupo conhecido em todo o Brasil, trazendo o relato do inaudito
que a sociedade rechaça: a vida carcerária. A música foi composta
tendo como base os cadernos nos quais Jocenir registrava sua vida
na prisão, bem como o relato do dia do massacre.
Além de expressar a experiência do Carandiru de forma vis-
ceral, a canção recoloca os termos nos quais o massacre ocorreu.
Isso porque o episódio a que temos acesso pela mídia é um mas-
sacre que ocorreu devido a uma rebelião de detentos perigosos.
Na recomposição do cenário oferecida pela letra a violência per-
passa o dia-a-dia de cada um dos detentos. Ou seja, não se trata
de uma irrupção violenta autônoma. Há uma base que é a própria

2. O Massacre do Carandiru, como foi popularizado pela imprensa brasi-


leira, aconteceu na Casa de Detenção São Paulo, no dia 2 de outubro de
1992, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo, sob o comando do
Coronel Ubiratan Guimarães, interveio para conter uma rebelião deixando
um saldo de 111 mortos. Vários sobreviventes afirmaram que o número de
mortos foi superior ao divulgado.
208 Marta Quaglia Cerruti

experiência histórica de violência e segregação, e da qual o massa-


cre não irrompe como exceção, mas se insere em um cenário mais
complexo: se para o Estado os detentos são só um número, a letra
marca que cada detento tem uma mãe, uma crença, uma história
e um nome, dando-lhes assim uma história mínima que os insere
no coletivo da cidade. Dessa forma, trata-se de elaborar, em uma
forma estética, a experiência que foi o massacre e, nessa tentativa
de organização, ultrapassar o caos da situação. De um lado o caos
da situação, de outro o silêncio mortífero do assassinato de 111
homens.

São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992, 8 horas da manhã


Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Mato o tempo pra ele não me matar
(Diário de um detento, Racionais MC’s)

A letra nos apresenta vidas em suspensão, e sobre as quais a


morte está à espreita a cada movimento, dos olhos sanguinários ao
tempo que não corre. Dias iguais, cuja certeza é ter acordado vivo,
nos fazendo conhecer vidas que o Estado historicamente considera
perigosas ou desprezíveis, e que devem ser silenciadas.

Cada detento uma mãe, uma crença


Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo: uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias; abandono, miséria, ódio
[...]
Tem uma cela lá em cima fechada
Desde terça feira ninguém abre pra nada
Só o cheiro de morte e Pinho-sol.
(Ibidem)

Vidas com nome, filiação, com possibilidades de deriva e


que, na situação carcerária, têm o valor de um produto sanitário:
RAP: o “efeito colateral” da segregação 209

trata-se de algo a ser desinfetado. Nas letras desses rappers pode-


mos ouvir uma sucessão de cenas tanto da vida carcerária como da
vida nas periferias. E isso descrito por alguém que as conhece mui-
to de perto. A poética se apoia nessas descrições, em uma trajetória
nada redentora. São narrativas fortemente marcadas por sua potên-
cia crítica e a forma através da qual elas são enunciadas difere ra-
dicalmente de tantas outras narrativas musicais acerca da injustiça
social brasileira, indicando uma ruptura daquilo que costumamos
chamar de canção de protesto: é outra a estética, é outro o locutor,
pois quem fala é a própria periferia, e ela não vem reivindicar a dig-
nidade do “pobre, porém honesto”, a dignidade do trabalho, e tam-
pouco escamoteia com sutileza malandra a violência da dominação.
Muito pelo contrário, seus versos confrontam e escancaram a vio-
lência de dominação.

60% dos jovens da periferia sem antecedentes criminais


Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia,
Três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros.
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São
Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
Mas não! Permaneço vivo, eu sigo a mística,
27 anos, contrariando a estatística
(Capítulo 4, versículo 3. Racionais MC’S)

Contrariar a estatística e permanecer vivo aos 27 anos denun-


cia que a morte violenta intencional distribui-se de modo extrema-
mente concentrado. A vítima letal brasileira típica é jovem, do sexo
masculino, tem entre 15 e 24 anos, mora nas vilas, favelas ou peri-
ferias das metrópoles e, frequentemente, é negra. O alvo estatisti-
camente mais provável da modalidade mais grave da violência tem
idade, cor, sexo, endereço e classe social.
Trata-se de um paradoxo, pois vivemos em um mundo lai-
co, e por isso desencantado, mas no qual quem fala é a ilusão de
uma sociedade inteligível de ponta a ponta, uma vez que o conflito
210 Marta Quaglia Cerruti

é deslocado de um antagonismo social para um antagonismo en-


tre contexto social sadio e civilizado e barbárie. De fato, conferir às
periferias uma posição de não-cidade destitui qualquer possibili-
dade de análise crítica de sua existência: ela é, sim, vista como um
todo indiferenciado e ameaçador e que, por isso mesmo, deve ser
mantido afastado e isolado, e a morte dos corpos que lá habitam
não é contabilizada como perda. O que é insistentemente propaga-
do é a naturalização da violência, algo que “faz parte da natureza
humana”.
Ora, reduzir o humano a um único aspecto, afirmar que a vio-
lência é inerente e inesgotável acaba por justificar a existência da
soberania, dado que sem ela a convivência não é de modo algum
factível, além de conduzir a uma separação absoluta do semelhante,
sempre objeto possível de ataque e agressão. É certo que nada asse-
gura o valor do encontro. Contudo, cabe interrogar por que sempre
a maldade e a solidão humanas tomam a cena, e vão sendo cada
vez mais naturalizadas e invocadas para justificar que esses jovens,
negros, pobres e moradores das periferias sejam considerados, nas
palavras de Cristina Vicentin e Miriam Debieux, indesejáveis e
perigosos?

Fazer estremecer o soberano:


uma política da psicanálise

O operador teórico freudiano por excelência vem de sua ex-


periência clínica, pois é o neurótico quem oferece as ferramentas
para que a desarmonia entre a civilização e a pulsão possa ser anali-
sada. Ao tomar a neurose como um operador metodológico, Freud
pôde desnudar a impossibilidade de a civilização ser a reguladora
das pulsões. O que a presença da neurose revela, assim, é uma for-
ma de mal-estar que não se resume apenas à defasagem entre a sa-
tisfação pulsional e o objeto, pois existe algo da ordem da dor de
existir imbricado no próprio estatuto civilizatório. Em outras pala-
vras, a exigência da renúncia pulsional que pesa sobre o neuróti-
co revela a verdade da civilização: a impossibilidade da satisfação
RAP: o “efeito colateral” da segregação 211

pulsional plena, marca de nosso desamparo, é marca necessária


para a construção da civilização.
Do pai tirânico de “Totem e tabu” (1913) à sua internalização
na figura do superego, a existência de entidades soberanas que
regulem o mal-estar não é uma constatação freudiana, mas sim o
problema sobre o qual ele irá se debruçar, tirando as consequências
da afirmação por ele feita em “Psicologia das massas e análise do
ego” (1921), de que “toda psicologia individual é também psicolo-
gia social”. Freud aponta que a construção da civilização, a prática
política e a consciência social são processos que exigem um mo-
vimento de gestão ininterrupto, com vistas à sempre buscar a ade-
quação o mais satisfatória possível em cada contexto. O que nos
obriga a considerar que, para além das formações das massas e hor-
das, nas relações do sujeito com a realidade há a possibilidade de
vislumbrar a criação de novos objetos de satisfação absolutamente
singulares e passíveis de transmissão no laço social.
Em suma, das formulações do complexo de Édipo ao mal-es-
tar, a impossibilidade de qualquer satisfação plena das pulsões mar-
ca o fato de que abrir mão da onipotência do desejo é condição
necessária para o desenvolvimento do tecido social. Mas, no caso
da realidade brasileira, Pellegrino (1983), em seu artigo magistral
“Pacto social e Pacto edípico”3 aponta com lucidez o fato de que a
sobreposição indevida entre, de um lado, uma renúncia necessária
e, de outro, a repressão opera em favor da manutenção da injustiça
social:
A intensidade e a violência da repressão — ou da supressão — irão
depender não apenas das necessidades intrínsecas ao próprio pro-
cesso civilizatório, mas da intensidade da luta de classes que nele
se desenvolve. Freud não foi bastante lúcido nesse sentido. Ao ana-
lisar a sociedade capitalista, que tomou como modelo, não se deu
conta que nela a repressão existe não apenas em função das exigên-
cias do processo civilizatório, mas da injustiça social, que é preciso
manter e garantir pela força. (p. ) falta pág.

3. Artigo escrito para o suplemento Folhetim do jornal Folha de S.Paulo.


Disponível em: <www.sppsic.org.br>.
212 Marta Quaglia Cerruti

Os jovens vêm combatendo essas injustiças munidos de caixas


de som, microfones, coreografias, poesias, sprays, e vêm inscreven-
do a experiência das marginalidades na cultura. A dor de uma vida
fragmentada e degradada se mistura na paleta dessas manifestações
e pode transformar a passividade, o que não soaria inusitado frente
às experiências a que estão cotidianamente expostos, em um movi-
mento ativo de tentativa de transformação.
Através da música, de filmes, do teatro, da literatura, da dan-
ça, os jovens moradores das periferias vêm resistindo a uma figu-
ração vil e ignóbil que lhes vem sendo imposta, explicando nessas
produções os porquês de sua situação à margem da sociedade —
através do resgate de um passado de escravidão e submissão — e
promovendo uma (re)construção simbólica da experiência do que é
ser hoje um jovem morador das periferias.
Com efeito, é uma resposta ao desamparo frente às incessan-
tes exigências pulsionais que não se refugia nas várias formas de
idealização, e que por isso tem forte compromisso com o resga-
te da memória e sua transmissão. Trata-se de buscar a construção
de um espaço político produzido pela abertura de um lugar vazio
que prescinde de figuras superegoicas de autoridade alinhadas ao
mito do pai da horda e à submissão masoquista que lhe é correlata.
De fato, o masoquismo é aquilo que impede a transmissão, por ser
uma posição identificatória ancorada na servidão.
Em contraposição às figurações de vassalagem ao soberano,
essas iniciativas podem apontar para a possibilidade de um laço ca-
paz de recompor os termos da trama discursiva, abrindo dessa ma-
neira lugar para o inusitado. Isso tendo em conta o prazer que pode
ser produzido no coletivo, que conta com a capacidade de diluir
categorias fixadas de antemão e é insubmisso a qualquer forma de
alienação e idealização em figurações de autoridade. O que indica
que a transmissão comparece em sua forma resistente e em nada
atrelada a qualquer normatividade. Algo escapa, à maneira do chis-
te, e se presentifica na música capaz de estremecer nossas balizas
identitárias e de furar fronteiras.
Pode-se deduzir daí que encontrar recursos para transmitir,
de alguma forma, os efeitos de algo que ultrapassa as possibilida-
des de representação inverte a posição passiva daquele que sofre o
RAP: o “efeito colateral” da segregação 213

golpe. A tentativa de sair da repetição através do testemunho pro-


cura implicar o outro, aquele que escuta, no ocorrido, pois na nar-
rativa desses rappers o social não pode ser tomado como cenário
sobre o qual uma trama se desenrola, não sendo a causa nem tam-
pouco o significado da obra que se produz. O elemento social apa-
rece como fato inerente à própria construção artística — ou seja,
trata-se de uma expressão estética que tem em conta a dimensão
social como algo que compõe a manifestação artística. Uma pro-
dução que se edifica na confluência do ímpeto individual e de de-
terminado contexto social, os quais comparecem inextricavelmente
unidos, levando às últimas consequências a afirmação de Antônio
Cândido (1965) de que: “o que me interessa não é tanto a relação
do texto com a sociedade, é a transformação da sociedade” (p. 26).
Negando a imagem nacional amplamente comercializada da
doce e alegre mestiçagem, as letras do rap evocam aquilo que foi
interrompido e permanece irrealizado. O passado não é algo morto
que resta compreender, mas significa algo que retorna para repetir
um caminho nunca trilhado. A transmissão assim compreendida,
como partilha de saberes transmissíveis ao longo de gerações, e não
como elogio incondicional à prática da rememoração como resti-
tuição integral do passado, se alinha ao que a psicanálise conside-
ra o valor da palavra: algo que nos conduz à eterna busca de algo
desde sempre perdido, e por isso sempre reencontrado como ficção.
Aquilo que sobra do passado, não mais que traços, pode ser recons-
truído no presente na tentativa de formular um projeto possível.
Com efeito, a relação entre o sujeito e a cultura não se inscreve
em uma lógica ancorada na identidade, nem tampouco na exclusão.
Entre um termo e outro há uma relação na qual a transmissão ocor-
re como resultante de uma perda, rompendo assim uma continuida-
de e criando condições para que ocorra uma transformação, e isso
na medida em que aquele que recebe algo do passado é capaz de ins-
crever uma diferença no presente: o ontem se atualiza em um pro-
jeto futuro, transformando assim o passado para mantê-lo presente.
Uma fonte entre outras para a conformação e a consolidação
de uma existência no presente que não se confunda com a barbárie.
Esse elo entre o presente nas periferias e o ontem do cativeiro se
estabelece pela experiência da perda, sendo essa da ordem do real,
214 Marta Quaglia Cerruti

pois a morte surge nas letras como algo já esperado. Em entrevista


à Revista Cult o repórter pergunta para Mano Brown se ele às vezes
não gostaria de ser apenas Pedro Paulo (seu nome de batismo), ao
que ele responde:
Às vezes sim, mas o Pedro Paulo talvez não estivesse vivo se
não fosse o rap, então também não posso ter essa ingratidão. O Pedro
Paulo está vivo até hoje por causa do rap. Quando eu conheci o rap,
o Pedro Paulo estava fadado a morrer. E na verdade o Pedro Paulo
nunca deixou de existir, mas ele poderia ter morrido em 1988. Não
tinha para onde correr. O crime já estava virando uma coisa normal
— meus amigos faziam parte daquilo. E, mano, se você vê os amigos
em quem confia no barato, você acaba entrando. Se a primeira dá
certo, você quer ir na segunda e aí você vai ficando frio, desacredita-
do, essa é a circunstância.4
São produções que sugerem uma tentativa de recolocar no
laço social aqueles que uma sociedade expropriadora condenou à
pobreza e à barbárie. Mais do que mostrar um retrato social, tais
produções supõem naquilo tido como desumanizado o humano,
negando-lhe veementemente a desumanização, tal como Lacan
concebe a lógica coletiva. Registram o ato mediante o qual os ho-
mens podem vir a se reconhecer mutuamente a partir do movi-
mento subjetivo de afirmação da humanidade pela negação do não
humano. Vemos, assim, uma produção que escancara o avesso do
social ao incluir na narrativa o tido como dejeto, dando-lhe condi-
ções de sujeito, de um querer dizer que lhe é próprio, e retirando-o
tanto do sem-sentido da barbárie como de sentidos cristalizados
que vêm sistematicamente negando-lhe a humanidade.

Considerações finais

Com efeito, tais produções ao recolocar a vida nas perife-


rias em outros termos, vão abrindo campo para uma leitura das

4. Entrevista feita como o grupo Racionais MC’s na Revista Cult, n. 192, p.


32-59, julho de 2014.
RAP: o “efeito colateral” da segregação 215

marginalidades sociais não como apenas formatos possíveis da pe-


riferia. O que permite pensar a margem como uma fronteira sim
conflituosa, mas também carregada de potencialidades. E isso com
uma peculiaridade bastante importante: há claramente um esforço
para conferir inteligibilidade à experiência imediata, introduzindo
concomitantemente a desordem na ordem, caminhando nas bordas
da sociedade brasileira. É assim que entendemos que ler as mar-
ginalidades sociais não como simples figurações do periférico, ou
seja, como formas negativas de sua existência em relação ao cen-
tro, delineia o potencial político que há na dinâmica sócio-cultural
da “vida nas periferias”, ou seja, o potencial político que reside nas
“margens” da cidade, bem como a postura ética aí implicada.
Caminhando no avesso de uma narrativa que busca encobrir
o perturbador, as letras, ao inscrever o inaudito nas fronteiras na
cultura vão desconstruindo os muros e rompendo o domínio su-
postamente apaziguador que repousa na lógica civilização/barbárie.
E isso sem retirar da civilização os trapos, mas ao contrário: dando
a esses trapos algum arranjo possível. Afirmando-se em um pata-
mar possível de inteligibilidade, as narrativas assumem uma posi-
ção fundamentalmente ética, e também política.
Nesse percurso que busca recuperar o humano de cada um,
vemos os fatos serem evocados a partir da experiência do sujeito
e de sua vida na coletividade: a voz é daquele que contraria a esta-
tística e fala em nome de e para todos aqueles que são vítimas da
escassez, da brutal desigualdade e do racismo.
Existe, sim, potencial político que habita as margens da ci-
dade. Ao se recusarem a ser aquilo que instaura a barbárie na vida
urbana (o que seria encarnar o papel que lhes é demandado insis-
tentemente), desvelam o quanto a vida murada e a cidade dividida
em centro e periferia são maneiras de escamotear o problema da
desigualdade. Bem como denunciam uma estratégia de obscurecer
o mal-estar em nome da manutenção de enclaves fortificados e su-
postamente livres de quaisquer conflitos, que visam criar a ilusão
de que a exclusão garante a vida harmônica. Nesse sentido, uma
política que interroga e recusa a manipulação das massas.
Expondo o avesso da crença em um coletivo todo e harmôni-
co, descontroem a lógica apoiada na gramática nós/eles, alertando
216 Marta Quaglia Cerruti

que se trata de frente e verso da mesma questão. Não é apenas a in-


dicação do declínio ou decadência de um projeto de sociedade, mas
a denúncia de que a contradição estrutural desse projeto vem sendo
acobertada pela fantasia de um todo sem fraturas que tem nas figu-
ras da cordialidade, da mestiçagem, do exotismo e do pobre, porém
honesto, seus maiores expoentes.
Dessa maneira, para além de observar os efeitos dos ideais
modernos no laço social, expressos por uma perturbação na crença
de um coletivo orgânico e harmônico, é fundamental entender essa
cisão enquanto sintoma, algo que as produções do rap encenam de
maneira visceral interrogando a norma social pelo avesso. É isso
que a teoria do sujeito do inconsciente pode colocar em jogo: não
se trata apenas de declínio ou decadência de um projeto, mas sim
da revelação de uma contradição estrutural acobertada pela fanta-
sia de um todo sem fraturas.
O movimento de ocultar algo que interroga sentidos fixados
de antemão transforma a possibilidade de um pensamento vivo em
um dogma, pois o pensamento supõe colocar em questão o sentido
do que foi recebido. Ora, quando toda resposta basta a si mesma, as
respostas estão subsumidas em um conjunto de ideias ou em uma
verdade absoluta. Freud alerta para o perigo da morte da palavra
a partir da constatação da compulsão à repetição: a palavra morre
por se repetir e circular sempre nos mesmos lugares, tornando-se
dogma.
E o dogma é o que se opõe radicalmente à proposta da psi-
canálise. Isto porque, em sua preocupação em buscar entendimen-
to sobre o que modula as relações dos sujeitos, a psicanálise parte
do que diz respeito às regras mais fundamentais do laço social. Seu
ponto de partida é a interdição do incesto, e todas as outras regras
lhe serão correlatas. A interdição, ao proibir o acesso do sujeito ao
objeto suposto ser o primeiro de seu desejo, irá encaminhar cada
um para a busca de um objeto substitutivo, em uma cadeia infindá-
vel de possibilidades e garantindo o caráter polissêmico e cambian-
te da palavra.
Se o olhar que é direcionado a esses jovens no discurso social
caminha na linha que vai da filantropia à criminalização, constata-
mos que alguns movimentos sociais da periferia vêm devolvendo
RAP: o “efeito colateral” da segregação 217

essa mensagem que recebem se enlaçando no fluxo coletivo da ci-


dade, e trazendo à cena aquilo que foi recalcado: a pobreza, a desi-
gualdade, o racismo, que perpassam séculos de história no Brasil, e
que exigem sua inscrição no campo simbólico. É disso que se tra-
ta quando os Racionais MC’s dizem: Eu não sou o negro drama, eu
vivo o negro drama, posição na qual se colocam em uma perspecti-
va de continuidade de uma história passada que ecoa das senzalas
até as periferias. Com efeito, uma posição que vai ao encontro da-
quilo que entendemos ser a ética do ponto de vista da psicanálise:
não ceder de seu desejo significa separar-se das exigências impostas
por qualquer ideal, inventando novos destinos.
Uma narrativa que busca restituir a palavra silenciada desde a
herança colonial, silêncio enraizado na aberração da gramática es-
cravagista, para fazê-la circular em novos corpos, em novas expres-
sividades: do tambor aos scratches, da capoeira ao break, trata-se do
imperativo de transmitir as marcas de uma experiência ainda não
completamente representada, e que exige ser distinguida da barbá-
rie, construindo um percurso que vai do vivido nas periferias para
o passado do cativeiro, e que aponta para um projeto identificatório
possível.

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Respostas coletivas às intrusões
no erotismo: as 11 garotas de
Bertioga e a vacina do HPV

Adela Stoppel de Gueller

Esta reflexão tem origem numa pesquisa desenvolvida a par-


tir de um episódio recentemente noticiado pela imprensa brasilei-
ra. Em setembro de 2014, na cidade de Bertioga, após receber na
escola a segunda dose da vacina HPV, que previne o câncer de colo
de útero, onze meninas tiveram dores de cabeça e falta de sensibili-
dade nas pernas. Oito foram levadas ao pronto-socorro e liberadas
em seguida, e três foram internadas para investigação. O episódio
causou pânico entre as garotas e em seus pais, e começaram a se
levantar inúmeras vozes contrárias à continuidade da aplicação da
vacina, que foram amplamente noticiadas pela imprensa.
A pesquisa se estendeu quando se descobriu que o Brasil não
era o único lugar onde aconteceram episódios dessa natureza. Entre
os 51 países que já adotaram a vacina como procedimento de saúde
pública, a Austrália, a Colômbia, a Dinamarca, os EUA, a França,
o Japão e Uganda tiveram histórias semelhantes. Na Colômbia, por
exemplo, também em 2014, 517 adolescentes de 13 a 15 anos que
tomaram vacina contra HPV apresentaram sintomas como des-
maios, dor de cabeça, tontura, dormência e formigamento em vá-
rias partes do corpo.1 Denominado “evento inusitado de etiologia

1. Oito eram de sexo masculino e seis tinham diferentes idades.


222 Adela Stoppel de Gueller

desconhecida” ou “evento sociogênico coletivo”, foi amplamente no-


ticiado. Tanto no Brasil quanto na Colômbia, o Ministério de Saúde
declarou que o fato não tinha nenhuma raiz biológica. Na nota que
o Ministério de Saúde publicou aqui, dizia-se que as garotas não ti-
nham apresentado nenhuma alteração neurológica (Rio Grande do
Sul, 2014) e que tratava-se de uma reação psicogênica favorecida
pelo fato de a vacinação ocorrer em ambiente escolar e ser aplicada
por meio de injeção.
Como afirmou recentemente o sanitarista brasileiro Marcos
Safadi,2 trata-se de casos de histeria coletiva, embora essa expressão
não tenha aparecido nas notas de esclarecimento do Ministério de
Saúde nem do Brasil, nem da Colômbia, e muito raramente tenha
sido mencionada desse modo nas matérias jornalísticas. O que se
evitava dizer? As apresentações clínicas espetaculares das pequenas
histéricas punham em cena o corpo erógeno que não tem lugar no
discurso médico. E, embora tenham sido só 11, as pequenas histéri-
cas que ofereceram seu corpo de maneira sacrificial, ou seja 0,002%
das meninas vacinadas, elas lograram questionar esse procedimen-
to baseado no pressuposto científico do século XVII postulado por
Descartes e que ainda sustenta o discurso médico no século XXI.
O corpo e a alma ou, numa linguagem mais atual, o biológico e o
psíquico, continuam dissociados. Mas a histeria insiste em mostrar
aos médicos que o sujeito não tem uma relação direta e imediata
com o corpo, que cada ser falante precisa dar sentido ao desejo e
que isso implica um árduo trabalho psíquico, que é particularmente
intenso na puberdade. Para tanto, cada um precisa de um lugar e de
um tempo para poder significar as dores, as angústias e os prazeres
pelos quais passa cada corpo.
O que tanto os Ministérios da Saúde da Colômbia e do
Brasil descartaram foi que os sintomas que se manifestaram após
a aplicação da vacina pudessem ser respostas do corpo considera-
do como mero organismo biológico. Assim, o Estado descartou a

2. Informação verbal fornecida no VI Simpósio Vacunar, III Jornada


Vacunar, em Buenos Aires, em 8 de setembro de 2016.
Respostas coletivas às intrusões no erotismo 223

possibilidade de que o procedimento indicado por ele possa ter fei-


to as crianças adoecerem. Mas essa resposta não satisfez as famílias
e ainda as deixou desamparadas e desorientadas. O que tinham as
meninas? Nesse sentido, vale a pena assistir ao documentário re-
alizado pela TV2 da Dinamarca intitulado “As garotas vacinadas:
doentes e traídas”, citado recorrentemente em matérias relaciona-
das (The vaccineted girls, 2015). Baseado no depoimento de três
meninas, de seus pais, de médicos e enfermeiros, ele dá voz àque-
les que questionam o procedimento. E ficou estabelecido um cam-
po de batalha: de um lado, a “traição” e o medo do abandono das
autoridades sanitárias, enunciados pelos pais, e a “vitimização por
terem visto arruinadas suas vidas”, alegada pelas garotas; de outro,
a negação do malefício da parte dos porta-vozes do governo, que
se recusavam a responder às demandas de reparação das famílias
e a oferecer tratamento às meninas e a seus pais. Entre ambos, os
meios de comunicação pondo lenha na fogueira. Sob o argumento
da dificuldade para obter informações, a mídia levantava suspeitas
sobre a cientificidade do procedimento, sobre a possível conspira-
ção dos laboratórios e sobre o custo econômico das vacinas subven-
cionadas pelo Estado.
Além de os sintomas das meninas serem semelhantes, chama-
ram atenção a semelhança dos grupos que se constituíram, os ar-
gumentos arrolados e as reivindicações feitas nos diferentes países:
as autoridades sanitárias, o laboratório Merk, médicos contrários à
vacinação, os pais, as meninas, a imprensa e a publicidade foram os
protagonistas que se fizeram ouvir.
Variaram as respostas sociais dadas para solucionar/silenciar
o problema que se havia criado. O Japão teve talvez a saída mais ra-
dical: decidiu não mais recomendar a aplicação da vacina. A França
se apressou a dar subsídio público à aplicação, que custava cerca
de € 300 euros por pessoa, o que implicou para o Estado um gas-
to anual de € 360 milhões. Nos EUA é sobretudo a via judicial que
processa os efeitos adversos: um advogado já está autuando o labo-
ratório por danos morais, que os familiares responsabilizam por 38
mortes. O médico porta-voz do laboratório respondeu alegando a
eficácia do procedimento e afirmando que as reações apresenta-
das pelas garotas são posteriores e que nada indicava que tivessem
224 Adela Stoppel de Gueller

relação direta com a vacina. O advogado demandou então que se


reconhecesse o sofrimento das famílias e pediu que o laborató-
rio demonstrasse que não havia relação entre a vacina e os sinto-
mas das meninas. Como resposta, surgiram novas publicidades do
laboratório.
No Brasil, entre outros importantes meios de comunicação,
o Jornal Nacional noticiou o caso de Bertioga. Falou numa doen-
ça desconhecida, aventou a hipótese de que o lote de vacinas esti-
vesse contaminado, insinuou a possível presença de alumínio na
vacina e levantou-se a acusação de “falta de comprovação científi-
ca”. O esclarecimento do Ministério da Saúde em que se afirmava
que as garotas não apresentavam nenhuma alteração neurológica
(Ministério da Saúde, 2014) e que se tratava de uma reação psico-
gênica favorecida pelo fato de a vacinação ocorrer em ambiente
escolar e ser aplicada por meio de injeção foi apenas uma nota de
rodapé nos diferentes veículos, mas seu efeito foi uma drástica re-
dução de 40% de adesão à vacina imediatamente subsequente.3
Por tratar-se de um procedimento massivo de saúde pública,
o Estado se coloca diante das famílias no lugar de quem garante
proteção e cuidado. Supostas falhas são, então, significadas como
traição: entreguei minha filha a quem supus um saber, mas fui en-
ganado. Analogamente a quem se vê traído numa relação amorosa,
a reação é de um ódio virulento, e passa-se a exigir reparação. No
fim de contas, nada mais precioso que a vida de suas filhas. Nesse
caso, em particular, como efeito de contágio das “vítimas”, os pais
se agrupam para ganhar força nas demandas reivindicativas. Essa
transformação, diz Lacan, promove as formações coletivas e tem
seu protótipo no ciúme do lactente, que são arquetípicos dos sen-
timentos sociais (Lacan, 1938, p. 58). Assim, inicialmente situado
como um Outro provedor, o Estado transforma-se imediatamente
num Outro privador, e o amor endereçado a quem cuida, protege e
sabe se transforma em ódio e desejo de destruição.

3. Informação verbal fornecida por Marcos Safadi no VI Simpósio Vacunar,


III Jornada Vacunar, em Buenos Aires, em 8 de setembro de 2016.
Respostas coletivas às intrusões no erotismo 225

Os pais, especialmente as mães, se culpam por ter assinado a


autorização para a vacina e, consequentemente, se sentem de algum
modo cúmplices do adoecimento de suas filhas. Mágoa e ressenti-
mento indicam que sabem, mas não querem saber, que aceitaram
se colocar numa posição passiva diante do Estado, que acaba sen-
do considerado abusador. Seja por covardia, por medo, por cálculo
(“mais tarde, ele há de reconhecer e premiar meu sacrifício”) ou por
impotência autoimposta, eles revelam a posição de cúmplices do
agravo do qual se sentem vítimas (Kehl, 2010, p. 123).
Mas, entre tantas vozes, acusações e suspeitas, o que não foi
até agora nomeado com clareza em nenhum desses cenários é a sig-
nificação sexual que adquiriu a vacina para essas meninas e seus
pais. Foi como resposta a essa significação que se produziram ata-
ques de histeria em massa cujas manifestações devem ser situadas
no corpo erógeno, ou seja, no corpo do prazer, da dor e da angús-
tia. É verdade que não se trata de doenças de origem biológica ou
de reações neurológicas e que não foi o produto inoculado que
produziu essas manifestações. Mas é igualmente verdade que foi a
vacina, pelo significado sexual que adquiriu, e o produto injetado
no corpo a via pela qual os significantes-chave “câncer” e “útero”
ou, como diria Freud (1901, p. 11), “morte” e “sexualidade” foram
incorporados, desencadeando episódios de histeria coletiva. Assim,
um procedimento médico preventivo fez reaparecerem manifesta-
ções histéricas semelhantes às do começo do século XX no corpo
social do século XXI: paralisias, parestesias, desmaios, anestesias,
miastenia, enxaquecas e tontura, são alguns dos sintomas que as
meninas apresentaram.

Por que essa vacina em particular teve essa resposta?

Nossa hipótese é que, como a vacina contra o HPV previne


uma doença sexualmente transmissível, para atingir seu objetivo
preventivo, ela foi ministrada a todas as garotas virgens, introdu-
zindo antes de tempo a questão da sexualidade. Desde a carta 52,
Freud (1950) dizia que ela sempre aparece antes de tempo ou tarde
226 Adela Stoppel de Gueller

demais, ou seja, de modo traumático, já que há algo psiquicamente


inassimilável no encontro de cada um com o sexual, do que resulta
que, do trabalho de simbolização da sexualidade, ninguém pode ser
poupado. A medicina preventiva intervém pensando em diminuir
a incidência de câncer de colo de útero, o segundo mais frequente
entre mulheres jovens, e para tanto usa de um procedimento que
se insinua, para as meninas e seus pais, como liberador do futuro
exercício da sexualidade. As forças recalcantes se insurgem contra
essa libertação e se manifestam como sintomas conversivos no cor-
po das meninas — cenário fantasmático do conflito que a sexuali-
dade apresenta aos seres falantes. A novidade do século XXI é que
seja a própria medicina preventiva o agente do trauma, ou seja, que,
prevenindo uma doença, se cause outra. O abusador, nesse caso,
não é o pai, o tio, o vizinho ou o amigo, mas o mesmo agente que
promove a prevenção: as políticas públicas de saúde.
Ao precipitar fantasmaticamente o início da vida sexual,
o ato de vacinação pode ser situado como um ritual de passagem
adolescente dessacralizado, justamente porque não tem as potencia-
lidades simbólicas transformadoras dos rituais sagrados, não propi-
cia nem marca uma identidade coletiva, nem um reconhecimento
social. Cria vítimas de uma nova e rara doença, que nós identifi-
camos como a antiquíssima histeria, presente e reconhecida desde
os gregos. A experiência dolorosa, que nos rituais sagrados é trans-
formadora e simboligênica, está aqui presente como injeção, mas é
situada pelas garotas como um instrumento que danifica. Resta do
ritual a nova participação social que as garotas e seus pais passam
a ter na sociedade contemporânea, ao criar-se mais um grupo de
vítimas que se sentem lesadas, desamparadas e traídas pelo Estado
e que, consequentemente, exigem reparação.
Historicamente, nos conta Freud (1910, p. 190-194), os rituais
de iniciação sexual da adolescência se aplicavam aos sujeitos mas-
culinos, enquanto as meninas passavam por rituais que eram feitos
uma a uma e ocorriam à medida que ia aparecendo a menarca. O
ritual dessacralizado de vacinação contra o HPV parece introdu-
zir uma novidade no século XXI, já que nele o lugar das meninas
é coletivizado. Não se espera o tempo em que cada menina vai
menstruar, que é variável, mas unifica-se na idade inferior motivo
Respostas coletivas às intrusões no erotismo 227

pelo qual a vacina pode ser aplicada a partir do 9 anos de idade.


Podemos então pensar que a resposta histérica é:
• uma recusa delas a ser tratadas todas igualmente,
• uma recusa à diferença sexual marcada pela exclusão dos
meninos,
• uma resposta conversiva em função de a ênfase em seu corpo e
de o procedimento injetável implicar uma experiência corporal
de gozo: prazer, angústia e dor,
• uma resposta coletiva de mimese ou contágio pelo fato de o am-
biente escolar favorecer que as meninas se observassem umas às
outras.
Assim, de mãos dadas com a histeria das 11 garotas de
Bertioga, retorna também a sexualidade infantil, que segue sendo
um tema tabu no século XXI. Isso se evidencia na não nomeação
das questões sexuais implicadas nos episódios relativos à vacina,
designados simplesmente como psicogênicos ou sociogênicos.
Sexualidade infantil e histeria não são, entretanto, uma solu-
ção, mas o nome de uma catástrofe, ou seja, uma interrupção da
comunicação. Frente ao significante histeria, os médicos se riem,
os pais se ofendem, a imprensa desdenha, o acontecimento per-
de interesse e tudo se torna mera encenação (Carvalho, 2000).
Diferentemente do que acontece no cotidiano:
(...) no teatro, pela etimologia grega, o termo [catástrofe] tem jus-
tamente o significado inverso ao de interrupção da comunicação.
Catástrofe na representação é o contrário da vida real. No palco,
catástrofe é “reviravolta” e, portanto, comunicação inesperada, coup
de thêatre, é a comunicação que se restabelece pela ponte da emo-
ção provocada no espectador com uma surpresa. (Carvalho, 2000,
p. 239)
Eis nosso paradoxo. Se, seguindo Freud (1909, p. 207), os
ataques histéricos são “fantasias traduzidas na linguagem moto-
ra, projetadas sobre a motilidade, mostradas como pantomima”, a
comunicação que a histeria estabelece aproxima o teatro e a vida
real. Ajudadas pela imprensa, as 11 garotas surpreenderam os es-
pectadores e fizeram com que mudasse o procedimento médico na
vida real. A partir deste ano, procurando evitar reações de contágio
ou mimese, a aplicação não será mais feita nas escolas: meninas e
228 Adela Stoppel de Gueller

meninos serão vacinados, e a aplicação se fará em conjunto com a


vacina de meningite, o que, segundo entendo, aponta para diluir ou
dissolver a significação sexual recalcada que está associada à vaci-
na do HPV. Os sanitaristas entenderam perfeitamente o recado das
meninas de Bertioga: se fizeram destinatários da mensagem e es-
tão respondendo à altura, mudando radicalmente o procedimento.
Teremos dado um passo adiante no sentido do livre exercício da
sexualidade? Poderá esse novo procedimento evitar o recalque e,
como pretendia inicialmente Freud, produzir menos neuroses? Não
temos como saber. Mas o que fica claro na resposta dos sanitaristas
é que a questão da sexualidade continua sendo escamoteada e que o
corpo erógeno que as pequenas histéricas puseram em cena conti-
nua não tendo um lugar discursivo.

Referências

Carvalho, B. A comunicação interrompida: estão apenas ensaiando. In


Nestrovski, A. L.; Seligmann-Silva, M. (Orgs.). Catástrofe e representação.
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ces en el habla, el trastocar las cosas confundido, la superstición y el error). In:
Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. Vol. VI.
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______. (1910). El tabú de la virginidad (Contribuciones a la psicología del
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Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento
Respostas coletivas às intrusões no erotismo 229

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veis eventos adversos pós-vacinação ocorridos no município de Bertioga-SP.
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The Vaccineted Girls: sick and betrayed. Produção: TV2 Dinamarca, 2015.
“De vaccinerede piger” (with English subtitles) for international viewing.
Documentário. Disponível em: <https://vimeo.com/170557906>. Acesso em:
24 out. 2017.
Culpa, crimen y castigo en los
destinos de la ley según Ricardo III,
de William Shakespeare

Esteban Radiszcz

The worm of conscience still begnaw the soul


William Shakespeare, Ricardo III, I : iii.

Con el propósito de discernir una particular variante de los


derroteros de la ley en lo inconsciente, el presente escrito se pro-
pone retomar las sintéticas indicaciones que, en relación a Ricardo
III de Shakespeare (1593), Freud (1916) formula sobre Las excep-
ciones en su breve texto “Algunos tipos de carácter dilucidados por
el trabajo psicoanalítico”. Por cierto, puede resultar extraña la idea
de examinar asuntos relativos a los destinos subjetivos de la ley a
través de una pieza literaria, cuyo protagonista representa uno de
los más célebres criminales de las tablas isabelinas. De hecho, en
atención a su distintiva reivindicación del derecho a eximirse de
las prerrogativas conforme a las cuales otros acostumbran conte-
ner sus acciones, el propio Freud sitúa a Ricardo bajo los designios
de la “excepción” a la regla. En tal sentido, el infame actuar de esta
suerte de gánster renacentista bien podría autorizar la inclusión del
despiadado personaje entre aquellos “psicópatas” que, semejante-
mente conducidos con arreglo a sus pretensiones de excepciona-
lidad, Greenacre (1945) considera detentores de una conciencia
moral defectuosa. Más aún, para Roussillon (2014), la “excepción”
232 Esteban Radiszcz

convocada en los crueles actos de Ricardo no concierne tanto el


simple desacato a la regla convenida, pues incluso más radicalmen-
te ella se dispensa de una ley tanto más fundamental que, relativa al
reconocimiento de la humanidad en el otro, ampara la pertenencia
a la comunidad humana en cuanto tal.
Sin embargo, no parece del todo preciso sostener, tanto para
Las excepciones, en general, como para el Duque de Gloucester, en
particular, un muy discutible arreglo completamente desabonado
de la esfera de la ley. De hecho, sería a lo menos imprudente inferir
algo así de los señalamientos formulados por Freud a propósito de
Ricardo, cuya pretensión de excepcionalidad, así como los privile-
gios en ella reclamados, de ninguna manera logran por entero pres-
cindir ni de los derroteros de la ley ni de los meandros de la culpa.
En efecto, para Freud (1916), los designios asumidos por Gloster
conforme a modelar sus actos según la morfología de la injusticia,
lejos de obedecer al frívolo capricho de abdicar por su deformidad
a las bondades del amor, sólo adquiere su auténtica envergadura en
el escenario de la justicia, ante cuyo tribunal es denunciado el per-
juicio recibido por parte de la ley misma (Assoun, 2005). A su vez,
contrario a la apreciación que, ante la rebeldía de Ricardo para alla-
narse a los escrúpulos, pretende dispensar al infame monarca de la
aptitud para experimentar remordimientos, Freud (1913) destaca,
aún antes de su texto sobre Las excepciones, la indiscutible injeren-
cia de la mala conciencia de Glóster que, en sus espectrales visiones
nocturnas, enfrenta la sanción dispuesta por la ley de cuya “excep-
ción” se reclamó al amparo.
En tal sentido, no resulta sorprendente si, en lo sucesivo, bue-
na parte de los no muy frecuentes reconsideraciones ulteriores del
mencionado texto freudiano, entre los que se cuentan artículos
de Jacobson (1959), de Kris (1976), de Wurmser (1981), de Blum
(2001), de Noshpitz (2010), de Rosen (2013) y de Lansky (2015),
los cuales coinciden en destacar el peso decisivo que, en Ricardo
III, tienen las cuestiones relativas a la culpa y al superyó, es decir,
los asuntos concernidos por las vicisitudes de la ley en lo incons-
ciente. Nada extraño parece haber en ello. Como lo subraya Blum
(2001), el breve texto de 1916 es, justamente, contemporáneo a la
escritura de “Duelo y melancolía”, donde Freud (1917) prolonga
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 233

la exploración de inquietudes aún no resueltas que, inicialmente


abordadas dos años antes en “Introducción del narcisismo” (Freud,
1914) a propósito de las muy poco amenas relaciones entre el yo y
la crítica del Ideal del yo, guardan relación con la indagación de los
resortes de la moralidad y los destinos de la culpabilidad, a nivel de
sus determinaciones en lo inconsciente. Como bien se sabe, estos
mismos asuntos continuaron ocupando, durante algo más de media
década, una parte sustantiva de las interrogaciones de Freud hasta
llegar, no sin haber transitado por sinuosos rumbos, a la formulaci-
ón en 1923 del superyó que, originalmente propuesto en “El yo y el
ello” (Freud, 1923), continuó siendo objeto de examen en numero-
sos escritos posteriores.
Conforme a lo anterior, tampoco es raro que, más allá de sus
respectivos énfasis, el conjunto de las mencionadas reconsideracio-
nes posteriores a Freud convengan en destacar las inflexiones del
narcisismo convocadas en el caso de Ricardo III. Tal como lo indica
el mismo Freud (1916) al inicio de su artículo, el texto se propo-
ne abordar los designios de ciertas resistencias que, opuestas a los
empeños de la cura, derivan de determinados rasgos de carácter, es
decir, su interés se concentra en aquello que, refractario a seguir las
trayectorias capaces de reconducir los síntomas a sus fundamentos
pulsionales, resulta de específicos arreglos defensivos asociados a
peculiares incidencias del narcisismo. En tal sentido, Freud cuenta
enfocar su examen sobre asuntos que, en estricto rigor, no se con-
tarían (al menos inicialmente) entre las articulaciones del deseo,
sino que se corresponderían con particulares deformaciones del yo
que, en razón de su dependencia del narcisismo, se encontrarían en
abierta antagonismo al despliegue de estas.
Sin embargo, es precisamente aquí, en este punto cardinal de
la articulación del conflicto psíquico de acuerdo a la perspectiva
freudiana en esa época, donde se sitúa aquello que, ahora si, resul-
ta extraño e, incluso, problemático encontrar de manera tan ubicua
en el conjunto las antes mencionadas reconsideraciones postfreu-
dianas sobre Ricardo III. Pues, en el fondo, según estos autores, las
formaciones del narcisismo decantadas en el carácter del Duque
de Gloucester, lejos de oponerse a la dirección de las formaciones
de su deseo, facilitarían al contrario su libre flujo, toda vez que las
234 Esteban Radiszcz

primeras implicarían una insuficiente sedimentación de las prerro-


gativas de la ley en lo inconsciente y, con ello, favorecerían el com-
pleto desenfreno de las ambiciones resultante de las deficiencias de
la conciencia moral.
En efecto, según Jacobson (1959), Ricardo daría cuenta de
un perturbación del superyó, cuyo resorte principal residiría en su
necesidad inconsciente de castigo que lo movería al crimen para
alcanzar su propia autodestrucción. Asimismo, Noshpitz (2010)
asocia el cruel actuar del célebre villano a los efectos de su peren-
ne odio hacia si mismo, mientras que Rosen (2013) lo considera
un “coleccionista de odios” animado por su masoquista porfía para
conservar su nocivo vínculo con un objeto, por el cual él mismo
habría devenido dañino. Por su parte, Kris (1976) enfatiza la incon-
tenida necesidad de gratificación de Gloster que, para Blum (2001),
deriva de un fracaso de la regulación madura y benigna de un su-
peryó afectado por una regresión hacia fases preliminares de su for-
mación, donde precursores persecutorios y punitivos amparan una
crítica internalizada que, no estando aún adecuadamente dirigida
hacia si-mismo, no es reconocida como culpa propia. Finalmente,
apoyado en las indicaciones de Wurmser (1981) sobre la infamia
del personaje como reacción ante una vergüenza avasalladora,
Lansky (2015) sostiene que, producto de las excesivas aspiraciones
reclamadas por su ideal del yo, Ricardo resiente un menoscabo en la
capacidad del superyó para imponer, mediante la culpa, restriccio-
nes, mientras en paralelo enfrenta una vergüenza, cuya ausencia de
reconocimiento alimenta una furia destructiva y vengativa dirigida
hacia las fuentes de su ignominia.
De este modo, la reconsideración del sucinto escrito freudiano
dedicado a Ricardo III parece haber servido para que, en aquellos
textos, el superyó haya dejado de ser, como lo era para Freud
(1930), fuente ineludible de la desdicha humana e instigador privi-
legiado en el conjunto de las neurosis (y de las psicosis), para deve-
nir, por un insólito sortilegio, la mayor garantía de la bondad de los
hombres y el decisivo resguardo de la armónica convivencia de la
comunidad humana. Con ello, la candente pregunta freudiana por
las vicisitudes de la ley en lo inconsciente resulta, en el fondo, redu-
cida a la simple verificación de su supuestamente incólume sostén
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 235

en la recta moral de los miembros de nuestro mundo, literario o


planetario, mientras que su defección o desvarío, indefectiblemen-
te identificados en los extrañamientos de aquel mismo canon de
virtud, resultan atribuidos, por fuerza, a los trances del narcisismo
que, considerados de preferencia por sus egoístas empeños e autár-
quicos provechos, reconduce todo finalmente a un asunto de cuali-
dades y defectos consustanciales a la persona y sus intenciones. La
pregunta por las coyunturas de la moral en la subjetividad es, en el
fondo, coaptada por el juicio moral dirigido a cada quien respecto
de su integridad y su bondad, donde la legitimidad y fiabilidad del
juicio, como sabemos, depende en buena parte de la distribución
de las gradientes de poder entre el juez y el juzgado, así como de
sus respectivas capacidades para capitalizar las estimas a un uno u a
otro concedidas por el jurado.
Por cierto, cabe admitir que, bajo los términos más arriba ex-
presados, la articulación del conflicto psíquico en Freud no parece,
al menos a primera vista, dócilmente armonizable con los cometi-
dos del Duque de Gloucester, quien se muestra totalmente reacio
a resignar sus anhelos. No obstante, es a partir de su atenta consi-
deración de las palabras de Glóster que Freud discierne el carácter
narcisista de la demanda de prerrogativas reclamadas como resar-
cimiento del perjuicio sufrido. En efecto, en su monólogo inicial,
Ricardo denuncia la ilegítima renuencia de la cruel Naturaleza para
entregarle la belleza al que el amor se ofrece y, en consecuencia, rei-
vindica su derecho para prescindir de los reparos que otros detie-
nen, pudiendo de este modo alcanzar su desagravio en la ejecución
de la injusticia anteriormente sobre él ejecutada.
“Más yo, que no nací para el retozo,
Ni hago la corte al amoroso espejo;
Yo, mal fraguado, que de amor no luzco
La majestad ante donosa ninfa,
Yo, de tales ventajas excluido,
Privado por falaz naturaleza
De distinción, deforme, de repente
A medio hacer encaminado al mundo,
Y eso tan mal y de tan torpe modo
Que el can me ladra al divisar mi garbo;
236 Esteban Radiszcz

En este tiempo de paz y fiesta,


Para matar el tiempo no hallo goce,
A no ser que, mirando al sol mi sombra,
Sobre mi propia imperfección discurra,
Y así, pues ser amado no es posible,
Ni entretener tan agradables días,
Determinado tengo ser infame
Y odiar los vanos goces de estos días.”
(Shakespeare, 1593, I : iii, 37-38)
En el fondo, subraya Freud (1916), Ricardo representa la mag-
nificación hiperbólica de una muy generalizada experiencia infan-
til, donde las tempranas afrentas recibidas contra el amor propio
suscitan en el yo del niño la demanda de indemnizar los daños y
perjuicios sufridos. Dicho de otro modo, aquello que moviliza a
Ricardo no procede tanto del desenfreno de su deseo como de la
herida originaria de su narcisismo. Si en su querella exige ser ex-
ceptuado de la resignación de sus apetitos, ello no resulta tanto de
la reivindicación de su deseo, sino de la revancha de su yo que, ma-
logrado por el capricho del Destino, no ha recibido los privilegios
que, no obstante, aquel ha conferido a sus semejantes.
De hecho, la afrenta resentida por Ricardo parece, incluso,
más precisa, cuando señala reconocer su imperfección “mirando al
sol mi sombra.” (I : i, p. 38). Resulta bastante evidente que este ver-
so se vale de una referencia al segundo verso del monólogo, donde
“El sol de York en esplendente estío” (I : i, p. 37) contiene un juego
de palabras que, por la homofonía entre sun (sol) y son (hijo), alude
al hermano de Glóster, Eduardo IV, rey de Inglaterra. En otras pala-
bras, es respecto del sol de Eduardo que Ricardo se constata sombra
deforme, de suerte que su falta de amor se revela la prolongación
del amor otorgado a su hermano. Para el Duque de Gloucester,
Eduardo IV no sólo fue coronado rey, sino que sobre todo fue li-
teralmente, conforme a la conocida formula de Freud (1914), His
majesty the baby, es decir, el yo ideal donde el yo de Ricardo “pre-
figura su destinación alienante” (Lacan, 1949, p. 95) y con el cual,
precisamente por ello, rivaliza.
De hecho, esta misma captación desdoblada aparece ex-
tensamente implicada en la obra, donde la cuadratura del doble
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 237

resulta replicada, duplicada e, incluso, reduplicada en varias de sus


escenas. En efecto, ella también participa a instancias del cortejo
que Ricardo emprende hacia la Condesa Ana, quién acepta deve-
nir esposa de su pretendiente, pese a ser la reciente viuda de otro
Eduardo (el príncipe de Gales, hijo de Enrique VI), al cual su no-
vel marido ha, precisamente, asesinado para recibir el amor que
ella a éste prodigaba. Por cierto, la impronta especular de la esce-
na replica, por prefiguración anticipada, el posterior asesinato de
Eduardo (el rey) en el anterior homicidio de Eduardo (el príncipe),
permitiendo a Glóster ampararse, aquí y allá, tanto del lugar (rey
o esposo) como del privilegio (sea su corona, sea su amada) otro-
ra otorgados a uno u otro Eduardo. Pero, además, la escena tambi-
én duplica el redoble especular en un, sin duda, sugerente detalle
que, con elocuencia, advierte las dos sortijas, la de Eduardo y la de
Ricardo, enfundadas al mismo tiempo en el dedo de Lady Ana. E
incluso, no contenta con replicar y duplicar aquel mismo arreglo de
disposiciones en reflejo, la escena no se priva de insistir aún en ello
y, al cierre, lo reduplica en las indicativas expresiones de Glóster so-
bre su imagen en el espejo:
“¡A mí que a Eduardo en nada me aproximo!
¡A mí cojo y deforme! Mi ducado
Contra ochavo ruin apostaría
A que ignoro el valor de mi persona.
¡Por mi vida! Verá lo que no veo:
¡Que soy maravillosamente hermoso!
Un espejo busquemos; y las modas,
Para realzar a mi persona, estudien
Veinte o cuarenta sastres por mi cuenta.
Ya que no pude alcanzar favor conmigo,
Rumboso debo ser para afianzarlo.
Pero primero sepultar a ése [Eduardo],
Y después a llorarle a mi adorada.
Para observar mi sobra en tu reflejo,
Alumbra sol, hasta tener espejo.”
(Shakespeare, 1593, I : iii, 55-56)
El texto es, sin duda, claramente indicativo. El triunfo aplau-
dido por Ricardo concierne menos un deseo acordado a Ana que
238 Esteban Radiszcz

una aspiración referida a Eduardo. Los festejos de Glóster guardan,


en efecto, relación con aquello que, merced a la conquista nupcial,
él celebra obtener: el jubiloso encuentro de su reflejo en el espejo
del sol, es decir, su captación en la imagen de Eduardo, el rey, tras-
puesto en su homónimo, el príncipe. En tal sentido, resulta sensi-
blemente significativo que el regocijo ante su logro, promueva en
Ricardo la disposición para disfrutar de vanidades por entero seme-
jantes de aquel “lascivo compás” de “estrados femeniles” que, en su
antes referido discurso inaugural, habían sido con particular fuerza
despreciadas como ociosas frivolidades de la corte.
Es que, en el fondo, la captura en su reflejo a la imagen del
Príncipe de Gales redunda, al menos por un transitorio instante, en
la adhesión especular de Ricardo a provechos y disfrutes conferidos
a uno u otro Eduardo. No parece, entonces, nada extraño si, una
vez rey (es decir, devenido doble de su hermano), el antaño Duque
de Gloucester pueda sin reparos prescindir de Lady Ana para, luego
de dispensarle igual destino que el entregado tiempo atrás a su pri-
mer marido, disponerse a iniciar un nuevo cortejo donde, una vez
más, enfrentará redoblamientos especulares similares.
En efecto, dicha pretendida no sólo es aquella, cuya mano ha
sido, sin saberlo Ricardo, prometida a quién, en tanto sucesor de
la Casa de Lancaster, amenaza disputar la legitimidad que, sobre el
trono, el ahora monarca se ha procurado por el crimen y el asesina-
to. Pero, además, también se trata de aquella que, al ser hija de Lady
Isabel y Eduardo IV, hereda el privilegio que, sobre la corona, con-
cede la Casa de York. En tal sentido, merced a este segundo cortejo,
Ricardo vuelve a encontrar las contrariedades convocadas a propó-
sito de uno y de otro Eduardo, pero esta vez todas ellas reunidas en
un mismo y único rival, Enrique Tudor Conde de Richmond, a ins-
tancias del cual la impronta del doble se presenta nuevamente. De
hecho, no sólo parece sugerente constatar que, como ningún otro
antagonista del drama, el nuevo adversario sea portador, en el ini-
cio de su noble título (Richmond), del idéntico sonido de la prime-
ra sílaba del nombre propio de Ricardo (Richard), sino que incluso
resulta aún más elocuente verificar la aparición paralela de visiones
que, soñadas por ambos Rich durante la misma noche, coincidan
con exactitud en recibir iguales visitas de idénticos espectros, cuyas
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 239

expresiones dirigen, en contraste perfecto, bendiciones hacia uno


y maldiciones hacia el otro para configurar el placentero sueño de
Richmond en oposición a la terrorífica pesadilla de Ricardo.
Por cierto, a diferencia de anteriores ocasiones, en esta opor-
tunidad Ricardo no consigue alcanzar el privilegiado emplazamien-
to de su doble. De hecho, esta vez es él quién, inversamente, padece
de los mismos resultados que, en su momento, habían sido logra-
dos, en su provecho, merced a sus actos. Pues, ahora no sólo es él
quién recibe, a manos de su rival, el mortal destino que, antaño, ha-
bía sido él quién lo entregara a sus entonces adversarios, sino que es
también él quién, a instancias de Lady Isabel, en el presente cae pre-
sa del mismo engaño que él había en el pasado repetidamente pro-
vocado. En tal sentido, dichas últimas escenas en modo alguno se
exceptúan de la impregnación especular dominante en el conjunto
de la obra y, por el contrario, ellas prolongan inclusos sus arreglos
por la inversión del reflejo del doble en el doble del reflejo.
Sin duda, lo que mejor parece dar cuenta de los designios de
Ricardo no es tanto el frenesí de un deseo sin renuncia, como el
drama narcisista del estadio del espejo. En el fondo, el rey Eduardo
VI, traspuesto en el Eduardo de Gales y retornado en el Enrique de
Richmond, es la imagen de Ricardo en el espejo o, como sé indicó
más arriba, su yo ideal a cuya alienación responden sus crímenes.
Pues, como lo sostiene Lacan (1949), es a instancias de la capta-
ción del yo en su imagen especular que emana la agresividad más
descarnada de los hombres para con sus semejantes. Justamente,
aquella que San Agustín (2010) reconoció en el niño que, sin te-
ner aún edad para hablar, palidecía de celos y miraba con torvos
ojos a su hermano de leche mamar del materno seno. Entonces, así
como aquel niño no desea la leche sino que envidia la unión de su
hermano con el pecho, del mismo modo Ricardo no desea el trono
sino que codicia la coronación del amor concedido a Eduardo por
el Destino.
En tal sentido, Lansky (2015) acierta al destacar el lugar de-
terminante que, para el drama de Ricardo, tienen sus encumbra-
dos ideales y sus ingentes aspiraciones. Sin embargo, por lo mismo,
muestra su rotundo extravío, cuando atribuye las infamias de
Glóster a su hiperbólica ambición que, sin observar culpa alguna,
240 Esteban Radiszcz

pretende acordarse a las aspiraciones del ideal del yo. Al hacerlo,


Lansky incurre, más allá de las diferencias específicas a su posición,
en el mismo desvío que Lacan (1961) reprocha a Lagage (1961) en
cuanto a confundir los registros del ideal del yo y el yo ideal, al pre-
cio de desatender el resorte de sus interacciones. Las infames deli-
tos de Ricardo, lejos de proceder de una egótica ambición orientada
a conformar su existencia a las aspiraciones del ideal del yo, emana
de la aspiración de su yo en el yo Ideal. Es decir, antes que inspirado
por alcanzar un ambicioso ideal, Ricardo resulta más bien aspira-
do, succionado, desde aquella imagen en cuya captura su yo queda
coaptado. En este extravío reside, de hecho, el resorte del auténti-
co enredo que Lansky (2015) sostiene al discernir, en la aspiración
experimentada por Ricardo a instancias de la imagen prestigiosa
del rey Eduardo, el índice de su atracción homosexual hacia su her-
mano, toda vez que al hacerlo confunde la causa del deseo con la
estofa imaginaria que la recubre. En ello, Rosen (2013) se muestra
mucho más atento, seguramente gracias a su referencia a Fairbain,
para apreciar los arreglos demoniacos (incluso, daimoniacos, agre-
garíamos nosotros: ¡Oh, mal sé mi bien!) de la pasión que abraza a
Ricardo, aunque no por ello logra liberarse del clausurado circulo
intencional de la persona.
Una atenta lectura de Freud impide conferir, sin escollos, al
ideal del yo la exclusividad de forzar, por su solo reclamo, un direc-
cionamiento hacia la aspiración, de acuerdo a como Lansky (2015),
siguiendo a Hartmann y Lowenstein, lo sostiene. Por cierto, en
1914, Freud delega al ideal del yo el ejercicio de la evaluación críti-
ca, pero incluso en esa inicial formulación ya advierte la necesidad
de una instancia capaz de asegurar el acatamiento de los designios
del ideal. Como lo demuestra con elocuencia Balibar (2007), an-
tes de “El yo y el ello”, Freud ha logrado discernir los resortes de
la obligación e, incluso, la desmesura de sus exigencias, pero aún
carece de algún expediente para su coacción, es decir, aquello por
cuyas potestades logre obligar la obligación. La invención, en 1923,
del superyó representa precisamente el encuentro de aquel com-
plemento coercitivo, el cual es, señala Freud (1933a), el “portador”
(Träger: viga, soporte) del ideal del yo que proporciona la medición
del yo. Conforme a ello, Lacan (1961) destaca el lugar que, para el
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 241

enfoque requerido a la obtención del yo ideal, tiene el ideal del yo en


calidad de referencia, lo cual no lo hace reservorio de aspiraciones,
sino más bien “constelación” de “insignias” para el sujeto que, por
esas mismas marcas simbólicas, “ya su existencia es litigada, inocen-
te o culpable, antes que él venga al mundo, y el hilo de su verdad
sólo puede hacer que él hilvane ya un tejido de mentiras” (p. 653).
Como medida, el ideal del yo comporta ciertamente la des-
mesura que sustancia la desproporción de la sentencia, pero no por
ello cuenta con los medios para perpetrar la reprimenda. En efecto,
la ejecución de la sanción requiere, más allá del veredicto de la re-
gla, del ejercicio suplementario de una fuerza por la cual se sumi-
nistre el castigo que, según lo demuestra Balibar (2007), resulta de
la acción del superyó, cuya violencia desatada exige, en conformi-
dad con su hiperbólica crueldad, la destrucción misma del sujeto,
quién se encuentra así confrontado al antinómico imperativo que,
requiriendo tanto su obediencia como su desobediencia, reclama la
transgresión y el castigo para consumar su condena al oprobio y la
ignominia. Se trata, por supuesto, de aquello sobre lo cual Lacan in-
siste al consignar el insensato mandato del superyó que, reclamando
“al mismo tiempo la ley y su destrucción” (1975a, p. 119), acuerda
sus exigencias al “imperativo del goce” (1975b, p. 10), a cuya orden
“¡Goza!” (Jouis!) sólo cabe responder “¡Oigo!” (J’ouis!) (2004, p. 96).
En tal sentido, parece difícil admitir, sin despertar las más
variadas objeciones, las consideraciones que, defendidas tanto por
Wurmser (1981) como por Lansky (2015), disciernen en Ricardo
III la acción de una vergüenza superlativa que, emanada exclu-
sivamente de las exigencias desbordadas del ideal del yo, no sólo
prescindiría del superyó, sino que incluso anularía su ejercicio.
Vergüenza, cuyo radical desconocimiento no sólo se confirmaría
por su sensible ausencia en Glóster, sino que sobre todo represen-
taría la razón última de sus desvergonzados crímenes. Ciertamente,
Ricardo es un sinvergüenza y, conforme a ello, no resiente pudor
alguno frente a sus crímenes ni demuestra mayor reserva en pre-
sumir de sus infamias, declarando incluso su desprecio hacia el co-
barde que, por debilidad frente al reproche, doblega su coraje. Sin
embargo, la desvergüenza de Glóster, pese a su evidencia, de ningu-
na manera es suficiente para refrendar su vergüenza no reconocida,
242 Esteban Radiszcz

toda vez que la falta de ella en Ricardo podría justamente señalar


tan sólo eso: su ausencia en el drama. De hecho, si de vergüenza se
trata, parecería mucho más pertinente ir a buscarla en otro Ricardo,
uno anterior, no el tercero sino el segundo, es decir, en la pieza
donde Shakespeare (1597) pone en escena el drama de Ricardo II
que, como Ashby (2013) lo señala, concierne justamente tanto la
vergüenza como su inmanente dimensión escópica, la cual resulta
sorprendentemente obliterada por ambos autores.
En todo caso, la desvergüenza de Ricardo de ninguna manera
lo exime de la violencia del superyó, cuya acción motiva las antes
comentadas visiones donde, como se indicó, Freud (1913) recono-
ció tempranamente las incidencias de la culpa en lo inconsciente.
Por cierto, Lansky (2015) lo advierte y, contra su tesis, admite en
Ricardo un acceso, puntal y circunscrito, de culpabilidad, cuya rá-
pida desestimación confirmaría finalmente su esquema. Sin em-
bargo, más allá de este muy discutible argumento, lo cierto es que,
al excluir en Ricardo el acecho permanente de su superyó, arriesga
dejar sin motivo alguno, a merced del mero capricho, la insistencia
de Glóster para manifestar su desprecio hacia todo recaudo de la
consciencia. De hecho, sobre este preciso litigio tratan, en el fondo,
las interferidas palabras de Ricardo cuando, de su culposa pesadilla,
despierta capturado en evidente estado dividido donde, a igual
tiempo, tanto se culpa como se absuelve, prolongando la antinomia
que ampara la insensatez del ejercicio de la ley en lo inconsciente,
cuya ejecución le ha valido, la noche previa a la batalla decisiva, re-
cibir severos castigos:
“Mi cuerpo tembloroso ¿Quién me espanta?
¿Yo mismo? Me hallo solo: Mas Ricardo
Ama a Ricardo… Si… Yo soy, yo mismo.
¿Hay asesino aquí?... No… Si… yo propio.
Huye, pues. ¿Más de mi? Razón, responde,
¿Para que no me vengue de mi mismo?
Mas yo me quiero bien. ¿Por qué? ¿Qué acto
Benéfico me debo yo a mi mismo?
No. Más bien me detesto yo a mí mismo.
Soy un infame. No lo soy. Mentira.
Necio, habla bien de ti. Necio, no adules.
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 243

Más de mil lenguas mi conciencia tiene,


Y cada lengua su distinta historia,
Y cada historia me proclama infame.
Perjuro vil, perjuro el más horrendo,
Asesinatos bárbaros y horribles.
Los más nefandos crímenes acuden
A la barra gritándome “Culpable”.
Desfallezco. No existe quien me quiera
Ni alma ninguna; llorará mi muerte.
Pero ¿por qué llorar? Hallo yo mismo
Compasión en mismo de mí mismo?”
(Shakespeare, 1593, V : iii, 186)
Por cierto, Ricardo desestima, al poco andar, aquel traspié de
su conciencia. Sin embargo, resulta al menos arriesgado discernir, a
partir ello, algo así como una abolición de los efectos del superyó.
Hacerlo supone amparar una equivalencia entre lo consciente y lo
inconsciente para, sin empacho, pretender que aquello dado por
descontado en la consciencia cabe ser, asimismo, descontado en el
inconsciente. Se olvida, con demasiado apuro, que la acción del su-
peryó, en su mayor parte, acontece en lo inconsciente y que, por ello
mismo, el rechazo la culpabilidad en la consciencia redunda, como
no para de decirlo Freud innumerables veces, en el refuerzo de sus
efectos a nivel de lo inconsciente. De hecho, como no obstante lo
señala el mismo Lansky (2015), el sentimiento de culpa se cierne
sobre la consciencia de Ricardo a partir de las maldiciones hacia él
proferidas por la boca de su propia madre, la duquesa de York:
“Moriré sin volver a verte el rostro:
Recibe, pues, mi maldición eterna.
Que te oprima al lidiar más que te oprime
La pesada armadura que te cubre.
Al bando opuesto irán mis oraciones.
Las inocentes almas de los hijos
De Eduardo animarán a tus contrarios,
Brindándoles ventajas y victorias.”
(Shakespeare, 1593, IV : iv, 159)
En efecto, resulta elocuente que las imprecaciones de la
Duquesa resulten bastante similares a los anatemas que, en su
244 Esteban Radiszcz

pesadilla, los espectros le impetran a Ricardo. De hecho, estos pa-


recen solo prolongar aquello que la madre había antes expresado y
que, en calidad de augurios, consuman finalmente su mortal des-
tino a manos de la ley de la espada en la batalla. En consecuencia,
si las visiones culpan a Ricardo de sus crímenes, entonces su culpa
es heredera de los reproches de su madre y, conforme a ello, la pri-
mera reprende las infamias a Ricardo según han sido amonestadas
en los segundos. En el fondo, la culpa de Ricardo no solo reprocha
precisamente aquello que la duquesa le había regañado, sino que
asimismo lo sentencia a la misma condena que había ya dispuesto
la maldición materna.
Sin embargo, aunque son enunciado en ocasión de los crí-
menes, los regaños de la madre a su hijo no parecen comportar
realmente nada muy nuevo. En el fondo, ellos muestra ser unos
remedos de otros reproches que, durante tiempos más antiguos, el
hijo ha recibido de su madre. En efecto, desde su nacimiento, la du-
quesa ha reclamado a Ricardo no haber cesado de insistir rebelde-
mente en infamias, cuyos caprichos insolentes no merece ni amor
ni privilegio, pues sólo evocan su dolor:
“¡No, vive Dios! Lo sabes bien. Naciste
E infierno para mi la tierra hiciste.
Fueme tu nacimiento empresa dura;
Áspera fue tu infancia y caprichosa;
Tu juventud terrible, impetuosa,
Agitada y feroz; tu edad madura,
Audaz, aventurera y atrevida;
Y, entrado en años, orgulloso, artero,
Sanguinario y traidor, mas escondida
Tu maldad: en tu furia más certero.
¿Que hora feliz en tu compañía tuve?”
(Shakespeare, 1593, IV : iv, 158)
Ante los ojos de la duquesa, Ricardo se ha, desde un inicio,
resistido a corregir su deformidad para ajustarla a la forma que a
ella conviene. Para el inocente bebé que, en esos tiempos, Ricardo
habrá sido, la duquesa fue ciertamente la falaz Naturaleza: de ella
recibió su injusto designio y por ella el amor le fue negado. Pues,
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 245

si majestuoso niño-sol, según su madre, fue Eduardo, sólo vulgar


bebe-sombra fue Ricardo para la misma. En tal sentido, no debería
ser sorpresa si, en el fondo, el relato de la duquesa sobre la porfía
que, a lo largo de su historia, su contrahecho hijo ha mantenido, re-
sultara haber sido aquello que Ricardo escuchó en las primerísima
palabras de su madre. Si este fuera el caso, entonces aquellas pala-
bras maternas habrían sido insignias por las cuales el ideal del yo de
Ricardo enfocara su yo ideal en Eduardo donde resulta aspirado a
perpetrar aquella misma injusticia que injustamente lo ha condena-
do, de acuerdo al litigio que ya la existencia de Ricardo ha sancio-
nado, inocente o culpable, conforme al amor, ofrecido o rehusado,
de su madre, donde ya se encuentra operando la violencia del su-
peryó, cuyo castigo recae tanto en la culpa como en la disculpa.
Nada impediría, entonces, si para responder al aciago mandato or-
denado por la Madre-Naturaleza en sus feroces primeras palabras,
Bebé-Ricardo sólo pudiese servirse de aquel célebre neologismo
que Ubu rey inventa también a instancias de una madre: “¡Miadre!”
(Jarry, 1896, p. 17). Se trate de, como se dice, mandar a la mierda a
la propia madre o hacerse enviar por ella al mismo destino; se trate,
más groseramente, de referirla como vulgar estiércol o, incluso, de
sentenciar la defecada vida por ella engendrada; en todos los casos
es, evidentemente, la voz del superyó la que habla.
Tomando en cuenta, entonces, el conjunto de lo antes expues-
to, sería enteramente desdecirse si se admitiese excluir a Ricardo III
de algún arreglo concernido por los derroteros de la ley en lo in-
consciente. A decir verdad, es sólo esta posibilidad la que queda, en
nuestra opinión, excluida, toda vez que en el drama del Duque de
Gloucester es evidente la participación de crimen, culpa y castigo,
los cuales de ninguna manera podrían prescindir de alguna ley, por
muy insensata que ella fuera. De hecho, es también de crimen, cul-
pa y castigo aquello que, igualmente, tratan los otros dos tipos de
carácter que, en el texto de 1916, Freud convida, no por azar, para
darle buena compañía, durante su indagación, a Las excepciones,
una de ellas llamada Ricardo.
En efecto, Los que fracasan cuando triunfan concierne al actu-
ar de algunos que no logran disfrutar del cumplimiento de un in-
tenso deseo hace tiempo anhelado. Contrariamente a lo esperado,
246 Esteban Radiszcz

su conquista precipita en ellos los más intensos malestares motiva-


dos por los propósitos punitivos de su conciencia. Evaluado como
ilícito provecho, en razón de la transgresión discernida en aquellos
deseos inconscientes alcanzados, el cumplimiento de ellos son cas-
tigados por los remordimientos y la culpabilidad, los cuales objetan
todo goce por ellos obtenidos. En tal sentido, aquí el crimen preci-
pita la culpa, la cual refrenda el castigo que, incluso, se consuma en
la propia culpa y puede aún limitarse sólo a ella que, por si misma,
ya representa una condena.
Por otra parte, Los que delinquen por sentimiento de culpa se
encuentran embargados por una oscura conciencia de culpa que,
sin dar noticia de algún origen conocido, obtiene alivio al come-
ter alguna falta. Se trata bien de aquellos “pálidos delincuentes”
de los aforismos de Zaratustra que, a la inversa todo común senti-
do, son exhortados a cometer el crimen y recibir, mediante ello, el
castigo que, por preceder, aquella oscura culpabilidad reclama. De
este modo, a diferencia del anterior tipo de carácter, aquí la culpa
precipita el crimen y, por el cual, se demanda finalmente el casti-
go, donde la economía de este último lo emplaza como medio para
apaciguar la inicial culpa.
Por cierto, a juzgar por las sustantivas diferencias entre estos
arreglos de la culpa, el crimen y el castigo, parece inconveniente
pretender encontrar algo semejante en Ricardo III. Hacerlo arries-
garía confundir seriamente la especificidad que Freud concede a
cada tipo de carácter y, con ellos, desestimar sus razones. No obs-
tante, precisamente en ello incurren tanto Jacobson (1959) como
Noshpitz (2010) y Rosen (2013) cuando observan en Glóster
una necesidad de castigo, un odio contra si-mismo o un víncu-
lo masoquista, los cuales no sólo precipitarían sus crímenes, sino
que además motivarían su búsqueda de castigo, incluido el más
extremo: la autodestrucción por su condena a muerte. Por cierto,
ello aleja al Duque de Gloucester, aunque no definitivamente, de
Los que fracasan cuando triunfan, pero lo deja indiferenciadamen-
te incluido entre los “pálidos delincuentes”, obliterando por com-
pleto que, como lo señala con más precisión Blum (2001), toda la
libertad reclamada por Ricardo para realizar sus crímenes proce-
de de su la justificación de haber previamente sufrido suficientes
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 247

castigos como para tener bien pagadas su deudas por adelantado.


En el fondo, ninguno de ellos, así como tampoco Blum, logra de
manera suficiente distinguir, no obstante ser sin mayor dificultad
discernibles en el mismo Freud, culpa, crimen y castigo, los cuales
se encuentran precisamente articulados bajo modalidades diver-
sas gracias al hilván de la ley en lo inconsciente según sus arreglos
variables.
Cabria señalar, entonces, que si Los que delinquen por senti-
miento de culpa son culpables sin castigo, Ricardo es castigado sin
culpa. A su vez, si Los que fracasan cuando triunfan son criminales
solamente para a sí-mismos, el Duque de Gloucester es considera-
do criminal por una parte creciente del conjunto de sus semejantes.
Si, por un lado, Gloster cuenta cometer crimen sin castigo dado que
él ha recibido castigo sin ningún crimen; por otro lado, su castigo
padecido sin reconocerle culpa da lugar en él al crimen cuya cul-
pa reconocen los que su crimen padecen. Se podría decir que, en
Ricardo III, culpa, crimen y castigo se entrelaza según los arreglos
de una ley salvaje que, proferida en primer lugar y con el máximo
rigor por la feroz Madre-Naturaleza, demanda castigo sin haber
culpa de ningún crimen, autorizando el reclamo al crimen exento
de culpa y absuelto de castigo.
Entre la variadas figuras de esta ley salvaje, además de aquella
recién mencionada a propósito del mandato funesto de la Madre-
Naturaleza, encontramos también otra especialmente remarcab-
le en el episodio donde Ricardo desestima su culpa y recupera su
firme unificación imaginaria extraviada transitoriamente en su
desvarío dividido. Lo que allí acontece es, por cierto, la destituci-
ón de la culpa despreciada como debilidad: “Palabra nada más es
la conciencia / Que emplean los cobardes; inventada / Para infun-
dir pavor al hombre fuerte”(Shakespeare, 1593, V : iii, 191). Pero
no se trata únicamente de conjurar su vasallaje para reencontrar
su señorío, sino que, antes de todo, de recusar aquello por lo cual
sus crímenes reclaman castigo. De este modo, al escamotear la cul-
pa, Glóster aleja su súbita inquietud ante la traición, el duelo o el
deceso, pues nada de eso acaecería si el apartamiento de la culpa no
fuese, en el fondo, la restitución de la ley salvaje que lo autoriza al
crimen sin culpa ni castigo.
248 Esteban Radiszcz

Se trata de un orden de obligación, en buena medida, conso-


nante con el “mandato inconcebible” que, en calidad de formación
arcaica afecta al primer tiempo de la ley, Didier-Weill (2008) dis-
cierne como “condena a un destino funesto”, donde el sujeto resul-
ta, conforme al “mal-decir de la maldición”, reducido a objeto por
efecto de la radical proscripción de su palabra (¡Ninguna palabra!,
exige su mudo dictamen). Más allá de las objeciones que nos me-
recen parte de las afirmaciones de Didier-Weill, particularmente
la discrepancia que nos despierta la sucesión de arreglos de la ley
según una problemática temporalidad cuya progresión redime un
arcaísmo azas sospechoso, es interesante constatar la indicativa pre-
sencia, en Ricardo III, de expedientes específicamente destacados a
propósito de aquella aciaga instancia imperativa. En efecto, resulta
elocuente el amplio lugar concedido, en el drama, a las maldiciones
que, lejos de limitarse a aquella expresada por la duquesa de York ni
a los anatemas de los espectros, son en numerosas ocasiones pro-
feridas por, en su gran mayoría, mujeres a instancias de Ricardo.
Curiosamente, éste último, pese a ser con insistencia mal-dicho
en las palabras recibidas, no se sirve de la maldición, aunque en
su caso se encuentra, remarcablemente, la acción por la cual opera
la proscripción de la palabra. Sin contar otros pasajes menos sig-
nificativos, poco antes de recibir las injurias de su madre, Ricardo
llega ante palacio donde algunas mujeres, entre ellas su madre, que
se dedicaban a lamentar las muertes de sus deudos asesinados por
Glóster y a espetar sus maldiciones contra él. Al llegar con comiti-
va militar, Ricardo se niega a hablar con su madre, cuyas palabras
resultan, pese a su insistencia, ahogadas bajo “bélicos clamores” de
clarines y tambores o, de manera más directa, privadas de su es-
cucha y proscritas de expresión. Significativamente, Ricardo argu-
menta que su intolerancia frente al “acento del reproche” hereda del
carácter de ella misma, es decir, que su proceder es, en el fondo, la
reproducción del actuar de su propia madre (Shakespeare, 1593, IV
: iv, pp. 157-158).
Por supuesto, estas indicaciones no pretenden, de ninguna
manera, reducir el conjunto de la obra al único efecto de esta sola
modalidad del ejercicio de la ley en lo inconsciente. Al desestimar
de plano cualquier otra incidencia de arreglos heterogéneos del
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 249

imperativo, no arriesgaríamos a tan solo sostener esquematismos


poco confiables. De hecho, la ocurrencia de la culpa en la pesadilla,
como prolongación de la maldición materna, no parece del todo
consistente con los expedientes que, según Didier-Weill (2008), ca-
racterizan al mandato inconcebible.
Sin duda, las visiones profieren evidentes condenas que, jun-
to con insistir en el mal-decir materno, reclaman para Ricardo un
destino aciago que, finalmente, se consuma en los acontecimien-
tos ulteriores. No obstante, entre la condena y su consumación, se
intercala la división de Ricardo que sirve de escena para el litigio
(culpable o inocente) donde el lugar de objeto, al cual la maldici-
ón invoca, resulta resistido. Pero, no es por admitir la culpa, sino
por, al contrario, desterrarla como cobarde flaqueza, que al final
Ricardo asume plenamente, sin saberlo, la posición de objeto sobre
el cual se consuma la condena (drama no es tragedia). Además, las
condiciones por las cuales la reducción de Ricardo a objeto adquie-
re su real eficacia solamente acontecen cuando, por una vacilación
de la proscripción absoluta de la palabra, se ha dejado agregar otra
aún donde la madre pronuncia la maldición. Dicho de otro modo,
las coyunturas que presiden, conforme al mal-decir de la condena,
la reducción del sujeto a objeto, inversamente a lo sostenido por
Didier-Weill (2008), no parecen derivar únicamente de la proscrip-
ción total de la palabra sostenida por el rey (“¡Ni una palabra!”),
sino también se valen de una censura que, enfrentada a la admisión
de una palabra, requiere la exclusión de la segunda (“¡Una palabra,
bien; pero no dos!”), donde el propio Didier-Weill distingue la ac-
ción de un segundo tiempo de la ley articulado a la culpa. Es jus-
tamente por esta segunda palabra que, merced a su evocación de la
maldición por boca de su madre, acontece la desestabilización de
Gloster que, desprovisto del imperio de la ley por la cual el rige, en-
frenta el imperio de su original culpabilidad sancionada en los de-
signios de la Madre-Naturaleza.
En todo caso, Ricardo no reencuentra su acostumbrada in-
cólume indemnidad sin antes silenciar la voz culpable de aquella
segunda palabra mediante la restauración del pleno régimen de la
ley de la espada donde los hombres devienen meros objetos: “¡Del
enemigo cosas son! Señores. / Cada cual a su puesto, que no deben
250 Esteban Radiszcz

/ Ridículos ensueños espantarnos. […] / Será nuestra conciencia


fuerte brazo, / La espada nuestra ley” (Shakespeare, 1593, V : iii,
p. 191). Pero, al destituir la culpa por una ley cuya conciencia re-
side exclusivamente en la fuerza, el Duque de Gloucester restituye
el imperio de la proscripción donde, despojados de articulación en
la palabra, los anatemas sólo pueden ser condenas. De este modo,
lejos de perseguir alguna inclinación hacia la autodestrucción cul-
pable, la acción de Ricardo no es más que el resultado de aquella
misma ley conforme a la cual se da y se recibe la muerte. Pues, en el
fondo, como se indica muy bien en el célebre dicho: ¡quien a hierro
mata, a hierro muere!
Pudiese parecer, por cierto, extremadamente obvio aproxi-
mar el imperio de esta jurisdicción del acero al poder soberano.
Tratándose de monarquía, ello resulta evidente. Sin embargo, no
parece serlo tanto si en ello se alude a aquel derecho que, de acuer-
do a Foucault (1976), detenta el soberano sobre la muerte, es de-
cir, su poder “de hacer morir o de dejar vivir” (p. 178). En efecto,
Ricardo III se revela ampliamente articulado según aquella “forma
política del soberano” donde, en palabras de Foucault, “el poder
habla a través de la sangre” (p. 194). De hecho, esta última no se
limita, en el drama, a “su papel instrumental” merced a su derrama-
miento en el asesinato y la guerra, sino que también participa por
“su funcionamiento en el orden de los signos” respecto del linaje y
la herencia e, incluso, por “su precariedad” conforme a su corrup-
ción o agotamiento. Muerte y sangre fueron, justamente, dimen-
siones esenciales para las sucesivas pugnas que, por el derecho al
trono, tuvieron lugar durante La Guerra de las Rosas, la cual con-
cluye precisamente con la muerte de Ricardo y, junto a ello, la con-
ciliación matrimonial que, entre las Casas de York y de Lancaster,
hace retornar a la sangre de la primera la legitimidad de la corona.
Epílogo de aquella extensa disputa entre linajes reales, Ricardo
III concierne de forma directa, como lo destaca pertinentemen-
te Elden (2017), la cuestión de la destitución del monarca, donde
Foucault (2004) discierne aquella “teatralización” que, en el dra-
ma del “golpe de Estado”, ampara “un modo de manifestación del
Estado y del soberano como titular del poder del Estado” (p. 271).
En tal sentido, Foucault (1997) remarca cuanto las piezas históricas
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 251

de Shakespeare “son tragedias del derecho y del rey, esencialmente


centradas en el problema del usurpador y la destitución, del asesi-
nato de los reyes y del nacimiento de un nuevo ser que constituye
la coronación de un rey”, representando “una especie de ceremonia
ritual de rememoración de los problemas del derecho público” (p.
155). Por cierto, el derrocamiento del rey bajo el dominio de otro
rey reviste, para Foucault (2003), menos interés que los momentos
cuando la caída del monarca redunda en su remplazo por otra for-
ma del poder. No obstante, es precisamente por ello — es decir, en
razón de concernir la substitución del poder soberano a instancias
de si mismo, que Ricardo III se concentra precisamente en el ejerci-
cio de éste, donde la destitución y la restitución, la caída y el ascen-
so, la usurpación y la recuperación dan cuenta de los derroteros y
atolladeros de la ley y la transgresión al amparo de su imperio.
Hace más de medio siglo, Tillyard (1944) había observado la
impronta del orden isabelino en el conjunto de las obras históri-
cas de Shakespeare y, particularmente, en las ocho piezas del ciclo
tributario de la Guerra de las Rosas. Conforme a ello, Ricardo III
se convendría al providencialismo del “mito Tudor” que, en opo-
sición a la doctrina de Maquiavelo, establecía la legitimidad divi-
na del reinado de Isabel I de acuerdo a los privilegios otorgados a
su linaje por el lugar conferido por Dios a su abuelo Enrique VII,
Conde de Richmond, en el restablecimiento de la armonía cósmi-
ca, cuya transgresión sería obra del pecado y fuente del desorden.
Ciertamente, como lo señala Ashby (2013), las consideraciones de
Tillyard no sólo amparan propósitos conservadores objetables y
reduccionismos históricos discutibles, sino que restringen el teatro
shakespeariano a una simple reproducción de la intelligentsia isa-
belina que, en su masividad, descuida múltiples detalles y aspectos
más sutiles, los cuales apuntan en direcciones bastante menos uni-
vocas. Pero, más allá de la indudable validez de tales críticas, resul-
ta innegable el horizonte de expiación ritual que Ricardo III detenta
como restitución final del poder perdido por la Casa de Plantagenet
en razón de la vergüenza de Ricardo II. Incluso si la obra se con-
tentase con celebrar la corona isabelina y la sangre Tudor, ello no
impide que, como Foucault (1997) lo señala, Shakespeare se encar-
nice “en aquella llaga, en esa especie de herida reiterada con la cual
252 Esteban Radiszcz

carga el cuerpo de la realeza, desde el momento en que hay muerte


violenta de los reyes y ascensos de soberanos ilegítimos al trono” (p.
155) y, por consecuencia, se interrogue sobre los arreglos de la ley
bajo el régimen del poder soberano.
De este modo, aquella sangrienta disputa por el trono, la cual
enfrenta sucesivamente dos linajes, dos monarcas, dos gobiernos y
dos legitimidades, no podría de ninguna manera enteramente pres-
cindir, conforme a su inequívoca observancia de la potestad sobera-
na, del derecho dispuesto según la gemina persona que Kantorowicz
(1957) discernió en la doble naturaleza, humana y soberana, del
cuerpo del rey, donde el cuerpo terrestre y mortal del monarca en-
carna, según una jurisdicción determinada, el cuerpo político in-
mortal de la comunidad compuesta por el reino. Sin duda, la obra
capital del historiador alemán se sirve, además de la historia de los
Tudor, de la pieza de Shakespeare (1597) dedicada a Ricardo II, sin
embargo ello no excluye constatar su igual pertinencia para el caso
de Ricardo III, toda vez que el drama imaginario, en el cual Gloster
se enfrenta tanto con los dos Eduardos como con su doble Rich,
tiene precisamente lugar sobre la escena de esta dualidad corpó-
rea del monarca. En efecto, el conjunto de rivalidades que, según
vimos, eran presididas por la alienación de Ricardo a la imagen de
Eduardo, cuyos privilegios de sol y sobra habían sido litigados se-
gún las constelaciones provistas en el ideal, acontecen al amparo de
las coordenadas conformadas por los dos cuerpos del rey, los cuales
convergen o divergen de acuerdo a las disposiciones de la ley so-
berana que sólo deviene ley del soberano — es decir, lex animata
o encarnación de la justicia — merced a la legitimidad conferida
por los designios de la divinidad en los desenlaces de los aconteci-
mientos. Por ello, es en atención al ejercicio de esta ley que, bajo un
horizonte que indudablemente hereda de la ordalía, tanto Ricardo
como Richmond invocan por igual el favor de Dios para inclinar en
su provecho el dictamen de la espada. Pero es también con arreglo
a la misma ley soberana que comparecen el agravio del castigo sin
culpa y el desagravio del crimen sin castigo, mientras que la maldi-
ción sentencia la condena.
Parece, entonces, justificado sostener una dimensión sobe-
rana de la ley en lo inconsciente donde, por cierto, la violencia se
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 253

prolonga, como lo observa Freud (1933b), según los medios del de-
recho en cuyo nombre, a su vez, se perpetúa la desigualdad entre
“varones y mujeres, padres e hijos, […] vencedores y vencidos, […]
amos y esclavos” (p. 189). Como lo hemos visto, se trata de un par-
ticular arreglo de la culpa, el crimen y el castigo de acuerdo al cual
la soberanía del superyó se vale, hasta el extremo, de la agresividad
engendrada por el drama especular para imponer el imperio de su
condena a destinos funestos. Pero, lejos de implicar algún supuesto
arcaísmo de la conciencia moral o alguna pretendida deficiencia de
la sentimiento de culpabilidad, ello concierne una modalidad espe-
cífica de aquello que, para Balibar (2007), sostiene el giro freudiano
respecto de “la relación de un sujeto […] a un universo — igual-
mente específico, agregaríamos nosotros — de coacción y obliga-
ción, sin exterior ni escapatoria”, el cual configura “un tejido de
contradicciones insolubles” (p. 57). Es decir, se trata de una varian-
te de los destinos de ley en la subjetividad que, tributaria del poder
soberano, cabría distinguir como régimen soberano del superyó y di-
ferenciar de otras formas diversas de su ejercicio, particularmente,
de aquella donde su acción se articula conforme a la vigilancia y la
rectificación.
En efecto, más allá de la hipótesis represiva y a pesar del lu-
gar perentorio que Foucault (1976) concede en ella a Freud, las
maneras según las cuales éste último se refiere, con frecuencia, al
proceder del superyó no resultan para nada ajenas de las manio-
bras de normalización y corrección destacadas por Foucault (1975)
a propósito del poder disciplinar. Las potestades sancionatorias y
punitivas del superyó, así como sus disposiciones proscriptoras y
prohibitivas, no impiden a Freud (1933a) discernir paralelamente a
éste como el severo “abogado del afán de perfección” (p. 62) o el
intransigente promotor de “determinadas normas de conducta sin
atender a las dificultades” (p. 73). Participando en labores de “guía”,
de “gobierno” y, aún, de “educación” (p. 58), el superyó comporta
facultades de observación sostenida que, llegando incluso a fisca-
lizar motivos caídos bajo represión, admite atributos por entero
semejantes a los que Foucault (1975) reconoce en el panoptismo
de la disciplina penal. Detentor de una vigilancia ubicua, el su-
peryó igualmente opera según una modalidad donde la sanción o
254 Esteban Radiszcz

su simple amenaza cuentan obtener una obediencia que, individu-


alizada y culpable, reafirma la estricta actualidad permanente de la
ley. En tal sentido, el superyó también procede en conformidad con
arreglos que, diversos de aquellos tributarios de su régimen sobera-
no, representan variantes de su ejercicio convenientes al imperio de
su régimen disciplinar.
Cabría sin duda examinar con mayor detención y detalle, tan-
to en sus específicas variantes como en sus expedientes más usu-
ales, esta modalidad disciplinar de los destinos inconscientes de la
ley y del proceder particular del superyó en ella. De hecho, ello per-
mitiría afinar mejor los aún gruesos distingos formulados para se-
parar entre configuraciones disciplinares y disposiciones soberanas,
aportando igualmente a superar la tan corriente indiferenciación de
los expedientes del superyó bajo uno u otro régimen. Pero, además,
ello podría incluso delimitar otros tantos arreglos, cuyas eventuales
características justifiquen diversificar aún más las posibles variantes
y, particularmente, diferenciar aquella modalidad que, conforme a
lo propuesto hace algunos años y en otro contexto (Radiszcz, 2014),
convendría distinguir del régimen disciplinar en razón de su más es-
tricta afinidad con los dispositivos que Foucault (2004) observa en
el ejercicio del poder gubernamental.
Interrogantes similares también resultan pertinentes para el
régimen soberano del superyó, cuya precisión no se agota en nues-
tros señalamientos, por cierto incompletos, sostenidos a propósito
de Ricardo III. En tal sentido, convendría indagar posibles expe-
dientes que, igualmente tributarios del universo de coacción y obli-
gación soberano, difieran de aquellos arriba examinados. En efecto,
teniendo en cuenta las observaciones de Ashby (2013) sobre la ver-
güenza y el dominio escópico en Ricardo II, no sería nada extraño si
algo así ocurriese en aquel drama que, a pesar de su identica depen-
den de las disposiciones relativas a los dos cuerpos del rey pudie-
sen, pudiese no otorgar el mismo lugar ni a la disputa imaginaria ni
a la ley de la espada ni a la culpabilidad ni a muchos otros aspectos
del recién expuesto régimen soberano de la ley en lo inconsciente.
En todo caso, no obstante sus múltiples diferencias, se-
ría inconveniente considerar cada uno de estos diversos regíme-
nes al modo de compartimentos estancos desprovistos de toda
Culpa, crimen y castigo en los destinos de la ley según Ricardo III 255

vinculación entre sí. Muy por el contrario, las más de las veces, el
superyó se vale de expedientes tanto de uno como de otro régimen
conforme a modulaciones heteróclitas y, probablemente, heterogé-
neas en cada caso. Como lo indicamos, incluso en Ricardo III re-
sultaría espurio atribuir todo proceder del superyó al exclusivo
imperio del régimen soberano, sin admitir además la incidencia del
régimen disciplinar en, al menos, la pesadilla de Glóster, su poste-
rior división subjetiva y su ulterior desprecio de la culpa cobarde
conciencia. Sin duda, esta consideración añade aún más preguntas
en torno a las multiplicidad de los arreglos de la ley en lo incons-
ciente conforme a la diversidad de participaciones entre uno y otro
régimen. No obstante, la diferenciación de regímenes del superyó
según variantes en el ejercicio del poder tiene, a nuestro juicio, no
sólo el valor de destacar la, con frecuencia escamoteada, condición
sensiblemente política del superyó, sino también la ventaja de evi-
tar las demasiado usuales derivas deficitaristas o evolutivas, cuyos
propósitos moralizantes y normalizantes nos merecen múltiples ob-
jeciones tanto teóricas y técnicas como éticas y políticas.

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Parte III
Ódio e política
O ódio na política,
políticas do ódio

Caterina Koltai

Não gosto dele, eu o detesto, eu o odeio, gostaria de vê-lo


morto, exijo que a mera lembrança de seu nome seja apagada para
sempre. É com essas palavras que Fédéric Chauvaud apresenta seu
livro Histoire de la haine (2014), no qual não só constata a prolifera-
ção de tais expressões em nossos dias, como quanto o ódio coman-
da os discursos e gestos de nossos contemporâneos.
O historiador nos diz que essa “paixão funesta”, embora es-
cape frequentemente da investigação histórica, é a responsável por
grande parte das condutas humanas. razão pela qual se propõe a es-
boçar sua história, uma vez que, ainda que sempre presente, suas
expressões, modalidades e efeitos não são nem idênticos, nem imu-
táveis. Se o ódio é uma figura do pensável, como diria Castoriadis
(2009) para o historiador, razão a mais que ele o seja também, para
nós analistas, levando-nos a nos debruçar sobre as raízes psíquicas
e sociais das políticas do ódio.
Mas porque mesmo tanto ódio? A pergunta, ainda que pos-
sa parecer ingênua, está longe de sê-la uma vez que o ódio reme-
te tanto ao indivíduo quanto à cultura e pode ser observado tanto
na psicopatologia da vida cotidiana quanto na vida social e políti-
ca, principalmente no duplo movimento do exercício do poder e
no prazer de se submeter a ele, razão pela qual optei por começar
262 Caterina Koltai

minha fala por um historiador, justamente para chamar minha pró-


pria atenção para a complexidade do tema.
O ódio exige uma abordagem complexa e, não por acaso, o
presente Colóquio tem por título Psicanálise e política, as escritas
do ódio, com escritas no plural. E se é fato que muitos dos avanços
freudianos e lacanianos foram respostas às injunções da História
que lhes possibilitaram testar a operacionalidade dos conceitos psi-
canalíticos, cabe a nós continuar trilhando o caminho aberto por
eles, relacionando a experiência da subjetividade, enquanto discur-
so do inconsciente, com a experiência do laço social, enquanto dis-
curso do político.
Quando falamos em discursos do ódio estamos falando de
algo que está na passagem do individual para o social, pois como
afirmam os autores do livro L´amour de la Haine (2001) é nes-
sa passagem que podemos focar a questão do ódio lá onde ele se
coloca de maneira mais aguda , nas situações em que odiar parece
ser, para alguns indivíduos e algumas coletividades, uma exigência
imperiosa, uma condição vital em determinado momento de sua
história, no qual parecem tão animados pelo desejo de odiar, que
amam apenas o seu ódio.
A psicanálise, desde seus primórdios, nunca deixou de se de-
bruçar sobre essa parte sombria do ser humano, face escondida do
amor que é parte integrante da constituição do sujeito e do seu in-
consciente. Os verdadeiros protótipos das relações de ódio, nos diz
Freud, em “A pulsão e seus destinos” (1915) não decorrem da vida
sexual e sim da luta do Eu para sua conservação e afirmação. Na
relação de objeto o ódio é mais antigo que o amor, ele só não é mais
antigo que o amor arcaico, amor originário de si, o do narcisismo
primário. Sempre presente em nossas representações e desejos in-
conscientes o ódio é a eterna expressão de um narcisismo mais ou
menos bem temperado. Na constituição do Eu, o mundo exterior é
considerado como hostil em relação ao Eu, e isso em todas as eta-
pas da constituição deste, o que explica porque o ódio de si está na
raiz do ódio do outro e da sociedade, levando o sujeito a rejeitar
sua própria miséria psíquica sobre um outro, transformado na cau-
sa de todos os seus males.
Ódio na política, políticas do ódio 263

O humano, como bem sabemos, não é bom nem mal, coe-


xistem nele amor e ódio, entrelaçados naquilo que Lacan (1982)
chamou amódio, porque dirigidos ao mesmo objeto. A realidade
psíquica se constrói sobre o princípio da divisão e, por mais que
recalque, transforme e sublime, permanece frágil, o recalcado po-
dendo, a qualquer momento ressurgir no real, levando- o a ser do-
minado por essa paixão funesta que é o ódio.
Se para a teoria freudiana o ódio é estrutural porque necessá-
rio tanto para a constituição do EU quanto do objeto, ele é ao mes-
mo tempo paradoxal, visto que do lado cara, permite ao sujeito se
diferenciar e afirmar sua singularidade, enquanto lado coroa, parti-
cipa ativamente da destrutividade humana e pesa sobre o mal estar
na civilização, visto que quando instrumentalizado por um deter-
minado poder, o ódio é capaz de produzir um espaço social e polí-
tico essencialmente dicotômico onde se trata em primeiro lugar de
aniquilar o outro, fundamentando verdadeiras políticas do ódio.
Falar do político significa, como já salientou Hannah Arendt,
falar da pluralidade humana e reciprocidade das diferenças, plura-
lidade essa que só é possível a partir de um espaço vazio, enquanto
fundamento do direito e condição da subjetivação de suas práticas.
É quando este espaço vazio, necessário à relação entre os homens,
desaparece e se apaga o intervalo que possibilita o estar juntos co-
munitário que, segundo a autora, desembocamos no “deserto”,
nesse lugar árido de onde despareceram a possibilidade de confli-
to democrático, o mal-entendido, o lapso ou o desentendimento.
Nesse deserto sem conflito, junto com a impossibilidade do conflito
político desaparece também a possibilidade de uma subjetivação.
Falar em políticas do ódio é, antes de mais nada, falar nas po-
líticas que foram implantadas por todos os totalitarismos do mun-
do, principalmente em suas versões nazista e estalinista, ambas
fruto dos revezes da democracia e que trazem a marca da denega-
ção da castração e o amor ao ódio, na medida em que o fenôme-
no totalitário requer o ódio como cimento do laço social, ódio não
apenas do outro, rejeitado para fora do grupo, mas também ódio do
sujeito no homem.
Mas não é disso que gostaria de falar aqui e sim das políticas
do ódio vigentes em nosso mundo globalizado, em nossos dias,
264 Caterina Koltai

que vem sendo protagonizadas por formações identitárias fechadas


e agressivas que negam e excluem do outro do mundo partilhado,
movidas por ideologias do ressentimento que, a meu ver, dominam
o imaginário de nossa época. Conceito ontológico em sua origem
que, para Nietzsche significava algo próximo do rancor, frustra-
ção, desejo de vingança, o ressentimento se transformou segundo
o sociólogo canadense Marc Angenot (1998) numa ideologia que
alimenta as políticas sectárias, integristas, comunitárias e racistas,
cujo sucesso o autor atribui à crise global dos projetos emancipató-
rios das esperanças coletivas e das rejeições dos valores do huma-
nismo universalista.
Tendo a concordar com ele, assim como com Jacques Hassoun
(1998) que, também, atribuía à eclipse do político e das organiza-
ções suscetíveis de se encarregar da vida social , a explosão do ódio
e etnocentrismo, através das ideologias do ressentimento que enten-
dia como sendo uma réplica à uma injúria efetiva ou suposta.
A verdade é que, como diz Angenot em seu texto “Les idéo-
logies du ressentiment” (1998) assim como o mercado de ações, o
das ideologias também mantém suas oscilações e que umas des-
cem enquanto outras sobem. Parece não haver dúvida que as que
estão em alta em nossos dias parecem ter em comum o abandono
de um sonho de emancipação, contentando-se de uma revolta sub-
missa, movida pelo etos do rancor. O que mais me impressiona é
quão globalmente e velozmente elas estão se expandindo em nossos
dias, como podemos constatar nos países do leste europeu, vitória
de Trump e Brexit, isso sem falar nos recentes acontecimentos bra-
sileiros que mereceria um texto a parte.
Uma rapidíssima pontuação histórica talvez ajude a enten-
der como desembocamos nisto. A primeira metade do século XX
foi marcada por duas guerras mundiais, regimes totalitários e fa-
natismos ideológicos. O homem do inicio do século testemunhou
massacres, até então inéditos, o desenraizamento de populações
inteiras, desumanidade e barbárie. A derrota do nazi-fascismo fez
com que a segunda metade do século XX começasse sob o signo
da esperança, significante que não uso aqui ingenuamente e sim
para salientar sua oposição à desesperança que marca as atuais
ideologias do ressentimento. Durante um curto lapso de tempo, a
Ódio na política, políticas do ódio 265

humanidade pareceu reatar com a esperança no progresso que ca-


racterizou o século XIX, e se autorizou a sonhar com um futuro
melhor que o passado, apostando em projetos de emancipação in-
dividual e coletivos. Esse período durou pouco, o tempo de virem
à tona os horrores e a face obscura do socialismo real e a queda do
Muro de Berlim.
Aos poucos, as ideologias do progresso que veicularam a lou-
ca esperança de livrar os homens de seus sofrimentos, por meio de
uma nova Providencia que repousaria sobre a certeza científica e
constante progresso, foram ficando para trás. Ao prometerem a ple-
na satisfação e realização do desejo, prometeram o impossível o que
explica que o sujeito contemporâneo, ao se dar conta que não tinha
como obter a plena satisfação prometida, tenha desertado o político
e se refugiado no ressentimento e suas, profundamente, antidemo-
cráticas ideologias do ódio.
Antes de prosseguir uma pergunta que não cesso de me fazer.
Será que esse ressentimento não tem a ver com nossa incapacidade
de fazer o luto dos sonhos de fraternidade anteriormente veicula-
dos? Tenho a impressão, concordando novamente com Hassoun,
que as antigas ilusões foram enterradas não sabemos bem aonde,
e que na impossibilidade de fazer o luto, passamos a viver tempos
melancólicos caracterizados pela suspensão do desejo, apatia, gozo
e crueldade com o outro e com nós próprios, manifestados nas vio-
lências identitárias, nas neuroses de origem que acabam desembo-
cando em conflitos de extrema violência, onde o que está em jogo é
o modo de gozo, ou em outros termos a relação entre Eu e o Outro.
Sem ilusões, desembocamos no mundo em que a suprema ilu-
são passou a ser a ausência de ilusões e a glorificação da ilusão de
um mundo apolítico no qual queremos gestores nos governando.
Desembocamos num mundo do pseudo consenso, em que todas as
coisas são equivalentes, o que nos leva em direção a esse rochedo
do real em toda sua barbárie.
É assim que adentramos no século XXI, na globalização
planetária, onde quanto mais se insistimos na uniformização, mais
o disforme se manifesta, obrigando-nos a nos depararmos com
aquilo que faz do outro um outro e portanto odiá-lo. Nesse mun-
do globalizado o outro pode estar em qualquer lugar, já que com
266 Caterina Koltai

os movimentos migratórios cada vez mais intensos, ou outro se


tornou extimo. Hoje o estrangeiro não mora mais além da frontei-
ra e sim na casa ao lado e é aí que reside o problema, pois não só
goza de maneira diferente, como aparece como um ladrão de gozo,
momento a partir do qual não há mais tolerância possível. O sujei-
to contemporâneo está convencido que o gozo existe e se ele não
goza é porque o outro goza demais, e vê no outro um gozo que só
lhe resta odiar, pois não é um outro com quem pode se identificar.
O ódio social que acaba manipulado pelas políticas do ódio reside
justamente nessa suposição de um saber sobre o gozo do outro.
É aqui que, a meu ver, entram a xenofobia, o racismo, a ho-
mofobia, o antissemitismo uma vez que não há como negar o pa-
pel desempenhado pelo ódio em toda constituição identitária, uma
vez que já como salientava Freud, qualquer doutrina de amor e to-
lerância, tem seu contraponto na intolerância e crueldade dirigida
a todos aqueles que não fazem parte do grupo. O discurso racis-
ta é sempre um discurso do ódio porque se baseia na negação de
qualquer subjetividade ao outro que se vê destituído de seu estatu-
to humano e reduzido a um mero traço diferencial seja ele de raça,
credo, status econômico ou normalidade.
Quanto mais a globalização avança, mais se desenvolve o mul-
ticulturalismo enquanto reivindicação de uma identidade inaliená-
vel, cujo risco reside numa deriva fundamentalista e comunitária. É
preciso distinguir entre o pluralismo necessário à vida democrática
e um certo multiculturalismo que pode funcionar justamente como
limite à democracia.
A globalização acabou com a separação das culturas, frontei-
ras, línguas, costumes e tradições e fez com que a identidade per-
desse seu eco longínquo de humanidade. Ela trouxe o outro para
tão perto, que os medos invadiram a polis e um emaranhado de-
les passou a ocupar o lugar que outrora foi ocupado pelos proje-
tos. Um dos principais sintomas desse novo mundo dominado pelo
medo, parece ser um imaginário despolitizado, como se a política,
o fazer política, não passasse de um mero vestígio ultrapassado,
uma herança patológica contra a qual fosse necessário lutar.
A perda de confiança dos cidadãos em relação a seus supostos
representantes parece consumada, e a submissão da vez parece ser a
Ódio na política, políticas do ódio 267

submissão a bem sucedidos e auto proclamados magnatas, aptos a


responder aos anseios do sujeito contemporâneo para o qual, cada
vez mais, a constatação da falta se transforma se transforma em ne-
cessidade de uma justa e integral reparação.
Essa necessidade de consenso e reparação que se manifestam
nas ideologias do ressentimento e correlatas políticas do ódio, recusa
a discussão e o entendimento, negando dessa forma a própria essên-
cia da política que Rancière (2005) define como sendo uma forma de
ação e subjetivação coletiva que constrói um mundo em comum, no
qual se inclui também o inimigo. Segundo ele a política democrática
é aquela que cria identidades não identitárias, cria um nós aberto e
inclusivo que reconhece a fala de igual para o igual com o adversário,
ao contrário daquilo que acontece nas políticas do ódio onde entre
o eu e o outro não há nada de igual. Até porque, a democracia, en-
quanto política não pode se fundar sobre uma transcendência, ela é
como dizia Derrida sempre algo a conquistar. Nunca é o nome de
uma verdade definitiva. E é isso que aquele que odeia não suporta.
E, para concluir, ainda que enquanto analistas, sabemos que o
laço social constituído pelo amor não passa de uma ilusão, não cus-
ta, como diz Safouan (1993) tentar, através da palavra, transformar
o ódio mortífero em ciúme simpatizante.

Referências

Angenot, M. Du ressentimento. In: Autrement (L’envie et le désir). Paris: ????, falta editora
1998. p. 110-123.
Castoriadis, C. Figures du pensable, les carrefours du labyrinthe. Paris: Points,
2009.
Chauvaud, F. Histoire de la haine. Rennes: Presses Universitaires de Rennes,
2014.
Collectif. L’amour de la Haine. Paris: Gallimard, 2001. Folio Essais.
Freud, S. (1915). Pulsions et destins des pulsions. In: Metapsychologie. Paris:
Gallimard, 1968. Folio Essais.
Hassoun, J. L’obscur objet de la Haine. Paris: Aubier, 1998.
Koltai, C. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.
268 Caterina Koltai

______. Uma questão tão delicada. Psicologia Clínica, v. 14, n. 2, p. 35-42, 2002.
______. O ressentimento entre intenção e extensão. Textura, v. 4, n. 4, 2004.
Lacan, J. (1972-73). O seminário. Livo 20. Mais Ainda. Rio de Janeiro: Zahar,
1982.
Rancière, J. La haine de la démocratie. Paris: La Fabrique, 2005.
Safouan, M. La parole ou la mort. Paris: Seuil, 1993.
O mal-estar na democracia

Ivan Estêvão

Introdução

Em dias de efervescência política, como os que vemos nos úl-


timos anos, as reflexões políticas tendem a aumentar. E se há um
debate sobre a psicanálise e a militância (ou seja, cabe ao psica-
nalista, a partir da ética da psicanálise que move o ato analítico, a
militância política?) nem por isso pode a psicanálise deixar de ser
um instrumento de balizamento para se pensar — não exatamente
o momento histórico — mas a partir dele. O que acompanhamos
nos dias de hoje, na subjetividade de nossa época, serve de mo-
tor para essa articulação comum entre psicanálise e política. Logo,
este trabalho tem como objetivo debater certas questões subjetivas
e sua inter-relação com duas modalidades de governo pela qual o
Brasil passou em um certo período histórico, a ditadura militar e
os quase 30 anos de processo de democratização. Não é, como dito,
uma análise de conteúdo histórico, mas trata-se de pensar as duas
formas de governo a luz das questões de ordem constitutiva. O que
pretendemos e tentar traçar um paralelo entre o que de ordem da
constituição psíquica e como isso pode operar na sustentação ou
recusa de uma modalidade de governo. Sabemos do complicado
dessa questão e de como a sustentação de uma forma de governo
270 Ivan Estevão

está ligada a uma quantidade de mediações que se somam e que,


em geral, só podem ser isoladas e entendidas depois de certo tempo
em que o evento já ocorreu.
Em nossa tentativa, nos valemos de conceitos advindo da teo-
ria psicanalítica de Freud e Lacan. A tese é que enquanto a ditadu-
ra é um esforço governamental para dar consistência a um Grande
Outro, a democracia implica no contrário, ou seja, o processo cons-
tante de retirada de consistência desse Outro. Logo, nesse sentido, a
democracia possui um efeito contínuo de castração e, portanto, não
é incomum os esforços para negá-la ou aboli-la.
Comecemos com uma história que nos foi contada:
Em 1974, em plena ditadura brasileira, uma combatente do
regime militar, recém-casada, se autoexilava. O autoexílio era ne-
cessário para estancar o processo contínuo de prisões pela qual
passava toda vez que um militante clandestino da Associação
Libertadora Nacional era preso e entregava seu nome. Para sair
dessa rede onde seria presa todo o tempo e provavelmente morta
em algum momento, a combatente decide pegar um avião com seu
marido e embarca para Paris, onde ficou por em torno de 8 meses.
Não era uma fuga, pois não era disso que se tratava, mas um recuo
para se pensar a guerra.
Durante o longo voo, conversou com seu marido — também
militante — sobre as questões que dizem respeito a queda da dita-
dura com guerrilha armada, pela qual devotara sua vida e — qua-
se — sua morte. A partir daquela conversa, chegou a uma dolorosa
constatação: a guerrilha não iria funcionar. A economia não havia
colapsado como se esperava e a maioria da população não se colo-
cara contra a ditadura opressiva. Os militares tinham se tornando
cada vez mais eficientes em reprimir os combatentes clandestinos
que se não eram mortos, eram presos ou exiliados. Não estava dan-
do certo e o ideal de uma revolução socialista ficava cada vez mais
longe.
Após uma escala em Lisboa, o casal desce em Paris. A partir
daí a militante ficou 5 dias sem falar, imersa nos pensamentos sobre
sua conclusão. Depois disso, termina por concordar que a luta ago-
ra teria de ser em outro campo, mais político do que militar e que
se buscava não mais a revolução socialista, mas a restituição dos
O mal-estar na democracia 271

direitos democráticos. Voltou a falar e recupera um tanto da alegria


em fazer as coisas, revigorada pelo novo ideal.
Quarenta anos depois sabemos que essa segunda luta foi vi-
toriosa e hoje no Brasil temos os direitos democráticos retomados
e uma democracia mesmo que ainda em formação. A própria ex-
guerrilheira faz essa análise sem, contudo, deixar de apontar os des-
confortos constantes que a democracia coloca em jogo.
Decidimos começar por essa cena que marca para nós uma
série de fatores:
1. a dolorosa experiência que é abrir mão de seus ideais (ou, nesse
caso, ideologias);
2. a posição do sujeito que torna possível devotar sua vida a um
ideal, propondo-se inclusive sacrificar-se por ele;
3. a possibilidade de se entrar em embate mortificante, com o
Outro, que pode ser personificado de muitas maneiras;
4. a possibilidade de buscar submeter-se ao Outro, no sentido de
supor ali um amparo.
Vejamos: pode-se dizer que haveria em jogo dois ideais na
história acima: por um lado o ideal militar de trazer a ordem e com
isso encontrar a grandeza de um país escapando do “perigo” comu-
nista que se avizinhava; e o ideal socialista da militante, de instituir
uma nação sem desigualdades sociais. Um terceiro ideal aparece, a
possibilidade de restituição dos direitos democráticos, quase como
um ponto entre os dois ideais.
A ditadura usava de mecanismos de repressão extremos, com
diversas proibições, punições e sanções, prisões, torturas e mortes
às pessoas que discordavam e se opunham a ela. Isso convocava a
vários tipos de posições subjetivas: havia aqueles que se embrenha-
vam como colaboracionistas da ditadura, fazendo negócios inclusi-
ve com os militares e entendendo a situação como um meio de ter
“ganhos” (com e sem aspas); outros se submetiam resignados a esse
grande Outro “protetor” e “controlador”; outros ainda, ao contrário,
se revoltavam com a insistência da ditadura em dizer como se devia
ser e faziam o que conseguiam para combatê-la.
Aparecem basicamente dois ideais que davam norte para
quem se deixava capturar por um deles: contra ou a favor da di-
tadura, “protegidos” ou “clandestinos”. Um deles, talvez “mais”
272 Ivan Estevão

alienante, supunha na ditadura um Outro a quem confiar e se am-


parar; o outro punha em cheque a consistência desse Outro absolu-
to como que se tentava mostrar a ditadura. Mas não se pode negar
que a ideia de um ideal socialista também corre o risco de ganhar
estatuto de um Outro consistente.
Nosso trabalho visa justamente apontar algumas considera-
ções sobre esse Outro lacaniano no que tange aos dois períodos, di-
tadura e democracia e como o que está em jogo, entro outras coisas,
é a consistência ou não deste Outro.

Parte 1
Mal-estar

Antes de qualquer coisa, cabe uma advertência:


Aquele que está concernido com o discurso psicanalítico está
avisado de que a psicanálise não é uma Weltanschauung e por mais
que eventualmente seja tentador, a psicanálise está longe de dar
conta de todos os fenômenos. Normalmente a psicanálise é capaz
de dar substratos para se levantar hipótese que dariam conta de
enigmas que se apresentam dentro de outros campos.
Mas a psicanálise não é capaz, por exemplo, de produzir por
si só uma explicação para as mudanças históricas (apesar de con-
seguir pensar como estas mudanças interferem na subjetividade) e
muito menos para os movimentos econômicos. Depois de tomada a
decisão de fazer guerra e não revolução, pode-se falar, por exemplo,
de um “certo impulso destrutivo” do proletariado, mas porque ele
tomou essa característica naquele dado momento está fora do al-
cance da psicanálise (mas não da história e da sociologia).
Isso posto, não é raro se valer da psicanálise como instru-
mento de diagnóstico social. Temos todo um hall de psicana- rol
listas, historiadores, filósofos e cientistas políticos que se valem
desse recurso: esse movimento começa com Freud, mas podemos
citar Reich, Fromm, Marcuse, Habermas, Lash, Dejours, Zizek,
Peter Gay etc. Há ainda um vasto universo de tentativas nesse
sentido.
O mal-estar na democracia 273

Podemos afirmar que um primeiro diagnóstico de um evento


sociológico a partir da psicanálise vem de Freud. Em “O mal-estar
na cultura”, ele faz uma breve análise do projeto comunista pós-re-
volução russa:
Os comunistas acreditam haver encontrado o caminho para a re-
denção do mal. O ser humano é inequivocamente bom, bem-
disposto para com o próximo, mas a instituição da propriedade
privada lhe corrompeu a natureza. A posse de bens privados dá
poder a um indivíduo, e com isso a tentação de maltratar o próxi-
mo; o despossuído deve se rebelar contra o opressor, seu inimigo.
Se a propriedade privada for abolida, todos os bens forem tornados
comuns e todos os homens puderem desfrutá-los, desaparecerão a
malevolência e a inimizade entre os homens. Como todas as neces-
sidades estarão satisfeitas, ninguém terá motivo para enxergar no
outro um inimigo; e todos se encarregarão espontaneamente do
trabalho necessário. Não é de minha alçada a crítica econômica
do sistema comunista, não tenho como investigar se a abolição da
propriedade privada é pertinente e vantajosa. Mas posso ver que o
seu pressuposto psicológico é uma ilusão. (Freud, 1930, p. 109-110)
O diagnóstico — um tanto pessimista — de Freud sobre a ten-
tativa de comunismo na União Soviética está pautado não na su-
premacia do modelo capitalista e da propriedade privada, mas na
ilusão de que a infelicidade humana pode ser suprimida a partir
de mudanças nas formas de produção, e, porque não, também nas
formas de governo. Mas ele não deixa de considerar que haveria
supostas vantagens da abolição da propriedade privada, mas sabe
que isso não é da sua alçada. O que nos importa aqui, que é a base
de seu livro, é que o Mal-Estar não é um efeito de uma situação,
mas sim um efeito estrutural, consequência da própria condição
humana.
A questão da psicanálise em torno do Mal-Estar, principal-
mente a lacaniana, se dá nas condições estruturais que engendram
o que Lacan chamou dos três registros, tendo o simbólico como
um campo onde os outros dois registros — Imaginário e Real —
emergem. Lacan utiliza o termo parletre (Lacan, 1974) (ou falasser)
para apontar a condição humana de ser falante e o como isso é um
determinante estrutural. Como efeito do registro simbólico, temos
274 Ivan Estevão

o sistema simbólico que dá condições para a emergência dos dois


outros registros, o Real e o Imaginário. São as três possibilidades da
experiência humana e a partir delas que se opera uma lógica que dá
bases à subjetividade. As modalidades como cada sujeito se subje-
tiva está pautado no seu universo social que envolvem as questões
antropológicas, históricas, econômicas, etc.
Um interessante artigo de Sidi Askaforé (2009, p. 165-175)
marca bem a diferença entre subjetividade e estrutura. A estrutu-
ra é a condição para que a subjetividade possa se constituir, mas as
duas coisas não se confundem, tal qual a conhecida metáfora que
Levi-Strauss se vale no conhecido “A eficácia simbólica”:
O inconsciente, ao contrário, é sempre vazio. Ou, mais pre-
cisamente, é tão alheio às imagens quanto o estômago aos
alimentos que o atravessam. Órgão de função específica, limi-
ta-se a impor leis estruturais, que lhe esgotam a realidade, a
elementos esparsos que lhe vêm de fora — pulsões, emoções,
representações, lembranças. Poder-se-ia dizer, portanto, que
o subconsciente é o léxico individual no qual cada um de nós
acumula o vocabulário de sua história pessoal, mas que tal vo-
cabulário só adquire sentido, tanto para nós mesmos quanto
para os outros, na medida em que o inconsciente o organiza de
acordo com suas leis, fazendo dele, assim, um discurso. (Lévi-
Straus, 1949, p. 289-290)
O que nos importa aqui é que a adentrar ao universo do sim-
bólico, que é o universo social ao mesmo tempo, se estrutura uma
base onde irá operar a subjetividade e que essa base é o próprio sis-
tema simbólico.
Freud aponta o processo de entrada na cultura e sociedade
como causa do efeito de Mal-Estar: o Mal-Estar é consequência
da renúncia pulsional onde o sujeito se submete às regras sociais
abrindo mão de uma quantidade de gozo e consequentemente sen-
te-se subtraído de uma parcela de satisfação a ser recuperada em
algum momento; Lacan formaliza esse movimento atribuindo o
Mal-Estar a impossibilidade do Simbólico em dar conta de todos
os fenômenos da experiência: há sempre um resto não simbolizá-
vel que diz respeito ao próprio corpo e a relação do sujeito com o
Outro. Logo, o Mal-Estar é um “resto” do Real que insiste em se
O mal-estar na democracia 275

apresentar mesmo que não simbolizável. Ele não é um efeito do


subjetivo, mas da própria estruturação (o que implica na impossibi-
lidade de adaptação do ser humano, seja qual for o sistema de pro-
dução ou de governo). O Mal-Estar se apresenta de variados modos
se for vivenciado a partir de cada registro: como demanda de um
objeto específico se tomado imaginariamente; como impulso criati-
vo e deslizante se colocado em termos simbólicos; e como angústia
quando a falta falta, ou seja, pela via do registro do Real.
O Mal-Estar pela via do Imaginário se dá em termos de uma
localização, “posto” em alguma coisa: a impossibilidade de ter fi-
lhos, a dificuldade em aprender, a falta de dinheiro, etc. e pode en-
gendrar agressão, violência, doença psiquiátrica, etc. Logo, o que
Freud aponta em seu diagnóstico, é que a propriedade privada é
mais uma das localizações do Mal-Estar.
Se assim é, podemos dizer que o Mal-Estar se modifica de-
pendendo do modo de governo?

Parte II
Estruturação

Para trabalharmos essa questão, precisamos pensar um pouco


mais no processo de estruturação. Os estágios lógicos estruturan-
tes são vários e eles implicam certas operações onde muitas delas
são pertinentes, mas que não cabem aqui. O que nos importa é que
a psicanálise, na sua leitura freudolacaniana (mas em outras tam-
bém) permite pressupor a ideia de um desamparo (Hilflosigkeit)
primordial, dada a condição de imaturidade do recém-nascido
(Nascimento, 2007, p. 22-23). Longe de ser uma novidade, esse de-
samparo primordial põe em evidência logo de início a problemática
do social: somos constituídos a partir da relação com o Outro (e
nessa medida que Freud não vê distinção entre psicologia individu-
al e social (Freud, 1921, p. 67)).
O que Lacan opera é toda uma modalidade de se pensar os
efeitos dessa relação em termos estruturais. E em um certo jogo de
funções, que se estabelece sendo a o bebê um ser absolutamente
276 Ivan Estevão

desamparado, ele só pode sobreviver e estruturar-se a partir da


relação com um Outro, que nesse sentido é entendido como uma
função mais do que como uma pessoa em especial e que, para
manter a condição de função, Lacan chama de Grande Outro. O
Outro é assim — em um primeiro momento — uma função que
introduz o infans no sistema simbólico. Trata-se de introduzir o
ser não falante em um universo de significantes que serão a maté-
ria da construção da realidade, sendo a realidade uma construção
linguística.
Quem ocupa o lugar de Outro e faz essa função é tomado pela
criança — e se oferece dessa forma — como um Outro Absoluto
(Lacan, 1955-6, p. 286-287), em certa suposição de complementari-
dade. A ideia de um Outro absoluto implica na sustentação de que
o Outro assume uma função imaginária fundamental: torna-se o
ponto de referência, o tesouro de significante (Lacan, 1960, p. 820),
lugar de garantias para a criança, mas ocasiona um efeito parado-
xal: se por um lado sua presença pode amenizar pontualmente a
angústia ocasionada pelo desamparo primordial, por outro o ex-
cesso desse Outro, que põe em jogo o risco de fragmentação, situa
o sujeito diante da impossibilidade de se saber qual o desejo desse
Outro. Nessas condições, o Outro ameniza e é também causa da an-
gústia do sujeito. Temos aqui a suposição, alienada, de um Outro
que pode servir para satisfazer todas as demandas e nos amparar
plenamente mas de um Outro angustiante. A ideia de um Outro
imaginário absoluto nos interessa na medida em que pensa-se seus
efeitos nessa ambiguidade: um Outro capaz de nos prover de tudo,
mas que converte-se também em uma função devastadora.
Sustentar a existência de um Outro absoluto não é sem um
preço, ou seja, cobra-se o sujeito que pague para a sustentação do
amor desse Outro. É o que chamamos de um amor condicionado
que nos é importante pois seus efeitos serão marcantes no que diz
respeito a nossa tese em relação a posição do sujeito com a ditadu-
ra. A construção de uma lógica que implica em um Outro absoluto
(que, como bem revela Freud, é uma das bases para o sentimento
religioso) pressupõe a obediência ao Outro que exige algo do su-
jeito para manter-se no lugar de garantia. Adentrar ao jogo so-
cial, no próprio processo de socialização e educação, implica em
O mal-estar na democracia 277

submeter-se ao Outro. Não se trata da tirania “clássica” de sub-


serviência da criança aos pais, mas da tirania do próprio processo
comum de socialização: a criança não pode fazer o que sente o im-
pulso de fazer, ou seja, ela é educada a comer, a andar, a se mover, a
falar. Há um aparelhamento de seu gozo em uma estrutura discur-
siva (Lacan, 1969-70, p. 13), tendo o Outro como agente e sendo
posto o dízimo de gozo que a criança paga para manter a garantia.
Esse processo coloca em jogo, todo o tempo, a relação da criança
com o Outro e se dá em termos simbólicos e a partir do lugar que
a criança ocupa para esse Outro, que se configurará em um enigma
angustiante.
Mas a relação da criança com o Outro parece estar todo o
tempo dado pela ideia de demanda de amor. Afinal, o que leva a
criança a abrir mão de várias formas de satisfação senão as exi-
gências do Outro, pautadas por ameaças, implícitas ou explícitas,
de perda de amor? “Mamãe fica muito triste se você faz isso”, “Não
pode bater, o papai fica bravo”, “Você quer que eu te ponha de cas-
tigo?”, “Isso é feito, sujo”. Ou seja, há condições para a manutenção
do amor do Outro em relação à criança.
Desse modo, uma determinada lógica infantil se instala: me
condicionando as regras do amor do Outro, ele se mantém como
garantia para mim. Mas é justamente a inconsistência desse Outro
que se revela para a criança em determinado momento: a impossi-
bilidade de um amparo absoluto, de uma complementaridade, mui-
tas vezes se impõe1 (senão, haverá consequências) e tanto o Outro
como o sujeito se revelam faltoso. Trata-se aqui do que Lacan cha-
ma de escolha forçada entre uma tentativa de inscrição da falta no
Outro ou a foraclusão do significante que remete a essa falta. Em
ambos os casos, o que o sujeito se posiciona é diante da falta do

1. Nesse sentido, a imposição não é universal. Aliás, está na posição do


sujeito diante da possível inscrição da falta no Outro um elemento que
leva a estruturação. Sabemos que a psicose pode ser pensada como a fo-
raclusão do Nome-do-Pai, significante foracluído que justamente aparece,
na neurose e perversão, para inscrever, metaforicamente, a falta no Outro
absoluto.
278 Ivan Estevão

Outro, grafado por Lacan como S(). O que começa a ficar claro,
em toda a volta que demos até então, é que se trata na estruturação
e subjetividade de criar um sistema que aparte o sujeito do vazio e
desamparo primordial que aparece como contingência e não com-
plementaridade (o que Lacan também chamará de não relação se-
xual), elementos do registro do Real.
Nesse processo, algo fica de fora, algo cai, o que Lacan chama
de objeto a, tornando-se assim um resto do Real que não se inscre-
ve, operando como objeto causa de desejo e que pode ser tomado
também como um dos suportes que levam a sustentação da moda-
lidade Real do Mal-Estar. Algumas operações advêm daí: uma vez
que o Outro é inscrito como faltoso, há de se tentar recriar esse
Outro absoluto para poder se sentir amparado novamente ou ain-
da, o que dá no mesmo, há de se buscar complementaridade em al-
gum outro lugar/pessoa.
Esse processo institui 4 pontos:
1. Um Eu-ideal, miragem de uma suposição do que foi em um pas-
sado mítico plenamente amparado;
2. Um suposto Outro Absoluto, que está em algum lugar;
3. Um Eu, ou seja, construção alienante do que se supõe ser;
4. Um Ideal de Eu (ou Ideal do Outro): ideal de recuperação do es-
tado de plenitude do Eu-Ideal perdido e que se pode, seguindo
as exigências do Outro, voltar a atingir. O Ideal de Eu é a mira-
gem que o Eu sustenta para manter a possibilidade de haver uma
complementariedade futura.
Cria-se todo o sistema que se sobrepõe ao sujeito: o Eu as-
sume o lugar do sujeito como um sistema constituído a partir das
identificações, tomando o outro (pequeno outro) como suporte
destas identificações2 que dão a medida das ações de cada um. O
Eu move-se no sentido de sustentar sua auto-imagem supostamente
direcionando-o ao encontro de uma complementariedade, de uma
felicidade ou gozo perdido que se busca (re)encontrar. O Ideal de

2. Nesse caso, identificações secundárias, que são o suporte da construção de


uma imagem de si (i(a)).
O mal-estar na democracia 279

Eu funciona como a mira-gem (no sentido duplo de mira e de ilu-


são) da qual o Eu se pauta, também constituído em torno do jogo
identificatório do sujeito.
Constitui-se uma relação de temporalidade onde há um pas-
sado de plenitude (Eu-Ideal), um presente faltoso (Eu) e um futu-
ro de plenitude a ser recuperado (Ideal de Eu). Todos eles pautados
pela existência de um Outro absoluto.
Lacan, em De uma questão preliminar a todo o tratamento pos-
sível da psicose (1957-58, p. 559) apresenta o Esquema R, que arti-
cula todos os quatro elementos formando a realidade do sujeito.

Figura 1
O esquema R (Lacan, 1998, p. 559)

I pode ser tomado como o Ideal de Eu, o i como o Eu-Ideal,


M como o Outro Absoluto e m a imagem de si, o Eu. A articula-
ção dos quatro elementos sustenta o que Lacan chama de banda da
Realidade, ou seja, como o sujeito se posiciona em relação a reali-
dade psíquica. Em 1966 ele acrescenta uma nota de rodapé em que
localiza na banda da Realidade o objeto a:
“Portanto, é como representante da representação na fantasia,
isto é, como sujeito originariamente recalcado, que o , S barra-
do do desejo, suporta aqui o campo da realidade, e este só se sus-
tenta pela extração do objeto a, que, no entanto, lhe fornece seu
280 Ivan Estevão

enquadre” (Lacan, 1957-58, p. 560, nota 16). A realidade, organi-


zada pela fantasia fundamental, se constitui na extração do objeto a
que por sua vez oferece o enquadre da própria realidade. A realida-
de se dá, nesse medida, na sustentação dos quatro elementos como
forma de manter de fora o objeto a, que no entanto não cessa de
ter seus efeitos sobre a própria realidade. Se na psicose o sujeito se
estrutura de forma a não deixar esse resto cair (carrega-o no bolso)
(Lacan, 1967), na neurose e perversão temos a estratégia de negá-lo
dizendo que há sim um objeto consistente que possibilita um gozo
um pleno (Ideal de Eu).
Ora, a estruturação será então a base para a constituição da
própria realidade que é afetada aí pelo momento histórico e so-
cial, construindo a subjetividade de cada um. Retomando a histó-
ria contada no início, podemos ver ali uma passagem angustiante
pois a guerrilheira abre mão de um Ideal de Eu (que se sustenta a
partir de uma discursividade ideológica, como não poderia deixar
de ser) que implica justamente em abrir mão de uma possibilidade
de consistência de Ideal. Era a passagem de um saber supostamente
constituído — rumo a um ideal socialista — para um abismo do
desconhecido, um governo de ninguém fixado, democrático. Mas
que ao mesmo tempo permite antever um tempo em que a singula-
ridade possa existir.
Quais os pontos que merecem relevo afinal:
1. Que a estruturação e a subjetividade são constituídas em torno
de um mesmo ponto, um vazio primordial que se dá no encon-
tro com a linguagem e que não cessará de ter efeitos. Trata-se da
relação do sujeito com o registro do Real.
2. Em função disso, os processos de construção e a tentativa de ma-
nutenção ou de busca de um Grande Outro absoluto que sirva
como possibilidade de complementariedade ou que aponte ou de
se localiza o objeto dessa complementariedade que sane esse va-
zio primordial.
3. Logo, se trata do que faz o sujeito com seu vazio, muitas vezes
presentificado como Mal-Estar.
As formas de governo, no que tangem ao sujeito e sua singu-
laridade, para se manter devem se apoiar no que é da ordem estru-
tural. É em torno desse motor que é o vazio primordial, o das Ding,
O mal-estar na democracia 281

que se presentifica, em partes como objeto a na neurose e na per-


versão, que uma modalidade de realidade de configura.
Um tipo de governo pode se apresentar como esse Grande
Outro absoluto que dá consistência ao objeto de completude, sus-
tentando a possibilidade de complementaridade e de plenitude, que
erradicariam o Mal-Estar. Nesse sentido, não conseguimos chamar
essa forma de governo de outra coisa que não alienante, radicali-
zando a posição imaginário do sujeito.
A democracia parece justamente fazer o inverso: ela expõe o
furo, o vazio primordial, ainda mais, aponta para ter de lidar com
a diferença radical (que entra na distinção entre o Nebenmensch, o
semelhante, e o próximo, Fremde) e com a inexistência de qualquer
Outro do Outro, ou seja, o “ao menos Um” que detém um saber, o
Outro Absoluto. Há, assim, uma constante tentativa de reinserção,
na democracia, da figura do Outro absoluto, seja pela figura do po-
pulista e/ou demagogo, seja pelo do grande Estadista que, ao final,
via de regra se mostram como outro Outro castrado.

Parte III
Ditadura e democracia

A partir das considerações acima, o que podemos pensar das


duas modalidades de governo? É curioso retomar como os militares
se apresentam: os salvadores que vem proteger o país do perigo do
comunismo. A partir daí se governa de forma a abolir as eleições,
ou seja, não cabe ao povo decidir, o que pressupõe uma localização
de saber, um saber fechado e coerente que pode avaliar o Bem de
modo a conduzir a todos. Podemos dizer que encontramos aí uma
tentativa de dar consistência a esse Outro Absoluto perdido no pro-
cesso de estruturação.
A ditadura impõe então duas possibilidades: aceitar ou deixar
o país e mais que isso, não há possibilidade de oposição, que se vê
levada para a clandestinidade. Aquele que aponta a inconsistência
da ditadura como Outro Absoluto perde seu “amor” e é punido.
Quase como um efeito religioso, o ditador ou a ideia da ditadura
282 Ivan Estevão

convoca a fantasia de um Outro onipotente, que nos pede apenas


que o obedeçamos e que se assim fizermos, ele pode amparar e nos
dar garantias. O processo de consolidação de uma ditadura passa
pelo ditador conseguir sustentar — mesmo que imaginariamente
— essa imagem.
A inconsistência da ditadura aparece no próprio Mal-Estar
que não é, por questões que vimos acima, passível de ser abolido.
Ele pode ser amenizado pela via do Ideal de Eu (“a riqueza futu-
ra da nação”) ou a própria ditadura pode tornar-se a localização do
Mal-Estar (e daí reencontramos a guerrilheira que falamos acima)
e daí o comunismo ou a democracia são elevados ao grau de Ideal.
Mas o que se torna relevante é que ao se apresentar como um
Outro Absoluto, a ditadura irá tamponar o Real, ou seja, o sem sen-
tido, oferecendo-se como a própria sede do sentido: censura, fecha,
prende, aqueles que propõem outros sentidos. A ditadura esforça-se
para tamponar o sem sentido, oferecendo um sentido único, imagi-
nário. Tampa, assim, o vazio, que é uma das causas do Mal-Estar.
Ora, a democracia que vem na sequência é exatamente o con-
trário. É o processo de esvaziamento, de inconsistência do Outro
de modo constante. Não há um só sentido, não há um só líder, há
grande dificuldades em se dar consistência absoluta a alguém (e
quando consegue é perigosamente totalizante). Enquanto a ditadu-
ra parece tamponar o vazio, tapar e escamotear o sem sentido da
política e da administração da vida que conduza a um lugar seguro
e razoável, a democracia parece comumente escancarar esse vazio e
desmontar a consistência alienante do líder.
Daí, surge a questão do Mal-Estar na democracia. Se na dita-
dura o Mal-Estar parece ser mais localizado (o interessante relato
de Todorov [2012] sobre sua vivência em um regime totalitário é
um exemplo disso, na democracia isso fica mais difuso. Há, assim,
algumas modalidades de se tentar novamente dar consistência a um
saber do Outro (que sempre opera de forma alienada):
1. derrubar a democracia: trazer de volta a ditadura, qualquer que
seja;
2. “fixar” a democracia: determinar forma específicas de protesto,
“se não for assim não pode”. “A democracia funciona se for deste
determinado modo”.
O mal-estar na democracia 283

3. Supor que a democracia só possa funcionar se guiada por um de-


terminado grupo.
Mais que isso, a democracia implica em um jogo constante de
deliberação e debate que faz com que o contato com o próximo, na
sua diferença, se torne fundamental e complexo ao mesmo tempo.
A posição da qual eu sustento meu Eu, mesmo que alienado, é todo
o tempo posta a prova e pede novas modalidades de se constituir
uma imagem própria e do outro.
Daí, pode-se dizer o quanto a democracia torna-se alvo do
mal-estar constitutivo: a democracia impõe, em seu movimento,
o constante processo de ter de lidar com a diferença, um proces-
so de reconhecimento que possibilite a deliberação. Logo, ela exi-
ge tolerância e um constante descentramento. Assim, a democracia
é aquilo que aponta para uma modalidade de insatisfação quase
que constante: o outro, em sua diferença, como próximo, Fremde,
ameaça todo o tempo. Se torna suporte da paranóia, objeto cau-
sa do mal-estar corporificado. Desqualifica-se seu discurso, suas
manifestações, seus atos e localiza-se nele a razão do sofrimento.
Mas, em uma democracia, o Fremde está em pé de igualdade com
o indivíduo que o odeia. Conferir um traço comum, que borra a
separação entre o Nebenmensch e o Fremde reacende a tentativa de
restaurar esse limite. Vemos esse fenômeno quando a direita des-
qualifica as manifestações da esquerda, ou quando aqueles que se
posicionam à esquerda, por exemplo, consideram um absurdo
que a direita bata panelas em protesto a um pronunciamento na
televisão.
Vejamos bem que complicado: a democracia possibilita in-
determinação, diferença e se aproxima de um sistema onde a in-
consistência está no centro. Isso torna a democracia uma forma de
governo que pode muitas vezes se mostrar bem angustiante.

Conclusão

Nesse sentido, pode-se perguntar, o que é melhor? Revivendo a


cena de Matrix, o comprimido azul ou vermelho, viver na alienação
284 Ivan Estevão

de um Outro Absoluto que nos ampare mesmo que paguemos com


isso com nosso gozo e liberdade ou afastar o vel da alienação, mas
com isso a aproximação com o sem sentido se torna maior?
Ora, há o problema de sempre em dar consistência ao Outro:
essa consistência, por excelência, é imaginária, ou seja, uma con-
sistência que não consiste. Como dissemos no início, o Mal-Estar
é constitutivo e não irá cessar pela via da alienação. E a determina-
ção proposta em uma ditadura termina por ser fonte de sofrimento
pois sufoca a diferença.
Mais que isso, se o Mal-Estar é estrutural, não se trata de
barra-lo ou fazê-lo cessar. Se trata de achar modalidades de se li-
dar com o Mal-Estar dentro do âmbito social. Acontece que estas
modalidades não são passíveis de generalização, ao contrário, elas
comumente são feitas em pequenos grupos ou até mesmo singula-
res: o reconhecimento de diferença, possível e necessária em uma
democracia, se torna um veículo importante no que diz respeito ao
tratamento do Mal-Estar.
Logo, a democracia se torna aqui um forte instrumento po-
lítico ao mesmo tempo que algo que dá recursos importantes para
tratar do sofrimento psíquico. O problema é como fazer para a de-
mocracia não entrar no lugar e um Ideal de Eu s sustentar-se en-
quanto furo, enquanto vazio, enquanto construção constante?

Referências

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O mal-estar na democracia 285

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Todorov, T. O Mal-Estar na democracia. In: Os inimigos íntimos da democra-
cia. Trad. de J. A. A. Melo. São Paulo: Companhia das Letras: 2012.
Violência, democracia e
linguagem

Paulo Endo

Existe uma tradição no pensamento ocidental que propugna


a máxima: onde há violência não há linguagem. Relação de mutua-
lidade excludente que faria de um a condição de desaparecimento
do outro. Ela se dá por óbvia, por um lado, porque enquanto esta-
mos apelando à fala, ao debate, à altercação, não estamos apelando
ainda para a força bruta para solucionar, terminar ou enfrentar um
conflito. Enquanto estamos falando, supostamente, não estamos
batendo, golpeando, atirando, explodindo, torturando.
Seguindo esse suposto — ou tradição — a negociação, a per-
suasão, o ato mesmo de tentar convencer outrem, que se instala
sempre numa posição não coincidente, diferida e/ou divergente, é
um exercício de linguagem e, como tal, dispensaria a violência ou
mesmo, a definiria como estorvo, negação e atentado à linguagem.
Cito Paul Ricoeur(1995):
É para um ser que fala, que, falando busca sentido, para um ser que
já deu um passo na discussão e sabe alguma coisa da racionalidade,
que a violência constitui um problema, que a violência se apresen-
ta como um problema. Assim, a violência tem seu sentido no seu
outro: a linguagem. E reciprocamente. A fala, a discussão, a racio-
nalidade adquirem, também elas, a sua unidade de sentido no fato
de serem um empreendimento de redução da violência. A violência
288 Paulo Endo

que fala já é uma violência que pretende ter razão; é uma violência
que se situa na órbita da razão e que já começa a se negar como
violência.(p. 60)
Esse sentido, a princípio um tanto prescritivo, sobre o ponto
de tangenciamento entre violência e linguagem, revelaria uma ta-
refa sublimatória conferida à linguagem, relativamente à pulsão de
destruição. Mas também posicionaria a violência como outro da
linguagem. Um como iminência do outro; um como borda no qual
o outro se reconhece em abismo.
Mas é preciso também atentar para a violência que fala. Ela
fala sob a forma da ameaça, da suspeita, do comando e mesmo
da lei lavrada e aplicada. Não se trata, evidentemente, de lingua-
gem como lugar onde distinções são preservadas e singularida-
des são exercidas, mas de sua execução e ataque à linguagem por
obra do discurso autocrático que preserva para si a última palavra1

1. Enquanto trabalho neste artigo, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal


acaba de negar o Habeas Corpus ao ex-presidente Luís Inácio Lula da
Silva em uma campanha sem precedentes para evitar sua candidatura à
presidência, hoje apontada por todos os institutos de pesquisa de opinião
como isolada em termos de favoritismo. Na votação que aconteceu no dia
4/4/2018 a Suprema Corte brasileira, por 6 votos a 5, entendeu por conde-
ná-lo à prisão após sentença em segunda instância, e sem que o processo
tenha transitado e julgado com argumentos dos mais estapafúrdios e con-
traditórios possíveis e em franca contradição com a constituição brasileira
de 1988 que prevê em seu artigo 5o, inciso 57:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a invio-
labilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, nos termos seguintes:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória.
A ministra Rosa Weber chega a argumentar, a favor de seu voto contra o
Habeas Corpus do ex-presidente, que o artigo e o inciso da constituição
diz que o réu não pode ser considerado culpado, mas não fala que ele não
pode ser preso. Flagrante que indica a clara dissociação no Brasil entre os
que são culpados e os que são presos e atesta o caráter político das prisões
no Brasil. Prende-se, mesmo que não se prove a culpa do réu.
Violência, democracia e linguagem 289

encerrando o diálogo e a interpelação. Espaço precípuo, no qual


um tem a voz e a palavra e a exerce contra os outros, contra a alteri-
dade e a favor de uma fantasia teleológica que colocaria fim defini-
tivo em todas as contendas.
Ainda é preciso acrescentar o que Freud (1923) interpretou
como configurações narcísicas mínimas, que se formam e se mo-
vem como unidade indiferenciada; conformadas socialmente como
um monólito que se expressa sem evidências de particularidades e
que depende da introjeção, por parte de muitos, de um comando
que se manifesta como discurso e ação em direção às massas, mas
ambiciona o solilóquio que as massas, por sua vez, aceitam e aca-
tam. Isso para evidenciar que tais configurações encontram guari-
da psíquica também nos que são agenciados. Não há meras vítimas
nesses processos. O violento, aquele que apela à força bruta, instruí-
do pelo ódio, pela raiva, pelo desejo de destruir e aniquilar, seria
aquele que negaria radicalmente a possibilidade do conflito, ao in-
vés de procurar, diante do conflito, uma posição de coexistência – o
que pressuporia exercício de linguagem. Ele negaria a tensão entre
interesses, opiniões, sentimentos e valores diferentes, divergentes
ou oponentes. Negaria a princípio, portanto, a alteridade que im-
plica na necessária — e impossível — implicação que temos com a
não coincidência suscitada, sempre, pelo outro que nos permitiria,
ao mesmo tempo, reconhecer-mo-nos e desconhecer-mo-nos na
condição de estranhos que pautam a constituição dos narcisismos e
seu destino de incompletude dependente e sofrente.
A negação radical de outrem em sua totalidade — sua elimina-
ção — representaria o repouso transitório que a força bruta almeja e
o extermínio é o ponto de chegada que toda violência almeja.
Longe estamos do exercício da persuasão, que segundo
Hannah Arendt, abrigaria como o ponto de partida da política. Não
apenas no sentido da expressão das diferenças entre iguais, mas
porque, nesses casos, as falas ocupam o lugar das hierarquias que
comandam o exercício da autoridade e estão, na verdade, a servi-
ço de uma ação relativamente à qual o exercício da linguagem seria
dispensável.
A autoridade, fundamental naquilo que rege e impõe alguma
duração às interações entre os homens, quando desfeita, destituída
290 Paulo Endo

ou colocada em suspenso, requer o argumento, a conversa e a ad-


ministração, pela linguagem, do que assemelha e diferencia os su-
jeitos uns dos/com os outros. Vemos em Hannah Arendt(1997):
Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela sempre é
confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo,
a autoridade exclui a utilização. A autoridade, por outro lado, é
incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e ope-
ra mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam ar-
gumentos a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem
igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre
hierárquica, de meios de coerção; onde a força é usada, a autorida-
de em si mesma fracassou. (p. 129)
Persuadir, no sentido arendtiano, é não apenas convencer,
mas buscar um ponto de acordo, um ponto comum entre diver-
gentes; um ponto no qual as singularidades sejam atendidas no
horizonte do comum das diferenças e a experiência do desconheci-
mento e das rupturas de filiações identitárias possam ocorrer.
Isso porque a singularidade, para Hannah Arendt, é o que pre-
side a ação e o discurso político, não apenas porque não podemos
ser ou parecer nada que não seja remetido a um outro indivíduo ou
a um outro sujeito particular — o receptor possível e especular de
um suposto nós mesmos —, mas porque a singularidade, de que fala
Arendt, só é concebível em meio aos outros. Trata-se do exercício,
pela linguagem, da singularidade no seio da pluralidade. Condição
para o exercício da política. Somos singulares, mas tal singularidade
não existe, não se expressa, senão como pluralidade.
Pois bem, é exatamente a aceitação de que somos singulares
em meio a outros singulares que define o que se pode chamar de
diversidade ou pluralidade, o que torna inconcebível pensar numa
unidade fechada sobre si mesma. Portanto, no limite, o nós só exis-
te na experiência com(o) outro — essa figura jamais plenamente al-
cançada e sempre visada como horizonte de chegada e de ruptura.
Ao mesmo tempo a noção de si mesmo, para Arendt é, no li-
mite, impossível ou ao menos indesejável porque empobrecedora
da experiência política. Para ela não existiria um si mesmo, a não
ser como mera abstração, ou fantasia narcísica, jamais alcançada, e
mesmo jamais vivida como tal na esfera política.
Violência, democracia e linguagem 291

Na iminência de uma guerra, por exemplo, o que se evidencia


é o fim da política, porque cessa o exercício da persuasão, cessa a
presunção da singularidade e entra em cena o comando, a ordem, a
informação que se dirigem às massas para ordená-las, dirigi-las, co-
mandá-las e aniquilá-las. Nascem os discursos instrumentais pre-
sididos pelas falas sem destinação e sem destinatário. Fala-se a um
“todos” que não são ninguém.
O povo ao qual se dirigem, nesses casos, não é ninguém em
particular e é todo mundo — as massas hipnotizadas de que falava
Freud (1921). A coação travestida de desejo, presente na propagan-
da de governos ditatoriais e totalitários, é destinada a uma massa
genérica que deve agir segundo um comando que a indiscrimina e
a generaliza heteronomamente para melhor discernir os que serão
eliminados dos que não o serão.2 A língua que sustenta a violência
é, desse modo, composta por uma série de discursos acabados, que
prescindem da interlocução de seu destinatário e, no fundo, ignora-
-o completamente.
Portanto, a violência fala — fala em todos os lugares. No dis-
curso do senso comum ao discurso articulado e douto do direito
que institui a irreversibilidade da pena de morte, o cárcere sem cul-
pa, o castigo por antecipação, por convicção e sem provas factuais.
Para todo Hitler um Goebbels; para os generais brasileiros no
período da ditadura civil-militar brasileira o Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais (IPES). Como disse Ricoeur (1995): “o tirano pre-
fere os serviços de seus sofista do que os de seu carrasco” (p. 62).
Aquele tentará convencer que a violência tem lógica, sentido e fina-
lidade — quando sua única finalidade é destruir o inimigo, o oposi-
tor e o divergente buscando, para isso, a complacência ou anuência
de muitos. No âmbito dos governos a lógica que preside as polí-
cias e os sistemas de encarceramento no mundo inteiro reivindica
para si o uso do direito legítimo da violência como privilégio dos

2. Lembremos da frase estampada em todos os lugares e que representava o


comando do governo ditatorial iniciado no Brasil em 1964: Brasil: ame-o
ou deixe-o colocar a frase.
292 Paulo Endo

Estados, na melhor das hipóteses, e dos governos e dos governantes


na pior das hipóteses.
Mas o que permite o deslizamento que possibilita com que a
polícia ou o exército se reduzam a guardas pretorianas a serviço de
um único indivíduo (o governante/tirano) ou de um grupo de in-
divíduos? Momento em que os objetivos teóricos do Estado demo-
crático (o de promover o bem comum, ou ao menos, da maioria) se
opõe aos objetivos dos governos, e mesmo, são atacados pelos go-
vernos no cotidiano da administração e das políticas de segurança
das cidades.
O problema do uso da violência como meio legítimo para
atingir fins justos, como observa Walter Benjamin (1921) é que não
há definição consensual sobre o que é legítimo e mesmo sobre o
que é justo. Trata-se do mesmo problema aplicado à afirmação de
que alguma dose de violência é necessária no exercício do poder ou
para educar uma criança. Quem qualifica ou quantifica essa alguma
dose? Espancar é muito ou pouco? Torturar é um excesso ou a dose
ótima do remédio?
E o mais importante: que competência teria o poder, ou os
governos ou o próprio direito para definir e prescrever administrar
essa tal dose certa? Que conceito de política permite que a única
força capaz de eliminar pessoas da face da terra — a força bruta, a
força física — fique a cargo dos governantes e dos juristas?
A posição que sustentaria isso ficaria encalacrada na tentativa
de definir se a aplicação da violência se aplicaria a fins justos. Nesse
caso a violência seria necessária para chegar-se a um desfecho justo
que, por sua vez, seria, obviamente, definido pelo direito.
A título de exemplo, um problema que faz parte do cotidiano
dos psicanalistas pode ilustrar o que estou tentando dizer. Em muitos
lugares e países, aos pais cabe o uso legítimo da violência sobre os fi-
lhos porque são legalmente responsáveis por eles até uma certa idade
determinada juridicamente. Isso lhes confere, juntamente com o po-
der, o uso legítimo da violência. Nesses lugares ninguém interrompe-
rá ou denunciará um pai que estapeia seu filho na cena pública.
Há até muito pouco tempo, e ainda hoje em muitas regiões,
a violência física aplicada contra os filhos era e é considerada edu-
cativa e necessária. Mas sabemos bem ao que a violência educa: à
Violência, democracia e linguagem 293

submissão, ao fim do conflito e da diferença e à consagração da fi-


gura do chefe da família.
O problema sobre o qual se ateve Hannah Arendt entre poder,
violência, força e vigor avança em relação ao problema entre vio-
lência e linguagem. Ela pressupõe não apenas enormes imprecisões
nessa formulação consagrada — onde há poder, há violência , mas
também uma armadilha que mal define termos como necessário,
legítimo, instrumental etc.
Disso resulta a posição hegemônica que se radica na certeza
de que sem os meios coercitivos disponíveis não seria possível go-
vernar, o que cria, do ponto de vista dos estados-nação, a impossi-
bilidade de conceber e exercer um governo sem ter à disposição as
polícias e os exércitos e, obviamente, a violência.
É o mesmo modelo utilizado na autoridade que se confere
aos pais para que, se preciso, lancem mão de alguma dose de vio-
lência em seu papel de protetor, educador e mentor. Um tapinha
não dói, um tapinha não faz mal a ninguém, quando o que se deve
perguntar é porque ferir outrem foi ‘necessário’. E o que significa a
suposta inerência dessa ‘necessidade’?
Agamben observará que o modelo de governo que supõe
o soberano na Roma antiga é o modelo do pai (Pater familias).
Portanto o soberano seria o análogo da relação entre pais e filhos.
O pai da sociedade. O chefe da sociedade, no mesmo sentido em
que se titula o pai como o chefe da família. Cito Agamben_ (2002):
O que a fonte nos apresenta é, portanto, uma espécie de mito genea-
lógico do poder soberano: o imperium (poder dos magistrados/poder
absoluto) do magistrado, nada mais é do que a vitae necisque potestas
do pai (pater) estendida em relação a todos os cidadãos. (p. 96)
Hannah Arendt (1997) chamou a atenção para o perigo desse
deslocamento:
A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento
de corpos políticos a partir da família.(p.22)
E segue:
Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, a par-
ticipação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja,
294 Paulo Endo

a agir como se se pudesse sair, de modo natural, do princípio da


diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar um ho-
mem a imagem de si mesmo. (p. 22)
Chamo a atenção para dois aspectos dessa citação: a família
pode ser o reduto do totalitarismo se ‘ao invés de gerar um homem,
tenta criar um homem a imagem de si mesmo’. Porque nega a plu-
ralidade, teme a diversidade em função de uma vocação — que lhe
é autorizada inerentemente — de criar a mesmidade totalitária. Daí
a vocação iminentemente religiosa da constituição familiar.
No fundo é, secretamente, a teocratização das políticas de go-
verno — em oposição à democratização dessas mesmas políticas
—, e o fim da política é o que está sendo visado. A marcha da fa-
mília com Deus e pela liberdade contra o governo Jango em 1964
assume aqui coerência exemplar.3
Podemos limitar mais ainda o espectro desses exemplos quan-
do pensamos na dinâmica que induz ao ato da fofoca. Trata-se da

3. No Brasil, em 2017, várias capitais foram alvos de manifestações de grupos


de extrema direita que tentaram impedir performances e exposições em
museus consagrados e públicos. Bradavam diante dos museus, agredindo
os visitantes, funcionários e os artistas a fim de inibir que a exposição ou
obra continuasse a ser exibida. Em exposição num dos mais importan-
tes museus de arte da América Latina, o Museu de Arte de São Paulo in-
titulada “História das sexualidades”, foi forçada a restringir a entrada de
menores de 18 anos na exposição, restrição mais tarde revogada. Outra
exposição, antes dessa, intitulada Queermuseu foi impedida de prosseguir
devido a ataques dos mesmos grupos e foi encerrada pelo grupo Santander
que a acolhia e patrocinava.
Interessantemente, poderíamos supor que tais grupos fariam os mesmo
brados e condenações a obras referenciais no mundo como a Capela
Sistina, no Vaticano. Seria lógico que exigissem ou, ao menos, exortas-
sem seus seguidores, a apagar os nus das obras de arte em outros países
e museus por ofenderem a moral e os bons costumes e nus por toda
a Itália. Ou seja, tais grupos sequer concordam com os princípios da
pregação católica e cristã. Ou seja, sua menção não é a qualquer ideário,
mas a proteção às suas próprias crenças às de suas famílias que pretendem
universalizar para o país todo. “O que eu não deixo meus filhos verem,
ninguém deve ver.”
Violência, democracia e linguagem 295

instauração da dicotomia como princípio que ordena a cumplicida-


de. O ponto de partida sendo: ‘nós, que somos bons, fofocaremos
sobre aquele que não é bom.’ Aquele que, sob determinados aspec-
tos e, por vezes, momentaneamente, não é um de nós. Portanto, o
nós representa que somos iguais, semelhantes, ponto de chegada
das ficções identitárias, e os outros diversos, diferentes, desseme-
lhantes, o que, por si só, justificaria crueldades, complôs, violências
contra outros quaisquer. A fofoca, como sabemos, pode provocar e
plantar muitos estragos.
A dicotomia, já disse Bauman (1999), também leitor de
Arendt, revela o discurso que insufla, suporta e autoriza violências
em massa contra populações inteiras. Bandido e gente boa, terroris-
tas e soldados, alemães e judeus, tutsis e hutus, europeus e não eu-
ropeus, pretos e brancos, amigos e inimigos, judeus e palestinos etc.
Aqui então uma primeira tentativa de discriminação entre o
discurso que incita e ampara a violência, e a linguagem que a evi-
ta e, num certo sentido, a nega. O discurso da violência se dirige
às massas, a uma totalidade suposta (por isso totalitário), e a per-
suasão se dirige a cada um (singularidades). O receptor visado da
fala totalitária é um outro genérico (o povo, a nação, o consumi-
dor etc.), o da persuasão é um outro singular (o sujeito que fala e
escuta).
A fala, fora da linguagem ou contra ela, é o discurso genérico,
massivo ou o solilóquio. Comanda-se, ordenam-se, recomendam-
se, informam-se as massas; persuadimos, conversamos, compreen-
demos, dialogamos entre singularidades, entre sujeitos.
Por isso, o discurso televisivo nunca será persuasivo, mas dis-
suasivo e é de inspiração totalitária. Não importa quem esteja sen-
tado em frente ao aparelho, o importante é que deixe de pensar o
que pensava, sentir o que sentia, desejar o que desejava para, ainda
que comportamentalmente, faça conforme será demonstrado, exi-
bido, informado, mas jamais explicado, debatido, questionado. É a
educação para o consumo que ela veicula sobretudo, e tal pedago-
gia se esgota na aquisição de um produto como necessário, seja ele
qual for (um sabonete, uma máquina de lavar, uma guerra) e na re-
produção desse comportamento de anuência, aceitação e apoio in-
finitas vezes.
296 Paulo Endo

Daqui então se depreende o sentido da política em Hannah


Arendt. Como o lugar privilegiado da linguagem no sentido em
que realiza o singular entre singulares e em oposição à força bru-
ta e ao agenciamento pelo medo ou pela imposição e domesticação
psíquicas. Ou seja, diante desse impasse proclamado entre lingua-
gem e violência, o pensamento arendtiano nos ensina a interpretá
-lo como oposição entre política e violência, já que fora da esfera
pública e política a linguagem, condição dos negócios humanos, se-
ria dispensável. Cito Hannah(1998) Arendt num fragmento de sua
obra de 1950, compilado por Ursula Ludz:
A política não é necessária, em absoluto, seja no sentido de uma
necessidade imperiosa da natureza humana, como a fome e o amor,
seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio hu-
mano. Aliás ela só começa onde cessa o império da necessidade e
da força física. (p. 50)
Trata-se do deslocamento da tensão e impasse entre violência
e linguagem que se expressaria, então como violência e política.
Passo agora a uma apresentação e desdobramento dessa li-
nhas mestras que perfazem um certa continuidade entre uma
das influência notáveis do pensamento de Hannah Arendt, que
foi Walter Benjamin, especificamente examinando o texto de
Benjamin intitulado “Para uma crítica da violência”, de 1921, para
tensioná-lo com o texto de Hannah Arendt intitulado Sobre a vio-
lência, de 1969.
*
* *
Comecemos então apresentando alguns problemas enuncia-
dos por Walter Benjamin em 1921, data em que foi publicado o ar-
tigo “Por uma crítica da violência”
Walter Benjamin, pensador judeu alemão, nasceu em 1892.
Viveu as duas grandes guerras mundiais como escritor de uma
obra que subsistiu a duras penas com o apoio de alguns de seus ad-
miradores e que, após a sua morte, tornou-se uma das obras mais
importantes do século XX. Walter Benjamin se suicidou quando
tentava fuga da França para os Estados Unidos pelos Pirineus, fu-
gindo da Gestapo em 1940.
Violência, democracia e linguagem 297

Hannah Arendt e Walter Benjamin não foram apenas ami-


gos e parceiros intelectuais. A admiração de Hannah Arendt por
Benjamin é inconteste, pois para ela Benjamin era um pensador
ímpar e um homem, cuja obra foi capaz de iluminar os recôndi-
tos mais escuros do século XX. Razão pela qual Hannah Arendt
reserva em seu livro Homens em tempos sombrios, um lugar desta-
cado, num dos artigos especialmente dedicados à vida e a obra de
Benjamin. Mas não apenas isso, Hannah Arendt foi uma das prin-
cipais divulgadoras da obra de Walter Benjamin nos EUA após a
sua morte e uma admiradora confessa e regular de sua vida, de seu
pensamento e zeladora da profunda amizade que os uniu durante o
período da Segunda |Guerra Mundial.
Para ela Benjamin estava entre aqueles que que representam
‘alguma luz nos tempos mais sombrios’. Como ela mesma disse em
sua introdução de Homens em tempos sombrios:
e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e dos con-
ceitos como da chama incerta, vacilante, e muitas vezes tênue, que
alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as
circunstâncias e projetar em todo o tempo que foi lhes dado viver
nesse mundo. (Arendt, 1968, p. 10 )
Esses fatos bastante conhecidos da amizade entre Hannah
Arendt e Walter Benjamin, por outro lado, indicam um certo estra-
nhamento no que se refere a completa ausência de menção ao texto
de Walter Benjamin intitulado “Para uma crítica da violência”, na
obra de Hannah Arendt.
Essa ausência pode ser notada especialmente em seu comen-
tário sobre a vida e a obra de Benjamin no texto já mencionado
sobre Benjamin, publicado no livro Homens em tempos sombrios,
de 1968 e, depois, republicado como introdução a uma coletânea
com alguns artigos de Benjamin coligidos e editados pela própria
Hannah Arendt em 1969, que apresenta a obra de Benjamin nos
EUA e que fora intitulada Iluminations. Ainda merece destaque que
entre os artigos escolhidos por Hannah Arendt, nessa coletânea,
também não figurava esse trabalho de Benjamin.
*
* *
298 Paulo Endo

“Para uma crítica da violência” coloca em marcha a análise da


violência inscrita, contida, cometida e definida no e pelo direito e
reclama uma definição de violência, que pouco se esclarecerá ao fi-
nal do artigo, mas que apresenta problemas de difícil exame porque
supõe mudanças de paradigma extremas no campo dessa reflexão.
Benjamin põe em questão o uso legítimo da violência como
meio, no campo do direito, uma vez que os fins seja considerados
justos, caso da legitimidade do uso da violência, ou injustos, caso
de sua ilegitimidade.
A violência em si não apresentaria qualquer problema de
princípio, no campo do direito ou, se quisermos, dos estados de-
mocráticos de direito, se os fins a que visam a aplicação da violên-
cia fossem consoantes ao que é justo.
Parte daí que a definição do que é justo e injusto, no campo
do direito, deveria ser irretorquível, consensual e absoluta. Isso para
que o uso legítimo da violência não se tornasse, por sua vez, ele
mesmo, absoluto e arbitrário. Prática que assola os totalitarismos e
as ditaduras.
Mas no âmbito dessas mesmas questões flutua uma outra: a
violência poderia ser ética? Se aplicada para o atingimento de fins
justos, poderia, por isso, ser considerada uma violência ética?
Benjamin, sem enunciar, coloca, por oposição, a seguinte ques-
tão: se a violência, como meio, aplicada para o atingimento de fins
justos pela aplicação do direito é ética, seria ético matar o tirano?
É justo o tiranicídio? Essa indagação, contudo, não será tratada
diretamente nesse texto até sua conclusão. Porém, se a resposta
for sim a ela, a reflexão de Benjamin sugere que a equação ética
do direito, no que concerne à violência, seria a de que fins justos
amparam a legitimação da violência como meio para atingir tais
fins.
A violência, portanto, não poderia ser um fim em si — sem
finalidade ou como finalidade primeira, caso em que ela seria con-
vertida em fim —, única condição para que seja irrelevante e im-
possível considerá-la no âmbito do direito.
Uma primeira resposta à pergunta sobre a justiça da violência,
conduz então a uma primeira definição. Diz Benjamin (2012): (...)
Violência, democracia e linguagem 299

o direito considera a violência nas mãos dos indivíduos um perigo


capaz de solapar a ordenação do direito. (p. 127)
Ou seja, se a título de exemplo for autorizado que pessoas
portem armas de fogo e a usem como bem lhes aprouver, estaria
em cheque todo o ordenamento jurídico e, sem o amparo da lei, o
soberano se veria impotente para restituir a ordem fraturada pelo
uso individual e arbitrário da arma.
Nesse sentido e nessa proposição fica estabelecido que ape-
nas o soberanos têm o direito e o dever legítimo de se utilizar da
violência com o propósito de repor a ordem legal, que eventual-
mente poderia ser colocada em risco se os indivíduos pudessem
arbitrariamente fazer uso dela. O direito, portanto, portaria uma
sapiência e sabedoria jamais suplantada pelos indivíduos, que a ele
concederiam as razões de suas próprias decisões e o acerto ou erro
delas.
Entretanto, Walter Benjamin antecipa o perigo. Ele indica que
é bem possível que o monopólio da violência nas mãos dos agentes
do estado não expressem a intenção de defender os fins que o direi-
to, supostamente, deveria visar. A preservação e proteção do esta-
do-nação, a preservação da paz e da ordem, da justiça, do arbítrio
etc. , mas vise, antes de tudo, a preservação do próprio direito.
Cito Benjamin (2012):
Em contraposição, talvez se devesse levar em conta a possibilidade
surpreendente de que o interesse do direito em monopolizar a vio-
lência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção
de garantir os fins do direito mas, isso sim, pela intenção de garan-
tir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra
nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça
perigosamente, não em razão dos fins que ele quer alcançar, mas
sua mera existência fora do direito. (p. 127)
Nesse caso, toda violência fora do direito ou que se constitua,
na visão do próprio direito, como ofensiva ao sistema do direito,
seria considerada e interpretada como um perigo. Não necessaria-
mente porque esteja colocando em risco a vida de muitos, mas por-
que ofende e ataca o próprio direito como lógica e modo exclusivo
de ordenamento. Assim o soberano teria por função precípua não
300 Paulo Endo

apenas salvaguardar o bem comum, mas o próprio direito que de-


fine o estado e a função do soberano, bem como seus operadores,
suas instituições, seus membros etc. Todos análogos aos princípios
que regem a soberania.
Em última instância e, contraditoriamente, a violência legí-
tima estaria a serviço dos que compõe, vivem e se beneficiam do
direito e não daqueles aos quais o direito deveria, supostamente,
servir e salvaguardar.
Benjamin se utiliza então do exemplo do direito de greve. Ela
permanecerá como um direito desde que não ameace o próprio di-
reito enquanto tal — momento em que tende a ser julgada ilegal.
Para Benjamin é o potencial ‘revolucionário’ de uma greve em rela-
ção ao próprio ordenamento é que está sendo julgado e não neces-
sariamente a violência da greve.
A violência como definição deixa de ter importância aqui
porque será julgada violenta toda e qualquer greve que ameace o
ordenamento jurídico e a ameaça ao direito como reguladora e úni-
ca definidora do que é ou não violência. É o topos da violência que
está sendo julgado e não sua definição ou função.
Tomemos como exemplo uma reivindicação salarial que en-
contra seu limite ‘justo’ até o ponto em que exija uma distribuição
dos lucros, ou que altere a distribuição entre empregados e patrões
e as hierarquias dentro de uma organização. Nesse caso ela não
apenas seria considerada absurda, ‘injusta’, mas nos termos do di-
reito, abusiva.
A problemática da soberania nesse texto de Benjamin será
retomada por Agamben (2002, 2004), 74 anos mais tarde, em sua
extensa obra iniciada com Homo Sacer I: o poder soberano e a vida
nua. Nos rastros de reflexão deixados por Benjamin que teria dei-
xado intocado o problema da soberania.
O aprofundamento ímpar dessa questão perdurará, em
Agamben, como crítica do direito enquanto expressão do poder
soberano, enquanto para Hannah Arendt, propositadamente mais
distante dessa questão, a crítica mais urgente se aplicará ao âm-
bito político no qual as distinções entre poder, vigor, força e vio-
lência estão endereçadas a uma forma específica que determina a
organização dos estados e perturba o pensamento e as estratégias
Violência, democracia e linguagem 301

políticas. Problemas herdados pela própria teoria política cujas suas


consequências no campo da ação e do discurso ela examinará.
A crítica que Hannah Arendt preparará, mais de 40 anos de-
pois, será uma crítica radical à articulação entre poder e violência
que se tornaria uma das inflexões mais importantes de sua obra.
Podemos supor que, do ponto de vista do ponto de vista de Arendt,
a crítica de Benjamin permaneceria ainda devedora da inerência
da proposição ‘onde há poder, há violência.’, que ela tão agudamen-
te critica. A seguinte passagem do texto de Benjamin(2012) ilustra
isso: “A instauração do direito é instauração de poder e enquanto
tal, um ato de manifestação imediato da violência” (p. 148).
Ao não se deter aos determinantes genéticos e políticos do
conceito de violência, Benjamin se afasta do interesse e da reflexão
que Hannah Arendt preparará e publicará sob o título de Sobre a
violência (1994).
Nessa obra Hannah Arendt proporá uma reflexão que se tor-
nará conhecida e que impactou boa parte da teoria política contem-
porânea. Trata-se da distinção entre poder, violência, vigor e força
que, do seu ponto de vista sempre foram apresentadas de maneira
mais ou menos aparentadas ou sinônimas. Essa inextrincabilidade
clássica entre poder e violência adquiriu um status tamanho que
não encontraremos teórico político que tenha divergido explicita-
mente dela.
Os custo e prejuízos disso são altíssimos, não apenas porque
o modelo de estados nacionais que prevalece na maioria dos países
do planeta repousa sobre os privilégios herdados por essa distinção,
assim como, tal definição adentrou no direito dos governos em, ao
exercerem o poder, comandarem o uso da violência de forma ine-
rente e inexorável.
O ponto talvez em que Hannah Arendt se despede de
Benjamin — sem, na verdade, tê-lo encontrado — radica em que
a análise sobre a violência de Arendt se assenta sobre a impossibili-
dade da violência como exercício de poder e da política, enquanto
Benjamin só pode colocá-la sob suspeita no exercício das democra-
cias, ao mesmo tempo em que deixa em aberto a possibilidade de
uma violência divina, talvez revolucionária, como indutora neces-
sária e aguardada da política.
302 Paulo Endo

É o exame do sentido e do conceito de democracia que


tomará boa parte do tempo de Arendt (2004) e também de
Agamben (2002), mas a análise sobre violência e poder de Arendt
prepara e, talvez, emancipará Agamben para uma análise que inci-
de sobre as bases contratualistas da democracia ou do Estado de-
mocrático de direito.
Adiantando conclusões, é no cerne do direito, digamos as-
sim, que a violência descansaria num lugar seguro. Portanto, o
mesmo direito que garante o uso legítimo da violência àqueles
que estão circunstancialmente no poder é o direito que protege a
violência para seu uso legal e apropriado segundo o ordenamen-
to jurídico ao qual todos — à exceção do soberano — tem de se
submeter.
Em 1969, Hannah Arendt publica seu importante texto so-
bre a violência (On violence). Em seu capítulo II, sem delongas,
ela vai direto ao ponto nevrálgico que lhe interessa. E começan-
do de trás para diante: a violência não é a irmã siamesa do po-
der. Ao contrário, é possível dizer que onde há violência não há
poder.
Na extensa tradição da teoria política a mútua implicação de
violência e política é inconteste. Vejamos num trecho do Príncipe,
de Maquiavel, pensador florentino, pai da ciência política moderna,
num livro capital de sua obra, escrito em 1513, publicado postuma-
mente em 1532 e intitulado O príncipe. Cito:
Dessa maneira todos os profetas armados venceram enquanto os
desarmados fracassaram. Pois, além daquilo que já foi dito, a na-
tureza dos povos difere; é fácil convencê-los de algo, mas difícil
mantê-los nessa convicção. Assim, convém que, quando não mais
acreditarem, possam fazê-lo à força. (p. 58)
Maquiavel está se referindo aos príncipes que precisam cons-
tituir o seu principado como novos legisladores, após assumirem o
comando. São observações e conselhos que indicam como superar
obstáculos. E mais adiante no mesmo capítulo:
Superados os obstáculos, são adorados, e, uma vez, eliminados
aqueles que lhes invejavam as qualidades, fazem-se poderosos,
seguros, honrados, felizes. (p. 58)
Violência, democracia e linguagem 303

A base de Maquiavel é empírica fruto de seu trabalho e ob-


servação junto às cortes, e seu horizonte é a República Porém, para
ele, a República é impossível tanto de ser instaurada quanto pre-
servada sem o uso das leis e da força para que se façam cumprir.
Sem isso ela permaneceria a mercê dos tiranos ou dos insatisfeitos
e revoltosos.
No século seguinte uma obra e um autor fundam a filoso-
fia política e as bases teóricas do contratualismo: o , de Thomas
Hobbes. Cito apenas um trecho de Hobbes em sua obra capital
(o Leviatã) publicada mais de um século depois do Príncipe de
Maquiavel, em 1651:
A transferência mútua de direitos é o que se chama de contrato.
(p. 49)
e adiante:
Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente
sua parte, e uns confiam nos outros, na condição de simples na-
tureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra
todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto.
Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes,
com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não
é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia
de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das
palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a
cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de al-
gum poder coercitivo. O qual na condição de simples natureza,
onde os homens são todos iguais, e juízes do acerto de seus pró-
prios temores, é impossível ser suposto. (p. 50)
Mas é em sua conferência intitulada A política como vocação,
proferida em 1918 e publicada em 1919, que Max Weber(2011)
circunscreve e define toda uma tradição do pensamento poli-
tico moderno e o papel da violência política na constituição do
Estado.
Cito:
Sociologicamente o Estado não se deixa definir a não ser pelo es-
pecífico meio que lhe é peculiar, tal como é peculiar a todo agrupa-
mento politico, ou seja, o uso da coação física. (p. 56)
304 Paulo Endo

E em seguida:
Todo Estado se fundamenta na força’, disse Trotski em Brest-
Litovsk. Isso é realmente certo. Se não existissem instituições so-
ciais que conhecessem o uso da violência, então o conceito de
“Estado” seria eliminado, e surgiria uma situação que poderíamos
designar como “anarquia”, no sentido específico da palavra. É cla-
ro que a força não é, certamente, o meio normal nem o único, do
Estado — ninguém o afirma — mas um meio específico do Estado.
(p. 56 )
Hannah Arendt, incidindo crítica obre essa posição de Weber,
coloca em questão a definição de Estado e poder que teria como
seu corolário a violência, e que teria povoado a obra dos prin-
cipais pensadores políticos modernos, a partir da evidência de
que essa articulação supõe que a relação de poder seria constituí-
da pela ideia de dominação, de subalternização e, portanto, seria
em si mesma incapaz de sustentar a forma e a substância de uma
república.
Porém, como vimos, uma longa tradição do pensamento po-
lítico, ratifica a dominação, como um dos mais importantes atribu-
tos do Estado, dos governos e da preservação das leis e introduz, no
cerne mesmo da lei, o sentido da obediência a ela. Devemos, em
última e primeira instância, obedecermos a lei. A espada pública,
de Hobbes, é o último patamar do poder e a violência, a egrégia ga-
rantidora da obediência à essas mesmas leis.
Mas esse sentido das leis revela ao menos dois perigos: pri-
meiro o de que a obrigação à submissão às leis, confira, digamos,
por decreto uma submissão aos legisladores, aos operadores do di-
reito e assim por diante. O cidadão comum deve, por eles, ser sub-
metido porque submeter-se a eles significaria submeter-se à Lei.
Seriam todos beneficiários da violência aplicável pelo Estado a fim
de colher daí a obediência às leis, e o medo o sentimento necessário
que garantiria a ordem e a obediência.
O risco da violência iminente seria, portanto, o que garanti-
ria uma definição de sociedade pacificada pautadas pela contínua
ameaça e temor. O medo assumiria, implicitamente, um lugar egré-
gio para o bom convívio social e a violência o termo que executaria
Violência, democracia e linguagem 305

os dissidentes, os divergentes e os fora da lei. Aprendemos, conse-


quentemente que ‘quem não deve ( à lei), não teme.’
Para Hannah Arendt a definição de poder se diferencia e se
opõe à violência. Pois o poder só pode ocorrer, existir e se exercer,
enquanto tal, quando legítimo. A irmã siamesa do poder é a legiti-
midade e não a violência. Ou seja, o que confere o poder a alguém
é um conjunto de cidadãos em concerto, cidadão agindo politica-
mente, que dão ao poder e ao poderoso sua sustentação de autori-
dade. Quando esse conjunto, por algum motivo se desfaz, o poder
sucumbe, deixa de existir.
Nesse momento, precisamente, é que a violência entra em
cena a fim de preservar artificialmente, e por aparelhos, a sobrevida
de uma posição de poder que não encontra mais a sustentação na
legitimidade e se encontra à beira de seu colapso. A tirania, por-
tanto, seria o exemplo mais violento e a menos poderosa forma de
governo. O tirano seria uma espécie de esqueleto sustentado por
aparatos institucionais e dispositivos de segurança e violência, para
se manter sob o manto de um poder que já não existe mais.
Cito Hannah Arendt (1994):
A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma
emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e ins-
tantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder. (p. 42)
e ainda:
Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o
outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco,
mas deixada a seu próprio curso , ela conduz à desaparição do po-
der. Isto implica ser incorreto pensar que o oposto da violência é a
não violência; falar de um poder não violento é de fato redundante.
A violência pode destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de
criá-lo. (p. 44)
A inflexão conceitual que emerge daí torna radicalmente in-
conciliáveis, violência e poder e evidenciam que a paradoxal defi-
nição weberiana do estado poderoso e violento sustentaria uma
contradição de termos: um Estado no poder não pode ser, ao mes-
mo tempo, poderoso e violento, assim como não pode ser caracteri-
zado ao mesmo tempo como republicano e tirânico.
306 Paulo Endo

É possível que Giorgio Agamben,4 ao examinar as obras de


Benjamin e Arendt, tenha tanto aproximado quanto evidenciado
distinções e linhas de continuidade entre pensadores cujas obras,
vidas e amizade iluminará o sentido que as democracias sonolentas,
ainda sonham alcançar.

Referências

Agamben, G. (1995). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
______. Estado de exceção. Trad. de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
Arendt, H. (1968). Homens em tempos sombrios. Trad. de Denise Bottmann.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
______. (1954). Entre o passado e o future. Trad. de Mauro Barbosa de
Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1997.
_____. (1969). Sobre a violência. Trad. de André Duarte. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994.
______. (1993). O que é política. Trad. de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998
Bauman, Z. Modernidade e ambivalência. Trad. de Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

4. Estou ciente de que citações esparsas sobre Agamben frequentaram esse


artigo pois a menção a esse autor se tornou incontornável nesse caso. Por
diversos motivos não pude desenvolvê-las a contento nesse momento,
apenas as mencionei como ponto de fuga de um debate que se alonga
e prossegue, ao menos desde o texto de Walter Benjamin de 1921 e que
se desdobrará no início da empreitada Homo Sacer, iniciada em 1995.
Remeto o leitor então a dois artigos em que desenvolvo mais extensamen-
te essa reflexão sobre o texto de Benjamin intitulado Por uma crítica da
violência, tomado, por Agamben, como ponto de partida para sua extensa
reflexão sobre Homo Sacer e a vida nua. Ver:
Endo, P. A retorno do tirano como inscrição denegada da constituição da
frátria, 2013, p. 233-250.
Endo, P. Ruínas de palavras: vida nua, estado de exceção e testemunho
2012, p. 494-510.
Violência, democracia e linguagem 307

Benjamin, W. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. de Ernani Chaves e Suzana


Kampff. São Paulo: Editora 34, 2013.
Endo, P. A retorno do tirano como inscrição denegada da constituição da frá-
tria In: Fuks, B.; Basualdo, C.; Braunstein, N. (Orgs.). Cem anos de Totem e
Tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013. p. 233-250.
______. Ruínas de palavras: vida nua, estado de exceção e testemunho. In:
Leite, N.; Milan-Ramos, G. J.; Salzano, M. R. (Orgs.). De um discurso sem
palavras. Campinas: Mercado de Letras, 2012. p. 494-510.
Freud, S. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. Trad. de Renato Zwick.
Porto Alegre: L&PM, 2013
Hobbes, T. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Beatriz da Silva. Versão
on line disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_
thomas_hobbes_leviatan.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
Maquiavel, N. O Príncipe. Versão on line disponível em: <http://www.domi-
niopublico.gov.br/download/texto/cv000052.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
Weber, M. (1919). A política como vocação. In: Weber, M. Ciência e políti-
ca: duas vocações. Trad. de Leonidas Hagenberg e Antony da Mota. São Paulo:
Pensamento-Cultrix, 2011. p. 53-124.
“Cultura da paz”

Daniel Coelho

Com o título “cultura da paz”, tenho em mente meu incômo-


do com a forma como a grande mídia tratou as manifestações que
marcaram o Brasil de 2013 a 2015. Como se sabe, o processo le-
vou a uma polarização política na qual a imprensa não conseguiu
manter nenhuma imparcialidade. Para um lado, se dizia, generi-
camente, que “a manifestação era contra o aumento da passagem
de ônibus. A manifestação começou pacificamente, mas vândalos
mascarados se infiltraram e depredaram bancos e lojas. O batalhão
de choque teve que intervir com bombas de efeito moral e balas de
borracha para a manutenção da ordem. Houve enfrentamento entre
a polícia e os manifestantes”. Depois, uma pequena lição sobre o ca-
ráter obrigatoriamente pacífico da manifestação democrática. Esse
roteiro genérico durou até o episódio da morte de um cinegrafista
de TV. A partir daí, ouviram-se pedidos de perseguição policial aos
articuladores do movimento, em nome das práticas pacíficas que
devem imperar no estado de direito.
Poucas vezes se comentava sobre o objeto da manifestação —
que é, de fato, um assunto espinhoso, pois os centavos a mais na
passagem de ônibus, que serviram de estopim para os protestos,
tornaram-se apenas o significante-mestre para um enxame de in-
satisfações, dentre as quais devemos destacar, nesta introdução, a
310 Daniel Coelho

forte presença de bandeiras dos direitos civis, como o direito à ma-


nifestação e o rechaço à violência policial.
Para o outro lado, dizia-se que “a manifestação era contra o
PT e a corrupção. Muitos pediam o retorno do regime militar, mas
a manifestação seguiu pacífica até o fim. Manifestantes tiraram até
selfies com o batalhão de choque”. Depois, uma pequena e envergo-
nhada lição alertando que o pedido de retorno da ditadura militar
era proibido pela constituição.
É com este contraste na mão que gostaria de estabelecer o
problema a tratar neste trabalho. Não se trata de um problema con-
ceitual, embora os conceitos estejam em jogo. É um problema ético;
moral; prático. O que é preferível? Uma manifestação violenta por
direitos civis ou uma manifestação pacífica pela ditadura militar?
Entendo que tanto o contraste inicial, sobre o qual montei mi-
nha questão, assim como a montagem da questão em si (trata-se de
uma questão retórica) deixam claro meu posicionamento político.
É preciso ressaltá-lo, pois indico, com isso, as motivações e os inte-
resses que impulsionam meu raciocínio, assim como seus limites e
comprometimentos.

Cultura de paz

“Cultura de paz” remete ainda a campanhas da ONU e da


UNESCO. O termo surge durante o “Congresso internacional para
a paz na mente dos homens”, realizado na Costa do Marfim em
1989, nas vésperas da queda do muro de Berlim. Em 1994, é reali-
zado o primeiro “Fórum Internacional sobre a cultura de paz”, em
El Salvador, e, em 1995, os Estados-Membros da UNESCO afirmam
que devem canalizar todos os seus esforços na direção de uma cul-
tura de paz — o que se coloca, aliás, como objetivo primeiro da
UNESCO e da ONU. A Cultura de Paz está intrinsecamente relacio-
nada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. Procura
resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da me-
diação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis. Em 1997,
o ano 2000 é proclamado pela ONU como Ano Internacional da
“Cultura da Paz” 311

Cultura de Paz. A década de 2001 a 2010 é, em seu passo, procla-


mada Década por uma cultura de paz e não violência para as crian-
ças do mundo.1
No Ano Internacional da Cultura de Paz, tramavam-se simul-
taneamente os ataques de 11 de setembro e a Doutrina Bush, que
colocava em prática o conceito de “ataque preventivo”. Em 2001, re-
aliza-se o 11 de setembro; Bush acredita que o Iraque, com quem
seu pai tinha guerreado, está por trás do evento; o departamento
de defesa dos Estados Unidos fornece as provas (falsas) de que o
Iraque tem armas de destruição em massa, o que autoriza o ataque
preventivo, mesmo que não se tenham provas da sua influência, no
11 de setembro. A guerra finda, por ironia, junto com a Década por
uma cultura de paz e não violência para as crianças do mundo.
Na década que se segue, a nossa, o vazio de poder deixado
no Iraque abre o espaço para o surgimento do Estado Islâmico. A
década por uma cultura de paz e não violência para as crianças no
mundo é também o início de décadas de terror globalizado.
Gostaria de ressaltar um aspecto da noção de paz que a
UNESCO adota. Não se trata simplesmente da ausência de guerra,
tampouco da paz do pós-guerra, aquela marcada pelo acordo ou
pelo extermínio. Trata-se de uma “paz justa”. A paz, se justa, seria
perene, pois acabaria com as próprias causas da guerra, como a
fome e a injustiça. Seria uma paz construída não na trincheira da
batalha, mas “na mente dos homens”. A paz projetada aqui não é
então a ausência de guerra, mas a ausência de motivos pelos quais
se faz a guerra, e portanto, a ausência da própria possibilidade de
guerra, uma vez que se teriam construído o ambiente e os meios
necessários para que disputas fossem resolvidas pelo diálogo e pela
negociação.2
Dessa forma, a noção de paz da UNESCO aproxima-se da de-
finição de saúde utilizada pela OMS, tão criticada nos meios psica-
nalíticos: não é a ausência de doenças, mas um estado de completo
bem-estar físico, mental e social. Coisa inalcançável, mas posta com

1. http://www.comitepaz.org.br/a_unesco_e_a_c.htm
2. Fonte: http://www.comitepaz.org.br/a_unesco_e_a_c.htm
312 Daniel Coelho

tal força que reduz todos os aspectos da vida a questões de saúde


e de doença, tentando reduzir a zero qualquer fonte de mal-estar,
apresentando um remédio para cada dor, e, muitas vezes, apresen-
tando uma nova dor, curável por um novo remédio. A crítica maior
que posso fazer aqui, no entanto, não é o seu aspecto ideal e inal-
cançável, sequer suas ligações com um mercado mais interessado
em lucro que em saúde. A questão é se isso é mesmo desejável. Um
estado de tal plenitude, não recai no dito espirituoso de Goethe,
que Freud cita em Mal-estar na cultura (1930/2010)? E se nada for
mais difícil de suportar que uma sucessão de dias bonitos? E se
nada for mais difícil de suportar que um estado de completo bem
-estar? E se nada for mais difícil de suportar que a paz perpétua?

“À paz perpétua”

“À paz perpétua” é o título de um texto, escrito por Immanuel


Kant em 1795, que dá as linhas gerais para a criação das organiza-
ções internacionais contemporâneas. Os três “artigos definitivos”
para a paz perpétua envolveriam, segundo a proposta kantiana: 1)
estados formados por constituições civis republicanas, com separa-
ção entre os poderes executivo e legislativo; 2) direito internacional
fundado num federalismo de Estados livres, com a preservação e
a afirmação de suas soberanias e de seus poderes; 3) direito cos-
mopolita limitado às condições da hospitalidade universal, ou seja,
que garanta ao estrangeiro o direito de não ser tratado hostilmen-
te (Kant, 1795). Tais princípios podem ser facilmente reconhecidos
como fundamentais nas relações internacionais ainda hoje.
Com eles, Kant prevê a criação de ligas de nações que, sem
abrir mão de suas soberanias, reconhecem que a razão condena a
guerra e torna a busca da paz um dever. Seria tal reconhecimen-
to que tornariam essas ligas diferentes de meros tratados de paz.
Tratados são armistícios que suspendem a guerra, mas não perpe-
tuam a paz. Seria apenas a racionalidade, e a moralidade que ela
desperta, que poderia unir as nações em torno da paz. A razão seria
o único poder legislativo supremo.
“Cultura da Paz” 313

A paz perpétua, porém, não é um estado que Kant acredite ser


alcançável. Trata-se antes de um dever, que se impõe não porque a
racionalidade me torna um ser bom, mas porque leva ao reconhe-
cimento da minha própria maldade, e daí, então, a uma resistência
a ela, equilibrando-a com o sentimento de dever ligado à paz. Nada
mais distante, na verdade, do que a insuportável sucessão de dias
bonitos de Goethe e Freud. Antes, trata-se, para Kant, “de olhar
bem nos olhos o príncipe mau em nós mesmos” (Kant, 1795, p. 73).
Uma batalha dentro das mentes dos homens, sem dúvida. Mas uma
batalha perdida, ao desviar o olhar corajoso dirigido à maldade, na
direção mais confortável da suposta ingenuidade das crianças.
O “príncipe mau em nós mesmos” só pode, dessa maneira,
aparecer no outro, como uma ameaça vinda de fora. Nele, podemos
projetar todos os nossos desejos egoístas e odiosos, ao mesmo tem-
po em que justificamos nossos atos mais violentos como proteção
ou retaliação a uma maldade sempre alheia. A única paz perpé-
tua alcançada assim, segundo Kant, é aquela da morte, da “grande
cova” que “recobre as atrocidades do emprego da força”.

Ética e ambivalência

Freud foi testemunha da grande cova que recobriu as atro-


cidades do emprego da força na primeira guerra mundial. Em
“Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (1915), ele reto-
ma um pequeno tópico que havia trabalhado anteriormente, em
“Totem e tabu” (1912-1913), sobre a atitude dos homens diante da
morte de seu inimigo.
Nos povos ditos primitivos, o assassinato era cometido com
prazer, mas era também necessário observar uma série de prescri-
ções e cerimônias que serviam, por um lado, para purificar o as-
sassino e, por outro, para apaziguar o espírito do inimigo morto
e reconciliar-se com ele (Freud, 1912-1913). Isso demonstra, para
Freud, que a relação com o inimigo não era feita apenas de ódio e
desejo assassino, mas assentava-se na ambivalência de sentimentos.
O inimigo era odiado, ao mesmo tempo em que era admirado. Sua
314 Daniel Coelho

morte satisfazia o ódio, mas era preciso dar destino também à cor-
rente afetiva amistosa, o que frequentemente se fazia mediante tais
ritos. Essa ambivalência de sentimentos quanto ao morto seria o de
ponto de partida para a especulação filosófica e para a ética. O sen-
timento de culpa nos colocaria, talvez, cara a cara com “o príncipe
mau em nós mesmos”. Freud lamenta, no texto, que seus contem-
porâneos tenham perdido a sensibilidade ética dos antigos: aos que
retornavam das trincheiras da primeira grande guerra, nenhum tra-
tamento diferente era dado. Nenhum tabu era erigido quanto a eles,
nenhuma purificação lhes era oferecida. Nenhuma reflexão quanto
a seus atos lhes era exigida.
Nosso fascínio e nosso horror diante do mito que Freud nos
apresenta em “Totem e tabu” (1912-1913) frequentemente esquece
que a pesquisa antropológica apresentada por Freud vem na estei-
ra dos seus dados clínicos, como uma tentativa de esclarecimento
deles. São tais dados que apontam, primeiramente, para a ambiva-
lência dos sentimentos e seu tratamento pela formação do totem
e do tabu — pelo “retorno” do totemismo na infância. Por trás da
fascinante cena original da humanidade, temos as banais cenas ori-
ginais da infância de cada um, nas quais, tentamos efetivamente ma-
tar, ainda que nossa agressão tenha sido marcada pela impotência
dos corpos infantis. Dessa forma, o mito é a elaboração teórica do
material clínico. O fim apoteótico do texto, novamente com uma
citação de Goethe — “no princípio foi o Ato” (Freud, 1912-1913,
p. 244) — deve recuperar essa dimensão específica, ou seja, não o
princípio do mundo, ou o princípio da humanidade, mas o princí-
pio de uma pessoa. Pode-se discutir muito sobre o Ato da Origem
da Humanidade, mas não parece que haja muita discussão sobre os
atos do início da vida de cada um.

Gewalt

Freud volta diversas vezes à questão dessa cena original.


Tomemos uma dessas ocasiões, justamente no quadro da Liga das
Nações, antecessora da ONU. A entidade estimulava a troca de car-
tas entre intelectuais que quisessem discutir assuntos de interesse
da Liga. Procuram Einstein, ele indica Freud como interlocutor,
“Cultura da Paz” 315

que aceita o convite. Einstein escreve a Freud retomando a per-


gunta de Kant, sobre os caminhos para a construção da ansiada
paz perpétua. Imagina que Freud pode propor meios educacionais
que nos tornassem “à prova das psicoses do ódio e da agressivida-
de” (Freud, 1933, p. 243). Einstein propõe um modelo ainda mais
forte que o kantiano para as organizações internacionais, no qual
as nações cederiam efetivamente uma parte de sua soberania, e que
poderia funcionar como organismo de arbitragem dos conflitos in-
ternacionais. Ou seja, o direito internacional, para Einstein, só seria
possível na medida em que as nações abrissem mão de seu poder.
A resposta de Freud baseia-se num deslocamento léxico, que
substitui o termo “poder” (no original alemão, Macht) por “vio-
lência” (no original alemão, Gewalt, que pode significar tanto “po-
der” como “violência” — para uma análise mais detalhada, conferir
Coelho, 2015). A partir desse deslocamento, Freud apresenta qua-
se que outra versão de seu raciocínio em “Totem e tabu” (Freud,
1912-1913). Um início, “numa pequena horda humana”, em que
conflitos eram resolvidos pela força muscular, logo substituída pelo
uso de instrumentos e do intelecto, inicialmente com o objetivo de
desmantelar a força do inimigo — primeiramente, matá-lo, e poste-
riormente, frente à reflexão de que o inimigo poderia ser mais útil
se mantido vivo e amedrontado, apenas subjugá-lo (Freud, 1933).
O caminho da violência ao direito se iniciaria na união das
forças de vários fracos, que assim poderiam enfrentar a violência à
qual estavam submetidos e substituí-la pelo direito. O direito, para
Freud, é a expressão do poder de uma comunidade. É ainda uma
violência, mas uma violência imposta pela comunidade ao indiví-
duo, e não, como anteriormente, por um indivíduo poderoso à sua
comunidade. A comunidade então ganha força. Sua força — sua
violência, Gewalt — é tão mais forte quanto forem os laços afetivos
— as identificações — que unem os seus membros.
No princípio, portanto, foi Gewalt, e o que produz o direi-
to é a formação, por identificação, de uma Gewalt coletiva. Freud
acrescenta que tal início não deve ter acontecido uma, mas várias
vezes, até que a comunidade pudesse suplantar o poder dos indi-
víduos fortes e se manter por tempo o suficiente para estabilizar
um código de direito. Ele conclui que não há chances de eliminar
316 Daniel Coelho

as tendências agressivas do homem — não há chances de livrá-lo


das pulsões. Se a guerra é uma expressão de tais tendências, a pró-
pria paz — a instituição do direito — também o é. Isso não impe-
de Freud de declarar-se um pacifista, para quem a guerra desperta
uma intolerância constitucional, que o leva à revolta e à indignação.
Trata-se de um pacifismo não racional, mas ético e estético.
Em 1939, Einstein — que reconhecia, na carta a Freud, que
o progresso científico tinha elevado o problema da guerra a uma
questão de vida ou de morte da civilização como um todo — en-
via ao presidente americano Franklin Delano Roosevelt uma carta
avisando que físicos europeus haviam conseguido produzir uma
reação nuclear em cadeia com urânio e que o fenômeno poderia le-
var à produção de novas bombas. Aconselha o presidente a garantir
aos Estados Unidos um fornecimento seguro da matéria prima e a
acelerar os trabalhos experimentais,3 pois os alemães já haviam ini-
ciado seus esforços. No mesmo ano, começa o Projeto Manhattan;
em julho de 1945, testa-se a primeira bomba no Novo México; no
mês seguinte, Little boy e Fat man são jogadas sobre Hiroshima e
Nagasaki. E a paz se fez.

Honrar a violência

Gewalt é também o termo que Walter Benjamin (1921) prefe-


riu, exatamente por sua ambiguidade, para falar das relações entre
poder e violência. Para ele, o Estado precisa reprimir toda e qual-
quer Gewalt que não a sua própria, pois reconhece que seu próprio
direito é, na origem, uma violência que se tornou poder. Ou seja, a
origem do estado é Gewalt, sustentada pela eliminação de qualquer
outro ato de Gewalt, pois ele poderia, também, vir a se tornar direi-
to, poderia ter força de tomada de poder. Trata-se de um raciocínio
bem próximo ao de Freud.

3. https://pt.wikisource.org/wiki/Carta_de_Albert_Einstein_para_Franklin_
Delano_Roosevelt
“Cultura da Paz” 317

Falando de seu tempo e de seus problemas, Benjamin nos pre-


senteia com duas análises que cabem como luva no nosso contexto.
Ele fala sobre a polícia e sobre o parlamento.
Sobre a polícia, ele a localiza nos limites do próprio Estado. A
polícia intervém quando o Estado não pode mais garantir seu orde-
namento. É um poder amorfo, cuja violência não tem figura; é uma
deformação da própria Gewalt. Os batalhões de choque utilizados
para acompanhar e dispersar as nossas manifestações nos parecem
estar descritos aí. Poder e violência virados para a população, para
contê-la, dispersá-la, quebrar seus ânimos. Com a desculpa institu-
cional de que havia vândalos violentos em meio aos manifestantes
pacíficos, reprimiu-se o próprio poder da população.
Sobre o parlamento, Benjamin acusa seus membros de terem
perdido o “senso para a violência instauradora do direito” (1921, p.
137), na medida em que se esqueceram das forças que estão na sua
origem e a qual devem sua posição. Praticam o compromisso como
forma de resolver conflitos, mas o próprio compromisso é coerciti-
vo, pois não funciona sem a previsão da punição para aquele que o
quebra. A violência — pelo menos sua mentalidade — fica à som-
bra da sua máscara de cordialidade, guardada para o momento em
que os compromissos sejam quebrados. Ademais, as partes que as-
sumem um compromisso dessa ordem nunca estão em pé de igual-
dade. Ele envolve múltiplas partes, com múltiplos atravessamentos
de forças e jogos de poder entre eles. Assim, a coerção violenta não
é apenas reservada para o momento de quebra do acordo. Essa
coerção é realmente expressa no próprio acordo, determina suas li-
nhas constituidoras.
A situação do nosso parlamento é bem próxima. Lembremos
a insistência no tema da governabilidade, conquistada obrigato-
riamente pela prática do acordo (frequentemente reduzida à pura
negociata). O resultado mais frequente é que, se o país não é go-
vernável sem o acordo, tampouco o é com ele. A história do im-
peachment de Dilma Rousseff é a história de um “grande acordo
nacional”, segundo as palavras que ficaram célebres. Mas é também
a história do afastamento do Partido dos Trabalhados de suas ba-
ses e dos valores historicamente afirmados por tais bases. Ou seja, o
partido afastou-se de sua Gewalt originária.
318 Daniel Coelho

Voltando ao texto de Benjamin, gostaria de sublinhar uma ideia


expressa ali que me parece extremamente potente como reflexão éti-
ca. Quando acusa seus parlamentares de haverem se esquecido das
forças que os levaram àquele lugar, de haverem perdido o senso para
a violência instauradora do direito, conclui dizendo que esse esqueci-
mento explica por que tais parlamentares não conseguem tomar “de-
cisões que sejam dignas dessa violência” (1921, p. 137).
Poderíamos articular essa dignidade que Benjamin cobra de
seus parlamentares com a problemática da culpa em Freud? Há, na
culpa, alguma produção de dignidade quanto à violência de nossos
atos?
Quando falo da culpa em Freud, não me refiro à culpa neu-
rótica — uma culpa não por ato, mas por desejo, e com uma pro-
dução de gozo forte o suficiente para sustentar uma repetição que
expia a culpa momentaneamente, apenas para vê-la retornar com
mais força depois. Na culpa neurótica, não se produz nenhuma dig-
nidade e, de fato, ela está lá para manter bem longe das vistas qual-
quer Ato (ou desejo) original. O neurótico não sabe por que sente
culpa e, dessa forma, não pode produzir nenhuma reflexão sobre
seu ato (ou desejo).
Porém, quando se refere aos “primitivos” e a seus sentimentos
de ambivalência frente ao morto, ao mesmo tempo amigo e inimigo,
Freud analisa o ato muito palpável do assassinato e do prazer efetiva-
mente sentido em sua execução. Quando diz que “no princípio foi o
Ato”, sua operação é praticamente a mesma de Benjamin: lembrar as
origens violentas das instituições culturais, o que deve implicar a re-
tomada do pensamento ético a partir dessa origem, dessa cena do as-
sassinato de um amigo/inimigo. Trata-se de produzir dignidade para
esse assassinato — quase como na fórmula lacaniana da sublimação
(elevar um objeto à dignidade de coisa —Lacan, 1959-1960).
Por outro lado, há uma articulação clara da mesma culpa com
o príncipe mau kantiano. O atributo da maldade é algo que pode-
ria atrapalhar nossa articulação, dado que a clínica psicanalítica ba-
seia-se, em parte, na suspensão, por parte do analista, dos quadros
de valores, e que tal suspensão é mantida quando passamos ao ter-
reno da metapsicologia. Pulsões, instâncias psíquicas, mecanismos
de defesa etc., não podem ter atributos de bons ou maus.
“Cultura da Paz” 319

Ao mesmo tempo, tais atributos são o que regem a formação


e o funcionamento do eu — muito basicamente, incorporar o que
é bom e afastar o que é mau. Assim, os atributos “bom” e “mau”,
dados a partir do eu, determinam a divisão do material psíqui-
co, o material “bom” tendo livre acesso à consciência, o material
“mau” permanecendo sob o efeito do recalque. Dessa forma, olhar
nos olhos o príncipe mau em nós mesmos pode ser uma fórmula
aproximada do efeito esperado pelo analista com sua interpretação:
apontar o inconsciente, apresentar o recalcado, esperando por uma
elaboração. Essa elaboração sempre implica um reordenamento do
eu, intrinsecamente articulado com um reordenamento da divisão
dos objetos entre bons e maus. Ou seja, trata-se de um reordena-
mento eminentemente ético (certamente, também, estético). De
toda forma, em psicanálise, deve-se dizer que olhar para o príncipe
mau implica (ou deveria implicar) sua redefinição.
Finalmente, podemos dizer que os três alemães estão de acor-
do na ideia de que o pensamento ético não pode dispensar um re-
torno à origem violenta das instituições — dentre elas, o próprio
eu. É sempre na lembrança do Ato que se reabre a possibilidade de
uma reflexão sobre ele, como uma possibilidade de honrá-lo.
Mas não vivemos na Alemanha de Kant, Benjamin e Freud,
e não podemos simplesmente tomar seus pensamentos para uma
aplicação no caso brasileiro. Kant refere-se a um quadro de confli-
tos internacionais muito propriamente europeu, muito afastado do
brasileiro. Nossos conflitos mais frequentes são internos e contam
com fortes fatores sociais. Benjamin e Freud referem-se a revolu-
ções que tampouco são comuns à história brasileira. Benjamin es-
creve no quadro da tentativa de implementação de uma república
socialista na Alemanha. Freud, por sua vez, pode ter seu mito do
assassinato do pai despótico facilmente articulado com as revolu-
ções liberais, como a francesa (Birman, 2012). Mas a revolução à
brasileira tem, mais frequentemente, caráter conservador: a inde-
pendência da colônia proclamada pelo príncipe herdeiro da me-
trópole, antes que um aventureiro o fizesse; a república, por um
monarquista animado por conservadores que viam na Princesa
Isabel um perigo liberal (Shwartz e Starling, 2015).
320 Daniel Coelho

Mesmo a violência instauradora mais evidente — a chegada


do português ao território, a nomeação e estabilização gradual das
fronteiras — nos é apresentada como coisa anódina: é ao “desco-
brimento” que ainda nos referimos, como se a terra fosse uma
virgem da qual se puxasse os lençóis na noite de núpcias. Apenas
muito recentemente, nos anos 1990, vimos surgir uma arqueologia
brasileira que revela traços de 15.000 anos de ocupação humana do
território (Lopes, 2017), jamais contados na historiografia oficial.
Podemos nos aproximar da fórmula de Gayatri Spyvak (2014), para
quem o subalterno é aquele que não pode falar: no caso brasileiro,
nossa subalternidade está também ligada ao fato de que não pode-
mos, ainda, contar nossa própria história para aquém da chegada
do colonizador europeu, de quem descende, mas especialmente
com quem se identifica boa parte da população.
Os movimentos de 2013 não tiveram o perfil socioeconômi-
co do subalterno. Foram movimentos nos quais a classe média — a
nova classe média recentemente formada no país — foi essencial.
Suas questões principais, como o aumento dos transportes urbanos
e a cobrança por melhores serviços são cobranças de uma classe
média urbana, desenvolvida e politizada, que podia falar. Assim,
não era o subalterno que falava, mas aquele que conseguia resistir a
sê-lo, ou ainda, aquele que havia conseguido não mais sê-lo.
É curioso que os dois principais movimentos conservado-
res que brotaram no país nos últimos tempos tenham seus nomes
francamente roubados dos protestos de 2013. O “Movimento Brasil
Livre” (MBL) é claramente uma corruptela de “Movimento Passe
Livre” (MPL), que organizava protestos contra os aumentos de pas-
sagem em São Paulo. O “Vem pra rua” toma sem pudor o canto
mais emblemático das passeatas. Roubar a palavra do outro é uma
forma de fazê-lo se calar, ou seja, fazê-lo voltar à sua posição de
subalternidade.

Medo e desamparo: afetos políticos

Vladimir Safatle (2016) nos lembra das relações que exis-


tem entre o pensamento de Freud, nas especulações a respeito da
“Cultura da Paz” 321

origem da cultura, e o pensamento de Hobbes. Ambos concordam


na famosa metáfora Homo homini lupus, ou seja, que a “natureza
humana” é violenta, e não colaborativa. Em ambos, a condição de
estar na cultura é a renúncia a uma parcela da sua própria violên-
cia, em detrimento do poder do Estado. Safatle, no entanto, marca
uma diferença fundamental entre as “fantasias sociais” hobbesiana
e freudiana. Em Hobbes, a guerra de todos contra todos nos inspira
medo, e é em torno desse afeto político central que se constitui a
figura do Estado. Para Hobbes, o medo é o responsável pela aquies-
cência do indivíduo à lei e, portanto, pela possibilidade de vida em
sociedade. O medo, no fim das contas, abre a possibilidade de viver
com o outro.
Em Freud, no entanto, encontraríamos o desamparo, antes
que o medo, como afeto apontado como negativo do social, que
produz essa abertura ao outro. Safatle aponta que o desamparo re-
fere-se a uma cena de desabamento, na qual me encontro em de-
pendência quanto ao outro, sem saber como ele responderá. Tenta
localizar aí o fundamento do ato político e da própria formação de
um sujeito político (pela internalização desse desabamento). Se, em
Hobbes, o medo inspira uma política baseada na força pacificadora
do Estado, em Freud, o sentimento em comum do desamparo po-
deria levar a uma política emancipatória.
Retornando ao nosso ponto inicial, as coberturas de imprensa
dos protestos que agitaram o país não sofreram apenas de enviesa-
mento político. Houve uma verdadeira administração do medo da
população, localizando os inimigos, insuflando o ódio contra eles
como medida protetiva ao ódio que demonstravam. Conseguiram
com isso despertar um nacionalismo de copa do mundo em uma
parcela da classe média, a ponto de ela, novamente, voltar às ruas
de modo pacífico e ordeiro, clamando pelo regime militar. Com
os inimigos identificados, as identidades se fecharam — coxinhas
e petralhas —, e a angústia meio festiva de um gigante que acor-
dava sem saber se levantar pode ter se perdido no meio do cami-
nho. Espero, quanto a isso, estar errado — e que possamos um dia
honrar o desamparo sentido quando percebermos que estão a jogar
com nossos medos e ódios.
322 Daniel Coelho

Referências

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linguagem. São Paulo: Ed. 34, 2013. p. 121-156.
Birman, J. Modernismo e psicanálise: a problemática da influência na crítica
freudiana do dispositivo da hipnose e na constituição do dispositivo da trans-
ferência. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 46, n. 2, p. 46-64, 2012.
Coelho, D. (2015) Violência e ilusão na obra de Freud. In: Coelho, D.;
Cunha, E. L. Saber e violência. São Cristóvão: Editora UFS, 2015. p. 93-112.
Freud, S. (1912-1913). Totem e tabu. In: Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012. Vol. 11, p. 13-244.
______. (1915) Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: Obras
Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Vol. 12, p. 209-246.
______. (1930) O mal-estar na civilização. In: Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. Vol.18, p. 13-123.
______. (1933a) Por que a guerra? In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Vol.
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______. (1933b) Por que a guerra? In: Obras Completas. São Paulo: Companhia
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Kant, I. (1795). À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989.
Lacan, J. (1959-60) O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1988.
Lopes, R. J. 1499: o Brasil antes de Cabral. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.
Safatle, V. O circuito dos afetos. Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.
Shwarcz, L. M.; Starling, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
Spyvak, G. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
A hipótese de um vínculo de
libertação no contexto do “poder
exacerbado” no Brasil

Pablo Castanho

Como tantos brasileiros, experimento na pele, desde longa


data, um sentimento de que minha intimidade, quem sou, penso,
meus desejos e medos estão inexoravelmente marcados pelo fato
de ter nascido em um país de uma economia periférica, ex-colô-
nia europeia. Mas foi só por volta de 2009 que comecei e encarar
essa questão como objeto de estudo, ainda que de modo esporádico
e pouco organizado. Em 2014, formalizei um projeto de pesquisa
nessa linha, interessando-me pela presença destas heranças históri-
cas na intimidade das pessoas e dos vínculos. Foi ainda um pouco
depois disso que tomei Paulo Freire como interlocutor e comecei a
me preocupar em recortar a temática das ressonâncias psíquica da-
quilo que o autor denomina de “poder exacerbado”, como marca da
sociedade brasileira.
Apesar de tê-lo feito, não sou um educador freiriano. Não sou,
sou um grupalista referenciado na psicanálise que me sinto inter-
pelado e acompanhado por Paulo Freire em diferentes aspectos de
minha prática e minhas pesquisas, em especial, no meu percurso
com populações marginalizadas. Daí que ele possa nos acompanhar
neste texto, em diálogo com a psicanálise, através da referência a al-
guns grupos operativos e intervenções institucionais. A perspecti-
va de um diálogo entre o pensamento de Freire e a psicanálise não
324 Pablo Castanho

é vista como trivial no nosso meio hoje. Neste ponto, vale subli-
nhar que a psicanálise não era estranha a Paulo Freire, sendo Erich
Fromm, para ele, um autor de referência ao pensar as questões da
opressão. Nesta linha, notemos que o psicanalista alemão teria dito
sobre o trabalho de Paulo Freire que “uma prática educativa assim é
uma espécie de psicanálise histórico-sociocultural e política” (apud
Freire, 2015, p. 77). Depois do trabalho de Piera Aulagnier (1984)
sobre a historicidade e da crescente importância que vem sendo
dada à intersubjetividade na psicanálise contemporânea, tais quali-
ficativos atribuídos à psicanálise geram muito menos surpresa hoje
e podem até soar redundantes para alguns ouvidos mais seletos. O
que não dizer então da relação do autor pernambucano com o lega-
do do criador dos grupos operativos Enrique Pichon-Rivière? Nas
palestras e diálogos com Paulo Freire em 1993 na Primera Escuela
Privada de Psicologia Social, em Buenos Aires, instituição fundada
por Pichon-Rivière (registrados em Freire; Quiroga, 1995), eviden-
ciam-se interesses e sensibilidades comuns entre os autores. Ainda
assim, é lícito dizer que leituras ou apropriações psicanalíticas das
proposições freirianas permanecem raríssimas.1
Mesmo neste texto, tateia-se um campo extremamente hete-
rogêneo altercando-se os olhares teóricos sobre as questões que
a prática suscita. A discussão sobre o “poder exacerbado” inicia a
nossa reflexão, impondo um diálogo preliminar com Jessé Souza e
Martin-Baró. Na sequência, o artigo se debruça sobre algumas vi-
nhetas da vida profissional, interrogando os modos como o “poder
exacerbado” marca a vida de crianças e adolescentes vulneráveis,
especialmente no que concerne a sua educação e criação. A circu-
laridade entre oprimido e opressor, a oscilação e complementarida-
de entre autoritarismo e licenciosidade e a raiva justa são temas que
se impõe e interrogam as teorias psicanalíticas de grupo. A conclu-
são almeja um passo rumo a uma articulação entre Paulo Freire e
a Psicanálise, ao retomar discussões sobre as alianças inconscientes
(Kaës, 2009) e a hipótese de um vínculo de libertação (Castanho,

1. Uma exceção é o texto de Barreto, V. H. L. Freud e Freire: uma interlocu-


ção possível. Estudos de Psicanálise, n. 43, p. 161-168, 2015.
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 325

2016 e Castanho e Gaillard, 2017), mas mesmo aqui, muitas são as


questões teóricas que deverão ser esmiuçadas em seu tempo.
A noção de “poder exacerbado” como questão brasileira
fundamental
O termo “poder exacerbado” surge já no primeiro livro de
Paulo Freire, Educação para a prática da liberdade, publicado em
1967 e oriundo de sua tese de doutorado. Nele, Paulo Freire aderia
ao movimento, há muito prevalecente na intelectualidade brasileira,
de explicar o Brasil atual pela nossa história de colonização. Neste
texto, Paulo Freire aponta como a principal característica de nosso
país a “falta de uma experiência democrática”, evidentemente falan-
do de algo muito mais complexo do que simplesmente a adoção do
sistema republicano. De fato, Paulo Freire vê no modelo de coloni-
zação do Brasil a origem do “poder exacerbado” como traço prin-
cipal de nosso país até os dias atuais. Como marca subjetiva deste
sistema, os oprimidos se tornam e se experimentam como meros
objetos, perdendo do seu horizonte sua “vocação ontológica de
ser-mais”.
Paulo Freire faz referência à herança do “poder exacerbado”,
fundadora do Brasil, em boa parte deste seu primeiro livro e dos
posteriores. Sua pedagogia da libertação é também a libertação
frente a esse poder exagerado. Libertação que o autor caracteriza
claramente, na esteira de Franz Fanon (19521) e Albert Memmi
(1957), como um processo que possui uma dimensão psíquica, pois
considera que o oprimido interioriza o opressor e vice-versa, e nos
dá pistas para pensar o processo em termos vinculares.
Em livro publicado no final de setembro de 2017, o sociólogo
Jessé Souza apresenta uma tese que vemos convergente à da centra-
lidade e pregnância do poder exacerbado e seus efeitos desumani-
zantes sobre quem ele recai. Entretanto, a tese proposta por Souza,
distingue-se ao aprofundar a reflexão sobre a forma pela qual esse
legado se perpetua. Jessé Souza denomina “escravidão” o grande
problema brasileiro, ainda atual. Ora, em artigos anteriores, em
2016 e com Gaillard em 2017, foi justamente na escravidão negra
que encontramos a imagem paradigmática (e didática) do “poder
exacerbado” freiriano. Pois para Souza, a escravidão foi o compo-
nente central do projeto de colonização do Brasil desde 1532, muito
326 Pablo Castanho

anterior à escravidão de negros africanos, portanto. Não bastasse os


mais de 5 milhões de escravos africanos trazidos ao Brasil, e o fato
de termos sido o último país no mundo a abolir a escravidão, em
1822, devemos reconhecer a escravidão indígena e mais ainda , os
traços de onipotência política conferida aos primeiros grandes se-
nhores de terra sobre os demais seres humanos destas paragens. No
nascedouro mesmo do país, tanto Jessé Souza quanto Paulo Freire,
lembram e sublinham o enorme poderio destes senhores de terra
que, possuindo milícias próprias e submetendo o poder religioso ao
seu, agiam muito distantes dos controles institucionais e culturais
presentes na metrópole. Souza destaca ainda a importância dos fi-
lhos fora do casamento e agregados da Casa Grande na organização
econômica, social e política do período colonial. Tais atores realiza-
riam grandes esforços em busca de seu reconhecimento e inserção
na linhagem paterna, trazendo ainda para a organização econômica
e política da Casa Grande, aspectos importantes de uma lealdade
parental e filial. Por outro lado, sabemos como tais filhos fora do
casamento muitas vezes eram oriundos de relações forçadas com
escravas negras e indígenas. Jessé, seguindo Gilberto Freire, subli-
nha aqui a herança de uma perspectiva de escravidão sexual, de
inspiração muçulmana e moura entre os colonizadores portugueses
atuante deste o primórdio de nosso país. Assim, a sexualidade ca-
minha juntamente com as práticas de “poder exacerbado” em nos-
sas relações, sugerindo a face íntima da violência entre nós.
É essa tradição de um “poder exacerbado” que Paulo Freire
vê se perpetuar em nossa sociedade. Jessé segue linha semelhante,
mas no contexto de sua crítica a antropologia cultural, nos brinda
com um potente e preciso modelo para pensarmos a forma pela
qual mantemos esta nossa herança. Trata-se da permanência de ele-
mentos da sociedade escravocrata em muitas de nossas instituições,
inclusive na família, nas instituições jurídicas e políticas. Tais ins-
tituições, como ambientes de socialização primária (família) e se-
cundária (demais), acabam por reproduzir na dimensão subjetiva
traços do escravismo que nos constituiu.
A leitura de Jessé Souza pode até parecer óbvia ao colocar-
mos deste modo, mas ela é muito crítica da visão da antropologia
cultural que prevalece entre os nossos intelectuais. Ao meu ver, ela
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 327

interroga profundamente a possibilidade de aplicar para este pro-


blema, sem mediação, os recursos que a psicanálise tem desen-
volvido para pensar a transmissão psíquica em situações sociais
traumáticas, tais como o holocausto judeu e outros genocídios, ou
mesmo a violência das ditaduras latino-americanas, que empre-
garam a tortura e praticaram assassinato organizado pelo Estado.
Creio que neste ponto Jessé Souza convirja com Martin-Baró, es-
pecialmente pelo expresso em seu texto intitulado “El latino indo-
lente” (1998) no qual o autor sublinha o caráter atual e objetivo das
causas do que denomina “síndrome fatalista”. O autor denomina
de síndrome fatalista um conjunto de características psicológicas
que adquirem sua manifestação mais completa entre as populações
oprimidas latino-americanas. Uma preocupação de Martin-Baró
neste texto é propor que a “síndrome fatalista” se instala a cada
nova geração, como fruto de seu embate com as graves dificuldades
econômicas e sociais encontradas na vida cotidiana. É a repetição
das situações adversas ao longo da história que geraria a repetição
de certos traços subjetivos em comum na população marginalizada
latino americana. O modo como o texto é escrito permite antever o
“poder exacerbado” no plano social como possível ingrediente fun-
damental da criação e recriação da síndrome fatalista. Neste senti-
do, penso os atributos psíquicos da síndrome fatalista como uma
parte dos desdobramentos subjetivos de certo poder exacerbado
típico não só do Brasil, mas em algum grau característica comum
e corriqueira dos países nascidos de projetos de colonização de
exploração. A perda da “vocação ontológica de ser mais” do ser hu-
mano, descrita por Freire, seria outro de seus efeitos subjetivos. De
fato, parece-me coerente com o pensamento freiriano e com minha
prática com grupos, pensar que os desdobramentos psíquicos do
“poder exacerbado” também constituem um sistema psíquico-cul-
tural que não logra sobreviver de si próprio se as condições sociais
adversas cessarem. Nesta perspectiva, os fenômenos psíquicos es-
tudados aqui não podem ser entendidos pela tradição psicanalíti-
ca que pensa a transmissão psíquica do trauma nos grupos sociais,
podendo recorrer a conceitos presentes na abordagem das famílias,
como os de cripta e assombração (Abraham e Torok, 1978) Isso não
quer dizer que não exista tal dimensão, certamente há marcas de
328 Pablo Castanho

traumas nas comunidades em questão, significa que tratar a di-


mensão traumática, sem pensar os problemas presentes, é inócuo,
quando não maléfico, para as questões apresentadas aqui. Isso tam-
pouco interdita a pertinência destes estudos para outros objetos.
Além do mais, nesta visão, tampouco negligenciamos a importân-
cia da mediação psíquica (intra, inter e transpsíquica) na formação
de sintomas. A psicanálise pode de fato contribuir para entender e
operar sobre o modo como, por exemplo, defendem as pessoas se
defendem psiquicamente (de modo singular, familiar, comunitário
etc.) das dificuldades do cotidiano e como tais defesas engendram
também problemas ao mesmo tempo que albergam potências. Este
texto se insere no esforço de buscar compreender e operar sobre es-
sas dimensões psíquicas.
Enfim, a partir do processo de fabricar e reproduzir certas
disposições subjetivas criadas pelo poder exacerbado e afeitas a ele,
a socialização de crianças e adolescentes é fundamental. Tanto na
família como na escola e espaços comunitários. Em minha expe-
riência com grupos de populações vulneráveis fui frequentemente
surpreendido com o que me parece a marca — e elo de transmis-
são — de experiências que oscilam entre a submissão irrestrita e a
licenciosidade ou ausência de limites nestes espaços. São signos do
“poder exacerbado” entre nós que busco interrogar nas experiên-
cias relatadas a seguir.
Aprisionados na circularidade da troca de papéis entre opri-
midos e opressores
Iniciemos com uma vinheta. Há alguns anos, no quadro do pro-
grama de estágios obrigatórios do 5o ano de psicologia de uma uni-
versidade de São Paulo, realizamos parceria com cinco Centros de
Criança e Adolescentes (CCAs) que ofereciam atividades para crian-
ças de 6 a 14 anos no contraturno escolar em regiões periféricas da
cidade. Ao todo, foram três anos e meio de trabalho nestes locais.
Como parte do estágio, realizávamos atividades de cerca de três horas,
uma vez por semana. Em uma destas instituições, em um dia a chuva
inesperada impediu a atividade planejada e as crianças pediram para
brincar de uma brincadeira que elas mesmas tinham inventado, e que
chamavam “mamãe”. Ficamos sabendo depois que adoravam esta
brincadeira e a realizavam ao menos uma vez por semana.
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 329

Nesta brincadeira, uma criança ficava no papel da mãe e as


outras eram os filhos. Seguiam uma sequência de um dia típico,
horário de dormir, preparação e ida à escola, retorno para casa, cas-
tigo. Quando uma criança desafiava a mãe (reclamava, demorava
para obedecer, ou não obedecia, fazia algo sem permissão, ou sim-
plesmente tentava argumentar algo), Gislaine, a “mãe”, dava uma
chinelada na criança. A chinelada não parecia “encenada” e nela re-
sidia a graça da brincadeira para eles. Tentar desafiar a mãe e com
isso quando apanhavam, ou viam alguém apanhando, riam e riam
muito e com muito gosto.
A organização do grupo nesta atividade, e o enorme prazer
com a brincadeira nos surpreendeu. Mas que brincadeira é essa?
Que a cena possa remeter à violência vivida nas famílias não há
dúvida, mas o que cabe sublinhar aqui é a representação desta vio-
lência como norma naquela comunidade. Sublinhemos que não se
tratava de um centro para crianças vítimas de violência, mas um
centro educativo, aberto para a comunidade, cujo traço comum
seria a vulnerabilidade social, ainda que possam ser priorizadas
crianças em situação de algum risco no acesso as vagas do centro.
Não saberia o quão prevalente possa ser tratar as crianças a chinela-
das nesta comunidade, ainda que acredite que deve ser muito mais
comum do que gostaríamos de supor. Mas o que salta aos olhos, de
todo modo, é que a prática possa ser tomada como “normal” e não
escandalize, mas enseje uma brincadeira partilhada. É bem verdade
que a brincadeira, no dia em questão, levantou resistências de um
dos meninos, que era alvo preferencial das chineladas. Foi com ele
que houve uma briga um pouco depois, de modo que ele teve que
ser liberado mais cedo naquele dia para não apanhar dos colegas.
Estava claro que, se a brincadeira de algum modo era ritualizada
e podia provocar prazer, a agressão direta a colegas também fazia
parte dela.
Tomemos agora as referências de um grupo com mães em
alta vulnerabilidade social realizado em uma cidade vizinha a São
Paulo. O grupo foi realizado e relatado por Simone Robles (2017)
em seu mestrado, como parte de suas atividades em um Centro
de Referência de Assistência Social (CRASS) com famílias em um
programa de segurança alimentar. Logo nos primeiros encontros,
330 Pablo Castanho

emerge o tema da violência doméstica. Algumas mulheres apa-


nham rotineiramente do marido (ou ex-marido) e ouvem ameaças
de morte contra elas e seus familiares. No grupo, a situação delas
pôde, progressivamente, passar a ser nomeada como um estado de
encarceramento, uma vez que eram tratadas como “propriedade”
dos maridos. Algum tempo depois, emerge o tema do cuidado com
os filhos no mesmo grupo. Mas se no caso dos maridos (e ex-mari-
dos), o exercício do “poder exacerbado” estava do lado deles, agora,
parece encarnar-se nas atitudes das mães frente aos seus filhos. Em
certa sessão, discutem o tema mostrando como irritam-se profun-
damente sempre que as crianças não correspondem às expectati-
vas mais triviais, aplicando castigos, buscando disciplinar todos os
seus movimentos. Chateiam-se e batem em função da forma com
a qual a filha penteou o cabelo ou brincou com sua boneca. A psi-
cólogo intervém dizendo, sobre seus filhos, que “essa pessoa não é
seu objeto”. Neste momento, há alta tensão no grupo, falas paralelas,
objeções. Na próxima fala uma mãe prepara o terreno para a dis-
córdia da psicóloga desmerecendo-a por uma suposta arrogância e
ausência de experiência materna. Pôde então afirmar: “gente, ser
mãe é sim ter poder de posse, é sim você achar que é seu, eu falo a
verdade, é um sentimento que assim, eu tenho minhas três filhas,
todas as minhas três filhas são minhas! É minha! Foi eu que pari!”
(p. 155).
O grupo todo se exaltou com a afirmação da psicóloga. A mãe
que se opôs abertamente encontrou apoio no grupo. Novamente
chamo a atenção para o fato de que o principal recorte do grupo
era social, não era um grupo de mães que estivessem sendo acu-
sadas de maus tratos aos filhos, por exemplo. Insisto na dimensão
vincular nos dois casos, em ambos os grupos emergem relações
que chamaríamos de “poder exacerbado”, na relação da mãe com
os filhos. Mais importante que isso, o fato é tratado como natu-
ral, nem mesmo problematizado pelos pares, pares que constituem
a comunidade marginalizada na qual se vive, e não nenhum tipo de
grupo de tratamento. Sublinho ainda a referência a se ter a “posse”
de outro ser humano, seja no caso do poder de posse do marido
sobre a mulher, seja no caso do poder de posse da mulher sobre os
filhos. De um modo ou de outro, afinal, a noção de se ter a “posse
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 331

de outro ser humano” é escandalosamente próxima do fundamento


mesmo da escravidão.
Freire já nos alertava, e para isso a psicanálise não lhe foi es-
tranha, que o oprimido pode transformar-se em opressor com sur-
preendente facilidade. Se entre escravo e senhor, entre oprimido e
opressor, é de dialética que se trata, o horizonte da superação é a
negação dos dois termos, nem escravo, nem senhor. Pensamento
facilmente traduzível no olhar dialético de Pichon-Rivière (1985)
sobre os grupos, mas que também pode encontrar eco no pensa-
mento de René Kaës (2007) sobre o papel do polo originário das
fantasias na atribuição dos papéis no grupo.
O construto do Aparelho Psíquico Grupal de René Kaës
(1976) tem como uma de suas principais contribuições dar conta
do fenômeno de atribuição de papéis aos membros do grupo. Essa
dimensão foi identificada e nomeada por distintas tradições gru-
palistas que demandavam um modelo psicanalítico capaz de lhe
explicar. A prática dos grupos era, e é, abundante em demonstrar
a ocorrência do processo, se não sempre de modo inconsciente,
então independentemente ou mesmo à revelia das intenções dos
participantes. Por isso, frequentemente a interpretação em grupo
cumpre justamente o papel de colocar em palavras os papéis sen-
do executados no aqui e agora do grupo (Castanho, 2018), gerando,
não raro, grandes efeitos de surpresa nos participantes. A identifi-
cação dos papéis e da relação entre eles no grupo permite a coloca-
ção em narrativa de um roteiro executado pelo grupo. Lembremos
que, como afirmam Laplanche e Pontalis (1967), esse aspecto cêni-
co é um atributo das fantasias inconscientes. De fato, desde cedo na
tradição psicanalítica de grupo, a atribuição de papéis em um gru-
po é compreendida como forma de figurar, no aqui e agora do gru-
po, uma fantasia inconsciente compartilhada.
Mas, se a natureza da encenação é justamente uma difração de
um enredo interno em múltiplos atores, se uma fantasia não pode
ser figurada a não na complementaridade de papéis de seus ele-
mentos, como poderia cada participante no grupo ocupar um papel
diferente e ainda assim falarmos em uma mesma fantasia organi-
zando o grupo? Se uma parte de um grupo oprime e humilha a ou-
tra, o que de comum pode estar se encenando tanto para aqueles no
332 Pablo Castanho

papel de opressor como de oprimidos? É neste ponto que importa


a retomada que René Kaës (2007) faz do texto freudiano “bate-se
numa criança” no qual o sujeito pode identificar-se sucessivamente
tanto com aquele que bate quanto com aquele que apanha e ainda
outras posições ligadas à frase. Em um plano originário que estru-
tura as fantasias, pouco importa a posição do sujeito no enredo da
fantasia, sobressaindo o enredo como elemento fundamental. É este
polo originário das fantasias que é especialmente solicitado nos
grupos operando como um de seus organizadores psíquicos mais
importantes. Pensar a circulação entre oprimido e opressor, des-
te modo, leva a pensar em qual fantasia se trata em cada caso, em
cada uma de suas variações nos grupos que fazemos. Não raro, va-
riações da expressão “escraviza-se alguém”, como no grupo de mães
acima, parece sussurrar nos nossos ouvidos.
A convicção no bem fundada do poder
exacerbado fala mais alto
Esta forma de tratar as crianças, sob a égide do “poder exacer-
bado” não era estranha ao que costumávamos encontrar na maior
parte das instituições que ofereciam atividades no contraturno es-
colar, às quais nos referimos há pouco. A proposta educativa para
estes centros, organizada pela prefeitura, possuía grande influência
de Paulo Freire, mas não era isso que surgia no cotidiano do traba-
lho. No geral, havia uma obsessão por manter a disciplina da turma
a qualquer custo, recusa em dialogar com alunos, concepção de que
o processo educativo ocorria por depositação de conteúdos na ca-
beça dos alunos etc. Enfim, estava presente tudo aquilo que Paulo
Freire (1970) denominava de “educação bancária” e que criticou tão
ferozmente. Ainda assim, tudo isso era recheado por um vocabulá-
rio freiriano, e por estratégias educativas muito interessantes no pa-
pel, mas que se operacionalizavam normalmente no viés bancário.
Enfim, caso clássico daquilo que Rouchy e Desroche (2005) chama-
ram de adaptação, ao comentarem sobre a evolução das estruturas
institucionais. Para estes autores, as estruturas não são “externas” as
pessoas, pois participam da regulação psíquica de cada um. Deste
modo, não há verdadeira mudança nas estruturas organizacionais
sem um trabalho sobre a dimensão psíquica. Em casos como esse,
em maior ou menor grau, um novo vocabulário passa a circular na
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 333

instituição, porém descolado dos valores e atitudes psíquicas que


lhe confeririam sustentação. As práticas antigas seguem comuns,
sob o verniz de novas (e incoerentes) narrativas.
A realidade que encontramos nestes Centros nos faz pensar
sobre a impossibilidade de pôr em trabalho psíquico o “poder exa-
cerbado”. Em certa ocasião realizamos atividades sistemáticas nas
reuniões com os pais em quatro destes centros. Nelas foi possível
compreender os centros como porta-valores e porta-sintomas2 das
potências e problemáticas da criação de crianças e adolescentes no
bairro. Os grupos de pais portavam a mesma perspectiva sobre o de-
senvolvimento infantil, em especial o papel de disciplinar e subme-
ter o mais completamente possível. Os Centros pareciam enredados,
quiçá paralisados, pelas concepções sobre educação que circulavam
nestas comunidades, elas mesmas marcadas pela crença da submis-
são ao “poder exacerbado”, como vértice do processo educativo. Não
que não houvesse algazarra nas reuniões com os pais, educadores,
crianças e adolescentes, já que as reuniões eram feitas com todos
juntos. Tampouco faltavam referências a deixar os filhos soltos, sem
amarras, ou constrangimentos, mas nada disso parecia interrogar a
crença no processo educativo pautado pelo “poder exacerbado”.
Em alguns destes centros fazíamos o seguinte: realizávamos
uma brincadeira e propúnhamos discutir mudanças em suas regras.
O momento da discussão dessas mudanças foi concebido como o
centro desta atividade, mas não era fácil chegar nele. Pensávamos,
assim, em propor uma espécie de clínica do fazer democrático,
convocávamos as crianças para se posicionarem e mediávamos
as discussões. Ficou muito claro para as crianças, desde o come-
ço, que rompíamos com a ordem autoritária com a qual estavam
acostumadas. Mas a reação era então de ignorar qualquer regra

2. Usamos aqui a noção de “portar” tal como desenvolvida e retomada


inúmeras vezes por René Kaës (por exemplo, em 2007) a propósito das
funções fóricas. Por meio delas uma parte do grupo, aqui o dos centros,
portam características do grupo maior, as comunidades nas quais estão
inseridas. Em uma linguagem pichoniana aparentada, diríamos que são
“porta-vozes” da comunidade.
334 Pablo Castanho

ou direcionamento. Faziam o que queriam, escapavam da ativida-


de proposta, resistiam a verbalizar sua discordância. Tendiam, com
muita frequência, a se agredir um aos outros fisicamente ao invés
de realizarem a brincadeira proposta.
Ora, o movimento era pendular, do autoritarismo à ausência
total de regras, a licenciosidade ou laissez-faire completo. Não que
agíssemos como líderes laissez-faire. Não; tínhamos muita clareza
que propor o diálogo não é ser laisser-faire, mas simplesmente não
parecia haver outro sentido possível neste campo grupal. Se não
éramos autoritários, a única possibilidade seria tomarmo-nos como
licenciosos. Os educadores também nos compreendiam assim no
início, e em alguns casos, nunca chegaram a esta compreensão.
A licenciosidade impõe-se assim como um elemento impor-
tante em nosso percurso. Propomos compreendê-la como parte in-
tegrante da concepção educativa que circulava nas comunidades
vulneráveis com as quais trabalhei. Ao lado de momentos de submis-
são completa, pareciam existir “oasis” de ausência de regras. Lembro
de entrevistas com pais e adultos na época em que trabalhei em saú-
de pública em região periférica da Cidade de São Paulo. A aclamada
dificuldade contemporânea dos pais em pôr limite aos filhos pode ter
um papel aqui, mas não creio que seja só isso. Penso não no relato
destes pais sobre momentos em que davam “liberdade” aos filhos e a
dicotomia entre um “fazer-se o que quer”, tomado de modo absoluto,
e “submeter-se ao outro”, também tomado de modo absoluto. Penso
que frente às estruturas institucionais pautadas no poder exacerbado,
a busca por esses oásis íntimos de licensiosidade pode ser a solução
encontrada para que se mantenha um equilíbrio psíquico suficiente,
mas que, contudo, não tocam no problema em questão.
Voltemos ao oásis de licensiosidade da atividade com as crian-
ças. Num contexto, em que, por vezes, as crianças batiam umas nas
outras, quem não batia, apanhava! Estamos aqui enfrentando a ló-
gica do contrato civilizatório proposto por Freud em “mal-estar na
civilização” no qual “o homem civilizado trocou um tanto de feli-
cidade por um tanto de segurança” (Freud, 1930, p. 82). Mas se a
renúncia não vem compensada pela segurança, se todos me batem
quando renuncio a minha agressividade, como conseguiria susten-
tar minha renuncia psiquicamente?
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 335

Com o progresso do trabalho, a pequenos passos, pudemos


constatar alguns resultados que surpreenderam educadores e a
nós mesmos em algumas crianças. A experiência de um grupo que
mesmo que esporadicamente podia se experimentar longe do re-
gistro do poder exacerbado de um líder autoritário, mas também
fora do registro da licenciosidade, ia permitindo a interiorização de
uma outra forma de lidar com a própria pulsionalidade. Viam-se
ganhos notadamente no comportamento esperado de um escolar,
na articulação verbal e nos vínculos, sugerindo que talvez algo de
ordem sublimatória se passasse.
Essa polaridade e complementaridade entre autoritarismo e
licenciosidade não era estranha a Paulo Freire, que a retoma ao lon-
go de Pedagogia da autonomia (1996) com ênfase. Se em escritos
do início de sua carreira a ênfase é dada ao problema do autorita-
rismo, mais à frente em sua obra o autor insiste na visão de que tan-
to o autoritarismo como a licenciosidade são sintomas da mesma
falta de experiência democrática entre nós brasileiros. Mas como
entender a ligação entre esses dois termos?
A presença do pensamento dialético materialista é elemento
comum aos pensamentos de Paulo Freire e Pichon-Rivière. Esse é
o substrato para um olhar pichoniano sobre essa questão (1985), o
que nos permitiria dizer que um grupo de crianças como esse fica
em uma situação dilemática, oscilando entre uma tese (poder exa-
cerbado/autoritarismo) e uma antítese (licenciosidade), sem conse-
guir atingir a superação. Podemos também pensar esta lógica para
famílias e instituições com as quais trabalhamos, e, igualmente,
como desafio do nosso laço social no Brasil. Seriam particularmen-
te empurradas para esta dinâmica as populações mais margina-
lizadas, as sujeitas as formas mais atrozes do “poder exacerbado”.
Caberia então apontar que nestes mesmos grupos, as contraparti-
das da segurança rareiam e atrapalham o estabelecimento do con-
trato civilizatório.
336 Pablo Castanho

Da adolescência à vida adulta imersos


no poder exacerbado

No desenho que apresentamos de nossas experiências, esses


“oásis” de licenciosidade podem ser relacionados à complemen-
taridade entre os papéis de oprimido e opressor. Crianças que, ao
se permitirem tudo, se batem umas as outras, homens que ao refu-
tarem os limites ao seu prazer, submetem suas mulheres aos seus
desejos; mulheres que se deliciam no prosseguimento da colagem
narcísica com seus filhos, buscando negar-lhes qualquer possibili-
dade de reconhecimento de desejo próprio etc. É nesta chave que
compreendo a “lógica da virilidade” descrita por Teresa Carretero
(2003). Trata-se de um recurso comum entre adolescentes e jovens
adultos do sexo masculino que forram marginalizados na socie-
dade brasileira, e encontram refúgio no crime, no tráfico, ou sim-
plesmente em um comportamento ostensivamente intimidador. O
rapaz cresce tratado como objeto, experimentando-se como plena-
mente impotente em muitas de suas relações familiares e sociais, e
com frequência assustadora flerta com o sentimento de onipotência
através da violência, tornando-se ele também, frequentemente, al-
goz de seus pares.
Mas se a oscilação psíquica e vincular entre a posição de exer-
cer o poder exacerbado (onipotência) e ser reduzido por ele ao
estatuto de mero objeto parece a regra na descrição até aqui, cabe
sublinha um divisor psicossocial que tenta confinar ambas po-
sições, em uma aparente ausência da chamada moratória social a
qual os adolescentes estariam sujeitos nas periferias de nosso país.
Retomo aqui um trabalho anterior (Castanho, 2011) para abordar
o que me foi descrito como as “2 linhas” que um adolescente pode
seguir, a “linha errada” e a “linha reta”. Estas expressões correntes
no vocabulário das comunidades vulneráveis com as quais traba-
lhei, deixaram sua marca mais clara em minha memória através de
um adolescente que vi apenas duas vezes. Ronaldo tinha 17 anos na
época, sua mãe frequentava nosso centro por conta de um filho pe-
queno com deficiência e me pedira para conversar com ele. Ronaldo
se apresenta afável, sorridente, tímido, com alguma dificuldade de
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 337

articulação verbal, mas esforçado em se comunicar. Ele hesita so-


bre os caminhos que seguiria na sua vida. Faz dois desenhos que me
explica. No primeiro, uma igreja, fala da obediência plena aos pais,
estudos, o trabalho no mesmo ofício quase miserável do pai. Esta é
a “linha reta”. No outro desenho, referências ao demônio, à crimina-
lidade e às drogas. Ronaldo sente-se dividido entre os dois. Escolher
qualquer um dos dois me parece impossível. Comento que poderia
haver um outro caminho, com elementos de ambos. Mas creio que
esta ideia não faz sentido em seu mundo. Ele não retorna mais. Fico
sabendo por sua mãe que cerca de dois anos depois foi preso por ter
participado de assassinato de um idoso a facadas.
A representação destas duas linhas segregadas é um fato so-
cial importante por si só e marcante da vida psíquica e desenvolvi-
mento dos jovens neste meio. Uma mãe que eu atendia no mesmo
centro chega um dia chorando, seu filho de sete anos havia “esco-
lhido a linha errada”, ela já o imaginava bandido, talvez traficante,
com certeza preso e provavelmente morto muito cedo. Ela chorava.
O que ele havia feito? Roubado um sutiã em uma loja, presentean-
do-o para sua babá. A mãe estaria com ciúmes? Talvez, mas se o
prognóstico nefasto sobre seu filho era uma defesa, que, segundo
notei, foi amparada pelas colegas. Seguindo-se a perspectiva de
René Kaës sobre os pactos denegativos (2009), esse fato não é inde-
pendente da formulação do sintoma da mãe. Mesmo que a as ope-
rações defensivas sejam operações intrapsíquicas, para Kaës, elas
podem se apoiar sobre aquilo que no laço com outros é interditado
ou superinvestido.
Ocorre que se fosse um adolescente brasileiro de classe média
fazendo as mesmas coisas, certamente não seria tratado do mesmo
modo. Pequenos furtos ou experimentação de drogas entre ado-
lescentes são signos da opção pela “linha errada” ente adolescentes
vulneráveis, mas tendem a ser vistos com certa naturalidade entre
adolescentes da classe média. Indicativos de que a chamada mora-
tória social não se aplica, ou não se aplica do mesmo modo, às ba-
ses de nossa pirâmide social.
338 Pablo Castanho

A raiva justa (e necessária)

Certa vez, um jovem adulto morador da região do Jardim


Ângela, bairro periférico de São Paulo, próximo aos trinta anos, e
com um histórico de internação psiquiátrica por esquizofrenia me
disse: “Todos os meus amigos de infância estão presos ou mortos
hoje, se eu não tivesse tido a minha crise, estaria como eles”.
Aqui a loucura como um caminho alternativo à violência re-
luz, mas cabem algumas considerações sobre a violência. Conforme
tive a oportunidade de relatar em outro momento (Castanho,
2011), certa vez pedi a um grupo, maioria de jovens adultos egres-
sos de alguma internação psiquiátrica, que desenhassem o que era
violência para eles. Um desenho me chamou a atenção: eu via duas
pessoas sorrindo uma para outra com braços abertos aproximando-
se para um abraço. A narrativa do autor era outra, tratar-se-ia de
um assalto: braços ao alto e braço esticado do assaltante segurando
a arma. Seriam mesmo duas percepções irreconciliáveis? Ou ali se
representaria algo de paradoxal de um movimento agressivo visan-
do contato com o outro?
Lembro de um grupo operativo de um projeto que coordenei
com moradores de rua em atividade profissionalizante e era realiza-
do através de estagiários que eu acompanhava de perto. Levávamos
textos breves e propúnhamos discuti-los no formato de grupos ope-
rativos de aprendizagem. Determinado dia, o texto havia levanta-
do muita angústia ao abordar situações de fome. Um participante
pergunta sobre a universidade privada cursada pelos estagiários,
comentando o alto preço da mensalidade que pagam. Deste modo,
desnudam os estagiários como “privilegiados” frente ao grupo.
Este participante passa então a falar sobre sequestro, afirma ter re-
lações no mundo do crime, insinuando que poderia sequestrar os
estagiários. Os estagiários ficam perplexos, amedrontados, voltam
com muita dificuldade ao local após o trabalho em supervisão. O
rapaz que portou a ameaça aproximou-se daquele estagiário que
ficara mais amedrontado, procurou-lhe nos espaços intersticiais,
não mais metendo-lhe medo, mas tratando-o como amigo, queren-
do conversar e dividir. Com humor, pudemos passar a nos referir a
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 339

eles como “melhores amigos”. Nesta vinheta, tal como no desenho


mencionado no parágrafo anterior, penso que o movimento agres-
sivo foi necessário para estabelecimento do tipo de vínculo que se
seguiu.
Entendo que, na situação em que se encontram psicólogos
com pessoas marginalizadas, atualiza-se com frequência, via trans-
ferência, a relação opressor-oprimido de nossa sociedade brasi-
leira, marcada por este sem limite de poder do opressor, frente ao
oprimido. Atualiza-se, assim, outras noções de cidadania que não
aquelas que seriam conferidas normalmente, e que são aplicadas
em outras partes do mundo, mesmo quando lidamos com desi-
gualdades sociais. Nestes momentos, frequentemente, parece que é
necessário algum movimento agressivo que se mostra importante
para que o atendido possa sair da posição de mero “objeto”, posse
ou propriedade do outro. Esta situação implica em reflexões so-
bre o lugar da agressividade no desenvolvimento psíquico em ge-
ral e dos recursos técnicos que dispomos para trabalhar com ela.
Sem pretender debater esta questão complexa aqui, podemos in-
dicar seu horizonte psicanalítico, fazendo referência a um texto de
René Roussilon (2013) sobre o meio maleável, compreendido tan-
to como a figura do profissional que acompanha o grupo, quanto
como objetos que possam ser utilizados como mediações. Neste
texto, Roussillon retoma a herança do pensamento de Winnicott
e Milner sublinhando a importância estruturante para o psiquis-
mo de em certos momentos do desenvolvimento, termos a expe-
riência de encontrarmos um objeto que sobreviva, sem represálias
nem afastamento, aos nossos ataques destrutivos. Às vezes, tais ex-
periências precisam ser revividas em uma psicoterapia psicanalíti-
ca. Então, pode ocorrer que o sujeito precise fazer um ataque que
seja por demais destrutivo ao profissional, casos em que, como su-
gere Roussillon, é particularmente útil a existência de um objeto
mediador. O objeto, bem escolhido, pode sobreviver com mais fa-
cilidade aos ataques que lhe sejam dirigidos. Na vinheta relatada,
o conto almejava ter esta função. Uma análise detalhada da sessão
permite formular a hipótese de que o movimento agressivo foi
despertado pela história relatada, mas como não foi possível com-
preender e lidar com a situação assim que ela surgiu, houve um
340 Pablo Castanho

transbordamento para a figura dos coordenadores, que felizmente


puderam operar como meios maleáveis, na acepção de Milner se-
guida por Roussillon.
Esse necessário movimento agressivo, creio, ressoa de algum
modo aquilo que Paulo Freire denomina de “raiva legítima” (1992).
Trata-se de uma raiva sentida contra a real “malvadeza” do mun-
do, como classifica Paulo Freire os abusos do nosso sistema social
e econômico no Brasil e no Mundo. Mas ao mesmo tempo, e isso
é importante, Paulo Freire refutou os atos terroristas (ao menos
aqueles que presenciou até sua morte nos anos 1990). Usava para
esses atos o mesmo adjetivo com que nomeava os abusos sociais e
econômicos acima referidos: eles também seriam “malvadezas”. A
raiva é legitima, sem dúvida, e parece fazer parte do caminho para
o rompimento desta relação do exagero do poder, permitindo,
numa linguagem freiriana, ultrapassar o estatuto de objeto rumo ao
de sujeito. Entretanto, ela é também um dos principais caminhos de
sua perpetuação, que fomenta o círculo vicioso do oprimido que se
torna opressor.
À guisa de conclusão, ou sobre a hipótese de um vínculo
de libertação como um dos destinos sublimatórios da pulsão de
domínio
As vinhetas de crianças, adolescentes e adultos aqui relata-
das trazem à tona formas de sofrimento psíquico que demandam
cuidados por si mesmas. Trazem também aspectos psíquicos que
fazem parte da complexa composição de importantes problemas
brasileiros. Como pensar o trabalho com essas formas de sofrimen-
to psíquico no macrocontexto de relações marcadas pelo “poder
exacerbado”?
A lógica contratualista, tal como aparece em Freud, e como
pode ser retomada e elaborada por René Kaës no conceito de
alianças inconscientes (2009), traz contribuições importantes para
a psicanálise. Veja-se que em Kaës passamos de um contrato pro-
posto para inteligibilidade do laço social, de modo geral, para o
que ocorre também em pequenos grupos, famílias, casais etc. Tal
é a amplitude, e valor da leitura kaesiana ao propor o conceito de
alianças inconscientes. Tal amplitude serve bem a este nosso propó-
sito de delimitar algumas derivas do laço social existente no Brasil,
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 341

pensando-as em relação a nossa experiência colonial, e, ao mesmo


tempo, pensar nossa clínica com instituições, pequenos grupos e
indivíduos. São variadas as possibilidades deste olhar, ao final des-
te texto, gostaria de abordar tanto a problemática do “pacto civili-
zatório Freudiano” quanto aquilo que propusemos anteriormente
(Castanho, 2016; Castanho e Gaillard. 2017) como a hipótese de
um vínculo de libertação amparados em um diálogo entre Paulo
Freire e a psicanálise.
Por “Pacto civilizatório” refiro-me ao já mencionado pacto
no qual o sujeito troca uma parcela de liberdade por uma de segu-
rança. Esse último é o fundamento de toda a sociedade humana.
Vejamos, nas vinhetas com as crianças, como, em determinado mo-
mento de seu círculo próximo, este pacto parece ausente ou quase
ausente. Constatação semelhante pode ser feita em um nível mais
macro quando observamos o destino dos jovens pobres brasileiros,
em especial a alta frequência com a qual são vítimas de homicídio.
É gráfico como para este estrato da população, a contraparte de se-
gurança no contrato civilizatório falha em se apresentar.
Um dos resultados da fratura deste laço estruturante é um
incremento do sentimento de insegurança. Para além de suas con-
sequências psíquicas, caberia pontuar o papel político da ausência
do sentimento de segurança. Paulo Freire (1992) comenta um caso
no qual uma paróquia começa um movimento político para prote-
ger migrantes que pagavam aluguéis abusivos. O padre da igreja,
no entanto, é exortado pelos próprios imigrantes a retroceder. Eles
haviam sofrido ameaça dos proprietários de seus imóveis —amea-
ça possivelmente não realizável, mas que justamente inibia a ação
política por intermédio de um incremento do sentimento de inse-
gurança. Paulo Freire generaliza, o incremento do sentimento de
insegurança é uma forma geral de inibir a ação política. Talvez aqui
esteja um dos alcances dos seus “círculos de cultura”, nos quais a
leitura da palavra se acompanha não só da leitura do mundo, mas
de um trabalho indireto sobre os vínculos entre as pessoas. Quando
tudo vai suficientemente bem, nutrem-se laços de confiança mútua
e o grupo restitui uma base para o sentimento de segurança.
Ao abordarmos o “poder exacerbado” em diálogo com a
psicanálise, penso que devamos recorrer a noção freudiana de
342 Pablo Castanho

pulsão de domínio (Bemächtigungstrieb). Notemos que Paul Denis


(1992) destaca que, no texto “Três ensaios sobre a teoria da sexua-
lidade” (1905), Freud propõe a existência da pulsão de domínio
(Bemächtigungstrieb) como oposta à pulsão sexual. Para Denis, a
noção de pulsão de domínio é tão importante e vital na organiza-
ção do pensamento freudiano posterior que o autor propõe que ve-
jamos de fato três teorias pulsionais em Freud, e não duas, como
tradicionalmente se entende. Seria possível identificar a pulsão de
domínio em textos e problemáticas posteriores relacionadas ao po-
der, como no caso das reflexões freudianas sobre o masoquismo e o
sadismo, passando então a ser vista como pulsão parcial.
Notemos, no entanto, que em português perdemos a dis-
tinção entre os termos freudianos Bemächtigungstrieb e Bewälting.
A língua francesa traduziu o primeiro termo como emprise e o se-
gundo como maîtrise. Denis opera com esta distinção e retoma a
oposição entre as duas proposta por Dorey (1981) se a emprise “
é fundada sobre a recusa desta realidade específica que é a falta do
objeto, a maîtrise se apresenta ao contrário como fundada sobre
o reconhecimento e sobre a aceitação desta falta.”(p.137. Destaque
do original. Tradução do autor) Ou ainda “... a maîtrise , contra-
riamente à emprise, testemunha de uma intrincação pulsional mui-
to avançada”(idem). Ao retomarmos as crianças que se batiam em
nossos centros de crianças e adolescentes, sublinho que a renúncia
de cada criança a parcelas de sua satisfação pulsional é um meca-
nismo intrapsíquico que se apoia em condições de possibilidade
intersubjetivas. Por outro lado, enquanto mecanismo intrapsíquico,
seu advento permite certas formas de endereçamento da excitação
pulsional fundamentais ao sujeito. Aqui o domínio é de si próprio,
na relação com as próprias excitações, neste sentido, estamos diante
de algo central e necessário ao funcionamento psíquico o que reco-
bre claramente as afirmações de Dorey a Bewälting/maîtrise.
Não que ambas categorias não nutram relações entre si.
De fato, entre elas a noção de sublimação pode ser evocada (Denis,
1992). A Bewälting/maîtrise porta este caráter de valorização so-
cial que ao redirecionar a finalidade de pulsões parciais é condi-
ção e matéria mesma da sublimação. Mas neste texto, cabe indicar
a consistência da hipótese de um outro destino sublimatório para a
A hipótese de um vínculo de libertação no contexto do poder... 343

pulsão de domínio. Lembremos daquilo que Paulo Freire denomina


“libertação”. Ao falar do processo de libertação, Paulo Freire subli-
nha que a saída desta lógica do poder como submissão do outro,
abriria ao homem e a mulher a possibilidade de resgatar sua “(...)
vocação histórica e ontológica de ser mais” (Freire, 1970, p. 59).
Paulo Freire vê claramente o processo como vincular, ao menos é
assim que compreendo seu famoso aforismo “Ninguém liberta nin-
guém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em co-
munhão” (Freire, 1970). Propus em 2016a e novamente em 2017
com Georges Gaillard, que existiria uma aliança inconscientes na
qual cada um “renunciaria a uma parcela da pulsão de domínio em
troca de um incremento de sua possibilidade de ser”.
A problemática do “incremento da potência de ser”, por sua
vez, deriva de uma perspectiva winnicotianna, tal como retomada
por Gilberto Safra (1999) como forma de pensar psicanaliticamen-
te a proposição freiriana da “(...) vocação histórica e ontológica de
ser mais” (Freire, 1970, p. 59). Assim, na hipótese de um vínculo de
libertação, o referido incremento da potência de ser, não se refere
a uma intenção do sujeito ao renunciar à sua pulsão, mas almeja-
se como uma descrição da dinâmica e economia pulsional intra e
intersubjetiva necessária para que se equacione a renúncia que é
exigida aos membros do vínculo. Tal como no caso das crianças
que se batiam, a contrapartida só pode ser obtida se a renúncia for
intersubjetiva. De todo modo, nessa acepção, a experiência de um
vínculo de liberação seria um dos possíveis destinos sublimatórios
da pulsão de domínio que poderia ser evocado como horizonte ao
poder exacerbado que marca nossos grupos e nossas instituições.

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Panelaço: uma análise
psicanalítica de discurso sobre
o estado de exceção social
brasileira dos anos 2015-2016

Nadir Lara Jr.


Marcus Teschainner
Christian Ingo Lenz Dunker

Introdução

Este estudo tem por objetivo propor uma análise psicanalíti-


ca da emergência do discurso nomeado pela mídia brasileira como
“panelaço”, contra o governo Dilma, que teria se iniciado em março
de 2015, revertendo o sentido das manifestações de 2013 e culmi-
nando nas manifestações pró-impeachment em março de 2016.
A primeira hipótese que levantamos é que o contexto político
do Brasil que passa de 2015 à 2016 apresenta um conflito gerado por
uma maneira neoliberal de pensar o social, caracterizado pela finan-
ceirização da vida em geral e das políticas sociais em particular, co-
nexo com uma reação conservadora contra a entrada de um volume
expressivo de pessoas da classe trabalhadora em experiências gene-
ralizadas de consumo. Segundo Glynos e Stavrakakis (2008) “a pro-
messa do imaginário de recapturar nosso gozo perdido/impossível
provê à fantasia um suporte para nossos projetos políticos, papéis
sociais e escolhas como consumidores” (p. 261). Nessa perspectiva,
não apenas a mídia, mas também os discursos políticos e sociais
alimentam a fantasia de que, em um futuro próximo, as limitações
348 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

atuais que impedem o gozo serão superadas e aí então será possível


o acesso a um gozo pleno — seja por meio dos objetos de consumo
ou da construção de uma sociedade supostamente ideal.
Por isso, quando a política social almeja diminuir as diferen-
ças de classe, permitindo que a classe trabalhadora possa consumir
produtos e serviços antes inacessíveis. Isso acaba se tornando uma
ameaça narcísica à classe média que sempre pode usufruir destes
bens consumos como uma forma de distinção e autojustificação
de classe social. O panelaço combina assim duas séries discursivas
caracterizadas por afetos distintos: (1) o sentimento de repulsa e
medo contra as pessoas mais pobres que agora estão acessando ae-
roportos, internet e telefonia celular etc. e (2) o sentimento de ódio
e indignação com a corrupção institucional como representação ge-
nérica do espaço público e da cena política. O conflito parece sur-
gir a partir do momento em que diminuem as diferenças que havia
entre aqueles que podiam gozar livremente dos bens de consumo e
aquela classe trabalhadora antes excluída desse meio.
Glynos e Stavrakakis (2008), apontaram como sociedade capi-
talista uma “proposta política do gozo total” (p. 116), criando assim
a sensação de se viver em um mundo em que impera uma identifi-
cação com o ideal de eu, dando margens a uma sociedade de massa
que, fantasiosamente, insinua um tamponamento da falta, da in-
completude e da castração que afetam todo sujeito. Considerando
esta representação genérica e confrontando-a com a experiência
real produz-se assim um efeito continuado de insatisfação e de
atribuição da causa desta insatisfação ao outro, que lhe estaria obs-
taculizando a realização deste ideal. Freud já nos alertava que foi
esse tipo de identificação que permitiu certas manifestações autori-
tárias como o nazismo, fascismo etc. Na sociedade contemporânea
discursos autoritários geram práticas de segregação, definidas pela
exclusão do caráter produtivo da diferença (gênero, raça, classe, re-
ligião, orientação sexual etc.), interpretando a diferença como pri-
vação, rapto ou obstáculo à restituição do gozo.
Lacan (1969-70) resgatou as ideias de Marx e Engels, assim
como as de Freud, para demonstrar como esse processo opressivo
de constituição das relações sociais se funda em termos incons-
cientes. Na perspectiva lacaniana, as relações de opressão existentes
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 349

no capitalismo ancoram-se na estrutura de dominação que pauta


as relações sociais e a própria constituição subjetiva, pois estas se
caracterizam, desde a sua origem, por uma relação entre domina-
dor (mestre) e dominado (escravo), termos que Lacan empresta de
Hegel, na qual ambos obtêm alguma forma de gozo. É justamente
nesse ponto que reside a eficácia das novas formas de opressão ca-
pitalistas, haja vista que estas remontam uma relação de dominação
que se personificou para cada sujeito no momento da sua constitui-
ção, durante o período em que sua incapacidade física e motora que
o deixavam completamente alienado ao Outro. A imagem do corpo
social como um corpo que goza excessivamente, mas que priva seus
indivíduos da partilha esperada justifica a eficácia retórica do dis-
curso da austeridade, em termos econômicos e da purificação, em
termos morais:
Os liberais insistentemente advertem que não há outro mundo ci-
vilizado possível fora do seu mundo (o que representa uma postu-
ra típica de todo o fenômeno ideológico, aqui entendido como a
negação da admissão da finitude de uma crença ou fundamento).
Eles podem até admitir que existam desníveis no capitalismo global;
porém, propõem somente “correções a eles, tais como as chamadas
medidas econômicas de “austeridade” em relação aos Estados endi-
vidados, as quais claramente não têm sido capazes de produzir nada
além do que mais desigualdade social no próprio centro do capita-
lismo global. (Mendonça e Vieira Junior, 2014, p. 111-112)
Esse tipo de postura política e moral, fantasiosamente reco-
berto de democracia impele os sujeitos a ficar em seus condomí-
nios (Dunker, 2015), o que cria certa distância daquilo que seria
a vontade coletiva de um povo, agora pressentido como vontade
perigosa, violenta ou corrupta, ocupando os espaços públicos que
demonizam o Estado e impedindo que os antagonismos suficientes
seja percebidos como decorrentes de uma esforço para generaliza-
ção e radicalização da democracia (Laclau e Mouffe).
Na lógica condominial em que está inserida parte da opinião
pública, o consumidor tem sempre razão. Quando está descontente
com um produto, devolve-se ao fornecedor; quando se está descon-
tente com a reunião do condomínio fica-se em casa e permite-se
assim que o sindico decida quem entrará no condomínio. Essa
350 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

lógica constrói uma política de gozo, cuja demanda alterna a captu-


ra das demanda entre o discurso da universidade (série discursiva
da inveja-resssentimento) e o discurso do mestre (série discursiva
do medo-ódio).
Glynos e Stravakakis (2008, p. 110) apontam que os discursos
nacionalistas de cunho fascista ou nazista remontam no presente a
“era de ouro” do passado no qual o povo supostamente acessava um
gozo irrestrito e isso foi perdido por causa de alguns inimigos, por
conseguinte, aquele grupo ou sujeito que ameaça a reconstrução
dessa “era de ouro” são tidos como inimigos, portanto uma ame-
aça a ser destruída, porque desestabilizam o status quo operandi,
no caso do nazismo eram judeus, ciganos, homossexuais. As duas
séries discursivas caminham em sentidos divergentes quando exa-
minamos a sua gramática de relação entre individualismo e coleti-
vismo. A série do ressentimento homogeniza o outro (como classe
destituída de signos de distinção), enquanto a série do medo o indi-
vidualiza (como o corrupto que dissemina e contamina o coletivo).
Inversamente, a série do discurso do mestre cria grandes indivídu-
os que seriam capazes de mudar a história e coletiviza os seus se-
guidores em grupos binários, compostos por coletivos informes.
Curiosamente, parece que estamos testemunhando a defesa de
indivíduos que não passam de pequenos tiranos platônicos, soli-
tários, tristes e com medo da multidão que os cerca. O fundamen-
tal à democracia liberal é retirar da cena política todo e qualquer
tipo de antagonismo. Para os liberais, tudo pode ser resolvido por
meios não violentos como a razão, o consenso e, sobretudo a lei.
(Mendonça e Vieira Junior, 2014, p. 112-113)
Veremos a seguir como essa obliteração dos antagonismos na
sociedade contemporânea permite a emergência de manifestações
realizadas de dentro das casas e apartamentos da classe média bra-
sileira que remonta a lógica condominial em que o medo da multi-
dão que os cercam se tornam evidentes no contexto brasileiro. Para
isso, destacaremos aqui o panelaço, como um significante vazio,
capaz de ligar as duas séries invertendo o sentido transformativo
inicialmente suposto no processo de indignação social. Lembremos
que os governos Lula e Dilma se caracterizaram por projetos sociais
cuja metáfora era a solução da crise alimentar: o Fome Zero. Não
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 351

seria então por outro significante que não a panela, agora vazia,
deixada ao uso musical e instrumento de manifestação da insatisfa-
ção política o que se encontrará como significante articulador desta
reversão da fantasia ideológica.

O contexto do “Panelaço”

Depois da ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo


federal (2003-2010), junto com ele foram chamadas muitas lide-
ranças dos movimentos sociais e sindicais para compor os cargos
administrativos do Estado brasileiro, criando assim uma situação
inusitada e condenada por grande parte da esquerda, nos termos
de uma política de alianças. Os antigos militantes que organi-
zam greves e mobilizações contra o governo, tornam-se o próprio
governo negociando com os colegas que permaneceram nos movi-
mentos, assim como as elites as quais combatiam (Druck, 2006, p.
49). Muitas demandas dos movimentos sociais se tornaram políti-
cas públicas (Prouni; Bolsa Família; Fome Zero). A antes deman-
da tornava-se agora significante mestre para gerência do Estado.
O adversário político torna-se amigo e companheiro, destituindo
as fronteiras políticas que serviam de antagonismo para os diver-
sos atores sociais (Mouffe, 1999). Nesse contexto, afirmamos a le-
gitimidade de se disputar os espaços políticos dentro do Estado e a
busca pela legalização das demandas dos movimentos sociais e de
todas classes sociais. Nesse sentido, Druck (2006) nos mostra que
o ex-presidente Lula, apesar de apoiar de maneira contundente as
políticas públicas, como essa que citamos acima, não interferiu na
estrutura ideológica do Estado brasileiro, deixando-o alinhado com
uma proposta neoliberal.
O governo Dilma Rousseff, iniciado em 2011, como conti-
nuidade do governo Lula, mantém as políticas públicas do gover-
no anterior, e cria outras políticas tais como: Minha casa, minha
vida; Mais médicos. Em 19 de março de 2013 o índice de aprova-
ção do governo Dilma chegava a 79% superando Lula e Fernando
Henrique Cardoso.1
352 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

Em junho de 2013 houve em todo país manifestações pú-


blicas que marcaram uma série de protestos, primeiramente pelo
“bloco de lutas contra o aumento das passagens” depois um posi-
cionamento contrário a Copa do Mundo de Futebol no Brasil, or-
ganizado pela FIFA. Demandas populares levam Dilma2 propor
cinco pactos3 pela reforma política e delega a Michel Temer (vice
-presidente), filiado ao PMDB, a responsabilidade de organizar uma
Assembleia Constituinte e um plebiscito para ouvir a população so-
bre como fazer a reforma política. Depois disso o índice de aprova-
ção do governo Dilma caiu para 30%.4
As eleições presidenciais de 2014 acirram a disputa, especial-
mente no segundo turno com vitória de Dilma Rousseff (PT) com
51,64% dos votos válidos contra 48,36%5 de Aécio Neves (PSDB).
Esse descontentamento de parte da população em relação ao gover-
no Dilma se estendeu depois das eleições. Primeiramente, liderados
pelo candidato derrotado Aécio Neves e por outros políticos tam-
bém derrotados nas eleições iniciavam um processo de oposição di-
reta a presidente eleita.
Começam os panelaços. Parte da população batia panelas nas
janelas ou sacadas, ou buzinavam seus carros nos momentos em que
a presidente Dilma vinha publicamente, pela TV comunicar-se com
a população. Em março de 2015 “panelaços” foram registrados como
protesto: no dia 8, durante discurso da presidente Dilma Rousseff em
rede nacional; no dia 15, durante entrevista coletiva dos ministros

1. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/


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2. Em 24 jun. 2013.
3. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/
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4. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/aprovacao-
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5. Disponível em: <http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/26/
dilma-cresce-na-reta-final-e-reeleita-e-emplaca-quarto-mandato-do-pt.
htm>. Acesso em 22 abr. 2016.
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 353

José Eduardo Cardozo (Justiça) e Miguel Rossetto (Secretaria Geral);


e no dia 16, no momento em que o Jornal Nacional da Rede Globo
veiculava reportagens sobre a presidente Dilma”.6
O primeiro “panelaço”, ocorrido em 8 de março de 2015
durante pronunciamento de Dilma sobre o dia da mulher, foi
percebido em bairros de classe média alta em diversas capitais
brasileiras. Essas pessoas de suas janelas e portas batiam panelas,
usavam apitos e ressoavam vaias em sinal de protesto à Presidenta
Dilma Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores (PT). Também fo-
ram registrados “buzinaços” e protestos em diversas ruas nas capi-
tais brasileiras, tais como: São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Rio
de Janeiro, Vitória, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Belém, Recife,
Maceió e Fortaleza.7
Segundo dados da Esentia (empresa brasileira especializada
em inteligência digital) levantados em uma pesquisa entre os dias
6 a 23/3/2015 por meio de um mapeamento das redes sociais quan-
do os usuários usavam referências ao “panelaço” demonstram que
as regiões que mais se manifestaram foram: sudeste com 53%; Sul
21%; Centro Oeste 13%; Nordeste 10%; Norte 3%.
Após os eventos do dia 8, 15 e 16 de março aguardava-se o
pronunciamento da presidente no dia do trabalhador, porém, o dia
01 de maio de 2015 ficou marcado como a primeira data em que a
presidente deixou de fazer esse pronunciamento, restringindo seu
discurso a internet, movimento lido como resposta de recuo e inti-
midação do governo diante do temor de novo “panelaço”.8

6. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/dilma-diz-


que-panelaco-e-normal-no-brasil.html>. Acesso em: 15 mar. 2016.
7. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1600149-
petistas-temem-que-novos-protestos-contra-dilma-repitam-junho-
de-2013.shtml>. Acesso em: 15 mar. 2016.
8. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1624914-
presidente-do-psdb-de-minas-convoca-panelaco-contra-presidente-dilma.
shtml>. Acesso em 15 mar. 2016.
Ver ainda: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/
2015/04/27/internas_polbraeco,481051/por-temor-de-novo-panelaco-dil-
ma-cancela-pronunciamento-de-1-de-maio.shtml>.
354 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

No dia 5 de maio de 2015, durante programa eleitoral gratuito


do PT feito em cadeia de radio e TV, ocorre outro “panelaço” em
18 estados e Distrito Federal.9 Depois em 6/8/2015, durante um
programa de radio e TV com Dilma e Lula, a Revista Veja (notória
oposição ao governo) cria mapas indicando que no dia 6/5/2015 de
0h às 21h30 foram 73.415 postagens com o termo “panelaço” em
Twitter, Instagram e Youtube.10 Neste dia, essa revista diz que essa
manifestação já se espalhava por várias cidades brasileiras.
Em 3 de fevereiro de 2016, durante um pronunciamento da
presidente sobre os cuidados contra o Zika vírus, ocorre novo pa-
nelaço com manifestações de menor envergadura,11 em São Paulo,
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia,
Brasília, Recife e Salvador, entre outras.
Os “panelaços” foram as manifestações que, de alguma forma,
estimularam os opositores ao governo a se organizar e se desdobra-
ram em diversas manifestações pelas ruas de várias cidades brasilei-
ras até a maior delas ocorrida em 13 de março de 2016, chegando a
3,3 milhões de pessoas em mais de 250 cidades.12

O panelaço como cruzamento e inversão discursiva

Consideramos que a prática de protestos é antiga e frequen-


te, diante disso levamos em conta a proposta de Laclau de que no
processo constitutivo de movimentos sociais uma demanda se

9. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/dilma-diz-


que-panelaco-e-normal-no-brasil.html>. Acesso em: 15 mar. 2016.
10. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/panelaco-contra-o-
governo-dilma-682015/>. Acesso em: 15 mar. 2016.
11. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/
02/03/pronunciamento-da-dilma-contra-o-zika.htm>. Acesso em: 16 mar.
2016.
12. Disponível em: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/manifes-
tacoes-de-13-de-marco-em-todo-o-brasil-acompanhe.html>. Acesso em:
17 mar. 2016.
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 355

concentra e se representa em um significante vazio, capaz de ex-


pressar por meio de sua indeterminação, uma série heteróclita de
identificações. Nesse sentido, torna-se relevante supor que o pane-
laço funciona como um significante com tais propriedades formais
e com semelhante função. Ele representa um ponto de convergência
discursiva que nomeia o mal-estar e unifica o ódio ao governo, a
indignação com a corrupção, o ressentimento contra a presidente,
o repúdio ao seu partido político, o apoio às investigações sobre a
corrupção, a crítica ao comunismo, a objeção contra a inépcia do
Estado em conduzir sua política econômica. Apoiando-se na gra-
mática da contestação, criada e consagrada pelos anos Lula-Dilma,
o panelaço inverte seu sentido, devolvendo a demanda ao seu lugar
de formação: o esquerdistas, os corruptos, os inimigos da nação.
O significante vazio passa funcionar como um preenchimen-
to da falta estrutural da sociedade, necessitando assim de uma
fantasia ideológica que recubra essa falta. Esses significantes va-
zios oferecem um conteúdo concreto para aquilo que está faltando
para o sujeito em sociedade, isso pode mobilizá-lo por lutas por
emancipação, nesse caso esse significante passa ser contingente e
provisório. Por outro lado, pode funcionar com conteúdos de res-
sentimento e descontentamentos que facilitam o estabelecimento
de certa hegemonia discursiva (Glynos, 2001).
O estabelecimento de discursos hegemônicos favorecem a es-
truturação de ideologias que não reconhecem o caráter precário de
qualquer positividade e a impossibilidade de uma sutura totalizan-
te, abrindo margens para uma lógica de repetição e construção de
discursos que recobrem a falta estrutural do sujeito e da sociedade.
Nesses panelaços, apoiar o retorno da ditadura militar,13 o uso da
violência pela polícia como forma de restaurar a ordem, a intole-
rância, mas também a irreverência expressa no boneco “pixuleco”
(representando Lula como presidiário) e o “pato” (representando o

13. Disponível em: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/manifes-


tacoes-de-13-de-marco-em-todo-o-brasil-acompanhe.html>. Acesso em:
17 mar. 2016.
356 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

contribuinte lesado pelos impostos sem retorno) promovem uma


sutura com propostas hegemônica conluias a um modelo de socie-
dade autoritária.
Nesse sentido, podemos perceber ainda nesse significante va-
zio (panelaço) há a busca por um sujeito que personifique o ideal
de eu ou se torne o S1 nessa cadeia discursiva, remontando a lógica
do discurso do mestre proposto por Lacan (1969-70, p. 118). Nesse
discurso o mestre interpela seus seguidores a estruturar um dis-
curso hegemônico que irá sobrepor-se a todos, como numa horda
ou numa sociedade de massas como bem alertou Freud. Para tan-
to, destacamos que um dos referentes identificatórios (mestre) dos
praticantes do panelaço é o magistrado Sérgio Fernando Moro co-
nhecido como herói “revolucionário” da democracia,14 apresentado
como bom pai de família, professor dedicado, juiz exemplar e um
grande cidadão brasileiro, herói que está “moralizando” o Brasil.
Em 17 de abril de 2016 foi aprovado pela Câmara dos
Deputados com 367 votos a favor e 137 contra a instalação do pro-
cesso de impeachment contra Dilma Rousseff. A partir dessa data
o Senado Federal irá julgar a presidente da República por crime de
responsabilidade fiscal.
Agora, o parecer que recomenda a investigação contra a presidente
Dilma Rousseff segue para o Senado Federal. Lá, será constituída
uma comissão especial para decidir se convalida, ou não, o pedi-
do de abertura de investigação. Se for aprovado por 41 senadores, a
presidente será afastada do cargo e julgada pelo Senado. Uma even-
tual condenação, que depende do aval de 2/3 da Casa (54 senado-
res), tira Dilma do cargo e a torna inelegível por oito anos.15
Esse processo de votação realizado pelos deputados fede-
rais deixou evidente a fragilidade do governo que não conseguiu

14. Disponível em: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/12/sergio-


moro-perdeu-corrupcao.html>. Acesso em: 22 mar. 2016.
15. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/
POLITICA/507325-CAMARA-AUTORIZA-INSTAURACAO-DE-
PROCESSO-DE-IMPEACHMENT-DE-DILMA-COM-367-VOTOS-A-
FAVOR-E-137-CONTRA.html >. Acesso em: 2 maio 2016.
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 357

influenciar os parlamentares a favorecê-lo nas votações. Essa vota-


ção no Senado deixa ainda aberta a situação, pois se discute se os
supostos crimes fiscais cometidos pelo governo justificam um impe-
achment ou se está instalando um estado de exceção.
O panelaço é uma prática que antes de tudo se realiza desde a
casa das pessoas. Ele não acontece na rua, não é uma marcha com
cartazes ou palavras de ordem, mas uma voz que se ergue desde
o espaço privado e doméstico da casa. Dunker (2015) nos diz que
desde os anos 1970 as classes médias organizam-se em torno de um
grande ideal de consumo: a vida protegida e administrada em for-
ma de condomínio. Nela o problema da relação com os funcioná-
rios assim como a precariedade dos serviços públicos é substituída
pela segurança dos muros e do cotidiano administrado.
Composto por vozes sem rosto, emergidas do silêncio dos
condomínios, ou que gritam de dentro das casas ou apartamentos,
com vozes de ódio e barulhos dissonantes, repersentam uma novi-
dade expressiva na política. Elas falam com a segurança dos muro,
que segrega a invisibilidade das classes entre si, sem que ele seja
suspenso. O uso de vovuzelas, espécie de corneta usada original-
mente pelas torcidas de futebol, articula metonimicamente o cará-
ter nacionalista da manifestação, congruente com o uso massivo de
bandeiras nacionais penduradas nas janelas e varandas:
É dessa perspectiva que se poderá entender a importância de não
reduzir a lei à força, a justiça ao direito e de não recusar o apelo éti-
co que está para além ou para aquém da lei instituída para criticar
o estado de exceção permanente que a colusão entre lei e segurança
propiciou em nossa época. (Dunker, 2015, p. 224)

A lógica do condomínio e o estado de exceção

Para Dunker a relação do estado de exceção com a lógica do


condomínio extrapola os muros arquitetônicos e emerge como uma
estrutura das relações sociais do Brasil, acontecendo também em
lugares que não se configuram como um condomínio no sentido
estrito, mas também em diversas outras situações como em grupos
358 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

humanos, associações psicanalíticas, a política, o clube, o que nos


permite afirmar que um indivíduo de um condomínio pode per-
tencer a diversas outras estruturas de segregação. O intuito de
Dunker é direcionar a clínica psicanalítica para um sintoma social
tipicamente brasileiro, que decorre desta estrutura, com caracterís-
ticas antropológicas, sociais e políticas que esse autor chama de ló-
gica do condomínio.
O “panelaço” é uma manifestação social e política literalmente
surgida “intra muros” dos condomínios de classe média, como tra-
ta Dunker (2015). Por meio dela posso protestar sem sair de casa.
Interessante notar que até 8 de março de 2015 não se imaginaria
que, de dentro do condomínio, se pudesse inibir um presidente
da república de se pronunciar no dia dos trabalhadores ou que se
mostrasse como algum tipo de pressão política para gerar qualquer
forma de retração do próprio governo. Um dos efeitos da vida em
forma de condomínio é interpretar o espaço público e consequente-
mente a política como um lugar perigoso, misturado e desordenado.
Não se pode negar que a repercussão social dos panelaços preparam
ou denunciam uma inversão de expectativas políticas. Em 13 de
março de 2016, o governo Dilma é alvo de manifestações com mais
de 3,3 milhões de pessoas que saem de seus condomínios para pedir
a queda do governo e o restabelecimento da “paz condominial”.
Se a lógica do condomínio é um exemplo de um estado de ex-
ceção à brasileira devemos lembrar que o muro do condomínio tem
suas semelhanças com o muro da cidade medieval, uma fortificação
que visa controlar o acesso ao mundo externo e uma portaria que
se torna permeável ao comércio e a entrada controlado dos habi-
tantes de fora. Mas há, também no muro do condomínio elementos
do muro do campo de concentração, que, de forma invertida, pre-
tende indeterminar o que vem de fora, excluí-lo e em uma tentati-
va de se proteger da nudez da vida busca suspender o mundo além
muros afim de criar regras próprias. O que nos leva a pensar que
quando entramos no condomínio parece que entramos num verda-
deiro mundo kafkiano. Uma diferença importante entre o portão
medieval, a cerca do campo de concentração e a portaria do con-
domínio é a relação que este mantém com a lei. Enquanto o portão,
com seu brasão heráldico, respeita e simboliza as regras soberanas
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 359

de território, domínio e fronteiras, importante para a manutenção


da soberania da cidade, o condomínio coloca em suspenção as re-
gras do direito para se manter fora delas por meio de procedimen-
tos administrativos, pelos quais vida e regra se confundem.
As manifestações, iniciadas com o panelaço, pedem com ur-
gência a intervenção cínica do sindico, presentificada na figura dos
militares, da polícia federal ou do juiz federal Sérgio Moro. Serão
eles que irão punir aqueles que ameaçam a paz no condomínio,
“como o diz Dunker (2015), citando a música de Jorge Benjor: “Eu
vou chamar o síndico: Tim Maia! Tim Maia!” No caso dos manifes-
tantes do panelaço, poderíamos parafrasear: “Eu vou chamar o sín-
dico: Militares! Militares!”
A reunião de condomínio, que foi exemplarmente retratada
no filme Som ao redor (2012), de Kleber Mendonça, é uma ocasião
em que o cidadão comum investe-se de força de lei, ocupando-se
de produzir regras e deliberar punições, como se assim passas-
se da condição de mero cumpridor de ordens para artífice da lei.
Brigas e divergências são preponderantes e a figura do sindico serve
para imprimir a ordem e a força da lei interna ao condomínio go-
vernando as coisas e as pessoas, aqueles que não se enquadram na
artificialidade das regras e aquelas exceções que devem ser trans-
formadas em novas regras.
O síndico, como gestor do condomínio, representa uma lei
constante, que vigora sem ter forma, pois a lei que tem forma, a pró-
pria situação do condomínio já suspendeu. Podemos tomar como
exemplo o caso do juiz Sérgio Moro que decide publicar as conversas
entre a presidente Dilma e o ex-presidente Lula, obtidas através de
grampo telefônico sob a justificativa de que o povo precisava saber
o que seus governantes estavam dizendo.16 O condomínio demons-
tra um desejo pela conservação do ordenamento vigente, ao colo-
car em suspensão o ordenamento, o habitante do condomínio não
só está protegendo a ordem jurídica vigente, como também está

16. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/


03/16/gravacao-entre-dilma-e-lula-foi-feita-depois-de-moro-decidir-pela
-interrupcao-do-sigilo.htm>. Acesso em: 22 mar. 2016.
360 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

recusando-se escolher a revolução como forma de mudança. Nesse


sentido, podemos verificar a demanda desses manifestantes nas saca-
das do Brasil. O restabelecimento da ordem e do progresso, por isso
as cores verde e amarelo como as que representam esse grupo que
clama para o restabelecimento da ordem jurídica: exército e polícia!
Mas a escolha por viver em condomínios tem suas conse-
quências, isso mostra Dunker (2015) ao analisar o sofrimento
psíquico resultado da relação de determinação e indeterminação
conformada pela lógica do condomínio. Um paradoxo interessante,
pois considerando o que é dentro e fora do muro do condomínio o
que se revela é um falso universal, a estrutura protetiva e assépti-
ca resulta na desubjetivação do morador do condomínio que vai se
reduzindo cada vez mais a um número, uma identificação adminis-
trativa, projetando perigos e animosidades nos bárbaros que vivem
fora de suas cercanias.
No condomínio todos devem ser iguais e tutelados sob o re-
gime do síndico, não cabe divergência, pois esses descontentes se
acostumam ou se mudam para outro condomínio. Assim Dunker
(2015) resume o sofrimento gerado pela lógica do condomínio em
quatro tempos. Primeiro o entendimento do condomínio como um
espaço apartado do público a promessa de uma nova forma de vida.
Notemos que a transformação vivida pelo Brasil no período Lula-
Dilma, foi também assimilada discursivamente como uma ameaça
aos muros que mantinham a distinção moral entre as classes, bem
como os privilégios de apossamento financeiro do Estado.
No segundo tempo a segregação, cujo muro é símbolo, que
parece apresentar uma nova comunidade reconhecendo a anomia
como tudo o que está fora do muro e alimentando o que Freud cha-
ma de narcisismo das pequenas diferenças, que, segundo esse autor,
nada mais é do que efeitos do sentimento de culpa. No caso da con-
vulsão social brasileira este foi o ponto de inversão da demanda de
reconhecimento e de inclusão, em uma política de ódio e de segre-
gação mais intensa e mais explícita, ainda que apoiada na assimila-
ção da retórica do protesto.
No terceiro tempo o movimento volta-se para a própria co-
munidade do condomínio, enfim, percebe-se que a felicidade al-
mejada não é alcançada, o sindico não consegue incorporar a lei,
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 361

já que sempre será uma lei sem forma de lei, o vizinho parece go-
zar mais e mais, percebe-se, portanto, que o condomínio não é
uma comunidade, pois falta-lhe um líder que funcione como ideal.
Finalmente a formação do sintoma, que Dunker (2015) elenca al-
guns, cito: “o adolescente sem limite, a dona de casa desesperada, a
criança cujo cuidado é subempreitado, o pai de família casado com
seu trabalho, o funcionário impessoal” (p. 57). Aqui o panelaço for-
nece a substância popular para as manobras jurídicas, as aplicações
seletivas ou transitórias da lei no interior dos diferentes processos
jurídicos necessários para operar a destituição da presidente.
No quarto tempo o panelaço torna-se vergonha e luto. Nas
sacadas e janelas, também não se formam mais grupos, não se rei-
vindica por um projeto coletivo ou uma mudança social. A ex-
ternalização do descontentamento pessoal não evolui para um
compromisso com o novo estado de coisas. A exceção foi produzida,
mas ninguém é virtualmente responsável por ela. Ninguém apoiou
Temer, mas apenas não Dilma. Sua deposição não exprime um
projeto ou traz à luz a realização de um fim. Esta ausência de
sentido, esta lacuna de implicação é o próprio instante de alienação
da fantasia fundamental quando ela processa a inversão ideológica
da demanda. O que se pode encontrar neste quarto tempo é a
exploração secundária do panelaço para justificar a emergência
da reposição do significante mestre, como nome da ordem, como
expressão Quando a voz do ódio toma as ruas, clama pela presen-
ça de um pai poderoso, o exército, a polícia o estado de exceção de
fato. O instante de exceção é ao mesmo tempo o ponto máximo de
alienação e a possibilidade de separação. Aparentemente a escrita do
ódio subsequente parece indicar a primeira solução.
Quando o ódio passa ao escrito, quando ele se faz história e se
erige em lei, ele se vê apropriado por outros discursos metonimica-
mente, que procuram suturar sua emergência pela via da repetição.
Por isso há sempre outro golpe dento do golpe. Por isso ele é uma
série e não um evento de exceção. A fantasia ideológica parece ser
que o sujeito compra a esperança de entrar na sua cidade medieval
deixando para fora toda exceção, mas acaba entrando num campo
de concentração sem se dar conta, sofrendo assim as consequências
desta escolha em forma de sintoma. Por isso, o perigo de demandar
362 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

exército e polícia como uma forma desesperada de retomar o ideal


perdido no condomínio, o preço dessa demanda para a história do
Brasil é a morte de diversas pessoas como tivemos durante a dita-
dura militar.
Fato esse, “esquecido” nessas manifestações onde a selfie com
policiais e militares torna-se artigo de ostentação e gozo. Segundo
a Polícia Militar de São Paulo, protestos que respeitam a lei têm seu
apoio.17 Esse flerte com discursos autoritários personificados pelos
militares brasileiros nos colocam certas indagações em como essa
fantasia ideológica de reciclar uma lógica condominial poderá ser
capaz de suplantar as conquistas democráticas do estado brasileiro
e como poderiam ser capaz de sustentar um estado exceção.

Considerações finais

Como pudemos analisar através da discussão apresentada


por Dunker (2015), a lógica do condomínio revela o que podemos
chamar de estado de exceção brasileiro, uma situação em que sus-
pende-se as leis soberanas do Estado para passar a vigorar uma lei
administrativa, condominial, uma lei flexível que muda de acordo
com a circunstância e o caso concreto, fazendo assim que a legisla-
ção em vigor seja relativizada.
Dessa forma, Agamben (2003, p. 26) irá tentar demonstrar a
atualidade da sua teorização sobre o estado de exceção, passando
por algumas situações contemporâneas nas quais o dispositivo de
segurança jurídica, tornou-se regra, cita fatos, como Guantánamo, e
11 de setembro e apresenta dispositivos em diversos ordenamentos
jurídicos que o estado de exceção se faz presente. Para nós, interes-
sa uma exposição que o autor faz sobre o direito italiano que parece
ter bastante semelhança com o nosso direito. Ele diz que na Itália

17. Imagem e texto disponíveis em:http://www.bbc.com/portuguese/noticias/


2015/04/150413_salasocial_pm_selfies_protesto_rb>. Acesso em: 16 mar.
2016.
Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso ... 363

um dos dispositivos que revela a presença do estado de exceção


como técnica permanente de governo são os decretos de urgências,
nomeado de decreto lei, situação em que o executivo exerce uma
função atípica de legislar. Semelhante situação é vista no Brasil atra-
vés do recurso da medida provisória, que veio substituir o decreto
lei na constituição de 1988, mas que permite, de maneira geral, que
o executivo exerça uma função atípica, legislar.
A emergência do executivo no campo do legislativo é apenas
uma demonstração do que para Agamben é um problema maior,
pois é possível pensar o estado de exceção em um contexto mais
amplo, na aplicabilidade do direito como uma zona de indiferença,
onde não há nem dentro, nem fora do ordenamento jurídico, ape-
nas um limiar onde o dentro e o fora se excluem.
No caso do panelaço e das emergências políticas das manifes-
tações de junho de 2013 vemos a violência seletiva da polícia que
reprime com mãos de ferro alguns manifestantes (junho 2013) e pro-
tege outros (panelaço), selecionando as vidas que merecem ou não
ser vividas. Vemos também um Juiz de direito atuando como um
mestre (remontando a lógica do discurso do mestre de Lacan), con-
duzindo o processo de forma célere em alguns casos e lentas em ou-
tros, colocando em questão a legalidade de seus atos. Vemos também
manifestantes pedindo a intervenção militar, saudosos de um Brasil
que não viveram, considerando que muitos que reivindicam a volta
dos militares nasceram depois de 1986, demonstrando assim o dese-
jo de um soberano (mestre) que tome o lugar da Lei e afirme sua for-
ça e poder. O desejo de um soberano que fundamente todas as leis.
Finalmente, o processo de Impeachment da presidente, por
parte daqueles que perderam a última eleição, sem provas real-
mente válidas de alguma improbidade, seu acolhimento por parte
da Câmara e do Judiciário, sugerindo o caráter político deste pedi-
do mostram-se compatíveis com a anterior suspensão do direito,
anunciada pelos eventos aqui examinados em torno da formação
de um novo estado de exceção no Brasil. A ineficiência ou impro-
dutividade institucional, pode se tornar assim ocasião para a des-
tituição do mau-governante, tal como na vigência da lógica do
condomínio substitui-se o gestor que não goza das leis de acordo
com o muro que ele mesmo criou.
364 Nadir Lara Jr., Marcus Teschainner, Christian Ingo L. Dunker

Referências

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cura di) Torino, Italia: Piccola Biblioteca Einaudi, 1995.
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ticulturalismo. São Paulo: Hucitec, 2005.
O trabalho clínico junto
às populações afetadas pela
violência de Estado

Jorge Broide

Desde onde estamos falando

Ao longo de 42 anos venho trabalhando com o que denomi-


namos situações sociais críticas, com a preocupação e o intuito de
desenvolver diferentes dispositivos psicanalíticos que operem de
forma transformadora na realidade da Cidade. Partimos do princí-
pio que a psicanálise deve estar onde a vida está e que nosso saber
não se valida pelas quatro paredes do consultório, por uma poltro-
na e por um divã — que se constituem num dispositivo genial in-
ventado por Freud — mas sim no trabalho com o inconsciente, na
transferência, em todas as manifestações da vida, e no caso aqui, na
vida nas situações sociais críticas.
Além do consultório particular, temos1 trabalhado como
consultores nas prefeituras das cidades de Porto Alegre, Londrina,
Barueri, Osasco, Piracicaba, Santos, Mogi das Cruzes, Paraty, Rio
de Janeiro e São Paulo. Cabe destacar que a prática de tantos anos
possibilitou que em todas essas prefeituras fossemos contratados
por notório saber, o que segundo a legislação possibilita a contrata-
ção sem licitação pública. Esse é um campo onde pudemos chegar a

1. Grande parte dos trabalhos realizados em conjunto com Emília Estivalet


Broide
366 Jorge Broide

mais de 2.000 trabalhadores que desenvolvem diferentes ações nas


áreas sociais críticas. Também temos desenvolvido trabalhos nas
áreas do Terceiro Setor e com a iniciativa privada.
Nossa ação se estende do atendimento direto, que pode ser
individual, grupal ou institucional, para, cada vez mais, o que qua-
lificamos como “atendimento à Cidade”— onde a vida e o confli-
to verdadeiramente ocorrem — fazendo o que denominamos de
Escuta Territorial. Essa metodologia que criamos tem sido aplicada
em distintos trabalhos realizados no bairro do Butantã na cidade
de São Paulo, no Porto Maravilha no Rio de Janeiro, na cidade de
Paraty para a avaliação dos efeitos da Feira de Literatura (FLIP) e
da Flipinha (trabalho que a FLIP desenvolve ao longo de todo o ano
com as crianças da cidade).
A partir dessa experiência pretendo abordar aqui um caso que
ilustra o que temos realizado, no intuito de trazer algumas questões
e reflexões, para que possamos nos manter pensando e operando
nos tempos sombrios em que estamos e que se aproximam.

O Caso

Entre fevereiro de 2015 e março de 2016 realizamos uma


pesquisa qualitativa sobre a vida das pessoas em situação de rua
na cidade de São Paulo, para a Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania (Broide, E. E; Broide J.; Schor, 2018).
Criamos um dispositivo onde tínhamos como pesquisadores so-
ciais 10 pessoas em situação de rua que capacitamos para a tarefa
de entender o que de fato ocorre na vida nas ruas da cidade. Esse
grupo e o restante de nossa equipe entrevistaram pessoas em situ-
ações de rua e os serviços de atendimento — das equipes técnicas
aos gestores — em toda a cidade de São Paulo.
Uma descoberta importante que fizemos é que o perfil da po-
pulação de rua tem mudado nos últimos anos em São Paulo. Até
pouco tempo atrás a população em situação de rua era constituída
por moradores que, segundo os dados da Coordenação Geral dos
Direitos da População em Situação de Rua da Secretaria de Direitos
O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado 367

Humanos do Governo Federal (2013), haviam sido afetados pelo


alcoolismo e drogas, problemas familiares, perda de moradia, se-
paração e decepção amorosa. Outro dado relevante é o dado da
pesquisa nacional sobre o perfil da População em Situação de Rua
realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social em 2007/2008
a população de em Situação de Rua é composta por: 82% sexo
masculino, 53% possuem idade entre 23 e 44 anos, 67% são ne-
gros, 70% exerce algum tipo de atividade remunerada e 70%cos-
tuma dormir nas ruas Hoje, além desses, vivem nas ruas: famílias
das periferias que vem para as ruas centrais da cidade em busca de
roupas, objetos e alimentos distribuídos por entidades religiosas;
trabalhadores que não retornam aos seus lares durante a semana
devido ao preço do transporte público; os que vivem nas ocupa-
ções, além de um número surpreendente de egressos do sistema pe-
nitenciário (Broide, J.; Broide, E. E. (2016).
Dados do Ministério da Justiça mostram que, entre janeiro de
1992 e junho de 2013, enquanto a população do país cresceu 36%,
o número de pessoas presas aumentou 403,5% (Brandão, 2014). No
que se refere à sua participação na população em situação de rua,
estimada hoje em São Paulo em aproximadamente 20.000 pessoas,
o número de egressos do sistema penitenciário cresceu de 27% para
40% no total. Entre os jovens de 18 a 30 anos passou de 37% para
46% e na faixa etária dos 31 a 40 anos os egressos correspondem a
55% (Fipe, 2015).
Todos esses diferentes grupos utilizam os equipamentos pú-
blicos da Assistência Social, que estão preparados para a quantida-
de de pop rua, segundo a classificação do governo federal. Temos
então uma política pública organizada para uma população que
tem mudado tanto em qualidade, como em quantidade.

Impacto da mudança do perfil da população em


situação de rua

O nível de violência tem crescido nas ruas. Há uma luta pelo


controle de certos territórios da cidade entre traficantes, policiais
368 Jorge Broide

associados ao tráfico, polícia civil, militar, guarda municipal, equi-


pes de saúde, assistência, moradores, entidades religiosas, comer-
ciantes, o restante da população em situação de rua etc.
Ao longo da pesquisa que realizávamos começamos a perce-
ber na transferência com os pesquisadores sociais, em nosso con-
tato direto com a pop rua, com os gestores e com a equipe técnica
de atendimento, que os níveis de violência e também de medo ha-
viam mudado. Os códigos governando convivência e comunicação
usados nas ruas e nos equipamentos eram cada vez mais aqueles do
sistema penitenciário. A rua e os equipamentos de assistência, mais
e mais, passavam a ser controlados pelos egressos do sistema pri-
sional, que impõem as regras das prisões aos demais usuários e às
equipes de trabalho.
Transferencialmente, as relações existentes no sistema peni-
tenciário começavam a se dar nas instituições e na rua. Os técnicos,
que são os psicólogos, assistentes sociais e demais trabalhadores da
assistência, muitas vezes são tratados pelos usuários como agentes
do sistema penitenciário e o abrigo e o albergue passam a ser regi-
dos pelo código da prisão misturados com os da assistência social.
As equipes muitas vezes não entendem mais o que ocorre, estão
ameaçadas e acuadas. Isso não é falado e não é pensado. É atuado
sem palavras, no corpo, no medo e no risco real de alguma situação
de violência entre os usuários e destes com as equipes.
De uma forma inconsciente, a população de rua não oriunda
do sistema penitenciário também passa a se relacionar através dos
códigos e linguagem da prisão. O sistema carcerário passa a exer-
cer uma hegemonia psíquica dentro dos sujeitos, expressando-se de
forma concreta nas ruas e nas instituições de assistência.
Em Santos, recentemente, houve uma tentativa de criação e
venda de senha na porta da Casa de Passagem por parte de egres-
sos do sistema. Em Paraty,2 em nosso trabalho de Escuta Territorial

2. Em Paraty fomos contratados pela FLIP com recursos do Instituto C&A


que havia financiado ao longo de 14 anos a chamada Flipinha. Esta é
composta por atividades desenvolvidas nas escolas da cidade. O trabalho
consiste na formação de mediadores de leitura que são alunos da Escola
O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado 369

para a Flip, avaliando os efeitos da Flipinha, descobrimos um grave


problema na questão da educação e das crianças daquele território
enquanto andávamos como flaneurs, em nosso caminhar a esmo
pelo território conflagrado da cidade escutando moradores, servi-
dores do SUS e SUAS e comerciantes.
Duas facções dominam áreas vizinhas na periferia de Paraty.
Há uma fronteira delimitada por elas, onde quem quer que tenha
alguma relação com as diferentes facções não pode passar para o
lado do inimigo sob o risco de morte, espancamento, ou a raspa-
gem do cabelo e sobrancelhas das mulheres. Ocorre que a escola
está em um dos territórios, e as crianças que estão do lado opos-
to, na situação de ter algum vínculo familiar com outra facção, fato
corriqueiro, não podem cruzar a fronteira e ficam fora da escola.
Em Paraty havia uma cadeia que foi fechada e os presos envia-
dos para as prisões do Rio de Janeiro, dominadas pelas duas facções
que agora dominam o território da periferia da cidade. Uma agente
comunitária de saúde nos conta a cena de duas jovens mães brin-
cando com seus bebês, jogando-os para o alto. Uma dizia: “ele vai
ser o chefe do tráfico”. A outra dizia, “não, vai ser o meu”.
Deparamo-nos com um fenômeno cuja estrutura de relações
navega pelo território e se apresenta transferencialmente associada
a estruturas mais antigas e as dominam, impondo formas de vida
que se expressam por meio da violência e da exclusão, como um
Grande Outro que vai constituído o sujeito no laço cotidiano da fa-
mília, do território, de entrada ou não na escola, e nas possibilida-
des de vida que isso implica.
Mas o que digo aqui vai na direção de culpabilizar o egresso?
Definitivamente não. A população carcerária no Brasil é composta
fundamentalmente por jovens negros que não conseguem se quali-
ficar nas periferias das cidades, forçados pela miséria econômica e
psíquica, pela falta de alternativas a aderirem ao roubo, ao tráfico
de drogas, e outras atividades ilícitas. Em Paraty, como em outras

Normal que realizam a leitura com as crianças ao longo do ano e também


durante a FLIP. Nossa tarefa foi a de realizar uma avaliação dos efeitos
desse trabalho na vida da cidade de Paraty.
370 Jorge Broide

cidades, entendemos que, sem uma política pública séria para o


egresso, onde haja uma possibilidade efetiva de reconstrução de sua
vida, ele é obrigado a levar, mesmo que não queira, o sistema peni-
tenciário para o território, para sua intimidade e para a constituição
do sujeito, como a cena das mães jogando seus bebês para o alto
ilustra tão bem na medida em que desvela quais são os ideais, pro-
jetos de vida e a ética que acabou por dominar o território.

A violência do Estado

Quero dar mais um passo aqui na relação do Estado via Poder


Judiciário e sistema carcerário com o egresso. Vai nos ajudar a en-
tender mais profundamente a violência que se espalha e se repro-
duz no laço social. Realizando um grupo de supervisão em Santos
onde capacitamos toda a equipe do CREAS responsável pelo aten-
dimento aos adolescentes em conflito com a lei em meio aberto e a
população de rua, surge um emergente que passa rápido, meio frag-
mentado. Um trabalhador diz: “É, e ainda tem a multa ...”, e eu, que
trabalho com população de rua há 42 anos pergunto: “Que multa?”
Ele diz: “Aquela que o preso tem que pagar quando sai da cadeia,
que fica correndo durante todo o tempo de prisão e que quando ele
sai muitas vezes já está em 10, 15 mil reais”.
Fiquei muito intrigado. Liguei para um amigo psicólogo da
Defensoria Pública. Ele diz que não sabe e me pede algumas ho-
ras para investigar. Liga mais tarde e diz que a multa de fato existe
e que inclusive há um grupo na Defensoria, organizado pelos de-
fensores públicos para retirá-la dos egressos. Ainda não tinha uma
ideia clara da situação. Liguei então para um amigo, juiz da área da
infância e adolescência. Ele diz que a multa existe, mas que é uma
multa fiscal e que isso não impede ninguém de trabalhar nem tirar
documentos. Mesmo assim, como ele não tinha certeza, me apre-
sentou outro juiz, este sim com grande experiência penal.
Fui falar com ele e relatei a situação que estava ocorrendo nas
ruas e nos equipamentos da cidade. Ele me olha surpreso, pois não
imaginava que a proporção de egressos na população em situação
O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado 371

de rua e seus efeitos fossem tão grandes e diz que a multa existe
sim, e que é uma grande perversidade. Abre o Código penal e mos-
tra que a multa faz parte da sentença. Ali está escrito que para to-
dos os crimes contra o patrimônio, incluindo tráfico de drogas é
pena de “x anos de reclusão, mais multa.”.
Esta começa a contar a partir do momento da prisão.
Quando ele sai, há juros e a correção monetária sobre o valor es-
tipulado pelo juiz. Nos casos que tenho escutado agora os valo-
res giram em torno de 10, 15, 20 mil reais. O não pagamento pelo
egresso significa que não cumpriu uma parte da pena. Assim, o
único documento que pode tirar é a carteira de identidade e se-
gue devedor da justiça. Não pode trabalhar formalmente, e pode
ser preso novamente a qualquer momento. Torna-se também uma
dívida fiscal.
O juiz me relata que a Corregedoria Geral do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo havia feito um documento que pos-
sibilitava aos juízes abonarem a multa penal, mantendo somente a
multa fiscal, o que permite que o sujeito tenha seus documentos e
vida normal. Pergunto a ele qual a porcentagem de juízes que não
abonam a multa penal. Ele me diz: “80%!”.
Em tantos anos de trabalho eu nunca soubera desse fato.
Pensei que eu é que estava sendo negligente. Comecei a checar e
percebi então que os colegas, juízes, gestores, secretários municipais
também não sabiam desta situação. Pergunto-me: “O que é isso?
Como todos ficamos cegos diante de fato tão grave? Que violên-
cia é essa que nos deixa cegos, surdos e mudos?”. Por que o silencio
dos egressos que estão nas ruas? Talvez a vida dentro do Sistema
Penitenciário seja tão apartada da realidade externa aos presídios e
seja vista pela sociedade em geral com tal preconceito, e medo da
violência que esta situação encerra, que o egresso não fale de sua
história pelo temor de mais um passo no processo de exclusão. Por
outro lado, a negação por parte da sociedade sobre o tema, ilustra a
violência que será apresentada a seguir.
A questão da multa penal faz com que a sentença seja mui-
to maior do que parece. Condena o sujeito a mais profunda exclu-
são para o resto da vida. Um fator que me permitiu descobrir o que
ocorria foi o aumento de egressos na população em situação de rua,
372 Jorge Broide

mas certamente esse não é o fator principal. Como já foi dito há


uma negação generalizada.
Vejam como o cerco se fecha: A única saída para um grande
número de egressos é a rua ou a vida clandestina nas periferias e no
crime organizado como forma de sobrevivência, que necessariamen-
te se dá através do laço social estabelecido na ética e na luta pela so-
brevivência nas prisões. Não é possível que alguém saído do sistema
penitenciário sem nenhuma preparação prévia e uma política pú-
blica que possibilite alguma inserção social, e ainda com uma multa
impagável, tenha um destino diferente daquele que relatamos e que
afetam as ruas da cidade, das instituições, das famílias, do laço social.
A violência do Estado aqui impede o surgimento do sujeito
de direitos e do sujeito de desejo. O Grande Outro que se instala
através das relações edípicas, diz de todas as maneiras possíveis que
não quer que ele viva. Tudo isso se apresenta na transferência com
as equipes de atendimento e nas relações sociais como um todo
através da violência, da ausência da palavra e do sentimento mais
profundo de ódio e desamparo.
Impossível não falar aqui da anulação do julgamento da tro-
pa da polícia militar que realizou a chacina do Carandiru. A sen-
tença do juiz, ao dizer que foi legitima defesa, é uma autorização e
estímulo a toda polícia militar do estado de São Paulo para a ação
violenta e a realização de outras chacinas. Nesse caso, pude escu-
tar alguns fragmentos dos dois lados. Um foi no atendimento a
um sobrevivente do Pavilhão 9 da Casa de Detenção (o pavilhão
que foi invadido pela policia militar no massacre do Carandiru).
Ele conseguiu salvar-se sob os corpos dos mortos. O outro foi em
uma oficina de mediação de conflitos e direitos humanos que co-
ordenado, onde um soldado da PM que estava na tropa que inva-
diu o Carandiru relatou que os cachorros enlouqueceram devido à
quantidade de sangue, e que eles tiveram que matá-los ali mesmo.
Comentou ainda sobre altíssimo índice de suicídios e tratamen-
to psiquiátrico dos policiais que participaram da invasão e do seu
medo constante de enlouquecer. Encontram-se todos os anos para
um churrasco e ninguém toca no assunto. Vale dizer aqui, também,
que este fato foi fundamental para a estruturação do PCC, como
uma forma de defesa contra o horror dos presídios.
O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado 373

Conclusão

Para finalizar, quero apresentar aqui o trânsito que fazemos


entre a construção de dispositivos clínicos de escuta psicanalítica e
a gestão e implantação de políticas públicas. Volto ao exemplo da
cidade de Santos. Nossa metodologia de trabalho é a supervisão de
casos trazidos pelas equipes — e aqui não importa se o trabalhador
é formado ou não — onde são abordados os aspectos transferen-
ciais que se apresentam no grupo, na instituição como um todo e
no fluxo do trabalho direto. É através dos emergentes grupais que
surgem nas supervisões, como esse da multa, que são abordados
os conteúdos teóricos que devem ser instrumentos muito concre-
tos para o atendimento do usuário. Dizemos, inclusive, que para a
teoria ter sentido, ela deve funcionar como um abridor de latas de
sardinhas. A lata é uma metáfora dessa realidade tão hermética e de
difícil manejo que encontramos em nosso trabalho.
Entre os dispositivos criados em Santos, e que sempre propo-
mos aos gestores, há uma reunião mensal com a Secretária e sua
equipe direta, para que seja possível a circulação dos conteúdos
que surgem nas supervisões grupais e que vão se constituindo nos
principais significantes do trabalho realizado. É importante que
eles sejam utilizados na gestão direta e na construção de políticas
públicas. É assim que, entre outras ações no que se refere ao caso
aqui relatado, propusemos: 1) uma reunião da Secretária, se pos-
sível com a presença do prefeito, com o Poder Judiciário para evi-
tar que os juízes apliquem a multa penal impagável, 2) a criação de
um convênio da Secretaria de Assistência Social com a Defensoria
Pública de Santos para que montem uma equipe para a defe-
sa dos egressos para a eliminação da multa penal, 3) uma reunião
da Secretária com os responsáveis pelo sistema penitenciário em
Santos para buscar alternativas ao egresso.
A população carcerária brasileira chega a mais de 622 mil
detentos (Ministério de Justiça e Cidadania, 2016). Podemos mul-
tiplicar este número por quatro, se pensarmos na família de cada
um, o que perfaz um total de 2.488.000 pessoas diretamente afeta-
das. Observa-se que a mesma cegueira que atingiu a mim, e segue
374 Jorge Broide

atingindo às equipes, aos secretários, aos gestores, juízes, atinge


também a toda a sociedade e gera uma injustiça, um desespero, um
ódio e uma violência que sentimos cada vez mais em nosso cotidia-
no. Os efeitos de uma tal quantidade de pessoas empurradas para a
clandestinidade, com a experiência da violência da exclusão leva-
da aos limites tão extremos, tendo o crime organizado como única
alternativa de vida, certamente tem um enorme impacto no tecido
social e no cotidiano da vida nas cidades.
Essas estruturas se movimentam pelo território da cidade de
forma muda e se apresentam na transferência através do horror e
da morte. A possibilidade de escutá-las na clínica nos permite ga-
nhar espaços de vida tanto no atendimento direto como nas políti-
cas públicas. Permite-nos ver e falar. Entrar e operar nesse mundo
parece ser um dos desafios mais importantes da psicanálise no
mundo contemporâneo.

Referências

Brandão, M. (2014). População carcerária no Brasil aumentou mais de 400%


em 20 anos. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noti-
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nos-no-brasil>. Acesso em: ????? completar

Broide, E, E.; Broide J.; Schor, S. População de rua. Pesquisa social par-
ticipativa. In: Broide, E, E.; Broide J. População de rua. Pesquisa Social
Participativa. Coordenadores Emilia Estivalet Broide, e Censo, Perfil
Demográfico e Condições de Vida na Cidade de São Paulo. Coordenadora Silvia
Maria Schor. Curitiba: Juruá, 2018. (Práxis Psicanalítica).
Broide, J.; Broide, E. E. (2016). A psicanálise nas situações sociais críticas.
Metodologia clínica e intervenções. 2. ed. São Paulo: Escuta, 2016.
Coordenação Geral dos Direitos da População em Situação de Rua.
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completar
Acesso em: ?????
O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado 375

Ministério da Justiça e da Cidadania (26/04/2016). População carcerária


brasileira chega a 622 mil detentos. Disponível em: <http://www.justica.gov.
br/news/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-de-622-mil-detentos>.
completar
Acesso em: ?????
Sobre os autores

Adela Stoppel de Gueller


Psicanalista. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Realizou
o pós-doutorado “Escritas da clínica com crianças: história e transmissão da
experiência” no Programa de Pós graduação em Psicanálise na Universida-
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora no curso de especialização
em Teoria Psicanalítica, na COGEAE–PUC-SP. Professora e supervisora no
curso de especialização em Psicanálise da criança, no Instituto Sedes Sapien-
tiae. Organizadora, junto com Audrey Setton Lopez de Souza, de Psicanálise
com crianças: Perspectivas teórico-clínicas (Casa do Psicólogo, 2008). Autora de
Atendimento psicanalítico de crianças (Zagodoni, 2011).

Ana Maria Medeiros da Costa


Psicanalista. Membro da APPOA. Professora colaboradora do PPG
em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Coordenadora da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência (CNPq).
Pesquisadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política do Ins-
tituto de Psicologia da USP. Pós-doutoranda no programa de Pós-gra-
duação Psicologia Clínica do IPUSP. Autora, entre outros, dos livros
Corpo e escrita (Relume-Dumará, 2000); Tatuagem e marcas corporais
(Casa do Psicólogo, 2003), Litorais da psicanálise (Escuta, 2015 – 3o
lugar do Prêmio Jabuti 2016). 

Ana Luiza Andrade


Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina. Lí-
der da Linha de pesquisa Arquivo Tempo e Imagem e membro das
Linhas Psicanálise e Literatura e Teoria da Modernidade do Curso de
Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Líder do Núcleo de Estudos
378

Benjaminianos (NEBEN – UFSC-CNPq). Pertence ao Grupo de Pes-


quisa Redes de Pesquisa Escritas da Experiência da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ).

Ana Paula Musatti Braga


Psicanalista. Pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação de Psi-
cologia Clínica do IPUSP. Doutora em Psicologia Clínica pela Univer-
sidade de São Paulo (2016). Especialização em Teoria, técnica e estra-
tégias especiais na psicanálise de crianças e adolescentes na Univer-
sidade de São Paulo (1995). Pesquisadora do Laboratório Psicanálise
e Sociedade e Política do Programa de Pós-graduação da Psicologia
Clínica da USP, desde 2004 e do Núcleo violências: sujeito e política
do Programa de Pós-graduação de Psicologia Social da PUC-SP, de
2004 a 2017. Sua tese de doutoramento e artigos recentes versam so-
bre o homem negro e a mulher negra e sobre racismo.

Catarina Koltay
Psicanalista. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São
Paulo (1968). Graduação em Sociologie pela Université Paris Descartes(1971),
especialização em DESS on Planificacion de L’Education pela Université Pa-
ris 1 Pantheon-Sorbonne(1975). Mestrado em Planejamento dos Recursos
Humanos pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne(1977). Doutorado em
Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo(1997). Foi Professora na Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência nas áreas de Sociologia e
Psicanálise. Atua principalmente nos seguintes temas: estrangeiro, Psicanálise,
Política. Tem vários livros e artigos publicados.

Christian Ingo Lenz Dunker


Psicanalista. Professor Titular do Departamento de Psicologia Clí-
nica  do  Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Rea-
lizou pós-doutorado, supervisionado por Ian Parker e Erica Burman
na Manchester Metropolitan University, pelo qual foi laureado como
“Pesquisa Inovadora em Crítica e Linguagem”. Sua tese de Livre Do-
cência foi publicada na Inglaterra e no Brasil. É membro da Escola dos
Fóruns do Campo Lacaniano. Junto com Vladimir Safatle e Nelson da
Silva Jr. fundou o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise
da USP (Latesfip-USP). Ganhou o Prêmio Jabuti 2012 em Psicologia e
Psicanálise com a obra Estrutura e constituição da clínica psicanalítica
379

(Annablume, 2011) e, em segundo lugar, com o livro Mal-estar, sofri-


mento e sintoma (Boitempo, 2015), em 2016. Publicou vários outros
livros.

Daniel Coelho
Psicanalista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
e do Departamento de Psicologia da UFS. Mestre e Doutor em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ).

Doris Rinaldi
Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ), membro do colegiado de docen-
tes do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do IP/UERJ, Pro-
cientista da UERJ, Coordenadora, junto com Ana Costa, da Rede de
Pesquisa Escritas da Experiência (CNPq), Psicanalista, membro de
Intersecção Psicanalítica do Brasil Psicanalítica do Brasil.

Eduardo Leal Cunha


Psicanalista. Psicólogo. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e
Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro – UFRJ. Professor do Depto. de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e
Pesquisador Associado do CRPMS/Université de Paris VII – Diderot.

Emília Estivalet Broide


Psicanalista. Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Pesquisadora
do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e política da USP. Membro
da APPOA. Pesquisa em saúde pública e saúde coletiva; assistência
social; psicanálise nas situações sociais críticas; juventude; adolescen-
tes em conflito com a lei; violência e vulnerabilidades sociais; grupos
na perspectiva de Pichon Rivière e Lacan. Tem artigos publicados e
vários livros destacando-se A supervisão como interrogante da prá-
xis analítica: desejo de analista e a transmissão da psicanálise (Escuta,
2017). Em coautoria: População de rua: pesquisa social participativa e
perfil demográfico e condições de vida em São Paulo (Juruá, 2018); A
psicanálise nas situações sociais críticas: metodologia, clínica e inter-
venções (Escuta, 2015); Pode Pá: uma nova abordagem em medidas falta
socioeducativas em meio aberto (????, 2016). editora
380

Esteban Radiszcz
Psicanalista. Professor de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise
e Doutor em Psicanálise e psicopatologia (Université Paris 7 Denis
Diderot). Professor Associado do Departamento de Psicologia da Fa-
culdade de Ciências Sociais, onde é diretor do Laboratório Transdis-
ciplinar em Práticas Sociais e Subjetividade (LaPSoS) e pesquisador
do Programa de Estudos Psicanalíticos: Clínica y Cultura. Entre suas
publicações se encontra sua participação como Editor dos Volumes:
Malestar y destinos del malestar: políticas de la desdicha (Social-E-
diciones, 2014) y Malestar y destinos del malestar: artes del descon-
tento (Social-Ediciones, 2015). Asimismo, es traductor al español
de libro de Geneviève Morel La ley de la madre. Ensayo sobre el sin-
thome sexual (FCE, 2012). Autor de artigos em revistas indexadas e
capítulos de livros publicados no Chile e no estrangeiro.

Ilana Mountian
Psicanalista. Pesquisadora e docente (bolsa PNPD/CAPES) no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestrado em psicologia e saúde
pública pela Manchester Metropolitan University (1999) e doutorado em
Psicologia pela Manchester Metropolitan University (2005). Pós-doutora pela
Manchester Metropolitan University (2009). Pesquisadora honorária do Re-
search Institute for Health and Social Change da Manchester Metropolitan
University. Foi bolsista PRODOC/CAPES na Universidade Federal de Minas
Gerais e bolsista Fapesp em pós-doutorado no Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo. Foi conselheira do Conselho Regional de Psicologia de
São Paulo (2014-2016). Seus temas de pesquisa são: gênero, drogas, imigração.
Autora do livro Cultural Ecstasies: drugs, gender and the social imaginary (Lon-
dres e Nova York: Routledge).

Ivan Estevão
Psicanalista. Professor de Psicologia da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP). Professor
do programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto
de Psicologia da USP. Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e
Sociedade do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Fórum do
Campo Lacaniano. Experiência na área de Psicologia, com ênfase em
teoria e clínica psicanalítica e sua epistemologia e também em saú-
de mental, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise,
Lacan, Freud, neurose e psicose e articulação da psicanálise com as
teorias sociais.
381

Joao Fantini
Psicanalista. Mestre e Doutor pela PUC de São Paulo. Pós-doutorado
na University of London (Birkbeck College) em 2012. Atualmente é
Professor Associado IV do curso de Psicologia da Universidade Fede-
ral de São Carlos. Pesquisa sobre Sintomas na Clínica Contemporâ-
nea e Estudos sobre Intolerância (UFSCar) e Semiótica Psicanalítica
(PUC-SP). Líder de grupo de pesquisa e orientador em cursos de gra-
duação e pós-graduação na Psicologia da UFSCar e na USP e PUC-SP
como professor convidado. Autor de Raízes da intolerância (Edufscar,
2014); Semiótica psicanalítica: clínica da cultura (Iluminuras, 2013);
Imagens do pai no cinema: clínica da cultura (EDUFCAR, 2009), entre
outros. Editor da revista Leitura Flutuante do Centro de Estudos em
Semiótica e Psicanálise da PUC-SP.

Jorge Broide
Psicanalista. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Professor na Facul-
dade de Ciências Humanas e da Saúde – PUC/SP. Professor no Centro de Es-
tudos Psicanalíticos. Analista membro da APPOA. Consultor na área de Po-
líticas Públicas e Desenvolvimento Social a Secretarias Municipais, Estaduais
Ministérios e Iniciativa Privada. Analista Institucional. Pesquisa: juventude;
adolescentes em conflito com a lei; violência e vulnerabilidades sociais, psi-
canálise nas situações sociais críticas. Tem vários livros, destacando-se A psi-
canálise nas situações sociais críticas: violência, juventude e periferia, em uma
abordagem grupal (Juruá , 2010). Em coautoria publicou: População de rua:
pesquisa social participativa e perfil demográfico e condições de vida em São
Paulo (Juruá, 2018); A psicanálise nas situações sociais críticas: metodologia, clí-
nica e intervenções (Escuta, 2015); Pode Pá: uma nova abordagem em medidas
falta
socioeducativas em meio aberto (?????, 2016). editora

Marcus Teschainner
Psicanalista. Possui graduação em Psicologia e em Direito pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre e Doutor em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro
do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universida-
de de São Paulo (LATESFIP/USP). Participante da Escola de Psicaná-
lise do Forum do Campo Lacaniano de São Paulo. Tem experiência na
área de Sociologia, Psicologia Clínica e Filosofia, atuando principal-
mente nos seguintes temas: Psicanálise, Biopolítica, Agamben, Poder
e Foucault. 
382

Marta Quaglia Cerruti


Psicanalista. Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Clí-
nica do IPUSP. Pesquisadora do Laboratório Psicanálise e Política da
USP. Professora do Departamento Formação em Psicanálise do Ins-
tituto Sedes Sapientiae. Sua área de atuação é sobre violências, parti-
cularmente violência de Estado; trabalha com populações vulneráveis
particularmente com adolescentes; articula psicanálise e arte.

Mauro Mendes Dias


Psicanalista. Diretor do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise.
Realiza apresentação de pacientes no Hospital São João de Deus, em
parceria, e coordena o Seminário “A Voz na Neurose Obsessiva”, no
Instituto Vox. Autor de livros e artigos em Psicanálise, sendo o último
deles, como organizador de uma coletânea sobre a Voz na experiência
falta ano
psicanalítica (Zagodoni, ????).

Miriam Debieux Rosa


Psicanalista. Professora Associada ao Programa de Psicologia Clíni-
ca da USP, onde coordena o Laboratório Psicanálise e Sociedade, e o
Grupo Veredas: Psicanálise e Imigração. Autora de Histórias que não
se contam: psicanálise com crianças e adolescentes, reeditado pela Casa
do Psicólogo, em 2010, co-organizadora de Debates sobre a adolescên-
cia contemporânea e o laço social (Juruá, 2012) e de Desejo e política:
desafios e perspectivas no campo da imigração e refúgio (Max Limonad,
2013). Autora de A clínica psicanalítica face ao sofrimento sócio-políti-
co (Escuta e Fapesp, 2016 – primeiro lugar no Prêmio Jabuti 2017, na
área de psicologia e psicanálise).

Nadir Lara Jr.


Pós-doutorando no Departamento de Psicologia Clínica (bolsista
FAPESP) na Universidade de São Paulo – USP. Mestre (2004) e Dou-
tor (2010) em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católi-
ca de São Paulo – PUC-SP. Realizou estágio de Doutorado na Man-
chester Metropolitan University (2008). Tem experiência na área de
Psicologia Social Crítica e também Psicologia Clínica. Suas áreas de
interesses são: psicanálise, teoria política, educação, saúde coletiva.

Oscar Angel Cesarotto


Psicanalista. Doutor em Comunicação & Semiótica. Professor no
383

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação & Semióti-


ca, e coordenador do curso de especialização Semiótica Psicanalítica
– Clínica da cultura (COGEAE), da PUC-SP. Autor de vários livros,
destacando Inconsciências (Iluminuras, 2018).
 
Priscilla Santos de Souza
Psicanalista. Mestre pelo Departamento de Psicologia Clínica do
IPUSP e pesquisadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade do
IPUSP. Graduada em História e em Psicologia. Especialista em Pro-
blemas do Desenvolvimento da Infância e Adolescência – Abordagem
Interdisciplinar (2014). Atua como Técnica em Assuntos Educacio-
nais na Universidade Federal do ABC – Santo André. Pesquisa nas
áreas: psicanálise, sociedade, política, políticas públicas, adolescência,
drogas, racismos.

Pablo Castanho
Professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. Membro do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise
das Configurações Vinculares (NESME). Membro da International
Association for Group Psychotherapy and Group Processes (IAGP) e
da rede interuniversitária Groupes et liens intersubjectifs

Paulo Endo
Psicanalista. Professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
USP e da Pós-graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legiti-
midades da FFLCH/USP. Coordena o Grupo de Pesquisa em Direitos
Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos
Avançados da USP. Pesquisador da Unit Research on Dreams, Me-
mory and Imagination Studies, dos Territórios Clínicos de la Memória
(TeCMe-Argentina) e membro da Memory Studies Associaion (Dina-
marca). Foi Professor Visitante na Universidade de Gdansk (Polônia)
em 2015. Pós-doutoramento no CEBRAP (2004-2005). Foi membro
do: Grupo Interdisciplinar Independente de Combate à Tortura e à
Violência Institucional da SEDH da Presidência da República; Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e à Violência Institucional
no Brasil (CNPCT); da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz,
Direitos Humanos, Democracia e Tolerância do IEA- USP. Tem livros
e artigos publicados, entre eles o livro A violência no coração da cidade:
um estudo psicanalítico, que foi agraciado com o Prêmio Jabuti (2005).
384

Patrícia do Prado Ferreira


Pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (IPUSP–FAPESP–2015/15215-8). Foi pesquisadora visitante
de pós-doutorado no King’s College London, na Inglaterra, em
2017/2018 (BEPE-FAPESP). Doutora em Psicologia Social pelo Pro-
grama de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP;
pesquisadora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da
USP e do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP. Pesquisa mo-
vimentos sociais, grupos, poder e política.

Raonna Martins
Psicanalista. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e doutoran-
da em Psicologia Clínica pela USP-SP. Pesquisadora do Laboratório
de Psicanálise, Sociedade e Política do IP-USP.  Pesquisa nas áreas:
políticas públicas, drogadição, escuta clínica em contextos violentos,
violência de estado, grupos.

Sandra Luzia Alencar


Psicanalista. Doutora em Psicologia Social pela PUC- SP. Integrante
do Laboratório Psicanálise e Sociedade. Pesquisa nas áreas: políticas
públicas de saúde e saúde mental, escuta clínica em contextos violen-
tos, violência de estado, grupos, redes de assistência.

Sérgio Eduardo Lima Prudente


Psicanalista. Professor da  Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN, Campus Santa Cruz – FACISA. Pós-doutor pelo Ins-
tituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Mestre
em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Doutor em Psicologia Social pelo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC
-SP com estágio doutoral na Université Paris 13 – Nord. Pesquisador
do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/ USP).
385

Pareceristas

Clarice Pimentel Paulon


Dirceu A. Scali Júnior
Eduardo Leal Cunha
João Ezequiel Grecco
Gabriel Binkowski
Heloisa Marcon
Heloisa Caldas
Isabel Tatit
Jaquelina Imbrisi
Lucia Serrano Pereira
Michele Kamers
Marcelo Checchia
Marcelo Galletti Ferretti
Ramon José Ayres Souza
Roselene Gurski

Miriam, favor indicar a instituição e lo-


cal a que pertencem os pareceristas.

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