Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
educação básica
Resumo
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 147
Racial inequalities in the Brazilian primary
education system
Abstract
Contact:
Keywords
José Francisco Soares
Universidade Federal de Minas Gerais
Instituto de Ciências Exatas - Depto School performance – Race – Primary school – Saeb.
de Estatística
Caixa Postal: 702
30123-970 — Belo Horizonte – MG
E-mail: jfsoares@icex.ufmg.br
148 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003
Introdução o desenvolvimento de sua autonomia pessoal e
de um pensamento crítico.
Mesmo antes de a Constituição brasilei- No entanto na educação básica, princi-
ra de 1988 consagrar o princípio de que o palmente no ensino fundamental, é crucial o
acesso ao ensino básico é direito público sub- desenvolvimento das competências de leitura e
jetivo, tanto o governo federal como os estadu- o domínio de habilidades básicas em matemá-
ais e municipais vinham priorizando programas tica. Essa idéia está consagrada na Constituição
de construção de escolas e contratação de brasileira que estabelece no seu artigo 210 que
professores para atendimento de crianças de 7 “serão fixados conteúdos mínimos para o ensi-
a 14 anos. Com isso criou-se no Brasil um gran- no fundamental, de maneira a assegurar forma-
de sistema de ensino fundamental, que atende ção básica comum e respeito aos valores cul-
hoje a quase totalidade das crianças de 7 a 14 turais e artísticos nacionais e regionais”. Não se
anos. O ensino médio também caminha na di- trata de optar por apenas um dos quatro gran-
reção da universalização com cobertura atual de des objetivos, desprezando-se os outros, mas
85% dos jovens de 15 a 17 anos.1 No entan- sim de reconhecer a importância das competên-
to, a escola continua sendo um produto social cias cognitivas para se atingir os outros obje-
desigualmente distribuído. Desigualdades no tivos. Difícil imaginar ser possível formar um
ingresso aos diferentes tipos e níveis de ensi- cidadão crítico que não saiba ler. Além das
no persistem, ainda que se manifestem hoje de competências cognitivas viabilizarem a aquisi-
forma menos maciça e mais sutil. Essas desi- ção de outras competências, elas são também
gualdades são moduladas por filtros socioeco- mais dependentes da estrutura escolar.
nômicos, raciais, localização (urbana, rural) e Diante disso, a primeira forma de se
por tipo de rede escolar (pública, particular). verificar a “qualidade da educação” é estudar a
Há, portanto, dois problemas fundamentais: a freqüência à escola, conceito tomado neste
qualidade do ensino de uma forma geral e as texto como incluindo não só a matrícula em
desigualdades entre os estratos sociais. uma escola mas também a permanência do
A noção de qualidade no ensino traduz aluno, sua promoção para diferentes etapas do
uma idéia complexa. Em todas as sociedades, a ensino e a conclusão do ensino fundamental. As
educação básica assume múltiplos objetivos, diferentes dimensões da freqüência à escola (o
que são definidores desse princípio. Em geral, acesso, a permanência, a promoção e a conclu-
esses objetivos têm sido agregados em quatro são) têm sido medidas em vários levantamentos
grandes domínios: (1) o cognitivo, abrangendo oficiais realizados pelo Instituto Brasileiro de
a aquisição de competências intelectuais e Geografia e Estatístico (IBGE), por meio do
domínio de diferentes áreas do conhecimento; Censo Populacional e da Pesquisa Nacional por
(2) o vocacional, que inclui a aquisição das Amostra de Domicílios (PNAD), e pelo Ministé-
informações e habilidades necessárias à inser- rio da Educação (MEC), por meio do Censo
ção no mundo do trabalho produtivo; (3) o Escolar.
social, relacionado com o preparo para a par- A análise dos dados produzidos pela
ticipação ética em uma sociedade plural e com- PNAD tem possibilitado uma vasta produção de
plexa; e (4) o pessoal, enfatizando o desenvol- pesquisas no campo da estratificação social.
vimento de talentos pessoais, por exemplo, Esses estudos, com base em dados levantados
artísticos ou desportivos. No Brasil, a própria ao longo de várias décadas, são fundamentais
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para se entender os fenômenos da mobilidade
(LDB) reconhece que, além da formação acadê-
mica, a escola deve contemplar a questão da 1. Fonte: GRANDES números do ensino básico: 2001. Disponível em:
cidadania, a formação ética e social do aluno, <http://www.inep.gov.br>. Acesso em dez. 2002.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 149
social, das carreiras no mercado de trabalho e descrevemos os dados analisados no trabalho;
da distribuição de renda no país, traçando um na segunda seção, apresentamos o conceito de
quadro amplo da nossa história de iniqüidades gradiente socioeconômico e mostramos como
sociais (Scalon, 1999; Pastore; Silva, 2000; esse conceito ajuda a entender os problemas da
Figueiredo Santos, 2002). Além disso, eles têm qualidade do ensino, expressa em termos de
revelado a importância dos indicadores educa- desempenho escolar, e da iniqüidade entre alu-
cionais de acesso ao ensino formal e de anos nos segundo a raça; na seção seguinte, desta-
de estudos completos na definição dos contor- camos os fatores escolares que impactam o pro-
nos de nossa sociedade (Hasenbalg; Silva, blema das desigualdades raciais; e concluímos
2000), e das diferenças entre os estratos so- com uma discussão sobre possíveis estratégias de
ciais e, de especial interesse para a reflexão superação do problema.
apresentada neste texto, entre os grupos ra-
ciais na realização educacional (Hasenbalg, Os dados do Saeb – Sistema de Avaliação
1979; Hasenbalg et al., 1999; Henriques, 2001). da Educação Básica
Embora úteis e necessários, os indica-
dores de qualidade usados nesses estudos, to- O Saeb tem como objetivo gerar infor-
dos baseados na freqüência à escola, são mui- mações sobre a qualidade, a eqüidade e a efi-
to indiretos e não são suficientes para compre- ciência da educação básica nacional. Os admi-
ender a situação atual da estratificação educa- nistradores públicos encontram no Saeb infor-
cional em nossa sociedade, que assume contor- mações úteis para a criação e a avaliação de
nos muito diferentes do que possuía há vinte políticas, programas e projetos que visam à
anos, devido à expansão generalizada do ensi- melhoria da educação. A sociedade em geral
no. É preciso entender o fenômeno da qualida- dispõe de uma síntese concreta dos resultados
de da educação e da desigualdade educacional cognitivos dos processos escolares, junto a uma
com dados de desempenho acadêmico. descrição das condições sob as quais esses
Isso é hoje possível usando os dados resultados são obtidos.
obtidos com o Saeb — Sistema de Avaliação da O Saeb teve início em 1990, e vem
Educação Básica —, organizado pelo Instituto sendo realizado a cada dois anos, desde 1993.
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais O sistema avalia alunos ao final de cada ciclo,
(Inep) do MEC. São dados ricos do ponto de no ensino fundamental (4 a e 8 a séries) e no
vista pedagógico, pois descrevem com muito ensino médio (3a série).
maior clareza os resultados esperados do siste- Em todos os ciclos os alunos foram
ma educacional e o alcance desses resultados testados em Língua Portuguesa e Matemática.
entre os diversos estratos escolares e sociais. Segundo o relatório final do Saeb 2001
Esses dados fornecem não só uma medida de
desempenho dos alunos mas também variáveis (...) os testes utilizados são elaborados a
que podem explicá-lo. partir das Matrizes de Referencia construídas
O objetivo deste texto é, utilizando os para a avaliação do Saeb, tendo como base
dados do Saeb-2001, analisar várias questões as Diretrizes Curriculares Nacionais, a Lei das
associadas à cor ou raça dos alunos. Pretende- Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as
se caracterizar o desempenho escolar dos alu- propostas curriculares de todos os estados
nos, segundo os grupos de raça, e as estrutu- da Federação. (Saeb, 2002, p.22)
ras escolares que favorecem um melhor desem-
penho de uma forma geral e que também dimi- Para garantir a inclusão de itens refe-
nuem as desigualdades. O texto está organi- rentes a todos os descritores, unidade na qual
zado da seguinte maneira: na primeira seção, as matrizes são expressas, os testes do Saeb são
organizados de modo que os alunos façam mações coletadas são confidenciais; os resul-
testes diferentes, mas com itens comuns. A tados divulgados são agregados para o país, as
proficiência dos alunos é a estimativa de um regiões ou as unidades da Federação. Não há
parâmetro de modelo da Teoria de Resposta ao referência aos indivíduos participantes do le-
Item. Como o planejamento do teste inclui itens vantamento.
comuns entre as diferentes séries testadas e Há uma literatura crescente sobre o
entre os diferentes anos, pode-se expressar as Saeb. Para se entender os aspectos da amostra
proficiências dos alunos testados nos diferen- utilizada pode-se consultar o plano amostral
tes ciclos do Saeb e nas diferentes séries em do levantamento em Andrade, Silva e Bussab
uma mesma escala. Naturalmente há expectativa (2001). Franco (2001) reúne um conjunto de
de que os alunos de 4a série do ensino funda- artigos de reflexão crítica sobre o Saeb 1997.
mental apresentem valores menores nessa esca- O texto de Bonanimo (2002) é o mais comple-
la e os alunos de 3 a série do ensino médio, to, apresentando uma síntese da evolução his-
valores maiores. As diferenças observadas ano tórica, descrição das metodologias usadas e o
a ano são o resultado das intervenções feitas no impacto do sistema. O planejamento do Saeb
sistema entre os intervalos de aplicação ou fru- 2001 está descrito em Locatelli (2002) bem
to de variação amostral. A metodologia de como os principais resultados do relatório final,
construção da proficiência está descrita em divulgado pelo Inep (Inep, 2002). Os dois pri-
Klein e Fontanive (1995). A escala de profi- meiros ciclos do Saeb foram avaliados em Cres-
ciência varia entre 100 e 500. A interpretação po, Soares e Silva (2000).
dessa escala indica os valores de desempenho Neste artigo vamos utilizar os dados do
esperado ao fim de cada uma das séries testa- Saeb 2001, principalmente os resultados do
das no Saeb. O quadro 1 apresenta a indicação teste de matemática da 8a série do ensino fun-
desses valores. damental. Nesse ciclo foram testados 50.300
Além dos testes, são aplicados questi- alunos em todo o Brasil, organizados em 5.151
onários contextuais aos alunos, diretores e pro- turmas, atendidos por 4.922 professores, em
fessores para coletar informações sobre as ca- 4.065 escolas.
racterísticas demográficas e socioeconômicas O questionário do Saeb é auto-aplica-
dos entrevistados, contendo itens sobre o per- do. Freqüentemente, isso resulta em problemas
curso escolar e hábitos de estudo dos alunos, nos dados obtidos, principalmente aqueles re-
questões relacionadas à gestão, administração lativos aos alunos do primeiro ciclo avaliado (4a
e infra-estrutura da escola, à prática docente, série), que muitas vezes não conhecem detalhes
à formação, experiência e condições de traba- da vida familiar, acarretando uma grande inci-
lho de diretores e professores. Todas as infor- dência de dados ausentes. Assim, o controle dos
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 151
dados vem se dando pela análise das séries his- Ta bela 1. Proficiência segundo raça dos alunos da 8 a série em
matemática
tóricas dos ciclos do Saeb. A distribuição dos
alunos entre os diversos estratos sociais tem se
mantido equivalente à de outros indicadores
oficiais, e as tendências gerais relativas ao de-
sempenho escolar não têm revelado resultados * Entre parênteses, o desvio padrão.
discrepantes aos que seriam esperados.
Algumas observações sobre a forma proficiência média de 325 pontos; e, depois,
como trabalhamos a variável raça do aluno nes- observamos que entre alunos brancos e pardos
te trabalho. Nos questionários do Saeb, a per- há uma diferença de 17,4 pontos, e de quase
gunta sobre a raça ou cor do aluno aparece da 28 pontos entre os brancos e negros. Essa é
seguinte forma: “Como você se considera? uma desigualdade real que vem se mantendo
1. Branco(a); 2. Pardo(a)/Mulato(a); 3. Negro(a); na mesma proporção em toda a série de levan-
4. Amarelo(a); 5. Indígena”. Com essa formulação tamentos do Saeb.
não há uma clara distinção entre “cor”, “raça” ou Embora útil, esse tipo de apresentação
“origem étnica” no sentido discutido por Guima- é muito limitado para descrever a realidade
rães (1995) e Schwartzman (1999). Portanto, neste brasileira, onde as desigualdades sociais são
texto, quando falamos de raça ou cor, não esta- muito grandes. Ou seja, para se entender a
remos fazendo distinção conceitual entre os ter- realidade apresentada pelo Saeb é preciso
mos. Outro aspecto a ser observado é que a for- explicitar a diferença socioeconômica entre os
ma dessa pergunta se difere da utilizada nos le- alunos. O que é feito por meio do conceito de
vantamentos do IBGE, que classifica a cor ou raça “gradiente socioeconômico”.
dos entrevistados segundo as categorias: branca, Para a construção do gradiente, o
preta, amarela, parda ou indígena. Comparações primeiro passo é definir uma medida do ní-
nas questões relacionadas à raça obtidas nas duas vel socioeconômico. Não há consenso sobre
fontes de dados devem ser feitas com cautela. Fi- como medir o nível socioeconômico para es-
nalmente, optamos por excluir da análise os alu- tudos de desempenho escolar. Se, por um
nos que se consideram amarelo ou indígena, lado, concorda-se que o índice deva incluir
porque o número de casos é pequeno, com dis- indicadores de renda, educação e prestigio
tribuição concentrada em algumas unidades da ocupacional dos pais, não é claro como cada
Federação. um desses indicadores deva ser construído.
Além disso, para análises da realidade edu-
Gradientes socioeconômicos: uma síntese cacional, deve-se considerar também o pa-
das desigualdades educacionais drão cultural das famílias (Nogueira, 1996,
2000, 2003). Assim sendo, neste trabalho
Os dados de proficiência do Saeb são desenvolvemos um índice que embora deno-
usualmente sintetizados em tabelas nas quais se minado de socioeconômico inclui também
apresentam as médias do desempenho dos alunos indicadores culturais. Os detalhes sobre o
estratificadas pelos fatores de interesse. A tabela índice construído estão no Apêndice.
1 mostra para os dados de 2001 os níveis de A Figura 1, construída com os dados de
desempenho dos alunos discriminados por raça. todos os alunos testados no Saeb 2001 em
Na tabela 1, sublinhamos dois aspec- Matemática na 8a série do ensino fundamental,
tos: primeiro, que a proficiência em matemáti- ilustra o conceito de gradiente socioeconômico
ca da média dos alunos brasileiros, 245 pontos, utilizado neste trabalho.
é muito baixa. Conforme os valores do Quadro A figura mostra a proficiência dos es-
1, seria esperada para alunos da 8a série uma tudantes de famílias de diferentes níveis socio-
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 153
Observamos no gradiente da figura 2 muito mais restritas. Daí a necessidade de usar
que o impacto da posição social na proficiên- a estatística para, por assim dizer, simular os
cia dos alunos brancos é bem maior do que experimentos controlados.
para os alunos negros, ficando os alunos par- Os modelos de regressão múltipla são
dos numa situação intermediária. Entre os alu- métodos estatísticos que permitem lidar com
nos com posição social mais baixa, a diferen- fenômenos nos quais a variável-resposta é in-
ça entre os três grupos é mínima, enquanto nas fluenciada simultaneamente por muitos fato-
posições mais privilegiadas o grau de proficiên- res. Uma análise das variáveis uma a uma tem
cia entre os eles se diferencia bastante, o que um interesse limitado, pois muitos desses fa-
pode ser facilmente observado pela inclinação tores estão associados entre si. Por exemplo,
das retas, mais acentuada entre os alunos bran- sabemos que alunos de alta posição social,
cos do que entre os negros. Isso significa que em média, têm melhor rendimento escolar e
para os alunos negros subir na escala de pres- vão a escolas que oferecem bom ensino. Quan-
tígio social não implica a melhoria do nível de do encontramos uma escola com alto desem-
desempenho escolar na mesma proporção que penho, não sabemos se esse desempenho é
ocorre com os alunos brancos. alto porque seus alunos já eram bons antes ou
O gradiente deixa claro que a diferença porque a escola oferece, de fato, um bom en-
de desempenho escolar observada entre alunos sino. Da mesma forma, a superioridade de um
brancos, pardos e negros não encontra explica- aluno deve-se a fatores socioeconômicos ou
ção somente na condição socioeconômica. Com ao seu desempenho escolar prévio? A análise
base nos dados do Saeb, nos indagamos se de regressão linear múltipla permite estimar a
podemos encontrar evidências sobre a origem contribuição de cada fator para explicar as
dessas diferenças na variação dos contextos proficiências, descontadas as contribuições
escolares. dos outros fatores incluídos no modelo. É
preciso registrar, entretanto, que os resultados
Modelos de análise obtidos são completamente dependentes dos
modelos escolhidos. Ou seja a escolha dos
Para investigar a associação entre fato- modelos é passo crucial na análise dos dados.
res escolares e o desempenho escolar dos alu- O tipo de modelo de regressão aqui
nos e também a relação entre esses fatores e a utilizado, os modelos hierárquicos, tem amplo
diferença de desempenho entre os alunos dis- campo de aplicação, mas são particularmente
criminados por raça utilizamos, como ferramen- adequados para a análise de dados educacio-
ta básica de análise, os modelos lineares hie- nais, visto que esses possuem uma evidente
rárquicos de regressão múltipla. estrutura hierárquica, com os alunos agrupados
Os modelos de regressão são técnicas em salas de aulas, que estão reunidas dentro de
estatísticas desenvolvidas para medir a força da escolas e que por sua vez podem ser agrupa-
associação entre um fator específico e os resul- das em sistemas de ensino ou regiões geográ-
tados do processo em análise. Nas ciências ficas. Essa técnica estatística é muito útil por-
experimentais, para isolar o impacto de cada que ela permite captar os relacionamentos
variável, um experimento é realizado mantendo complexos que se concretizam entre os fatores
todas as outras constantes. Por exemplo, no de cada um dos níveis e como os vários níveis
caso da agricultura, para conhecer o efeito puro se influenciam mutuamente. Os detalhes técni-
de um novo tipo de semente, planta-se a velha cos desses modelos estão descritos em Bryk e
e a nova lado a lado, mantendo tudo o mais Raudenbush (1992) e Goldstein (1995).
constante. Nas ciências humanas, as possibili- Para estudar as questões de interesse
dades de fazer experimentos controlados são neste texto utilizamos um modelo básico de
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 155
fran_tab_01
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 157
Alguns fatores do aluno que favorecem mas internos e externos à escola”. Como foram
o desempenho escolar também têm impacto na poucos os professores com 8 e 9 característi-
diferença de desempenho entre alunos de dife- cas presentes, a escala final variou de 0 a 7. No
rentes cores mas, novamente, aumentando a caso de escola consideramos os fatores: “Salá-
desigualdade. A diferença no desempenho es- rio do diretor”, “Existência de recursos pedagó-
colar entre alunos negros e brancos que gos- gicos”, “Boa manutenção do prédio, isto é, ins-
tam de estudar é maior do que entre aqueles talações físicas, salas de aula e limpeza”, “Exis-
que não gostam; o mesmo ocorre entre alunos tência de equipamentos”, “Percepção de segu-
pardos e brancos em relação à lição de casa (a rança”, “Percepção do diretor sobe a existência
diferença é maior entre alunos que fazem lição de problemas internos e externos” e “Avaliação
de casa) e à existência de livros em casa (maior do diretor sobre o comprometimento dos pro-
quantidade se associa a mais iniqüidade). fessores”. Poucas escolas tiveram as 7 caracte-
Todos os fatores escolares, incluindo rísticas positivas e assim a escala final variou de
os professores, e familiares indicam a mesma 0 a 6. Além dos fatores que caracterizam o
tendência. Eles sugerem que as condições es- professor e a escola, construímos também um
colares positivas se potencializam quando se fator para caracterizar o “bom” aluno, agregan-
referem aos alunos brancos, produzindo uma do as seguintes variáveis: “Gosta de estudar”,
espiral favorável que os impulsiona bem mais “Existência de livros em casa”, “Faz lição de
do que impulsiona os alunos negros e pardos. casa”, “Hábitos de leitura” e “Envolvimento dos
Assim, esse resultado mostra que a melhoria das pais na vida escolar do filho”. Nesse caso, a
condições de ensino pode contribuir para ele- escala final variou de 0 a 5.
var a média do desempenho escolar, mas com Naturalmente existem muitos outros fa-
sensíveis desigualdades entre estratos sociais. tores que caracterizam a “boa” escola e o “bom”
Tem sido recorrentemente verificado professor, assim como o “bom” aluno. Para uma
que o efeito isolado de cada fator, principal- síntese da literatura pertinente pode-se consul-
mente daqueles associado à escola e ao profes- tar, por exemplo, Willms (1992), Lee, Bryk e
sor, é pequeno. Ou seja, a escola e o professor Smith (1993), e Darling-Hammond (2000). Em
fazem diferença, principalmente quando pos- um levantamento como o Saeb, cuja principal
suem um conjunto de características positivas função é produzir uma medida do nível dos
e não porque têm uma ou outra característica alunos, nem todos esses fatores podem ser in-
específica. cluídos. Ou seja, os fatores considerados nos
Para trazer essa visão mais global em nossos indicadores são apenas a síntese dos
relação à escola e ao professor para a análise, fatores disponíveis no Saeb e associados a me-
construímos dois fatores que caracterizam o lhor desempenho dos alunos.
“bom” professor e a “boa” escola. Registramos, A tabela 4 mostra o resultado dos mo-
para cada professor e escola, o número das delos, nos quais, como feito anteriormente,
características favoráveis que possuem entre controlamos as características socioeconômicas
aquelas medidas pelo Saeb e que se mostraram
positivamente associadas ao desempenho. No
Ta bela 4. Impacto nas diferenças na proficiência segundo a cor do aluno
caso do professor incluímos: “Licenciatura em
matemática”, “Expectativa em relação ao de-
sempenho dos alunos”, “Percentual do progra-
ma já desenvolvido”, “Método de ensino de
matemática centrado em exercícios”, “Boa rela-
ção com o diretor”, “Boa relação com a equi-
pe”, “Salário”, “Sexo” e “Percepção dos proble-
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 159
Fig. 5. Fator professor: licenciatura em matemática Fig. 6. Fator professor: salário
Fig. 7. Fator aluno: faz lição de casa Fig. 8. Fator aluno: existência de livros
para o desempenho dos alunos das três ra- diferença entre brancos e negros é sempre bem
ças, segundo os fatores: envolvimento do di- maior.
retor; equipamentos da escola; qualificação Os dados disponíveis não permitem
do professor; salário do professor; lição de identificar causas específicas para esses resul-
casa realizada pelos alunos; existência de li- tados. Uma primeira indicação é a de que os
vros na casa do aluno. Para a construção dos alunos negros não usufruem das melhorias da
gráficos, discretizamos os fatores em apenas escola da mesma maneira que os alunos bran-
dois níveis: menor nível ou ausência do fator cos, por práticas e atitudes internas às escolas.
e maior nível ou presença do fator. Outra possibilidade é que as melhorias se
A análise dos gráficos mostra que o potencializam: pequenas diferenças pessoais,
desempenho dos estudantes é menor quando quando inseridas em contextos mais favoráveis
são baixos os níveis dos fatores, mas nessa (escolas com melhor infra-estrutura, melhores
situação existe mais igualdade de desempenho professores, colegas com atraso escolar menor),
entre as raças. Por outro lado, nos níveis mais iniciam uma espiral de melhoria dos resultados.
altos dos fatores nota-se aumento de desempe- Os alunos sem essas pequenas vantagens iniciais
nho para os alunos de todas as raças, mas a não conseguem usufruir o melhor ambiente.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 161
em um único índice. Essa técnica é freqüente- numa combinação linear das variáveis originais
mente utilizada na resolução de problemas en- que as sintetizam e explicam.
volvendo um certo número de variáveis, em que
se deseja a redução desse número com a fina- Variáveis utilizadas nos modelos
lidade de facilitar o entendimento analítico dos
dados. Assim, a partir de uma análise da matriz O quadro abaixo, apresenta a descrição
de correlação das diversas variáveis, é possível das variáveis utilizadas nos modelos estatísticos
obter indicadores sintéticos, que consistem de análise.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 163
Estimação dos Componentes da Variância
Referências bibliográficas
ANDRADE, D.; SILVA P. L. N; BUSSAB, W. O. O plano amostra para o SAEB 2001: versão final. Brasília: INEP/MEC, 2001.
BARBOSA, M. E. F; FERNANDES, C. A escola brasileira faz diferença? uma investigação dos efeitos da escola na proficiência em
matemática dos alunos da 4a série. In: FRANCO, C. Promoção, ciclos e avaliação educacional. Porto Alegre: ArtMed, 2001. p.
155-172.
BONAMINO, A. M. C. Tempos de avaliação educacional: o SAEB, seus agentes, referências e tendências. Rio de Janeiro: Quartet
Editora & Comunicação Ltda, 2002.
BRYK, A. S.; RAUDENBUSH, S. W. Hierarchical linear models. Newbury Park: Sage, 1992.
COLEMAN, J. S. et al. Equality of Educational Opportunity. Washington: US Government Printing Office, 1966.
CRESPO, M.; SOARES, J. F.; SOUZA, A. M. E. The brazilian national evaluation system of basic education: context, process and
impact. Studies In Educational Evaluation, Kiglington, v. 20, p. 105-125, 2000.
DARLING-HAMMOND, L. Teacher quality and student achievement: a review of state policy evidence. Education Policy Analysis
Archives. v. 8 n. 1, jan. 2000.
FIGUEIREDO SANTOS, J. A. Estrutura de posições de classe no Brasil: mapeamento, mudanças e efeitos na renda. Belo Horizonte:
UFMG/IUPERJ, 2002.
FRANCO, C. (Org.). Promoção, ciclos e avaliação educacional. Porto Alegre: ArtMed, 2001.
GUIMARÃES, A. S. A. ‘Raça’, racismo e grupos de cor no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 27, p. 45-63, 1995.
HASENBALG, C.; SILVA, N. V. Tendências de desigualdades educacional no Brasil. Dados: revista de ciências sociais, Rio de Janeiro,
v. 43, n. 3, p.423-445, 2000.
______. Educação e diferenças raciais na mobilidade ocupacional no Brasil. In: ______ et al. (Org.). Cor e estratificação social.
Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999. p. 218-234.
HENRIQUES, R. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 1990. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.
(Textos para discussão n. 807)
KLEIN, R.; FONTANIVE, N.S. Avaliação em larga escala: uma proposta inovadora. Em Aberto, Brasília, n. 66, p. 29-35, 1995..
LEE, V. E.; BRYK, A. S.; SMITH, J. The Organization of effective secondary schools. In: DARLING-HAMMOND, L. Review of research
in education. Washington: American Educational Research Association, 1993. p. 171-267.
LOCATELLI, I. Construção de instrumentos para a avaliação em larga escala e indicadores de rendimento: o modelo do Saeb.
Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, n. 25, p. 2-21, 2002.
NOGUEIRA, M. A. A escolha do estabelecimento de ensino pelas famílias: a ação discreta da riqueza cultural. Revista Brasileira de
Educação, n. 7, p. 42-56, jan./abr. 1998.
______. Construção da excelência escolar: um estudo de trajetórias feito com estudantes universitários provenientes das camadas
médias intelectualizadas. In: ALMEIDA, A.M.F.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N.O. (Orgs.). Família & escola: trajetórias de escolarização
em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 125-154.
______. Estratégias de escolarização em famílias de empresários. In: ALMEIDA, A. M. F.; NOGUEIRA, M. A. (Orgs.). A escolarização
das elites. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 49-65.
ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT. Pisa 2000: first results. Paris, 2001.
PASTORE, J.; SILVA, N. V. Mobilidade social no Brasil. São Paulo: Nobel, 2000.
SCALLON, M. C. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro: Revan-IUPERJ/UCAM, 1999.
SCHWARTZMAN, S. Fora de foco: diversidade e identidades étnicas no Brasil. Novos Estudos CEPRAP, São Paulo, n. 54, p. 83-96,
1999.
SOARES, J. F. Quality and equity in Brazilian basic education: facts and possibilities In: SEMINÁRIO SOBRE EDUCAÇÃO BRASILEIRA, fev. 2003,
Oxford. Anais. Oxford: University of Oxford, 2003.
______.; CÉSAR, C. C.; MAMBRINI, J. Determinantes de desempenho dos alunos do ensino básico brasileiro: evidências do SAEB
de 1997. In: FRANCO, C. Promoção, ciclos e avaliação educacional. Porto Alegre: ArtMed, 2001. p. 121-153.
WILLMS, J. D. Monitoring school performance: a guide for educators. Londres: The Famer Press, 1992.
Recebido em 18.03.03
Aprovado em 19.05.03
José Francisco Soares é Ph. D. em Estatística. Professor-titular do Departamento de Estatística da Universidade Federal
de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (GAME-UFMG).
Maria Teresa Gonzaga Alves é mestre em Sociologia. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (GAME-UFMG).
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 165