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Desigualdades raciais no sistema brasileiro de

educação básica

José Francisco Soares


Maria Teresa Gonzaga Alves
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O Saeb — Sistema de Avaliação da Educação Básica — vem acom-


panhando o desempenho acadêmico dos alunos de educação
básica brasileira desde 1990. Seus dados permitem conhecer os
sistemas de ensino em sua capacidade de produção de eficácia e
de equidade educacional em relação aos diferentes estratos so-
ciais. Este artigo analisa as desigualdades do desempenho escolar
entre alunos discriminados por raça, com ênfase no impacto de
algumas políticas e práticas escolares na produção de equidade
entre esses grupos.
Este estudo utilizou, como técnica privilegiada de análise, os
modelos de regressão que permitem manter na análise os dois
níveis hierárquicos presentes nos dados, isto é, alunos e escolas.
Os resultados mostram que (1) há um grande hiato entre alunos
brancos e negros e, em menor grau, entre alunos brancos e par-
dos em relação ao desempenho escolar; e (2) os fatores produ-
tores de eficácia do ensino não têm uma distribuição equânime,
pois eles favorecem principalmente o desempenho escolar dos
estratos socialmente mais privilegiados, ou seja, alunos brancos,
contribuindo, na maioria das situações analisadas, para acirrar e
não reduzir a diferença basal entre os grupos raciais.
Concluímos este trabalho ponderando que a alteração desse
quadro dependerá da implementação de políticas públicas e es-
colares para produzir um equilíbrio mais justo entre a eficácia e
a equidade na educação.*
Correspondência:
José Francisco Soares Palavras-chave
Universidade Federal de Minas
Gerais
Instituto de Ciências Exatas — Depto Desempenho escolar — Raça — Ensino fundamental — Saeb.
de Estatística
Caixa Postal: 702
30123-970 — Belo Horizonte — MG
E-mail: jfsoares@icex.ufmg.br

* Os autores agradecem a Juliana


Mambrini pela inestimável ajuda na aná-
lise estatística dos dados, em particular
no ajuste dos modelos estatísticos.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 147
Racial inequalities in the Brazilian primary
education system

José Francisco Soares


Maria Teresa Gonzaga Alves
Universidade Federal de Minas Gerais

Abstract

The Saeb – Primary Education Evaluation System (Sistema de Ava-


liação da Educação Básica) has been following the performance
of students at primary education in Brazil since 1990. Its results
reveal the school systems’ ability to produce efficacy, and
educational equity with respect to the different social strata. This
article analyzes the inequalities in school performance of
students classified by race, with emphasis on the impact of some
school policies and practices in the production of equity among
race groups.
The study employed as its main analysis technique regression
models that allow keeping in the analysis both hierarchical levels
present in the data – students and schools.
Results show that (1) there is a wide gap in performance between
white and black students, and, to a lesser extent, between white
and mixed race students; and (2) the factors producing efficacy in
teaching do not have equal distribution, for they favor mainly the
school performance of students from the upper social strata, i.e.,
white students, contributing in most situations analyzed to
intensify, and not to reduce, the original differences among race
groups.
In conclusion, the text argues that changing the present picture will
require the implementation of policies for public schools to produce
a better balance between efficacy and equity in education.*

Contact:
Keywords
José Francisco Soares
Universidade Federal de Minas Gerais
Instituto de Ciências Exatas - Depto School performance – Race – Primary school – Saeb.
de Estatística
Caixa Postal: 702
30123-970 — Belo Horizonte – MG
E-mail: jfsoares@icex.ufmg.br

* The authors want to thank Juliana


Mambrini for the invaluable help given
with the statistical analysis of the data,
particularly in the adjustment of statistical
models.

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Introdução o desenvolvimento de sua autonomia pessoal e
de um pensamento crítico.
Mesmo antes de a Constituição brasilei- No entanto na educação básica, princi-
ra de 1988 consagrar o princípio de que o palmente no ensino fundamental, é crucial o
acesso ao ensino básico é direito público sub- desenvolvimento das competências de leitura e
jetivo, tanto o governo federal como os estadu- o domínio de habilidades básicas em matemá-
ais e municipais vinham priorizando programas tica. Essa idéia está consagrada na Constituição
de construção de escolas e contratação de brasileira que estabelece no seu artigo 210 que
professores para atendimento de crianças de 7 “serão fixados conteúdos mínimos para o ensi-
a 14 anos. Com isso criou-se no Brasil um gran- no fundamental, de maneira a assegurar forma-
de sistema de ensino fundamental, que atende ção básica comum e respeito aos valores cul-
hoje a quase totalidade das crianças de 7 a 14 turais e artísticos nacionais e regionais”. Não se
anos. O ensino médio também caminha na di- trata de optar por apenas um dos quatro gran-
reção da universalização com cobertura atual de des objetivos, desprezando-se os outros, mas
85% dos jovens de 15 a 17 anos.1 No entan- sim de reconhecer a importância das competên-
to, a escola continua sendo um produto social cias cognitivas para se atingir os outros obje-
desigualmente distribuído. Desigualdades no tivos. Difícil imaginar ser possível formar um
ingresso aos diferentes tipos e níveis de ensi- cidadão crítico que não saiba ler. Além das
no persistem, ainda que se manifestem hoje de competências cognitivas viabilizarem a aquisi-
forma menos maciça e mais sutil. Essas desi- ção de outras competências, elas são também
gualdades são moduladas por filtros socioeco- mais dependentes da estrutura escolar.
nômicos, raciais, localização (urbana, rural) e Diante disso, a primeira forma de se
por tipo de rede escolar (pública, particular). verificar a “qualidade da educação” é estudar a
Há, portanto, dois problemas fundamentais: a freqüência à escola, conceito tomado neste
qualidade do ensino de uma forma geral e as texto como incluindo não só a matrícula em
desigualdades entre os estratos sociais. uma escola mas também a permanência do
A noção de qualidade no ensino traduz aluno, sua promoção para diferentes etapas do
uma idéia complexa. Em todas as sociedades, a ensino e a conclusão do ensino fundamental. As
educação básica assume múltiplos objetivos, diferentes dimensões da freqüência à escola (o
que são definidores desse princípio. Em geral, acesso, a permanência, a promoção e a conclu-
esses objetivos têm sido agregados em quatro são) têm sido medidas em vários levantamentos
grandes domínios: (1) o cognitivo, abrangendo oficiais realizados pelo Instituto Brasileiro de
a aquisição de competências intelectuais e Geografia e Estatístico (IBGE), por meio do
domínio de diferentes áreas do conhecimento; Censo Populacional e da Pesquisa Nacional por
(2) o vocacional, que inclui a aquisição das Amostra de Domicílios (PNAD), e pelo Ministé-
informações e habilidades necessárias à inser- rio da Educação (MEC), por meio do Censo
ção no mundo do trabalho produtivo; (3) o Escolar.
social, relacionado com o preparo para a par- A análise dos dados produzidos pela
ticipação ética em uma sociedade plural e com- PNAD tem possibilitado uma vasta produção de
plexa; e (4) o pessoal, enfatizando o desenvol- pesquisas no campo da estratificação social.
vimento de talentos pessoais, por exemplo, Esses estudos, com base em dados levantados
artísticos ou desportivos. No Brasil, a própria ao longo de várias décadas, são fundamentais
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para se entender os fenômenos da mobilidade
(LDB) reconhece que, além da formação acadê-
mica, a escola deve contemplar a questão da 1. Fonte: GRANDES números do ensino básico: 2001. Disponível em:
cidadania, a formação ética e social do aluno, <http://www.inep.gov.br>. Acesso em dez. 2002.

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social, das carreiras no mercado de trabalho e descrevemos os dados analisados no trabalho;
da distribuição de renda no país, traçando um na segunda seção, apresentamos o conceito de
quadro amplo da nossa história de iniqüidades gradiente socioeconômico e mostramos como
sociais (Scalon, 1999; Pastore; Silva, 2000; esse conceito ajuda a entender os problemas da
Figueiredo Santos, 2002). Além disso, eles têm qualidade do ensino, expressa em termos de
revelado a importância dos indicadores educa- desempenho escolar, e da iniqüidade entre alu-
cionais de acesso ao ensino formal e de anos nos segundo a raça; na seção seguinte, desta-
de estudos completos na definição dos contor- camos os fatores escolares que impactam o pro-
nos de nossa sociedade (Hasenbalg; Silva, blema das desigualdades raciais; e concluímos
2000), e das diferenças entre os estratos so- com uma discussão sobre possíveis estratégias de
ciais e, de especial interesse para a reflexão superação do problema.
apresentada neste texto, entre os grupos ra-
ciais na realização educacional (Hasenbalg, Os dados do Saeb – Sistema de Avaliação
1979; Hasenbalg et al., 1999; Henriques, 2001). da Educação Básica
Embora úteis e necessários, os indica-
dores de qualidade usados nesses estudos, to- O Saeb tem como objetivo gerar infor-
dos baseados na freqüência à escola, são mui- mações sobre a qualidade, a eqüidade e a efi-
to indiretos e não são suficientes para compre- ciência da educação básica nacional. Os admi-
ender a situação atual da estratificação educa- nistradores públicos encontram no Saeb infor-
cional em nossa sociedade, que assume contor- mações úteis para a criação e a avaliação de
nos muito diferentes do que possuía há vinte políticas, programas e projetos que visam à
anos, devido à expansão generalizada do ensi- melhoria da educação. A sociedade em geral
no. É preciso entender o fenômeno da qualida- dispõe de uma síntese concreta dos resultados
de da educação e da desigualdade educacional cognitivos dos processos escolares, junto a uma
com dados de desempenho acadêmico. descrição das condições sob as quais esses
Isso é hoje possível usando os dados resultados são obtidos.
obtidos com o Saeb — Sistema de Avaliação da O Saeb teve início em 1990, e vem
Educação Básica —, organizado pelo Instituto sendo realizado a cada dois anos, desde 1993.
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais O sistema avalia alunos ao final de cada ciclo,
(Inep) do MEC. São dados ricos do ponto de no ensino fundamental (4 a e 8 a séries) e no
vista pedagógico, pois descrevem com muito ensino médio (3a série).
maior clareza os resultados esperados do siste- Em todos os ciclos os alunos foram
ma educacional e o alcance desses resultados testados em Língua Portuguesa e Matemática.
entre os diversos estratos escolares e sociais. Segundo o relatório final do Saeb 2001
Esses dados fornecem não só uma medida de
desempenho dos alunos mas também variáveis (...) os testes utilizados são elaborados a
que podem explicá-lo. partir das Matrizes de Referencia construídas
O objetivo deste texto é, utilizando os para a avaliação do Saeb, tendo como base
dados do Saeb-2001, analisar várias questões as Diretrizes Curriculares Nacionais, a Lei das
associadas à cor ou raça dos alunos. Pretende- Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as
se caracterizar o desempenho escolar dos alu- propostas curriculares de todos os estados
nos, segundo os grupos de raça, e as estrutu- da Federação. (Saeb, 2002, p.22)
ras escolares que favorecem um melhor desem-
penho de uma forma geral e que também dimi- Para garantir a inclusão de itens refe-
nuem as desigualdades. O texto está organi- rentes a todos os descritores, unidade na qual
zado da seguinte maneira: na primeira seção, as matrizes são expressas, os testes do Saeb são

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Quadro 1. Relação esperada entre níveis de proficiência e ciclos dos níveis de ensino — Saeb

Nível de proficiência Matemática Português

escala Saeb Ciclo e nível de ensino Ciclo e nível de ensino

100 Não significativo Até o fim da 2 a série do ensino fundamental


175 Até o fim da 2 a série do ensino fundamental Até o fim da 4 a série do ensino fundamental
250 Até o fim da 4 a série do ensino fundamental Até o fim da 8 a série do ensino fundamental
325 Até o fim da 8 série do ensino fundamental
a
Até o fim da 3a série do ensino médio
400 Até o fim da 3 a série do ensino médio Além do fim do ensino médio

Fonte: Relatório Saeb-97

organizados de modo que os alunos façam mações coletadas são confidenciais; os resul-
testes diferentes, mas com itens comuns. A tados divulgados são agregados para o país, as
proficiência dos alunos é a estimativa de um regiões ou as unidades da Federação. Não há
parâmetro de modelo da Teoria de Resposta ao referência aos indivíduos participantes do le-
Item. Como o planejamento do teste inclui itens vantamento.
comuns entre as diferentes séries testadas e Há uma literatura crescente sobre o
entre os diferentes anos, pode-se expressar as Saeb. Para se entender os aspectos da amostra
proficiências dos alunos testados nos diferen- utilizada pode-se consultar o plano amostral
tes ciclos do Saeb e nas diferentes séries em do levantamento em Andrade, Silva e Bussab
uma mesma escala. Naturalmente há expectativa (2001). Franco (2001) reúne um conjunto de
de que os alunos de 4a série do ensino funda- artigos de reflexão crítica sobre o Saeb 1997.
mental apresentem valores menores nessa esca- O texto de Bonanimo (2002) é o mais comple-
la e os alunos de 3 a série do ensino médio, to, apresentando uma síntese da evolução his-
valores maiores. As diferenças observadas ano tórica, descrição das metodologias usadas e o
a ano são o resultado das intervenções feitas no impacto do sistema. O planejamento do Saeb
sistema entre os intervalos de aplicação ou fru- 2001 está descrito em Locatelli (2002) bem
to de variação amostral. A metodologia de como os principais resultados do relatório final,
construção da proficiência está descrita em divulgado pelo Inep (Inep, 2002). Os dois pri-
Klein e Fontanive (1995). A escala de profi- meiros ciclos do Saeb foram avaliados em Cres-
ciência varia entre 100 e 500. A interpretação po, Soares e Silva (2000).
dessa escala indica os valores de desempenho Neste artigo vamos utilizar os dados do
esperado ao fim de cada uma das séries testa- Saeb 2001, principalmente os resultados do
das no Saeb. O quadro 1 apresenta a indicação teste de matemática da 8a série do ensino fun-
desses valores. damental. Nesse ciclo foram testados 50.300
Além dos testes, são aplicados questi- alunos em todo o Brasil, organizados em 5.151
onários contextuais aos alunos, diretores e pro- turmas, atendidos por 4.922 professores, em
fessores para coletar informações sobre as ca- 4.065 escolas.
racterísticas demográficas e socioeconômicas O questionário do Saeb é auto-aplica-
dos entrevistados, contendo itens sobre o per- do. Freqüentemente, isso resulta em problemas
curso escolar e hábitos de estudo dos alunos, nos dados obtidos, principalmente aqueles re-
questões relacionadas à gestão, administração lativos aos alunos do primeiro ciclo avaliado (4a
e infra-estrutura da escola, à prática docente, série), que muitas vezes não conhecem detalhes
à formação, experiência e condições de traba- da vida familiar, acarretando uma grande inci-
lho de diretores e professores. Todas as infor- dência de dados ausentes. Assim, o controle dos

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dados vem se dando pela análise das séries his- Ta bela 1. Proficiência segundo raça dos alunos da 8 a série em
matemática
tóricas dos ciclos do Saeb. A distribuição dos
alunos entre os diversos estratos sociais tem se
mantido equivalente à de outros indicadores
oficiais, e as tendências gerais relativas ao de-
sempenho escolar não têm revelado resultados * Entre parênteses, o desvio padrão.
discrepantes aos que seriam esperados.
Algumas observações sobre a forma proficiência média de 325 pontos; e, depois,
como trabalhamos a variável raça do aluno nes- observamos que entre alunos brancos e pardos
te trabalho. Nos questionários do Saeb, a per- há uma diferença de 17,4 pontos, e de quase
gunta sobre a raça ou cor do aluno aparece da 28 pontos entre os brancos e negros. Essa é
seguinte forma: “Como você se considera? uma desigualdade real que vem se mantendo
1. Branco(a); 2. Pardo(a)/Mulato(a); 3. Negro(a); na mesma proporção em toda a série de levan-
4. Amarelo(a); 5. Indígena”. Com essa formulação tamentos do Saeb.
não há uma clara distinção entre “cor”, “raça” ou Embora útil, esse tipo de apresentação
“origem étnica” no sentido discutido por Guima- é muito limitado para descrever a realidade
rães (1995) e Schwartzman (1999). Portanto, neste brasileira, onde as desigualdades sociais são
texto, quando falamos de raça ou cor, não esta- muito grandes. Ou seja, para se entender a
remos fazendo distinção conceitual entre os ter- realidade apresentada pelo Saeb é preciso
mos. Outro aspecto a ser observado é que a for- explicitar a diferença socioeconômica entre os
ma dessa pergunta se difere da utilizada nos le- alunos. O que é feito por meio do conceito de
vantamentos do IBGE, que classifica a cor ou raça “gradiente socioeconômico”.
dos entrevistados segundo as categorias: branca, Para a construção do gradiente, o
preta, amarela, parda ou indígena. Comparações primeiro passo é definir uma medida do ní-
nas questões relacionadas à raça obtidas nas duas vel socioeconômico. Não há consenso sobre
fontes de dados devem ser feitas com cautela. Fi- como medir o nível socioeconômico para es-
nalmente, optamos por excluir da análise os alu- tudos de desempenho escolar. Se, por um
nos que se consideram amarelo ou indígena, lado, concorda-se que o índice deva incluir
porque o número de casos é pequeno, com dis- indicadores de renda, educação e prestigio
tribuição concentrada em algumas unidades da ocupacional dos pais, não é claro como cada
Federação. um desses indicadores deva ser construído.
Além disso, para análises da realidade edu-
Gradientes socioeconômicos: uma síntese cacional, deve-se considerar também o pa-
das desigualdades educacionais drão cultural das famílias (Nogueira, 1996,
2000, 2003). Assim sendo, neste trabalho
Os dados de proficiência do Saeb são desenvolvemos um índice que embora deno-
usualmente sintetizados em tabelas nas quais se minado de socioeconômico inclui também
apresentam as médias do desempenho dos alunos indicadores culturais. Os detalhes sobre o
estratificadas pelos fatores de interesse. A tabela índice construído estão no Apêndice.
1 mostra para os dados de 2001 os níveis de A Figura 1, construída com os dados de
desempenho dos alunos discriminados por raça. todos os alunos testados no Saeb 2001 em
Na tabela 1, sublinhamos dois aspec- Matemática na 8a série do ensino fundamental,
tos: primeiro, que a proficiência em matemáti- ilustra o conceito de gradiente socioeconômico
ca da média dos alunos brasileiros, 245 pontos, utilizado neste trabalho.
é muito baixa. Conforme os valores do Quadro A figura mostra a proficiência dos es-
1, seria esperada para alunos da 8a série uma tudantes de famílias de diferentes níveis socio-

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econômicos. A posição dos pontos nesta figura Cabe destacar que não existe uma re-
é afetada não só pela qualidade geral dos sis- lação unívoca entre a proficiência e o índice de
temas de ensino das diferentes unidades da posição social. Muitos alunos com níveis baixos
Federação mas também por fatores econômi- nesse índice têm desempenho muito acima do
cos, sociais e culturais dos estudantes. Pode- que seria predito pelo gradiente.
se observar que estudantes de famílias com O gradiente socioeconômico pode ser
maior nível socioeconômico têm maiores graus modulado por muitas variáveis, como a rede da
de proficiência, mas há grande variação em escola (pública ou privada), a localização (ur-
torno dessa tendência. Os dados são sintetiza- bana ou rural), o gênero e a raça dos alunos.
dos em uma reta, ou seja, uma diferença no Nesses casos, o gráfico terá várias retas, uma
índice socioeconômico está associada com a para cada um dos estratos discriminados. A fi-
mesma diferença de proficiência ao longo de gura 2 apresenta o gradiente socioeconômico,
toda a distribuição. segundo a raça do aluno.

Fig. 1. Gradiente socioeconômico

Fig. 2. Gradiente socioeconômico para a raça do aluno

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Observamos no gradiente da figura 2 muito mais restritas. Daí a necessidade de usar
que o impacto da posição social na proficiên- a estatística para, por assim dizer, simular os
cia dos alunos brancos é bem maior do que experimentos controlados.
para os alunos negros, ficando os alunos par- Os modelos de regressão múltipla são
dos numa situação intermediária. Entre os alu- métodos estatísticos que permitem lidar com
nos com posição social mais baixa, a diferen- fenômenos nos quais a variável-resposta é in-
ça entre os três grupos é mínima, enquanto nas fluenciada simultaneamente por muitos fato-
posições mais privilegiadas o grau de proficiên- res. Uma análise das variáveis uma a uma tem
cia entre os eles se diferencia bastante, o que um interesse limitado, pois muitos desses fa-
pode ser facilmente observado pela inclinação tores estão associados entre si. Por exemplo,
das retas, mais acentuada entre os alunos bran- sabemos que alunos de alta posição social,
cos do que entre os negros. Isso significa que em média, têm melhor rendimento escolar e
para os alunos negros subir na escala de pres- vão a escolas que oferecem bom ensino. Quan-
tígio social não implica a melhoria do nível de do encontramos uma escola com alto desem-
desempenho escolar na mesma proporção que penho, não sabemos se esse desempenho é
ocorre com os alunos brancos. alto porque seus alunos já eram bons antes ou
O gradiente deixa claro que a diferença porque a escola oferece, de fato, um bom en-
de desempenho escolar observada entre alunos sino. Da mesma forma, a superioridade de um
brancos, pardos e negros não encontra explica- aluno deve-se a fatores socioeconômicos ou
ção somente na condição socioeconômica. Com ao seu desempenho escolar prévio? A análise
base nos dados do Saeb, nos indagamos se de regressão linear múltipla permite estimar a
podemos encontrar evidências sobre a origem contribuição de cada fator para explicar as
dessas diferenças na variação dos contextos proficiências, descontadas as contribuições
escolares. dos outros fatores incluídos no modelo. É
preciso registrar, entretanto, que os resultados
Modelos de análise obtidos são completamente dependentes dos
modelos escolhidos. Ou seja a escolha dos
Para investigar a associação entre fato- modelos é passo crucial na análise dos dados.
res escolares e o desempenho escolar dos alu- O tipo de modelo de regressão aqui
nos e também a relação entre esses fatores e a utilizado, os modelos hierárquicos, tem amplo
diferença de desempenho entre os alunos dis- campo de aplicação, mas são particularmente
criminados por raça utilizamos, como ferramen- adequados para a análise de dados educacio-
ta básica de análise, os modelos lineares hie- nais, visto que esses possuem uma evidente
rárquicos de regressão múltipla. estrutura hierárquica, com os alunos agrupados
Os modelos de regressão são técnicas em salas de aulas, que estão reunidas dentro de
estatísticas desenvolvidas para medir a força da escolas e que por sua vez podem ser agrupa-
associação entre um fator específico e os resul- das em sistemas de ensino ou regiões geográ-
tados do processo em análise. Nas ciências ficas. Essa técnica estatística é muito útil por-
experimentais, para isolar o impacto de cada que ela permite captar os relacionamentos
variável, um experimento é realizado mantendo complexos que se concretizam entre os fatores
todas as outras constantes. Por exemplo, no de cada um dos níveis e como os vários níveis
caso da agricultura, para conhecer o efeito puro se influenciam mutuamente. Os detalhes técni-
de um novo tipo de semente, planta-se a velha cos desses modelos estão descritos em Bryk e
e a nova lado a lado, mantendo tudo o mais Raudenbush (1992) e Goldstein (1995).
constante. Nas ciências humanas, as possibili- Para estudar as questões de interesse
dades de fazer experimentos controlados são neste texto utilizamos um modelo básico de

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dois níveis hierárquicos: o aluno no nível 1 e diferença de desempenho dos alunos negros e
a escola no nível 2. No modelo de primeiro pardos em relação aos brancos. Não discutimos,
nível incluímos, como variáveis de controle, o em todos os casos, as estimativas para o tama-
nível socioeconômico e o atraso escolar, aqui nho do efeito de cada variável. Isso porque, por
tomado como um indicador da proficiência um lado, as inter-relações entre os fatores as-
prévia do aluno. Como variáveis de controle no sociados ao desempenho cognitivo são com-
modelo de segundo nível incluímos a rede, o plexas e, por outro, qualquer intervenção em
nível socioeconômico da escola, medido pelo fatores sociais, escolares ou familiares impacta
nível socioeconômico médio dos alunos e o não só a proficiência do aluno, mas também os
nível médio de atraso escolar. Para os leitores outros fatores explicativos. Na nova situação os
interessados, apresentamos os detalhes desse dados previamente coletados terão pequena
modelo básico no Apêndice. capacidade de previsão. Ou seja, os dados exis-
Em outras palavras, para estudar o tentes permitem que apontemos com mais se-
efeito de variáveis, tanto no nível da profici- gurança a direção do efeito de possíveis inter-
ência quanto no de seu impacto na diferença venções, mas não de estimar com precisão o
constatada entre alunos de diferentes raças, tamanho do efeito esperado.
equalizamos, pela sua condição socioeco- Apresentaremos, primeiramente, os re-
nômica e cognitiva, tanto os alunos quanto as sultados do ajuste do modelo básico, descrito
escolas. Assim sendo, o efeito de algum fator na seção anterior. Os valores estimados para
só será verificado se não puder ser atribuído esse modelo estão no Apêndice. Em seguida
às características sociais e cognitivas dos alu- apresentamos a medida do impacto de fatores
nos e das escolas. Trata-se portanto de opção escolares, pessoais e sociais.
dura para verificar a existência de um efeito.
Existem controvérsias se, em geral, esse rigor Modelo básico
é completamente adequado (Bryk; Randesbush,
1992, p. 128). No entanto, justifica-se no Bra- Ajustando-se o modelo básico, verifi-
sil, onde as desigualdades sociais são tão camos primeiramente o que já foi amplamen-
acentuadas que qualquer análise da realidade te reportado em outros estudos brasileiros e
social que não as leve em consideração é ina- em centenas de estudos internacionais: tanto
dequada. a posição social do aluno como a de sua es-
Verificamos o efeito de cada variável na cola estão fortemente associadas ao seu nível
proficiência adicionando-a ao modelo básico e da proficiência.
testando sua significância estatística. Agimos de A influência da posição social individual
forma análoga para estudarmos o impacto de é reconhecida pelo menos desde a publicação do
uma variável na diferença de desempenho entre relatório Coleman, nos anos 1960 (Coleman et al.,
brancos e negros e entre brancos e pardos. 1966). O nível socioeconômico do aluno é,
Nesse caso, entretanto, por motivos técnicos, o sabidamente, o fator com maior impacto nos re-
modelo que nos permite estudar a influência na sultados escolares de alunos. Esse é um constran-
eqüidade trata concomitantemente da influência gimento real, extra-escolar, que pode ajudar ou
desta variável no nível da proficiência. dificultar o aprendizado do aluno e que afeta di-
retamente o funcionamento e a organização das
Os resultados escolas e das salas de aula. Diminuir as diferen-
ças entre a condição socioeconômica e cultural
Na análise dos resultados, enfatizamos dos alunos de um sistema de ensino por meio de
a existência ou não de efeito de uma dada políticas sociais terá impacto nos resultados
variável sobre a diminuição ou aumento da cognitivos dos alunos.

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fran_tab_01

No entanto, o tamanho da influência da diferença observada entre esses estratos pode-


média do nível socioeconômico no Brasil deve ser rá ser acentuada ou reduzida, dependendo do
destacado. O país possui hoje um sistema de ambiente escolar em que os alunos estão inse-
educação básica muito segmentado, com a maio- ridos, legitimando a busca dos fatores escola-
ria dos estudantes de nível socioeconômico mais res que explicam essas diferenças.
alto freqüentando escolas privadas. O maior pri-
vilégio desses alunos é freqüentar escolas com Fatores que impactam as
colegas tão selecionados. A interação entre rede diferenças de desempenho
e nível socioeconômico médio da escola é signi-
ficativa e mostra o especial privilégio dos poucos Como explicado anteriormente, para
brasileiros que freqüentam escolas privadas, onde verificar a influência de diferentes fatores no
o nível médio socioeconômico é alto. Esse é o acirramento ou moderação da diferença de
chamado efeito dos pares. Deve-se observar ain- desempenho, adicionamos o fator em estudo ao
da que mesmo depois de equalizar os alunos das modelo básico. Os resultados do ajuste dos
escolas do ponto de vista socioeconômico, ain- modelos respectivos estão apresentados nas
da se observam diferenças entre o desempenho tabelas 2 e 3, nas quais assinalamos com um ?
dos alunos das redes pública e privada. ou @, quando há um efeito significativo do
Os alunos que estão atrasados têm tam- fator, respectivamente para aumentar ou para
bém pior desempenho. Interpretando o atraso reduzir a diferença entre os alunos discrimina-
como uma medida de proficiência prévia é fá- dos por raça; com % ou &, quando o efeito é
cil entender esse resultado, também amplamen- apenas marginalmente significativo, também
te confirmado por outros estudos, ou seja, a para aumentar ou diminuir o impacto da raça;
convivência com colegas igualmente defasados e com um 0 a inexistência de efeito. Na tabela
ajuda na produção de piores resultados. 2 mostramos o impacto das variáveis usadas
Todas essas questões, que dizem respei- para equalização nas diferenças entre os alunos
to aos fatores que impactam a proficiência de diferentes raças, e na tabela 3 o mesmo em
média dos alunos, já foram estudadas com da- relação aos outros fatores associados aos pro-
dos dos diferentes ciclos do Saeb. Veja-se, por cessos escolares dos professores e dos alunos.
exemplo, os trabalhos de Barbosa e Fernandes
(2001) e Soares et al. (2001). Ta bela 22.. Diferenças na proficiência segundo a cor do aluno
Neste trabalho, entretanto, interessa
mais verificar a diferença de desempenho entre
alunos segundo a sua raça. Conforme foi mos-
trado na Tabela 1, a diferença entre alunos
brancos e pardos é de 17,4 pontos e de quase
28 pontos entre os brancos e negros. A estima-
tiva que obtemos do modelo básico, no qual
retiramos o efeito do nível socioeconômico e
atraso escolar tanto dos alunos como das esco-
las, é de 3 e 10 respectivamente. Ou seja, há * A descrição dos fatores está no Apêndice.

uma redução da diferença entre os grupos, mas


o efeito líquido da raça ainda persiste. O ajus- A diferença entre brancos e negros
te do modelo básico também indica que a di- cresce com o aumento tanto no nível socio-
ferença de desempenho entre um aluno bran- econômico do aluno como no da escola, e é
co, negro ou pardo não é independente da maior na rede privada que na pública. No en-
escola que ele freqüenta. Isso significa que a tanto, decresce com o crescimento do atraso

156 J. F. SOARES e M. T. Gonzaga ALVES. Desigualdades raciais...


escolar tanto do aluno como da escola, exata- No entanto, algumas variáveis tiveram
mente a situação escolar menos desejada. impacto na eqüidade entre brancos e pardos, e
A diferença entre alunos brancos e par- brancos e negros, conforme os resultados apre-
dos sofre a influência apenas do atraso escolar sentados na tabela 3.
médio da escola e do nível socioeconômico
médio da escola, na mesma direção observada Ta bela 3. Efeito de alguns fatores na diferença associada à cor do aluno

acima. Os demais fatores não têm efeitos signi-


ficativos, o que significa que a diferença basal
se mantém na presença deles.
Todos os fatores considerados na tabe-
la 2 estão fora do controle da escola e, assim
sendo, não se prestam a orientar políticas esco-
lares, ou mesmo políticas de envolvimento da
família. Os questionários do Saeb permitem a
mensuração de muitos fatores escolares e fami-
liares. O impacto desses fatores no nível da pro-
ficiência foi analisado por Soares (2003). Verifi-
camos, por meio do ajuste do modelo adequa-
do, a possível influência de cada um desses
fatores na diferença de desempenho entre alu-
nos de diferentes raças. Observamos que poucos
fatores têm impacto estatisticamente significati-
vo. Ou seja, a maioria dos fatores associados a
melhor desempenho afetam igualmente o con-
junto dos alunos, independente da sua cor. Por
exemplo, um professor que nutre altas expecta- Obs.: A descrição dos fatores está no Apêndice.
tivas em relação ao desempenho de seus alunos
irá contribuir para o sucesso de todos os alunos, Entre os fatores dos professores, tanto a
sem que isso necessariamente ajude a reduzir as melhor qualificação docente, medida pela licen-
diferenças iniciais entre eles. Medimos também ciatura na disciplina avaliada, quanto o salário
o efeito da composição racial do corpo de pro- têm efeito na diferença entre brancos e pardos
fissionais das escolas (professores e diretor dos e entre brancos e negros, porém, no sentido
alunos avaliados), mas não encontramos resul- menos favorável dessa relação: há um aumento
tado significativo na questão da equidade ra- do hiato no desempenho escolar desses grupos
cial. Esse aspecto da influência da raça no de- de alunos quando os professores são mais capa-
sempenho dos alunos merece estudo especial. citados e melhor remunerados. Observa-se um
Assim, não é possível atribuir para a maioria dos impacto marginalmente significativo do fator
fatores medidos em relação aos professores e “relação com a equipe” na diferença entre alu-
aos diretores a origem do efeito escola para a nos brancos e negros, mas também no sentido
variação de desempenho entre alunos segundo de aumentar a diferença.
a cor. Uma possível explicação para isso é que Entre os fatores escolares, observamos
os fatores incluídos nos questionários não con- a mesma tendência. Escolas mais bem equipa-
seguem captar práticas docentes ou projetos es- das com diretores mais envolvidos também pro-
colares voltados para o problema da eqüidade. duzem efeito significativo, mas aumentando as
Isso impede que as experiências de sucesso na diferenças raciais, principalmente entre alunos
superação de desigualdades apareçam nos dados. brancos e negros.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 157
Alguns fatores do aluno que favorecem mas internos e externos à escola”. Como foram
o desempenho escolar também têm impacto na poucos os professores com 8 e 9 característi-
diferença de desempenho entre alunos de dife- cas presentes, a escala final variou de 0 a 7. No
rentes cores mas, novamente, aumentando a caso de escola consideramos os fatores: “Salá-
desigualdade. A diferença no desempenho es- rio do diretor”, “Existência de recursos pedagó-
colar entre alunos negros e brancos que gos- gicos”, “Boa manutenção do prédio, isto é, ins-
tam de estudar é maior do que entre aqueles talações físicas, salas de aula e limpeza”, “Exis-
que não gostam; o mesmo ocorre entre alunos tência de equipamentos”, “Percepção de segu-
pardos e brancos em relação à lição de casa (a rança”, “Percepção do diretor sobe a existência
diferença é maior entre alunos que fazem lição de problemas internos e externos” e “Avaliação
de casa) e à existência de livros em casa (maior do diretor sobre o comprometimento dos pro-
quantidade se associa a mais iniqüidade). fessores”. Poucas escolas tiveram as 7 caracte-
Todos os fatores escolares, incluindo rísticas positivas e assim a escala final variou de
os professores, e familiares indicam a mesma 0 a 6. Além dos fatores que caracterizam o
tendência. Eles sugerem que as condições es- professor e a escola, construímos também um
colares positivas se potencializam quando se fator para caracterizar o “bom” aluno, agregan-
referem aos alunos brancos, produzindo uma do as seguintes variáveis: “Gosta de estudar”,
espiral favorável que os impulsiona bem mais “Existência de livros em casa”, “Faz lição de
do que impulsiona os alunos negros e pardos. casa”, “Hábitos de leitura” e “Envolvimento dos
Assim, esse resultado mostra que a melhoria das pais na vida escolar do filho”. Nesse caso, a
condições de ensino pode contribuir para ele- escala final variou de 0 a 5.
var a média do desempenho escolar, mas com Naturalmente existem muitos outros fa-
sensíveis desigualdades entre estratos sociais. tores que caracterizam a “boa” escola e o “bom”
Tem sido recorrentemente verificado professor, assim como o “bom” aluno. Para uma
que o efeito isolado de cada fator, principal- síntese da literatura pertinente pode-se consul-
mente daqueles associado à escola e ao profes- tar, por exemplo, Willms (1992), Lee, Bryk e
sor, é pequeno. Ou seja, a escola e o professor Smith (1993), e Darling-Hammond (2000). Em
fazem diferença, principalmente quando pos- um levantamento como o Saeb, cuja principal
suem um conjunto de características positivas função é produzir uma medida do nível dos
e não porque têm uma ou outra característica alunos, nem todos esses fatores podem ser in-
específica. cluídos. Ou seja, os fatores considerados nos
Para trazer essa visão mais global em nossos indicadores são apenas a síntese dos
relação à escola e ao professor para a análise, fatores disponíveis no Saeb e associados a me-
construímos dois fatores que caracterizam o lhor desempenho dos alunos.
“bom” professor e a “boa” escola. Registramos, A tabela 4 mostra o resultado dos mo-
para cada professor e escola, o número das delos, nos quais, como feito anteriormente,
características favoráveis que possuem entre controlamos as características socioeconômicas
aquelas medidas pelo Saeb e que se mostraram
positivamente associadas ao desempenho. No
Ta bela 4. Impacto nas diferenças na proficiência segundo a cor do aluno
caso do professor incluímos: “Licenciatura em
matemática”, “Expectativa em relação ao de-
sempenho dos alunos”, “Percentual do progra-
ma já desenvolvido”, “Método de ensino de
matemática centrado em exercícios”, “Boa rela-
ção com o diretor”, “Boa relação com a equi-
pe”, “Salário”, “Sexo” e “Percepção dos proble-

158 J. F. SOARES e M. T. Gonzaga ALVES. Desigualdades raciais...


do aluno e da escola, bem como o atraso es- negros é bem maior do que as mudanças possí-
colar de ambos. De certa forma, os resultados veis pelo intervenção de políticas escolares. Mais
corroboram o que já foi apresentado anterior- preocupante é o fato de essas diferenças se acen-
mente em relação à diferença entre os alunos tuarem na medida em que a escola passa a dis-
brancos e negros: a presença de vários fatores por de melhores condições de funcionamento.
associados a melhor desempenho impacta a Os resultados indicam que a eqüidade
diferença basal entre esses grupos, mas no entre alunos brancos e pardos é um cenário
sentido de aumentá-la e não de reduzi-la; e o muito mais próximo do que a entre alunos bran-
fator-síntese do aluno não é significativo. cos e negros. Os fatores sintéticos apresentados
No caso da diferença entre alunos bran- na tabela 4 não afetam a diferença entre os pri-
cos e pardos, os fatores sintéticos não são sig- meiros. A indicação é que o benefício de fre-
nificativos. A ausência de efeito nos informa que qüentar boas escolas, com bons professores e
a diferença basal entre os grupos se mantém na com atitudes individuais favoráveis ao desempe-
presença desses fatores. Anteriormente registra- nho acadêmico, atua de forma positiva igualmente
mos que alguns fatores isolados do professor, da para os alunos brancos e pardos e não deve ser
escola e do aluno produziam o impacto negati- isso que irá reduzir a variabilidade inicial entre
vo de aumentar a diferença entre alunos bran- eles. Provavelmente a resposta para esse proble-
cos e pardos. A ausência de efeito para os no- ma deverá ser buscada pela investigação de fato-
vos fatores pode ser interpretada com uma evi- res não medidos neste estudo. Mas, em relação à
dência de que as situações favoráveis que eles diferença entre negros e brancos, esses modelos
tentam captar compensam os eventuais efeitos reforçam os resultados obtidos com os fatores
negativos dos fatores isolados. isolados: entre escolas, professores e alunos ob-
tivemos evidências de que o problema da dis-
Discussão criminação que afeta os alunos negros não se
trata de um evento fortuito.
Este trabalho mostra que, após o contro- Todas essas afirmações estão basea-
le socioeconômico, existem diferenças de desem- das em resultados de ajuste de modelos es-
penho escolar entre os alunos quando divididos tatísticos. No entanto, os efeitos identificados
entre grupos raciais. A diferença entre alunos bran- com esses modelos podem ser visualizados
cos e pardos é menor e sofre menos impacto dos com alguns gráficos descritivos. Apresenta-
fatores considerados. A diferença entre brancos e mos nas figuras de 3 a 8 gráficos de caixas

Fig. 3. Fator escola: envolvimento do diretor Fig.4. Fator escola:equipamentos

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 159
Fig. 5. Fator professor: licenciatura em matemática Fig. 6. Fator professor: salário

Fig. 7. Fator aluno: faz lição de casa Fig. 8. Fator aluno: existência de livros

para o desempenho dos alunos das três ra- diferença entre brancos e negros é sempre bem
ças, segundo os fatores: envolvimento do di- maior.
retor; equipamentos da escola; qualificação Os dados disponíveis não permitem
do professor; salário do professor; lição de identificar causas específicas para esses resul-
casa realizada pelos alunos; existência de li- tados. Uma primeira indicação é a de que os
vros na casa do aluno. Para a construção dos alunos negros não usufruem das melhorias da
gráficos, discretizamos os fatores em apenas escola da mesma maneira que os alunos bran-
dois níveis: menor nível ou ausência do fator cos, por práticas e atitudes internas às escolas.
e maior nível ou presença do fator. Outra possibilidade é que as melhorias se
A análise dos gráficos mostra que o potencializam: pequenas diferenças pessoais,
desempenho dos estudantes é menor quando quando inseridas em contextos mais favoráveis
são baixos os níveis dos fatores, mas nessa (escolas com melhor infra-estrutura, melhores
situação existe mais igualdade de desempenho professores, colegas com atraso escolar menor),
entre as raças. Por outro lado, nos níveis mais iniciam uma espiral de melhoria dos resultados.
altos dos fatores nota-se aumento de desempe- Os alunos sem essas pequenas vantagens iniciais
nho para os alunos de todas as raças, mas a não conseguem usufruir o melhor ambiente.

160 J. F. SOARES e M. T. Gonzaga ALVES. Desigualdades raciais...


Em qualquer das direções, o problema e enfatizam conceitos e idéias, e que professo-
da discriminação permanece. Poderíamos dizer res com alunos mais fracos ou que apresentam
que a maioria das escolas trabalha para produzir problemas de comportamento usem métodos
bons resultados para todos os alunos, de for- mais dependentes da repetição e se concentram
ma a elevar a média geral da escola. O proble- nos pontos básicos do assunto. Usando os
ma da defasagem entre alunos brancos, negros dados do Saeb, encontraríamos uma associação
e pardos se dilui nessa média. Quando coloca- estatística entre “ensinar concentrando-se em
mos o foco no problema, seus contornos fica- conceitos e idéias” e “melhores resultados em
ram mais definidos. matemática”. No entanto, pelo menos parte
A principal conclusão deste trabalho é, dessa associação é causada pelo fato de os
portanto, a consciêncIa da importância de for- professores enfatizarem esse tipo de ensino com
mulação e implementação de políticas públicas seus alunos mais preparados.
e escolares, não só para a melhoria do desem-
penho escolar de uma forma geral, mas também Apêndice
para diminuir o impacto da origem socioeconô-
mica e da raça do aluno no desempenho esco- Construção do índice “nível
lar. No entanto, os dados disponíveis pouco socioeconômico do aluno”
ajudam para informar quais políticas seriam as
mais apropriadas. Outras pesquisas qualitativas Para a construção do índice do nível
e quantitativas são necessárias. socioeconômico dos alunos, utilizamos a mes-
Devemos concluir este trabalho regis- ma metodologia do Pisa, sigla para o Programa
trando as limitações intrínsecas dos dados ana- Internacional de Avaliação de Alunos (OECD,
lisados. Em uma situação não experimental, na 2001). Primeiramente, quatro indicadores de
qual os estudantes não foram alocados aleato- posição socioeconômica e cultural foram cons-
riamente em grupos de tratamento e controle, truídos: exclusão social, escolaridade dos pais,
estimar o impacto de características de profes- evidência de riqueza familiar e bens educacio-
sores e escolas no desempenho individual de nais da casa. O indicador de exclusão social foi
alunos, controlando simultaneamente fatores construído a partir da contagem da presença
externos ao ambiente escolar como capital ou ausência na residência do aluno de água
cultural e econômico da família e situação da encanada, luz elétrica e de pavimentação da
comunidade na qual a escola se encontra, é rua. O indicador de escolaridade é o número
uma tarefa estatística difícil. Os dados coletados mais alto entre os anos de estudos do pai e da
em um tipo de levantamento como o Saeb, mãe do aluno. O indicador de riqueza familiar
quando utilizados em estudos como o realiza- foi construído com base em três itens: núme-
do neste trabalho, sofrem um problema funda- ro de pessoas por quarto da residência (assu-
mental similar à questão de saber “quem nas- mindo que as famílias mais ricas têm uma re-
ceu primeiro, o ovo ou a galinha”. Por exemplo, lação menor); existência de empregada domés-
podemos assumir que determinadas práticas tica; e número de automóveis na residência do
escolares estão associadas à melhoria da profi- aluno. Para produzir o indicador de bens edu-
ciência dos alunos. Isso é correto, mas é igual- cacionais da casa, contaram-se quantos dos
mente razoável argumentar que os professores seguintes itens existem na casa de cada aluno:
ajustam seus métodos e práticas de ensino às lugar calmo para estudar, jornal diário, revista,
habilidades acadêmicas de seus alunos. Por enciclopédia, atlas, dicionário, calculadora e
exemplo, suponha que os professores de mate- acesso à Internet.
mática, com alunos altamente motivados, usem Em seguida esses indicadores foram
freqüentemente situações práticas para ensinar padronizados e agregados, por análise fatorial,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 161
em um único índice. Essa técnica é freqüente- numa combinação linear das variáveis originais
mente utilizada na resolução de problemas en- que as sintetizam e explicam.
volvendo um certo número de variáveis, em que
se deseja a redução desse número com a fina- Variáveis utilizadas nos modelos
lidade de facilitar o entendimento analítico dos
dados. Assim, a partir de uma análise da matriz O quadro abaixo, apresenta a descrição
de correlação das diversas variáveis, é possível das variáveis utilizadas nos modelos estatísticos
obter indicadores sintéticos, que consistem de análise.

Modelo básico de análise Modelo de nível 1:

O modelo se expressa por meio das se- Y = B0 + B1*(NSE) + B2*(DEFASAG) +


guintes equações: B3*(NEGRO) + B4*(PARDO) + R

162 J. F. SOARES e M. T. Gonzaga ALVES. Desigualdades raciais...


Modelo de nível 2: No modelo de nível 2,
B0 = a proficiência média da escola;
B0 = G00 + G01*(REDE) + G02*(MNES) + G00 = o valor médio esperado da profici-
G03*(MDEFASAG) + G04*(REDENSE) + U0 ência relativo à escola;
B1 = G10 G01: o efeito da co-variável rede sobre a
B2 = G20 proficiência média da escola;
B3 = G30 + U3 G02: o efeito da co-variável média do ní-
B4 = G40 + U4 vel socioeconômico sobre a proficiência
média da escola;
No modelo de nível 1, G03: o efeito da co-variável média da de-
Y = a proficiência do aluno; fasagem escolar sobre a proficiência mé-
B0 = o valor médio esperado da profici- dia da escola;
ência relativo ao aluno quando todas as G04: o efeito da co-variável interação
variáveis explicativas assumem o valor rede com nível socioeconômico sobre a
zero; proficiência média da escola (nesse caso,
B1: o efeito da co-variável nível tenta-se captar o efeito diferenciado que
socioeco-nômico sobre a proficiência do há entre escolas particulares de alto pa-
aluno; drão socioeconômico e escolas particula-
B2: o efeito da co-variável defasagem res de baixo padrão, assim como também
sobre a proficiência do aluno; ocorre entre as escolas públicas); e
B3: o efeito da co-variável negro sobre a U0: a componente de erro relativo à es-
proficiência do aluno; cola.
B3: o efeito da co-variável pardo sobre a
proficiência do aluno; e As estimativas dos coeficientes desse
R: a componente de erro relativo ao aluno. modelo obtidas com o software HLM são:

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 163
Estimação dos Componentes da Variância

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Recebido em 18.03.03
Aprovado em 19.05.03

José Francisco Soares é Ph. D. em Estatística. Professor-titular do Departamento de Estatística da Universidade Federal
de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (GAME-UFMG).

Maria Teresa Gonzaga Alves é mestre em Sociologia. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (GAME-UFMG).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 147-165, jan./jun. 2003 165

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