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Brasil

O Brasil e o sistema multilateral de comércio:


criação de capacidades
Christiane S. Aquino* e Diego Z. Bonomo**
Encontra-se em andamento, no governo e no setor privado brasileiros, um importante processo de “criação de ca-
pacidades” para a atuação do País no sistema multilateral de comércio. Essa atuação pode ser dividida em três ver-
tentes: (i) integração regional; (ii) negociações, multilaterais e bilaterais, bem como contenciosos comerciais; e (iii)
desenvolvimento e implementação de uma política industrial voltada para o comércio exterior. O processo consiste
não somente na criação e qualificação de quadros técnicos, como também na progressiva capacidade de coordena-
ção dos atores domésticos. O presente artigo pretende, nesse contexto, traçar as diferentes trajetórias da criação de
capacidades nas três áreas, bem como explorar os desafios a serem enfrentados pelo Brasil.

O processo de criação de capacidades teve Não obstante as iniciativas descritas, a par- operacionalização de um sistema de consul-
início com a aproximação entre governo ceira público-privada no âmbito do bloco tas. Seu experiente quadro técnico, formado
e setor privado durante o período de ainda apresenta espaço técnico e político por funcionários da Confederação Nacional
reformulação da política comercial bra- para a exploração de todo o seu potencial. da Indústria (CNI), não conseguiu superar
sileira, iniciada com a redemocratização Sintoma disso é a notória carência de as assimetrias de influência no interior da
e intensificada, em meados dos anos 90, estudos amplos sobre as oportunidades de organização em favor dos setores indus-
com o projeto de abertura condicionada da complementaridade nas cadeias do agrone- triais mais defensivos. Assim, a entidade
economia. Diferentemente de sua fase ini- gócio, da indústria de transformação e dos acumulou um importante instrumental
cial, de caráter unilateral, a segunda etapa setores de serviços relacionados à indústria. técnico e de coordenação, mas sua capaci-
da liberalização econômica contou com O resultado é que projetos de longo prazo dade de influencia permaneceu limitada. A
maior capacidade técnica dos negociadores acabam, por vezes, comprometidos pelas SENALCA, por sua vez, teve sua atuação
brasileiros e com maior – e progressiva – divergências do dia-a-dia das relações diluída pela enorme heterogeneidade do
interação público-privada. comerciais, que oscilam de acordo com a grupo consultado e a conseqüente dificul-
conjuntura econômica dos países membros dade na construção de consensos.
Na vertente da integração regional, a e que sofrem o impacto da acelerada trans-
importância do Mercosul para este processo formação da economia internacional. A Rodada Doha da Organização Mundial
reside no fato de o bloco ter estabelecido os do Comércio (OMC) estabeleceu um marco
primeiros mecanismos institucionais para Na vertente das negociações e contencio- decisivo no esforço de criação de capacida-
a participação do setor privado. Embora sua sos comerciais, o processo de criação de des no governo e no setor privado. Por ser
fase inicial tenha sido conduzida quase que capacidades e de aproximação entre os complexa e envolver uma “diplomacia do
exclusivamente pelos governos dos países setores público e privado começou a ser concreto”, assim percebida por ambos, as
membros, com a assinatura do Protocolo de esboçado já na Rodada Uruguai, embora negociações criaram o melhor ambiente
Ouro Preto, em 1994, foi criado um órgão limitado às áreas agrícola e têxtil. No para a integração público-privado. A cria-
oficial de representação dos setores econô- entanto, as negociações para a criação ção do G-20, por exemplo, alicerçou-se na
micos e sociais do bloco: o Foro Consultivo da Área de Livre Comércio das Américas habilidade política e na força diplomática
Econômico-Social (FCES). (ALCA) geraram externalidade positiva do Brasil, mas contou com o importante
ao forçar o setor privado brasileiro a apoio técnico e político do setor privado,
Além disso, a crescente percepção empre- organizar-se para defender seus interes- diretamente interessado nos resultados da
sarial dos custos de sua não mobilização ses. Como resultado surgiu, em 1997, a negociação. Ao mesmo tempo em que con-
impulsionou o estabelecimento de meca- Coalizão Empresarial Brasileira (CEB), feriu liderança ao País no processo negocia-
nismos adicionais, como o Conselho órgão que buscou coordenar a participa- dor, o G-20 e, posteriormente, o NAMA-11
Industrial do Mercosul (CIM) e a Associa- ção e o processo de influência do setor passaram a funcionar como indutores do
ção de Empresas Brasileiras para a Integra- empresarial. No governo, o passo funda- processo de criação de capacidades.
ção no Mercosul (ADEBIM). Atualmente, mental foi a criação da Seção Nacional
há um número importante de iniciativas da ALCA (SENALCA), cujo objetivo Na área agrícola destacou-se a criação
voltadas à criação de novos negócios; à principal foi o estabelecimento de um e a atuação do Instituto de Estudos do
coordenação de posições em matéria de canal formal de diálogo e consulta com Comércio e Negociações Internacionais
política comercial e de investimento; e aos os diversos setores da sociedade. (ICONE), mantido pelos setores mais
primeiros esforços de integração planejada dinâmicos e ofensivos do agronegócio bra-
de cadeias produtivas. Esse é o caso, por Embora importantes, tais iniciativas tive- sileiro – óleos vegetais, carnes e açúcar e
exemplo, do Conselho de Fabricantes de ram efeito limitado. A CEB, ator relevante álcool. Na área industrial, a Federação das
Autopeças do Mercosul (Merco-Parts), no início das negociações regionais – como Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP)
criado pelas quatro entidades de classe do demonstrado durante a Reunião Ministerial procurou emular em sua própria estru-
setor para estimular processos de comple- da ALCA, em Belo Horizonte, em maio de tura o sucesso do Instituto em termos de
mentação industrial na região. 1997 – acabou tendo sua atuação restrita à qualificação técnica buscando, ao mesmo

19 Julho 2008 - PONTES


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tempo, maior independência de posiciona- ticas públicas nas quais há pouca avaliação com vistas à construção de mecanismos
mento. Com a contribuição da Federação das práticas e medidas propostas à luz das sofisticados para resolver as questões ins-
para a constituição do ICONE e o apoio regras do sistema multilateral de comércio. titucionais do bloco. Importante paralelo
técnico e atuação coordenada deste com o Um caso de grande relevância foi a aprova- pode ser traçado, nesse sentido, com a
Departamento do Agronegócio (DAGRO) ção da Medida Provisória 413, de 2007, que experiência européia de aprofundamento
da FIESP, criado em 2007, o setor privado criou tarifas específicas1 para determinados do Mercado Único nos anos 80, iniciativa
procurou constituir o tipo de coordenação produtos com o objetivo de incrementar a para a qual foi fundamental a constituição
que não foi alcançada pela CEB. Aliada a arrecadação pública – no contexto do fim de amplo corpo de especialistas voltado à
novos grupos de consulta e coordenação da Contribuição Provisória sobre Movi- harmonização de políticas e práticas dos
encabeçados pelo Ministério das Relações mentação Financeira (CPMF) – e combater países membros – hoje, uma das principais
Exteriores (MRE), a estrutura assegurou o o subfaturamento nas importações. Apesar tarefas do Mercosul.
rápido desenvolvimento de capacidades de aparentemente legítima à luz do interesse
técnicas e maior coesão doméstica. público, a construção da medida mostrou Cabe ressaltar, ainda, que, com o ressurgi-
desconhecimento das regras multilaterais de mento do debate doméstico sobre política
Processo semelhante ocorreu na área dos comércio e da posição defendida pelo Brasil industrial2, o conhecimento das regras da
contenciosos comerciais. A disputa entre na Rodada Doha – favorável à eliminação OMC tornou-se ferramenta fundamental
EMBRAER e Bombardier, na segunda de tarifas desta natureza. Além disso, a para “blindar” a atual estrutura de apoio à
metade dos anos 90, e o crescimento do aprovação da medida revelou a necessidade produção, tanto no que se refere à adequação
interesse empresarial em levar barreiras de maior coordenação doméstica. das iniciativas em vigor quanto no que tange
comerciais ao mecanismo de solução de con- à elaboração de novas medidas dentro do
trovérsias da OMC geraram externalidades policy space hoje existente.
positivas em matéria de criação de capaci- É na vertente da
dades. No governo, esse processo refletiu-se Essa necessidade de especialização e de
no estabelecimento da Coordenação-Geral política industrial coordenação está também refletida na pro-
de Contenciosos (CGC) do MRE, em 2001; e vável emergência da agenda “pós-Doha”
no setor privado, na necessidade de formação
voltada ao comércio da OMC, que deverá incluir questões com
de escritórios de advocacia brasileiros com exterior ... que a grande intersecção entre política comercial
equipes preparadas para atuar em controvér- e outras áreas de políticas públicas, como
sias comerciais multilaterais. Para responder
criação de capacitação investimentos, concorrência, energia e meio
a tal necessidade, o próprio governo criou, pouco avançou e ambiente. Elementos dessa nova situação já
em 2003, o “Grupo de Genebra”, sistema são visíveis no tratamento de temas como
de estágio de jovens advogados na Missão
faz-se ainda mais o comércio de bens remanufaturados, que
do Brasil junto à OMC. Dada a dinâmica premente. envolve questões de aspectos econômico,
da negociação multilateral, o programa foi ambiental e de defesa do consumidor.
expandido com a abertura de vagas para
profissionais de outras áreas do governo e A complexidade de um sistema multilateral
representantes do setor privado. Desafios de comércio em constante evolução exige,
cada vez mais, refinamento das instituições,
Parte significativa dos participantes cons- Nesse contexto, cabe ao Brasil: (i) adensar coordenação contínua e aperfeiçoamento
tituiu, no Brasil, grupos de discussão e pes- a coordenação intra-governo e público- dos quadros que compõem o processo de
quisa voltados à manutenção e ampliação da privada; e (ii) reforçar o atual processo de formulação da política comercial do Brasil.
capacidade técnica. Este é o caso do Grupo multiplicação de “conhecedores” das regras
de Estudos sobre Negociações Comerciais multilaterais de comércio, seja no setor * Diplomata. Atuou na Coordenação-Geral
(GNC), criado em São Paulo pelo Grupo de público, seja no privado. É com base na de Contenciosos (CGC) do Ministério das
Genebra, o ICONE, a FIESP e professores criação de capacidades, por exemplo, que o Relações Exteriores (MRE), em Brasília, e
da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da setor privado estará habilitado a fazer uso atualmente serve na Embaixada do Brasil em
Univesidade de São Paulo (USP). Também eficiente do sistema de solução de contro- Washington.
foram estabelecidos Núcleos de Estudo vérsias da OMC, conhecendo melhor seus
** Diretor Executivo do Brazil Information
sobre Solução de Controvérsias (NESCs) limites e suas oportunidades. No governo, Center (BIC), entidade de representação de
em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Por quadros aptos a reconhecer leis e programas empresas e associações empresariais brasilei-
fim, cabe destacar o trabalho desenvolvido com eventuais aspectos de incompatibili- ras em Washington.
no âmbito do Programa de Capacitação em dade com as regras multilaterais permi-
Política Comercial (PCPC) da Embaixada do tirão ao País tratar de forma adequada as 1
As referidas tarifas não estão sendo apli-
Brasil em Washington. crescentes barreiras a seus produtos de cadas porque dependem de regulamentação
exportação e a evitar a implementação de doméstica.
É na vertente da política industrial voltada medidas que possam ser questionadas por 2
São marcos deste processo: a Política In-
ao comércio exterior, no entanto, que a outros parceiros comerciais. dustrial, Tecnológica e de Comércio Exte-
criação de capacitação pouco avançou e faz- rior (PITCE), lançada em 2003; o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em
se ainda mais premente. São exemplos da No âmbito regional, o aprimoramento dos 2007; e a nova Política de Desenvolvimento
baixa capacidade desenvolvida nessa área as quadros poderá contribuir para o desejado Produtivo (PDP), lançada em 2008 como se-
experiências recentes de formulação de polí- aprofundamento do processo de integração, gunda etapa da PITCE.

PONTES - Julho 2008 20

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