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OS DESAFIOS PARA APLICAÇÃO DA LGPD NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E

ADOLESCENTES

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.853/2019), que atualmente está em vacatio
legis e entrará em vigor em agosto de 2020, tem uma disposição específica para tutelar os dados
pessoais de crianças e adolescentes. Bem notório que a utilização massiva da internet por
crianças e adolescentes fez com que os pais e responsáveis legais ficassem extremamente
preocupados com os riscos a que seus filhos(as) ou tutelados(as) estão expostos. O ambiente
virtual pode ser usado maliciosamente por cibercriminosos, como um instrumento de
cometimento de ilícitos cujo alvo são as crianças e adolescentes. Sendo assim, é salutar que a
LGPD se ocupe também da proteção de dados pessoais dos infantoadolescentes.

De acordo com o artigo 14 desta lei, os tratamentos dos dados pessoais de crianças e
adolescentes deverá ser feito em seu melhor interesse, mas será necessário o consentimento
específico1 e em destaque, que deve ser oferecido por pelo menos um dos pais ou responsável
legal. A ausência deste consentimento específico só se justifica se utilizados, uma única vez, para
entrar em contato com os pais ou responsável legal das crianças e adolescentes. Além disso, os
dados pessoais não poderão ficar armazenados e nem repassados a terceiros – neste último
caso, salvo se controlador obtiver consentimento específico dos pais ou responsáveis. Frisa-se
que, caso surja uma nova finalidade para tratamento dos dados, os pais ou responsável legal
devem ser consultados novamente, para obtenção do novo consentimento específico.

Sabendo que atualmente um dos principais entretenimentos das crianças e


adolescentes é participarem de jogos eletrônicos (como videogames, aplicativos em devices,
etc...)2, o legislador atentou a este comportamento e determinou que os controladores não
devem condicionar a participação dos titulares em jogos e aplicações de internet ao
fornecimento de informações pessoais além do necessário à atividade. Com isso, a LGPD garante
a aplicação do princípio da necessidade, que é aquele relacionado à limitação do tratamento ao
“(...) mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados
pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação ás finalidades do tratamento de dados”
– como consta no inciso III do art. 6º da própria lei. Por se tratar de dados pessoais de crianças

11
De acordo com o inciso VI do art. 5º da LGPD, controlador é definido por “(...) pessoa natural ou jurídica, de
direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais”.
2
Segundo dados da Pesquisa Game Brasil 2019, 84% dos filhos de pais entrevistados costumam jogar games
eletrônicos. Fonte: https://forbes.com.br/colunas/2019/06/mais-da-metade-dos-brasileiros-joga-games-
eletronicos/ acesso em 05 de fevereiro de 2020
e adolescentes, é fundamental a tutela deste princípio. Se for desrespeitado este dispositivo o
tratamento poderá ser considerado abusivo, mesmo ocorrendo o consentimento.

O legislador também destacou a necessidade do controlador realizar todos os esforços


razoáveis para verificar que o consentimento específico foi realmente realizado pelos pais ou
responsáveis. Evidente que quando trata-se de aplicações e jogos de videogame, existe o risco
da própria criança ou adolescente incorrer, erroneamente, neste vício de consentimento.
Atualmente, a maioria dos sites com conteúdo impróprio para menores de 18 anos possuem
apenas uma barra de consentimento on line perguntando se o usuário é maior de idade. De
acordo com a LGPD, caberá ao controlador utilizar, sempre que possível, as tecnologias
disponíveis para evitar comportamento inadequado.

Outro ponto de destaque é que as informações devem ser disponibilizadas pelo


controlador de forma clara, simples e acessível. Deve ser levado em conta dificuldades físico-
motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais dos usuários. Tais garantias constam no
parágrafo 6º do art. 14 da LGPD, e promove as crianças e adolescentes também como
protagonistas no controle de seus dados pessoais.

Uma das principais inovações desta lei, no que diz respeito à tutela dos dados pessoais
de crianças e adolescentes, é que apenas uma simples previsão de utilização de “Termos e Uso”,
e classificação etária para utilização de determinada aplicação ou produto, não será suficiente.
O controlador deverá seguir padrões técnicos que possam comprovar, dentro da razoabilidade,
que o consentimento específico foi feito por quem é de direito por esta lei.

No que tange à aplicação da LGPD nas redes de ensino, é importante destacar que as
escolas deverão garantir ainda mais o zelo e a transparência no tratamento de dados das
crianças e adolescentes. Geralmente as escolas armazenam informações como desempenho
acadêmico, endereços cadastrais, tipo sanguíneo, religião, opiniões políticas dos(as) alunos (as)
– estes três últimos, a LGPD também considera como dados sensíveis.3 Qualquer informação em
que o(a) aluno(a) possa ser identificável, ou possa torná-lo(a) identificável, deve ser direcionado
exclusivamente ao aluno, pais e responsáveis. É comum algumas Instituições de Ensino publicar
ranking de notas, lista de aprovados, reprovados ou alunos(as) que estão de exame. Tais
práticas precisam ser revistas, pois expõe as informações pessoais dos alunos.

3
De acordo com o inciso II do art. 5º da LGPD, dado sensível é “(...) dado pessoal sobre origem racial ou étnica,
convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político,
dados referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;
Um dos pontos principais da proteção dos dados pessoais das crianças e adolescentes é
o princípio do melhor interesse. Tal princípio está garantido no artigo 227 da Constituição
Federal de 1988, pois incita a família e a sociedade a intervirem e se responsabilizarem pelas
crianças e adolescentes, criando instrumentos para assegurar o direito e respeito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 17, diz que “o direito e o
respeito consistem na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia dos valores,
ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Fica claro a intenção do legislador em tutelar
os direitos das infantoadolescentes, e garantir a autonomia também. Os dois dispositivos legais
(Artigo 227 da CF e 17 do ECA) estão em consonância com a Doutrina da Proteção Integral de
crianças e adolescentes, e a LGPD segue estes princípios ao tutelar a proteção dos dados
pessoais dos menores.

Um comportamento no meio digital que está crescendo exponencialmente é a


divulgação de imagem em redes sociais sem a autorização do titular, ou de pais e responsáveis
(estes dois últimos casos quando tratam-se de crianças e/ou adolescentes). Inclusive o TJRS, ao
julgar o Agravo de Instrumento 0054726-21.2017.8.21.70004, rel. Des, Luiz Filipe Brasil Santos,
analisou o caso de uma divulgação de imagem de uma adolescente de 15 anos. A divulgação foi
feita em uma rede social, pelo perfil de seu ex-padastro, sem autorização dos pais ou
responsáveis legais. Foi considerado uso indevido de imagem. Para fundamentar a decisão,
foram utilizados os Artigos 5º, IX, e 227, da CRF/88. Além da adolescente e a mãe não
concordarem com a publicação, solicitaram que o ex-padastro retirasse a publicação. Tal pedido
não foi atendido. Ou seja, mesmo sem a LGPD já ter entrado em vigência, casos como esse já
são julgados através do ECA e da CFRB.

Os bens jurídicos da personalidade (vida, integridade física e psíquica, intimidade, honra,


imagem e privacidade) são ainda mais importantes para crianças e adolescentes. Se ocorrer a
privação da tutela desses bens, pode-se comprometer o desenvolvimento humano, afetando a
sua dignidade. Os danos psíquicos causados pelo desrespeito à integridade moral e psíquica na
criança e adolescentes são complicadíssimos, e podem acompanhar a saúde emocional em toda
a sua trajetória na vida adulta. Aspetos sociais como bom nome ou boa fama, imagem,
intimidade, privacidade e seus dados pessoais devem ser tutelados ainda com maior rigor. Tais
danos morais podem ser irreversíveis para eles, ainda mais quando levamos em conta que

4
TJRS, 8ª Câmara Cível, AI 0054726-21.2017.8.21.7000, rel. Des. Luiz Filipe Brasil Santos, j. 17.9.2017.
devido à situação econômico-social nem todas as crianças terão acesso ao tratamento
psicológico adequado.

O artigo 247 do ECA é bem claro no que diz respeito à não divulgação de qualquer dado
ou imagem que identifique ou possa identificar criança ou adolescente autor de ato infracional.
Tal divulgação fere os direitos de personalidade, bem como a sua dignidade. Caso fosse
divulgado, os direitos de personalidade dessas crianças e adolescentes poderiam ser
prejudicados, pois o desenvolvimento de sua personalidade poderia ser “rotulado” por aquele
ato infracional. O que o legislador quis evitar é a possibilidade do menor ser estigmatizado e ter
a sua imagem e reputação maculadas perante a sociedade. Do contrário, certamente não
contribuirá para a ressocialização do menor infrator. Evidente que o fato pode ser publicado,
pois não estaria comprometido o direito à liberdade de imprensa e acesso à informação. O que
o artigo 247 do ECA proíbe é tão somente a identificação do menor infrator.

A tutela dos dados pessoais de crianças e adolescente no Brasil já é garantido pela


Constituição Federal, Estatuto da Criança e Adolescente e pelo Código Civil. A Lei Geral de
Proteção de Dados vem para contribuir e dar maior relevo sobre a necessidade de mudança de
paradigma na educação digital das crianças e dos adolescentes. As escolas, bem como as famílias
e demais formadores de opinião infanto-juvenis, deverão desde a infância elucidar o valor e a
importância da tutela de seus dados pessoais. Isto certamente poderá resultar positivamente
no relacionamento deles com a rede mundial de computadores, auxiliando-os na
conscientização e riscos atrelados à área da segurança da informação. Assim teremos uma
infância mais segura para os pequenos, uma utilização mais saudável da internet feita pelos
adolescentes, e futuros cidadãos conscientes da importância que os seus próprios dados
pessoais têm para a sua autonomia informacional – fator importante que certamente tende a
aumentar com o desenvolvimento da chamada “Economia de Dados”.

Redação: Marcos De Lucca Fonseca (Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP; Gerente
Regulatório na Netell Telecom/Ufinet Brasil S/A; Perito Digital; Pesquisador da Universidade
Unianchieta no Tema de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais)

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