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O rio Paraopeba faz parte de uma bacia hidrográfica que leva seu nome, tem
extensão de 546,5 km e sua bacia cobre 35 municípios. O rio tem sua nascente no
município de Casa Grande (MG) e sua foz na represa de Três Marias (MG). O termo
de referência do edital publicado pelo MPMG de chamamento para entidades que
quisessem se candidatar a comporem as assessorias técnicas das pessoas
atingidas (ATIs) aponta 24 municípios com comunidades atingidas pelo
Rompimento. Em Fortuna de Minas o afluente passa pela zona rural, tangenciando
as comunidades de Beira Córrego e Retiro dos Moreira. As comunidades também
convivem com o Ribeirão dos Macacos que se junta ao rio Paraopeba próximo aos
sítios e ao arraial - categoria nativa utilizada para falar do pequeno centro “urbano”,
com casas menores, pequeno comércio, um bar e uma igreja que estava em
reforma, o lugar fica localizado entre as duas comunidades rurais nas quais
prevalecem as ocupações nos moldes dos sítios e fazendas
O rio em sua historicidade realiza ações não intencionais e produz efeitos nas
comunidades. O acúmulo de práticas entre as diferentes coisas e o rio tem
temporalidades marcadas, momentos de maior ou menor importância, e vão
constituindo sinais que, quando seguidos, podem nos permitir enxergar sua linha de
habitabilidade. Trata-se também de estabelecer noções de conhecimento
socionatural suscitadas a partir das coordenações entre os agentes e as coisas que
perfazem essa assembleia. Ao tratar a vida do rio como um ciclo aqui a nível
analítico, pretendo chamar atenção para o fato de que o rio é um eixo central na
vida das comunidades, o que significa dizer que todos os outros ciclos expostos têm
suas linhas de atividades cruzando ou mesmo partido do rio. Assim, exploro aqui o
emaranhado de linhas de habitabilidade e práticas associadas, delineando-as, mas
deixando alguns detalhamentos para serem feitos em outros ciclos, de forma a
organizar os dados de acordo com cadeias de ações significativas convergentes e
agentes da paisagem que possuem relações socionaturais mais próximas.
Um desses ciclos acontece anualmente, quando vem o tempo da piracema,
que ocorre entre o dia 1º de novembro até o fim de fevereiro - dado que recebi pelas
pessoas em Beira Córrego e também através do site do Instituto Estadual de
Florestas de Minas Gerais. Nesse período as unidades de Polícia Militar Ambiental
fiscalizam a ocorrência de torneios de pesca, pescas esportivas, pescas por lazer e,
também, a pesca tradicional. Neste período ocorre um quase hiato das cadeias
rio-peixe-humano - falo em quase hiato, pois é de costume os rumores pelas
próprias pessoas das comunidades que alguns insistem na pesca, com conflitos
com a Polícia Militar Ambiental. Não possuo em meu caderno de campo detalhes
muito aprofundados das dinâmicas humanas no rio em piracema, mas opiniões
diferentes sobre a política que se estabelece entre órgãos e comunidade. A questão
é que a pesca artesanal, o pescado como parte da soberania alimentar da
comunidade, as cadeias socioeconômicas da pesca, assim como uma moralidade
sobre a boa continuidade da vida dos peixes no rio, são mobilizados nos discursos
para contextualizar casos específicos. Algumas pessoas da comunidade informam
eventualmente pescarem na piracema, mas sempre frisando que em pouquíssima
quantidade ou que pescam e soltam os peixes; o hiato prescrito nas leis que parece
duro demais para alguns é completamente válido e moral para outros.
Mas antes, ainda, de seguir através das linhas que foram se delineando em
Fortuna de Minas, gostaria de comentar sobre um caso curioso que, assim como o
caso das pimentas em Pompeu, me despertavam o interesse rumo a um saber
sensorial e que pode lançar luz às desalinho dos emaranhados de vida do rio. Em
uma das campanhas de visitas junto ao Ministério Público, no município de Curvelo,
na comunidade de Angueretá, durante a reunião, um dos participantes da
comunidade refletiu sobre a diferença entre o tipo de contaminação que o rio então
recebeu com os rejeitos da barragem. Não procuro aqui atestar a eficácia do
método, mas evidenciar o tipo de conhecimento disposto na relação entre
rio-peixe-comunidade. Um pescador, já com idade avançada, explicou que muito
antes do Rompimento aconteciam descartes de contaminantes no rio. Explicou
ainda que era uma prática comum realizar determinados tipos de corte nas
vértebras e coluna do peixe, o que permitia a observação de uma mudança de
coloração e textura, que evidenciavam para eles que havia ocorrido um despejo
recente de contaminantes. Ele continuou sua explicação afirmando como essa
técnica não era aplicável aos peixes depois do Rompimento. Tinha feito testes e não
via a diferença típica, o que deixava nele a dúvida se a contaminação era real ou se
os contaminantes eram diferentes. O tipo de perturbação que a lama causa nos
saberes situados nas cadeias de ações significativas rio-peixe-comunidade,
sobretudo no momento daquela visita feita quatro meses após a tragédia, julho de
2019, os faziam questionar sinais, texturas e colorações que haviam aprendido
historicamente com as práticas espacializadas naquela paisagem. Um possível
esquema para pensar essa perturbação é:
Continuidade
Peixe é Conheciment das práticas
Textura e Continuidade
Rio mantido nas o cinético coordenadas
coloração estável da
Paraopeba cadeias de eficaz do (pesca, lazer,
normais às categoria de
limpo ações pescador venda,
vistas e tato pescador
significativas tradicional alimentação,
etc.)
Tendo o rio como eixo central das linhas da vida em Beira Córrego podemos
puxar um fio e nos movermos até os pomares, talvez fazermos um circuito até a
associação comunitária, percorrendo memórias, entendendo os tempos, notando
coisas e pessoas específicas, ouvindo o que faziam e o que fazem antes e depois
do Rompimento. Em Pisando em campo contei um pouco do papel de Suze, suas
várias posições no relevo político do emaranhado de vidas em Beira-Córrego. A
associação comunitária é um desses espaços no qual se cruzam muitas linhas de
vida e do qual Suze participava ativamente1. Procurei abordar o assunto,
especificamente o manejo dos pomares e a relação com a associação,
conversando com ela e com outras pessoas da comunidade para detalhar algumas
práticas e narrativas sobre o papel da associação, quais coisas compunham essa
cadeia, o que fazem as coisas e pessoas para dar continuidade àquela prática de
habitabilidade na região. Relevante apontar que minha apropriação do conceito de
habitabilidade explorado por Tsing ganha mais um sentido que passa pelas
necessidades humanas enquanto pessoas sociais e culturais.
No documento da ação civil pública do caso (ACP), instrumento jurídico que
instaura o processo civil contra a Vale, a associação de polpas de Beira-Córrego e
de Pontinha são citadas. Mas essa informação não estava fresca na minha cabeça
quando fui pra Fortuna de Minas. Fui lembrado no primeiro momento, entretanto, na
conversa com Sirlei, de Sete Lagoas à Beira-Córrego. Quando ela fala de
subsistência, do povo que precisa produzir para comer e para gerar renda, que
dependiam muito do rio, ela também cita a produção de polpas pela associação
comunitária e frisa que muita gente precisa do escoamento do produto. Então,
podemos nos perguntar: quais são as coisas (a polpa, a associação, os pomares) e
o que elas fazem (aguam, frutificam, processam, se escoam)? E quem são as
pessoas que precisam do escoamento? Esse destaque dado ao papel da
associação para as pessoas não aparece contado dessa forma quando converso
com os proprietários de áreas maiores (o que é a maioria das pessoas com quem
conversei em campo). Depois eu pude refletir sobre o porquê, ou pelo menos
sugerir uma hipótese para essa divergência.
A polpa de frutas é um processado não fermentado, não concentrado e nem
diluído obtido através das partes comestíveis das mais diversas frutas. Nos sítios
que visitei os pomares contavam com morangos, abacaxis, maracujás, pequi,
goiabas, acerola, mamão, manga entre outras frutas. Esses pomares possuem um
sentido espacial, uma disposição na paisagem que suscita apontamentos sobre a
distribuição de práticas nos sítios. Visitei quatro sítios de grande extensão em Beira
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Seria possível num trabalho futuro refletir sobre as possibilidades de distribuição de poder nas
linhas e emaranhados, podemos nos perguntar sobre a relação entre habitabilidade e poder.
Paisagens avivadas são mais imbuídas de poder?
Córrego, mas não pude visitar os sítios e chácaras do Retiro dos Moreira e Arraial.
Nos sítios que pude observar em Beira Córrego, os pomares estão organizados no
limiar entre sítio, no sentido de lugar da vida familiar; ou da casa-quintal de Garcia Jr
(1983), lugares típicos das ações das mulheres; e lugares relacionados ao trabalho,
sejam os pastos ou as hortas, quando mais voltadas para produção externa. A
noção de sítio articulada por Woortmann cabe bem aqui:
“O termo Sítio designa, então, o espaço de troca de mulheres,
através da qual se realiza a aliança entre os homens; o espaço da
troca de tempo de trabalho entre pais e o espaço do circuito de
dotes, isto é, o espaço da reciprocidade; essas trocas se dão no
interior de um território que é constituído pela descendência”
(WOORTMANN, 1990, pg. 31)
Observo que essa formulação sobre o sítio consegue ter similaridade com as
vivências de Beira Córrego, mas não posso confirmar o mesmo no Retiro dos
Moreira ou no Arraial. A estrutura social através da qual os emaranhados de vida se
dão também criam diferentes noções para a paisagem como continuamente aponto.
Mas em Beira Córrego o lugar do Pomar está entre a casa-quintal e os pastos, os
pomares delimitam os lugares das criações menores, como galinhas e porcos, todas
de manejo feito pelas mulheres. Já os homens no espaço do sítio como disposto
acima, não vi fazendo muitas ações significativas que não os encontros entre
pessoas a nível de sociabilidade e as resoluções de “assuntos sérios”, fosse o
assunto me receber ou decidir o rumo das tarefas e do tempo do trabalho
assalariado dos encarregados.
Os pomares em Beira-Córrego eram regados com água drenada do rio
Paraopeba, com águas de poços artesianos, assim como das caixas d’água e
cisternas. O rio Paraopeba participava do ciclo das frutas e dos pomares, mas os
fluxos não eram tão estreitos se compararmos com o uso da água do afluente em
outras práticas, como a produção de gado de corte. Pretendo explicitar que o rio
contaminado, o rio-lama, vai fazer mais parte da narrativa de perturbações das
polpas advindas do Rompimento, mais do que fazia antes da tragédia. Os pomares
têm um cultivo agroecológico, e num primeiro momento eu tive dificuldade de
perceber qual era a situação da vida deles, se estavam avivados, em bom estado.
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Acredito que aqui é onde podemos complexificar a ideia de habitabilidade multiespécie, quando
questionamos ao humano como ele dá valor à si, ou a partir de si e das coisas, para entendermos as
dimensões culturais, morais, necessárias ao viver humano num mundo de muitas coisas
Das práticas nos pomares saem as polpas que são acumuladas,
processadas e acondicionadas na ASCOMBERE e então escoadas principalmente
para as escolas do ensino público dos municípios vizinhos de Fortuna de Minas.
Para que esse fluxo ocorra as pessoas da comunidade participam de reuniões e
algumas pessoas, como Suze, articulam as inscrições em licitações e editais
públicos de aquisição de gêneros alimentícios. Os editais ocorrem no início do ano,
logo, a organização das pessoas e o manejo das polpas acondicionadas se
intensificam no fim e início do ano. Ao longo do ano usualmente mulheres de Beira
Córrego, famílias do arraial e Retiro dos Moreira, pomares e pássaros tinham uma
relação socionatural mais estreita. Nos meses citados esse emaranhado se
complexifica em cadeias de ação de organização comunitária com sociabilidade
específicas, como todo encontro na associação, as conversas entre moradores
sobre o assunto e o próprio fluxo das coisas, em especial, das polpas. As frutas são
levadas para a associação e lá passam por uma seleção, lavagem, a retirada da
polpa (despolpamento), um processo de trituração/maceramento (chamado
desareação) no qual se concentra a polpa, a pasteurização e ensacamento a vácuo
em embalagens plásticas (processos que contam com maquinários da
agroindústria)
A polpa e a associação passam pelo calendário das pessoas de várias
formas, inclusive nos momentos de festa colocando as comunidades de Beira
Córrego e Retiro dos Moreira em evidência na região de Fortuna de Minas.
Pensando as práticas espacializadas em seus tempos, podemos pensar num
calendário, um calendário sazonal seria possível como alternativa interpretativa
mais assertiva da divisão temporal do ano para as comunidades camponesas
atingidas as quais trato nesse texto. Tendo em vista que as coisas têm seus tempos,
assim como seus fazeres, podemos pensar que o ciclo das polpas marca o
calendário sazonal das pessoas de Beira Córrego. Como já evidenciamos dos
movimentos de manejo, frutificação, transporte das polpas a associação,
processamento, tudo isso tem um tempo que pode orientar bem uma narrativa
temporal na lógica daquela comunidade, assim como nossas práticas urbanas,
feriados, finais de semana, horário de trabalho, dia do pagamento do salário, férias,
o ritmo que nos impõe nossas práticas de lazer como o uso de redes sociais, tudo
isso são marcadores da nossa noção de tempo. Nesse sentido o calendário das
comunidades atingidas em Fortuna de Minas é marcado pela Festa da Primavera,
em setembro, sempre associada e organizada pela ASCOMBERE, mas que no ano
de 2017 passou a associar o “Festival da Polpa de Fruta” à programação do evento
de forma oficial. A Festa da Primavera acontece de forma oficial desde 2005, ainda
antes do registro oficial da ASCOMBERE, sendo uma tradição da comunidade. A
festa sempre contou com atrações musicais, barraquinhas de comida, entre outras
atrações. A festa usualmente conta com uma cavalgada saindo da igreja da
comunidade do Retiro dos Moreira e segue até Beira Córrego. Daí acontecem um
almoço coletivo, leilões e chegando o fim do dia vêm as atrações musicais. O
evento tem sido articulado com o apoio da prefeitura nos últimos anos, como
contam o pessoal de Beira Córrego.
Mas a festa não veio a acontecer no ano de 2019, ano do Rompimento, caso
que não me foi detalhado o motivo diretamente, mas que parece estar associado a
uma gama de sentimentos negativos que se instalaram depois do Rompimento, às
dificuldades de produção das polpas e subsistência em geral, não deixando muitas
brechas e energia para manifestar uma festa que conta com a mobilização de várias
comunidades, disponibilidade de ônibus, atrações musicais e o Festival da Polpa -
como aconteceu nos anos anteriores. A festa é narrada como evento importante que
dá visibilidade para a ASCOMBERE e para o produto da polpa como um fazer da
comunidade. Suze quando começou a citar a festa indica que a festa é uma
celebração de um trabalho da comunidade, que marca um sucesso de articularem
entre os moradores a produção de polpas. Apesar de somente no ano de 2017 o
Festival da Polpa ser oficializado, pela narrativa local, não só de Suze, mas de
outras pessoas, a Festa da Primavera sempre foi relacionada com as polpas de
frutas. Isso porque quem fazia essa organização a partir de 2007 era a
ASCOMBERE, após o ano do seu registro. E se a associação, como explica Suze,
sempre se organizou no sentido do escoamento da produção da polpa de frutas, a
Festa da Primavera é um sinal nas linhas de habitabilidade de humanos e outras
coisas nos ciclos das polpas, um sinal de felicidade e sucesso, que informa uma
continuidade avivada desse ciclo.
Caracterização da coordenação:
Caracterização da coordenação: