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O RIO: CICLO E EIXO

O rio Paraopeba faz parte de uma bacia hidrográfica que leva seu nome, tem
extensão de 546,5 km e sua bacia cobre 35 municípios. O rio tem sua nascente no
município de Casa Grande (MG) e sua foz na represa de Três Marias (MG). O termo
de referência do edital publicado pelo MPMG de chamamento para entidades que
quisessem se candidatar a comporem as assessorias técnicas das pessoas
atingidas (ATIs) aponta 24 municípios com comunidades atingidas pelo
Rompimento. Em Fortuna de Minas o afluente passa pela zona rural, tangenciando
as comunidades de Beira Córrego e Retiro dos Moreira. As comunidades também
convivem com o Ribeirão dos Macacos que se junta ao rio Paraopeba próximo aos
sítios e ao arraial - categoria nativa utilizada para falar do pequeno centro “urbano”,
com casas menores, pequeno comércio, um bar e uma igreja que estava em
reforma, o lugar fica localizado entre as duas comunidades rurais nas quais
prevalecem as ocupações nos moldes dos sítios e fazendas
O rio em sua historicidade realiza ações não intencionais e produz efeitos nas
comunidades. O acúmulo de práticas entre as diferentes coisas e o rio tem
temporalidades marcadas, momentos de maior ou menor importância, e vão
constituindo sinais que, quando seguidos, podem nos permitir enxergar sua linha de
habitabilidade. Trata-se também de estabelecer noções de conhecimento
socionatural suscitadas a partir das coordenações entre os agentes e as coisas que
perfazem essa assembleia. Ao tratar a vida do rio como um ciclo aqui a nível
analítico, pretendo chamar atenção para o fato de que o rio é um eixo central na
vida das comunidades, o que significa dizer que todos os outros ciclos expostos têm
suas linhas de atividades cruzando ou mesmo partido do rio. Assim, exploro aqui o
emaranhado de linhas de habitabilidade e práticas associadas, delineando-as, mas
deixando alguns detalhamentos para serem feitos em outros ciclos, de forma a
organizar os dados de acordo com cadeias de ações significativas convergentes e
agentes da paisagem que possuem relações socionaturais mais próximas.
Um desses ciclos acontece anualmente, quando vem o tempo da piracema,
que ocorre entre o dia 1º de novembro até o fim de fevereiro - dado que recebi pelas
pessoas em Beira Córrego e também através do site do Instituto Estadual de
Florestas de Minas Gerais. Nesse período as unidades de Polícia Militar Ambiental
fiscalizam a ocorrência de torneios de pesca, pescas esportivas, pescas por lazer e,
também, a pesca tradicional. Neste período ocorre um quase hiato das cadeias
rio-peixe-humano - falo em quase hiato, pois é de costume os rumores pelas
próprias pessoas das comunidades que alguns insistem na pesca, com conflitos
com a Polícia Militar Ambiental. Não possuo em meu caderno de campo detalhes
muito aprofundados das dinâmicas humanas no rio em piracema, mas opiniões
diferentes sobre a política que se estabelece entre órgãos e comunidade. A questão
é que a pesca artesanal, o pescado como parte da soberania alimentar da
comunidade, as cadeias socioeconômicas da pesca, assim como uma moralidade
sobre a boa continuidade da vida dos peixes no rio, são mobilizados nos discursos
para contextualizar casos específicos. Algumas pessoas da comunidade informam
eventualmente pescarem na piracema, mas sempre frisando que em pouquíssima
quantidade ou que pescam e soltam os peixes; o hiato prescrito nas leis que parece
duro demais para alguns é completamente válido e moral para outros.
Mas antes, ainda, de seguir através das linhas que foram se delineando em
Fortuna de Minas, gostaria de comentar sobre um caso curioso que, assim como o
caso das pimentas em Pompeu, me despertavam o interesse rumo a um saber
sensorial e que pode lançar luz às desalinho dos emaranhados de vida do rio. Em
uma das campanhas de visitas junto ao Ministério Público, no município de Curvelo,
na comunidade de Angueretá, durante a reunião, um dos participantes da
comunidade refletiu sobre a diferença entre o tipo de contaminação que o rio então
recebeu com os rejeitos da barragem. Não procuro aqui atestar a eficácia do
método, mas evidenciar o tipo de conhecimento disposto na relação entre
rio-peixe-comunidade. Um pescador, já com idade avançada, explicou que muito
antes do Rompimento aconteciam descartes de contaminantes no rio. Explicou
ainda que era uma prática comum realizar determinados tipos de corte nas
vértebras e coluna do peixe, o que permitia a observação de uma mudança de
coloração e textura, que evidenciavam para eles que havia ocorrido um despejo
recente de contaminantes. Ele continuou sua explicação afirmando como essa
técnica não era aplicável aos peixes depois do Rompimento. Tinha feito testes e não
via a diferença típica, o que deixava nele a dúvida se a contaminação era real ou se
os contaminantes eram diferentes. O tipo de perturbação que a lama causa nos
saberes situados nas cadeias de ações significativas rio-peixe-comunidade,
sobretudo no momento daquela visita feita quatro meses após a tragédia, julho de
2019, os faziam questionar sinais, texturas e colorações que haviam aprendido
historicamente com as práticas espacializadas naquela paisagem. Um possível
esquema para pensar essa perturbação é:
Continuidade
Peixe é Conheciment das práticas
Textura e Continuidade
Rio mantido nas o cinético coordenadas
coloração estável da
Paraopeba cadeias de eficaz do (pesca, lazer,
normais às categoria de
limpo ações pescador venda,
vistas e tato pescador
significativas tradicional alimentação,
etc.)

Textura e Peixes podem


Ajustes das
coloração ou não ser
Rio Conheciment práticas
sinalizam excluídos das Continuidade
Paraopeba o cinético coordenadas
diferenças às cadeias de estável da
contaminado eficaz do (pesca, lazer,
vistas e tato ações categoria de
(antes do pescador venda,
no significativas pescador
Rompimento) tradicional alimentação,
procedimento a depender
etc.)
de corte do manejo

Peixes são Ecologias de


excluídos proliferação
Não há pela maioria da morte,
Conheciment
identificação da insegurança
o cinético do
Rio de diferenças comunidade alimentar,
pescador Instabilidade
Paraopeba historicament em suas angústia e
tradicional na categoria
(após o e entendidas cadeias busca por
é pescador
Rompimento) como sinais significativas, novas
questionado e
de sem coordenações
não eficaz
contaminação alternativas para
de manejo habitabilidade
eficaz local
A nível de entendimento dos ciclos, aqui já ficam alguns apontamentos. Antes do rompimento o rio passava por momentos
de contaminação que em sua história e relações entre rio-peixe-humano produziam diferentes coordenações para situações
diferenciadas, uma leitura complexa da paisagem, para orientação e continuidade das práticas, sem prejuízos que se apresentem
não calculáveis ou cognoscíveis pela comunidade. Esse conhecimento cinético das relações socionaturais e cadeias de ações
significativas dos agentes participantes, para os pescadores, poderia significar uma solidez na noção de pessoa que implica a
contínua linha de práticas e fazeres que o torna pescador e, ainda, o faz se entender como tal.
Tanto Tinim, Suze e Iranilton (vizinho de sítio do casal que me deu estadia)
formulam que o rio possui diferentes tipos de cheias. Existem as cheias comuns do
período de chuva que deixam vazar um volume menor de água. Muitas fazendas na
beira do rio possuem calhas laterais para contenção e aproveitamento da água,
como me mostrou Iranilton. Uma outra ocasião é o que eles chamam de grandes
cheias do Paraopeba; nas grades cheias o volume de água vazado é muito grande,
e distancia em alguns quilômetros do seu leito. Iranilton ao me levar em sua fazenda
aponta para um monte distante do outro lado do rio e conta que a água chega até
metade ou mais daquela altura.
Os momentos de cheias são momentos de sorte e azar pois, de certa forma,
podem acabar com investimentos (logo quebrar cadeias de ações significativas) ou
serem manejados como recurso. O período de dezembro a janeiro, com o grande
volume de chuva, é o momento que o rio tem o poder de mudar o jogo, facilitar e
intensificar ciclos, garantir tranquilidade mais adiante no ano, ou dificultá-los,
resultando em uma possível aposta perdida. Isso parece depender do volume de
água e extensão do solo umedecido, assim como os usos da área de vazante, os
plantios prévios e investimentos em infraestrutura - coisa que trato no ciclo
Gado-Pasto-Investimentos de forma detalhada, uma justaposição das linhas que
partem do rio com outras cadeias de ações, coordenações com temporalidades e
outros agentes.
Assim como outras coordenações têm práticas e ações intencionais (e não
intencionais) em ciclos de tempos curtos, o rio e suas cheias, na fala da comunidade
faz parte historicamente da paisagem, sendo parte da memória comunitária os anos
das grandes cheias. Iranilton, Suze, Tinim, Aparecida (e provavelmente mais
algumas pessoas com quem conversei) apontaram os mesmo anos das grandes
cheias. Esses ciclos são mais longos, e as apostas, quando ocorrem, são mais altas
nas cheias. As datas apontadas por eles convergem para uma ideia de que grandes
cheias têm um intervalo de 8 a 10 anos - mais uma vez eu não tenho nem
arcabouço teórico dos estudiosos do clima para discutir o sentido dessa afirmação,
mas aqui importa o significado dela dentro de uma cultura que se dá através de
relações socionaturais. A última enchente daquela intensidade foi em 2011, e antes
houve enchentes nos anos de 1998 e 1987 - anos que foram marcados por histórias
de sorte e azar.
Em fevereiro de 2019, um mês após o Rompimento, o Instituto Mineiro de
Gestão das Águas (IGAM) já havia emitido uma nota de suspensão do uso da água
bruta do rio Paraopeba, tendo em vista os resultados de análise de contaminação
da água. O rio logo se torna associado à palavra contaminação e o novo agente na
narrativa das comunidades é a lama. Nas comunidades da zona quente, região na
qual a lama passou, a lama ficou exposta na paisagem desde o dia da tragédia. Os
sinais da chegada da lama para as comunidades fora da zona quente vieram em
outros momentos nos quais diferenciações em linhas de habitabilidade eram
percebidas. Em Fortuna de Minas se narra que a mudança de coloração do rio
acontece cerca de um mês depois da tragédia, a data ao certo varia nas conversas
que tive, mas citavam entre o dia 26 e 28 de fevereiro. Contam também que com o
tempo a coloração vai se aproximando novamente da original.
Essa visita às comunidades ocorreu um ano depois do Rompimento. Ao
longo deste ano eu estagiava no Ministério Público e nessas comunidades fora da
zona quente foi se estabelecendo uma narrativa sobre a lama e sobre a
contaminação. O passar do tempo fazia com que cada vez mais aparecessem
dúvidas sobre se a água ainda estava contaminada, assim como a ideia de que a
lama estava no fundo do rio - essa ideia partia de formulações da mídia, das
Instituições de Justiça e outros órgãos, que explicavam que a densidade da lama
era alta, o que fazia com que ela se depositasse no fundo do rio e se movesse
vagarosamente. Havia também a formulação da ideia, que permeava as falas locais
e os discursos veiculados na mídia e por Instituições de Justiça, de que a barragem
de Retiro Baixo, em Pompeu, estava contendo grande parte do volume de rejeitos.
Em Fortuna de Minas foi recorrente falas como a de Aparecida: “A lama está no
fundo do rio, a gente não vê, mas ela está lá” (depoimento registrado em caderno de
campo, no dia 08/02/2020).
Com a chuva a comunidade esperava que a lama fosse remexida do fundo
do rio e o transbordo foi quando a lama fez sua aparição para a comunidade, às
vistas e a outros sentidos. Ao visitar o sítio de Iranilton, ele me conta que essa cheia
se diferenciava das outras grandes cheias, coisa que ele e outras pessoas da
comunidade associavam ao Rompimento. Nas enchentes anteriores o transbordo
trazia “um barro que sujava a várzea e empoçava uma água clara. Dessa vez a
água está com uma cor estranha e a coisa mais esquisita é que, nos outros anos,
vinha uma chuva rápida e forte nos dias seguintes e escorria o barro 3 dias depois
da enchente. Esse janeiro choveu mais de 150 mm em 3 dias depois da enchente e
não limpa a braquiária por nada” (depoimento registrado em caderno de campo, no
dia 07/02/2020).
Nessa situação a lama expande seu lugar na paisagem narrada pela
comunidade, do fundo do leito do rio para o pasto e solo. Junto dela a noção de
contaminação da paisagem também é ampliada. Uma das determinações feita em
juizo era que a Vale fizesse o cercamento e sinalização das margens do Paraopeba
visando evitar que animais e pessoas acessassem a área contaminada pela lama. A
enchente trouxe a água para além da área cercada, logo muitos animais acabaram
bebendo dela. As famílias com as quais conversei se preocupavam com a vida de
animais domésticos, gado e cavalos. Além disso um dano que se intensifica com o
transbordo é o dano ao direito à água, como no caso de Iranilton que conta que
tinha poço artesiano, através do qual ainda podia contar com a água, mesmo que
não em quantidade suficiente para dar suporte a todas as práticas de habitabilidade
que dela dependiam. Esse dano é intensificado porque muitos poços artesianos
receberam água contaminada na grande cheia.
As cheias também dão possibilidade às cadeias de ações ligadas ao turismo,
lazer e pesca. Nos dias que se seguem às enchentes acontecem formações do que
a comunidade chama de prainhas, lagos e águas empoçadas. As prainhas não são
exclusivas dos momentos de cheias, pois existem como formação natural em alguns
pontos do rio, mas quando há o transbordo esses espaços se multiplicam e assim
se intensificam as práticas coordenadas associadas a essas paisagens. Já nos
lagos e águas empoçadas, outros seres aparecem, tais como os patos e outros
pássaros, que também participam de relações que vão ser melhor exploradas ao
tratar dos ciclos do turismo, lazer e pesca.
Para além da piracema e as cheias como situações especiais, o acesso ao
rio como acesso à água está ligado ao cotidiano das pessoas atingidas e outros
seres que ali foram sendo construídos. O uso da água para beber, irrigar
plantações, dessedentação animal e atividades domésticas articulam uma infinidade
de relações sociais que dão sentido à vida no campo.
Em Fortuna de Minas, assim como em outras regiões ribeirinhas, a irrigação
das plantações com a água drenada do rio tem bastante importância para a
continuidade da habitabilidade da comunidade. Nos próximos capítulos escrevo um
pouco sobre dois ciclos importantes para a habitabilidade naquela paisagem: o ciclo
das polpas e o ciclo do gado, ambos tangenciados/perpassados pelos fluxos de
água da bacia hidrográfica do Rio Paraopeba.
O CICLO DAS POLPAS

Tendo o rio como eixo central das linhas da vida em Beira Córrego podemos
puxar um fio e nos movermos até os pomares, talvez fazermos um circuito até a
associação comunitária, percorrendo memórias, entendendo os tempos, notando
coisas e pessoas específicas, ouvindo o que faziam e o que fazem antes e depois
do Rompimento. Em Pisando em campo contei um pouco do papel de Suze, suas
várias posições no relevo político do emaranhado de vidas em Beira-Córrego. A
associação comunitária é um desses espaços no qual se cruzam muitas linhas de
vida e do qual Suze participava ativamente1. Procurei abordar o assunto,
especificamente o manejo dos pomares e a relação com a associação,
conversando com ela e com outras pessoas da comunidade para detalhar algumas
práticas e narrativas sobre o papel da associação, quais coisas compunham essa
cadeia, o que fazem as coisas e pessoas para dar continuidade àquela prática de
habitabilidade na região. Relevante apontar que minha apropriação do conceito de
habitabilidade explorado por Tsing ganha mais um sentido que passa pelas
necessidades humanas enquanto pessoas sociais e culturais.
No documento da ação civil pública do caso (ACP), instrumento jurídico que
instaura o processo civil contra a Vale, a associação de polpas de Beira-Córrego e
de Pontinha são citadas. Mas essa informação não estava fresca na minha cabeça
quando fui pra Fortuna de Minas. Fui lembrado no primeiro momento, entretanto, na
conversa com Sirlei, de Sete Lagoas à Beira-Córrego. Quando ela fala de
subsistência, do povo que precisa produzir para comer e para gerar renda, que
dependiam muito do rio, ela também cita a produção de polpas pela associação
comunitária e frisa que muita gente precisa do escoamento do produto. Então,
podemos nos perguntar: quais são as coisas (a polpa, a associação, os pomares) e
o que elas fazem (aguam, frutificam, processam, se escoam)? E quem são as
pessoas que precisam do escoamento? Esse destaque dado ao papel da
associação para as pessoas não aparece contado dessa forma quando converso
com os proprietários de áreas maiores (o que é a maioria das pessoas com quem
conversei em campo). Depois eu pude refletir sobre o porquê, ou pelo menos
sugerir uma hipótese para essa divergência.
A polpa de frutas é um processado não fermentado, não concentrado e nem
diluído obtido através das partes comestíveis das mais diversas frutas. Nos sítios
que visitei os pomares contavam com morangos, abacaxis, maracujás, pequi,
goiabas, acerola, mamão, manga entre outras frutas. Esses pomares possuem um
sentido espacial, uma disposição na paisagem que suscita apontamentos sobre a
distribuição de práticas nos sítios. Visitei quatro sítios de grande extensão em Beira

1
Seria possível num trabalho futuro refletir sobre as possibilidades de distribuição de poder nas
linhas e emaranhados, podemos nos perguntar sobre a relação entre habitabilidade e poder.
Paisagens avivadas são mais imbuídas de poder?
Córrego, mas não pude visitar os sítios e chácaras do Retiro dos Moreira e Arraial.
Nos sítios que pude observar em Beira Córrego, os pomares estão organizados no
limiar entre sítio, no sentido de lugar da vida familiar; ou da casa-quintal de Garcia Jr
(1983), lugares típicos das ações das mulheres; e lugares relacionados ao trabalho,
sejam os pastos ou as hortas, quando mais voltadas para produção externa. A
noção de sítio articulada por Woortmann cabe bem aqui:
“O termo Sítio designa, então, o espaço de troca de mulheres,
através da qual se realiza a aliança entre os homens; o espaço da
troca de tempo de trabalho entre pais e o espaço do circuito de
dotes, isto é, o espaço da reciprocidade; essas trocas se dão no
interior de um território que é constituído pela descendência”
(WOORTMANN, 1990, pg. 31)
Observo que essa formulação sobre o sítio consegue ter similaridade com as
vivências de Beira Córrego, mas não posso confirmar o mesmo no Retiro dos
Moreira ou no Arraial. A estrutura social através da qual os emaranhados de vida se
dão também criam diferentes noções para a paisagem como continuamente aponto.
Mas em Beira Córrego o lugar do Pomar está entre a casa-quintal e os pastos, os
pomares delimitam os lugares das criações menores, como galinhas e porcos, todas
de manejo feito pelas mulheres. Já os homens no espaço do sítio como disposto
acima, não vi fazendo muitas ações significativas que não os encontros entre
pessoas a nível de sociabilidade e as resoluções de “assuntos sérios”, fosse o
assunto me receber ou decidir o rumo das tarefas e do tempo do trabalho
assalariado dos encarregados.
Os pomares em Beira-Córrego eram regados com água drenada do rio
Paraopeba, com águas de poços artesianos, assim como das caixas d’água e
cisternas. O rio Paraopeba participava do ciclo das frutas e dos pomares, mas os
fluxos não eram tão estreitos se compararmos com o uso da água do afluente em
outras práticas, como a produção de gado de corte. Pretendo explicitar que o rio
contaminado, o rio-lama, vai fazer mais parte da narrativa de perturbações das
polpas advindas do Rompimento, mais do que fazia antes da tragédia. Os pomares
têm um cultivo agroecológico, e num primeiro momento eu tive dificuldade de
perceber qual era a situação da vida deles, se estavam avivados, em bom estado.

Um documento da Assessoria Técnica Independente da Região 3, o Núcleo


de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens de março de 2021 - cerca
de um ano após o trabalho de campo e um pouco mais de dois anos do
derramamento - cita a atividade das polpas em Beira Córrego e Fortuna de Minas
como “agroindústria de fabricação e beneficiamento de polpas de frutas, que
processa e escoa a produção agroecológica cultivada nos quintais dos moradores”
(NACAB, Boletim Mobilização 02. 2021). Os marcos teóricos referenciais da
EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) (EMBRAPA, 2006) não
nos alimenta com tópicos objetivos que definiriam o que é um espaço de produção
agroecológica de frutas. Mas aponta para substituição de insumos químicos por
insumos orgânicos para o manejo da terra, a diversidade de plantas no mesmo
espaço e, sobretudo, um conhecimento contextual no qual os saberes locais
auxiliam um manejo que direciona a produção e a paisagem a um estado de
sustentabilidade. Era observável a diversidade de plantas, árvores frutíferas, em
alguns dos quintas, mas a partir das falas de pessoas da comunidade eu pude
imaginar um programa estético ao qual um pomar avivado devia corresponder.
Iranilton e outras pessoas da comunidade apontavam sinais de insucesso, sinais de
uma paisagem que contou com pouco cuidado. Os sinais de ruínas aqui são
marcados não pela falta de elementos, ou pela decomposição dos elementos da
paisagem, mas pela diminuição da diversidade e pelo o avanço de plantas daninhas
para aquele espaço, sobretudo do mato e da braquiária. Mesmo minha visita tendo
sido alguns dias depois do transbordo do rio e, logo, na época de chuva, eles
frisavam que o pomar podia estar mais bem cuidado ou como Iranilton disse,
podiam ter plantado mais e em maior área. Claro, podemos complexificar a
discussão aqui, na medida em que a maneira que eu tenho de pensar um pomar
cuidado ou não tem a ver com minha noção de rotinas e tempos para cuidados. Por
exemplo, na época de chuva podemos pensar que uma área de pomar pode ser
tomada por outras plantas em pouco menos de duas semanas sem roçar. Contudo,
as falas de Iranilton que indicaram esse descuido com a diversidade e avivamento
da paisagem vieram num contexto específico. Ele me dizia a respeito de como a
falta de água atrasava inúmeras tarefas, por que grandes áreas requeriam um
trabalho com o pasto que antes era feito pelos bois (a poda/controle dos pastos).
Isso sugere que ainda que em época de chuva os pomares poderiam ter um outro
nível de avivamento se outras linhas de vida e ciclo tivessem ocorrendo como
planejado.

As plantas frutíferas da comunidade têm épocas diferentes de florescimento e


frutificação, mas o indicado pelas pessoas é que isso ocorra a partir da segunda
metade do ano, sobretudo após setembro. Nesse período em que se intensifica o
manejo dos pomares são acumuladas as frutas que são processadas e
acondicionadas nos equipamentos de refrigeração da associação comunitária.

Figura: Iranilton frente a área de Pomar em fevereiro de 2020.


Numa visita ao sítio de Iranilton, paramos em frente ao seu pomar, um pouco
antes de eu voltar para casa de Suze. Ele me conta que a associação comunitária
tinha sido criada há cerca de 12 anos; como pude verificar a Associação
Comunitária dos Moradores de Beira Córrego, Retiro dos Moreira e adjacências
(ASCOMBERE) foi registrada em 2007. As polpas, na fala de Iranilton, eram
produtos que traziam uma renda extra para os sítios de Beira-Córrego e ajudavam
ainda mais os pequenos produtores do arraial e do Retiro dos Moreira. Nos
momentos em que eu estava na casa de Suze, ela recebeu algumas visitas que
citaram a quantidade de polpa que tinha para entregar na associação, como a
família do encarregado do sítio dela e mais algumas pessoas, a maioria de
moradores do arraial e do Retiro dos Moreira.
Nas fazendas de grandes números de hectares, típicas de Beira-Córrego, a
agropecuária constitui a linha de ações coordenadas que ocupa maior área na
paisagem, pois a produção de gado para corte e laticínios eram o foco dessas
famílias - no caso, o gado de corte mais ligado às linhas de vida dos homens; e os
lacticínios, às mulheres, conforme será melhor explicado no ciclo
Pasto-Gado-Investimentos. Logo, as hortas e os pomares, nessa comunidade, são
lugares aproveitados para a vida da família enquanto subsistência e entre as
famílias enquanto esquema de trocas, sociabilidade e fluxo das coisas. A troca de
vegetais, legumes e frutas parecia prática comum entre os núcleos familiares, pelo
que me contou Suze num dia que sua comadre foi buscar um punhado de quiabos.
Woortmann entende esse tipo de prática como essencial para articular valores como
trabalho, a figura feminina e a masculina, visto que a mulher pode participar de
circuitos de troca de alimentos quando o homem consegue articular suas cadeias de
ações ligadas à produção pecuária. Nesse sentido, as trocas também articulam
valores importantes para a continuidade dos emaranhados de vida, valores como
honra, hierarquia e status de homens e de mulheres, ou, como diz Woortmann, uma
linguagem que comunica posições e constrói uma noção de comunidade
(WOORTMANN, 1990, p.37-38), coordenações mais amplas de paisagens. Dessa
maneira as frutas e hortaliças fazem parte de um movimento entre as fazendas,
constituindo uma sociabilidade mais que humana necessária às famílias de Beira
Córrego, mais por esse motivo do que pelo valor associado ao trabalho, ao lucro e
ao poderio que, em contrapartida, a criação de gado traz nesse contexto. O que
quero dizer é que em Beira Córrego, a aposta dos proprietários na produção de
polpas era menor, e os pomares, frutas e polpas tinham menos relevância
econômica, ainda assim tendo talvez maior importância para aspectos sociais e
culturais das famílias de Beira Córrego.
Se por um lado os pomares parecem ter uma relevância secundária para os
sitiantes e fazendeiros de Beira Córrego, as pessoas de Beira Córrego diziam ser
(os pomares) importantes para a renda das pessoas do arraial e do Retiro dos
Moreira (Retiro). Não tive a chance de conversar sobre a polpa de frutas com o
pessoal do arraial ou do Retiro, o que me faz deixar de apreender uma gama de
histórias e práticas de pomares para aquelas pessoas. Logo não posso dizer muito
sobre o significado cultural e simbólico das polpas de fruta para essas outras
comunidades, ou para os fluxos de sociabilidade internos a essas comunidades e
nem me aprofundar muito nas assembleias de coisas que envolvem as paisagens
dos pomares nessas regiões. Somente posso sugerir uma relevância econômica da
produção e enquanto estratégia de subsistência, conforme me repassaram as
pessoas de Beira Córrego. Mas o que se via e pode ser verificado num passeio na
região, é que no Arraial e no Retiro os loteamentos, as áreas de cada sítio eram
menores, limitando a produção de laticínios e gado de corte. De toda forma
podemos apontar aqui que antes do Rompimento as ações que envolvem as polpas
e os pomares estavam mais ligadas às pessoas do Retiro e do arraial e se
distanciavam em alguma medida de quem estava mais ligado aos ciclos do gado, os
homens de Beira Córrego. Depois do Rompimento, os homens passam a ter um
olhar diferente para aquela paisagem, os pomares passam a significar uma
alternativa econômica que dá possibilidade da continuidade das formas de vida no
campo. Os homens de Beira Córrego com o acúmulo de gastos impostos pela
consequencias da falta da água do Rio Paraopeba, os prejuízos financeiros e as
dinâmicas emocionais, dificultam a reativação dos ciclos nos quais os homens de
Beira Córrego se inserem para traçarem suas linhas de vida no campo. Assim como
Woortmann fala sobre quando o sitiante-comerciante se torna estritamente
negociante, categoria com menor valor moral para a campesinidade a partir desses
estudos, mas que o faz num processo que visa no próximo passo retomar sua honra
e valores morais associados à categoria sitiante. Em Beira Córrego o contexto
observado sugere que os homens passam se interessar e participar mais
ativamente dos ciclos das polpas, ligado às mulheres e às comunidades do Retiro
dos Moreira e Arraial (de menor prestígio e recorte socioeconômico), em vistas de
uma chance de se libertarem do cativeiro imposto pelo Rompimento: “a gente
estava contando com um dinheirinho da produção das polpas neste ano… já é uma
ajuda pra gente conseguir investir no sítio, para ver se a gente volta a fazer nosso
trabalho” (fala de Iranilton no dia 07/02/2020). A fala aponta que o trabalho pensado
para os homens é o trabalho com o gado, podemos imaginar significados
simbólicos, morais, econômicos e sociais para essa associação; o que quero dizer é
que essa fala aponta a aproximação dos homens de Beira Córrego aos ciclos das
polpas como alternativa/improvisação num contexto perturbado para tentar dar
continuidade às coisas e os fazeres que eles entendem valoráveis e relacionados às
suas linhas de vida.
Desse modo, ao mapear memórias e percorrer as linhas de vida dos
pomares, também entendi que nos sítios de Beira Córrego quem tinha mais contato
e manejo dos pomares eram as mulheres. Ouvi de mulheres memórias da paisagem
como a de pássaros que ali frequentam. Suze e Aparecida me falam dos tucanos e
outros pássaros que vão comer em seu pomar, contam uma para outra como estão
indo os frutos. Apesar de não contarem sobre uma mudança da frequência desses
pássaros, elas apontam uma preocupação que sublinha uma perturbação na vida
dessas outras espécies. Preocupam se esses pássaros estão bebendo água do rio
e, como minha visita foi feita nos dias que se seguem ao tempo das cheias,
preocupam-se os banhos dos pássaros nas áreas de alagamento, prainhas e lagos
formados no transbordo.
Os homens presentes também se empolgam com os pássaros, mas a fala de
proximidade e cuidado com o pomar é das mulheres. As frutas fazem parte dos
fluxos vitais da comunidade não só na alimentação e escoamento de produção das
pessoas, mas, também, nas relações entre as famílias. As mulheres parecem estar
à frente do cuidado dos pomares, o aguar, o acompanhamento dos ciclos das
árvores e plantas frutíferas entendendo os sinais de vida e morte desses lugares.
Não que a tarefa seja exclusivamente feminina, por exemplo, na fazenda de
Iranilton, que mora sozinho, é ele que faz esse cuidado. Mas Iranilton e outros
homens se preocupam mais em me contar os desafios com o gado e, quando os
ouço falar de pomar, objetivamente tratam de produção. Acredito que a diferente
forma de contar a vida nos pomares por homens e mulheres não seja aleatória, mas
uma diferenciação de papéis de gênero na paisagem. Isso porque as coisas do
campo e o fazer coletivo da vida é distribuído na comunidade de forma diversa. As
linhas de vida dizem respeito sobre muitas coisas, entre elas, sobre as pessoas, que
tipo de atividades participam, que atividades têm valor para suas vidas, quem são e
o que continuam fazendo para ser. Homens de Beira Córrego, mulheres de Beira
Córrego, pessoas do arraial e do Retiro participam de ciclos, se interessam por
essas atividades na medida em se entendem em categorias de pessoas que
incorporam aquelas práticas no modo de vida que lhe cabe na comunidade e na
medida que essas práticas são parte de sua estratégia de habitabilidade2.

Figura: Suze, a casa-quintal e o limiar-pomar

2
Acredito que aqui é onde podemos complexificar a ideia de habitabilidade multiespécie, quando
questionamos ao humano como ele dá valor à si, ou a partir de si e das coisas, para entendermos as
dimensões culturais, morais, necessárias ao viver humano num mundo de muitas coisas
Das práticas nos pomares saem as polpas que são acumuladas,
processadas e acondicionadas na ASCOMBERE e então escoadas principalmente
para as escolas do ensino público dos municípios vizinhos de Fortuna de Minas.
Para que esse fluxo ocorra as pessoas da comunidade participam de reuniões e
algumas pessoas, como Suze, articulam as inscrições em licitações e editais
públicos de aquisição de gêneros alimentícios. Os editais ocorrem no início do ano,
logo, a organização das pessoas e o manejo das polpas acondicionadas se
intensificam no fim e início do ano. Ao longo do ano usualmente mulheres de Beira
Córrego, famílias do arraial e Retiro dos Moreira, pomares e pássaros tinham uma
relação socionatural mais estreita. Nos meses citados esse emaranhado se
complexifica em cadeias de ação de organização comunitária com sociabilidade
específicas, como todo encontro na associação, as conversas entre moradores
sobre o assunto e o próprio fluxo das coisas, em especial, das polpas. As frutas são
levadas para a associação e lá passam por uma seleção, lavagem, a retirada da
polpa (despolpamento), um processo de trituração/maceramento (chamado
desareação) no qual se concentra a polpa, a pasteurização e ensacamento a vácuo
em embalagens plásticas (processos que contam com maquinários da
agroindústria)
A polpa e a associação passam pelo calendário das pessoas de várias
formas, inclusive nos momentos de festa colocando as comunidades de Beira
Córrego e Retiro dos Moreira em evidência na região de Fortuna de Minas.
Pensando as práticas espacializadas em seus tempos, podemos pensar num
calendário, um calendário sazonal seria possível como alternativa interpretativa
mais assertiva da divisão temporal do ano para as comunidades camponesas
atingidas as quais trato nesse texto. Tendo em vista que as coisas têm seus tempos,
assim como seus fazeres, podemos pensar que o ciclo das polpas marca o
calendário sazonal das pessoas de Beira Córrego. Como já evidenciamos dos
movimentos de manejo, frutificação, transporte das polpas a associação,
processamento, tudo isso tem um tempo que pode orientar bem uma narrativa
temporal na lógica daquela comunidade, assim como nossas práticas urbanas,
feriados, finais de semana, horário de trabalho, dia do pagamento do salário, férias,
o ritmo que nos impõe nossas práticas de lazer como o uso de redes sociais, tudo
isso são marcadores da nossa noção de tempo. Nesse sentido o calendário das
comunidades atingidas em Fortuna de Minas é marcado pela Festa da Primavera,
em setembro, sempre associada e organizada pela ASCOMBERE, mas que no ano
de 2017 passou a associar o “Festival da Polpa de Fruta” à programação do evento
de forma oficial. A Festa da Primavera acontece de forma oficial desde 2005, ainda
antes do registro oficial da ASCOMBERE, sendo uma tradição da comunidade. A
festa sempre contou com atrações musicais, barraquinhas de comida, entre outras
atrações. A festa usualmente conta com uma cavalgada saindo da igreja da
comunidade do Retiro dos Moreira e segue até Beira Córrego. Daí acontecem um
almoço coletivo, leilões e chegando o fim do dia vêm as atrações musicais. O
evento tem sido articulado com o apoio da prefeitura nos últimos anos, como
contam o pessoal de Beira Córrego.

Mas a festa não veio a acontecer no ano de 2019, ano do Rompimento, caso
que não me foi detalhado o motivo diretamente, mas que parece estar associado a
uma gama de sentimentos negativos que se instalaram depois do Rompimento, às
dificuldades de produção das polpas e subsistência em geral, não deixando muitas
brechas e energia para manifestar uma festa que conta com a mobilização de várias
comunidades, disponibilidade de ônibus, atrações musicais e o Festival da Polpa -
como aconteceu nos anos anteriores. A festa é narrada como evento importante que
dá visibilidade para a ASCOMBERE e para o produto da polpa como um fazer da
comunidade. Suze quando começou a citar a festa indica que a festa é uma
celebração de um trabalho da comunidade, que marca um sucesso de articularem
entre os moradores a produção de polpas. Apesar de somente no ano de 2017 o
Festival da Polpa ser oficializado, pela narrativa local, não só de Suze, mas de
outras pessoas, a Festa da Primavera sempre foi relacionada com as polpas de
frutas. Isso porque quem fazia essa organização a partir de 2007 era a
ASCOMBERE, após o ano do seu registro. E se a associação, como explica Suze,
sempre se organizou no sentido do escoamento da produção da polpa de frutas, a
Festa da Primavera é um sinal nas linhas de habitabilidade de humanos e outras
coisas nos ciclos das polpas, um sinal de felicidade e sucesso, que informa uma
continuidade avivada desse ciclo.

Figura: Foto “Festa da Primavera de 2017” (site)

Então a associação comunitária como uma organização, longe de ser um


ente puramente social, é uma assembleia que precisa das ações das mulheres, da
disponibilidade da água, do sucesso dos pomares, do envolvimento das pessoas em
reuniões, e de toda a cadeia de demanda por polpa de fruta: o Estado nas suas
políticas estaduais e municipais de incentivo àa agricultura familiar, os órgãos
municipais de educação como escolas e as crianças e adolescentes estudantes do
ensino público das cidades vizinhas a Fortuna de Minas que consomem as polpas
nas refeições oferecidas pelas instituições de ensino. Um ciclo que conta com
meses de manejo no final do ano e da interação pessoa-pomares-pessoas, na
organização e no trabalho com editais. Esses tempos em que cada ciclo ganha
força na vida da comunidade também devem ser observados para entender o tipo
de perturbação causada pelo Rompimento.
As conversas que ouvi entre Suze e as pessoas que iam ao sítio falar sobre
as frutas, tinham um tom que me sugeria um desânimo com o escoamento. As
pessoas interessadas em fazerem mais entregas de frutas por um lado e muitos
comentários de Suze sobre a quantidade de polpa que ainda estavam estocadas,
estancadas num lugar-tempo do ciclo e fluxo das polpas. Fui entender em algumas
conversas um dos motivos do desânimo de Suze. Naquele ano a ASCOMBERE
estava sendo negada nos editais, essa informação aparece no documento da ACP,
mas escutei em campo. Já no ano do Rompimento isso aconteceu e com o
transbordo do ano de 2020, um ano depois, e momento da minha visita, a narrativa
de contaminação dos pomares se intensificou. Os pomares precisam de um volume
de água bem menor que o do manejo da pecuária, logo os moradores de Beira
Córrego se revoltam ao me contar que as escolas acreditam que as frutas deles
estariam contaminadas com a água do rio. Isso porque na maior parte das vezes os
pomares são alimentados da água de cisternas e poços artesianos, mesmo antes
do Rompimento. Não sendo suficiente o volume de água dessas fontes para outras
atividades e tendo em vista as dificuldades impostas para além do acesso a água
nessas outras atividades, muitos direcionaram esforços para o avivamento dos
pomares enquanto alternativa para dar continuidade na à vida no campo.
Woortmann fala um pouco sobre uma possível interpretação da incorporação
de práticas ditas modernas no meio camponês. Se por um lado pode-se pensá-las
em termos de rupturas das cadeias de ações para a vida e valores locais, num
momento do que ele chama de campesinidade agonística, uma situação de crise na
qual as pessoas do campo articulam, reafirmar e buscam alternativas para
manutenir os valores e as práticas da paisagem que os fazem ser. Dessa maneira a
mudança de um movimento pela sociabilidade entre famílias, uso paliativo do
escoamento dos pomares e liderança das mulheres nos espaços da ASCOMBERE,
para um outro de foco no escoamento e monitoramento do sucesso do comércio
das polpas, pode ser entendido como uma alternativa para continuidade da vida no
campo. Mesmo por queporque Iranilton e Rafael (filho da Aparecida) citam que seria
importante o lucro dos pomares para terem a chance/capital para reorganizar e dar
continuidade àa práticas como a pecuária. Para Woortmann um efeito último desse
tipo de relação pode ter quebra de valores associados à categoria de pessoa
sitiante:
“Sitiantes-comerciantes, por vezes, se tornam exclusivamente
comerciantes. Mas, é apenas em situações de diferenciação social
acentuada que o negociante deixa de ser, também, sitiante. Nestes
casos, há um “descolamento", uma ruptura com relação aos valores
e à ética camponesa, e o valor expresso pela categoria trabalho é
substituído por outros, como “tino comerciar, coerente com a nova
prática” (WOORTMANN, pg. 40).

Além disso, os homens acostumados a liderar fluxos das coisas de maior


valor econômico na comunidade, agora se vêeem ligados e dependendo do trabalho
de uma entidade superior, a ASCOMBERE. Woortmann faz esse comentário para o
aparecimento das cooperativas, ele explica que nelas o processo de trabalho é
controlado e organizado pela cooperação, o que anula a autonomia do pai - aqui
podendo ser pensado não somente a figura do pai, mas de qualquer homem
camponês da comunidade. Em suas palavras: “a cooperativa é um novo patrão,
mas um patrão sui generis”. Se por um lado acredito que Woortmann acerta no
efeito moral da mudança de foco dos homens, passando a estreitar laços com a
associação, o autor perde sutilezas. Pois o campesinato pode se constituir de várias
formas, ainda que entendendo que trabalha com um campesinato “genérico”,
algumas especificidades aqui me parecem mais interessantes.
A perda do controle das paisagens da fazenda com a perda do poderio de
negociação dos tempos (do poder de contratação de trabalho assalariado, do
manejo do tempo e das negociações, das alianças entre sítios) é um ponto
relevante para entender uma perturbação na distribuição de práticas que tem efeito
para a plena existência moral da linha de vida que envolve os processos formativos
de um homem de Beira Córrego. Existe Conforme fui percebendo/descrevendo,
existe um valor associado às cadeias de ações das polpas que têmcom diferentes
importâncias a nível econômico para a habitabilidade de Beira Córrego e de Retiro
dos Moreira, sobretudo antes do Rompimento. Dessa forma, a distribuição das
práticas espacializadas aproxima aAs linhas de vida dos (homens?) que são do
Reitro dos Moreira e do arraial e tendem a divergir das linhas de vida dos homens
de Beira Córrego. Apostar nos pomares, trabalhar como encarregado, se terceirizar
e trabalhar em cidades vizinhas, essa e algumas coisas são fazeres narrados pelas
pessoas de Beira Córrego sobre quem mora no Retiro dos Moreira. Me pergunto
então se Iinvestir com tal dependência nos pomares então seria um desvio da linha
de vida que o homem de Beira Córrego pensa para si? A Me parece que a
incorporação/redistribuição e a aposta em práticas de manejo utilizadas por
comunidades vizinhas com menor prestígio, realidade econômica e social diferente
também é um sinal de perturbação.
Ademais, quando me é contado sobre as temporalidades dispostas para esse
ciclo, entendemos os fluxos ao longo dos meses, mas a efetivação do escoamento
parecia ser rápida. Suze me conta que algumas escolas já tinham costume de
licitarem a ASCOMBERE para o fornecimento de polpas. Então, Suze e algumas
outras mulheres como por exemplo Sirlei, que tinham maior facilidade com a escrita
e organização de documentação para participação de editais, elaboravam esse
processo. Com as negativas das escolas receosas de que suas polpas estivessem
contaminadas, o ciclo das polpas se prolonga. Quando estava lá, em fevereiro de
2020, já era de se esperar que a maior parte da produção tivesse destino definido.
Mas o que aparecia era o desânimo e a desesperança como sinais sutis do
Rompimento na vivência dos pomares, e o cansaço das pessoas em ter de repetir
excessivamente o ato clímax desse ciclo: o preparo de documentações, o envio de
inscrições, a visita a escolas para participar das licitações; essa etapa que tomava
um curto prazo se torna um ato repetitivo e desgastante.
Os homens com quem conversei achavam desgastante esse tipo de tarefa
para o retorno financeiro, os desagradavam de terem de ir a cidades vizinhas para
participar de editais e licitações. Faz sentido essa indisposição com o trabalho dos
editais a partir do que Woortmann aponta sobre as acentuações de formas deque
comércio que esvaziam os camponeses de um poder de negociação nos termos da
vida no campo, enquadrados nessas formas típicas das áreas urbanas. Mas,
novamente, se por um lado os editais afastam os homens de suas linhas de vida,
podem ser também estratégias para liberdade/autonomia, uma resposta criativa às
perturbações de proliferação da morte causadas pelo Rompimento, uma tentativa de
novas coordenações para habitabilidade.

“O negócio é, então, a negação da reciprocidade (e, por isso, não


pode invadir o Sitio) e do trabalho. Sob este prisma, é a negação da
campesinidade. Sob outro prisma, contudo, se pensado como
prática/estratégia, ele é o caminho para a liberdade e para a terra. É
preciso, então, contextuaüzar o significado do negócio, isto ê,
relativizá-lo, se o que se deseja ê subjetivar o objeto de nosso
entendimento, ao invés de objetivar o sujeito do discurso e da ação”
(Woortmann, pg. 41).

Na tentativa de uma melhor visualização do ciclo elaboramos dois esquemas das


coordenações antes e depois do Rompimento (esquema 1 e esquema 2).

Esquema 1: Ciclo das polpas antes do Rompimento


Ciclo ou grupo de coisas coordenadas

CICLO Pomares e polpa de frutas

Coisas Água, pomares, animais, pessoas do arraial, pessoas do Retiro,


mulheres de Beira Córrego, homens de Beira Córrego, ASCOMBERE,
comunidades adjacentes

Caracterização da coordenação:

Água Preferencialmente advinda de poços


artesianos, manejada por homens em
sistemas de irrigação até os pomares

Homens de Beira Córrego Manutenção de sistemas de acesso à


água

Pomares Ciclos de frutificação no fim do ano,


pomares diversificados e cuidados
(interação entre pomares e mulheres
para evitar o crescimento de plantas
daninhas), sem uso de agrotóxicos

Animais Visitas aos pomares para se alimentar,


inscrição nas memórias coletivas
sobretudo das mulheres

Pessoas do arraial e pessoas do Retiro Manejo do pomar como estratégia


importante de habitabilidade,
subsistência e lucro subsidiário para
continuidade da vida (prática típica do
grupo), participação e
acompanhamento dos fluxos materiais
e assembleias da ASCOMBERE

Mulheres de Beira Córrego Trocas de frutas como sociabilidade


entre famílias (inclusive na produção de
doces que farão parte de cadeias de
comércio), cuidado com o pomar,
mobilização comunitária em torno das
assembleias da associação, gestão e
registro do fluxo de polpas, elaboração
de documentação para editais

ASCOMBERE Espaço e materialização da mobilização


em torno do ciclo das polpas, legitima o
escoamento da produção, tem
importância simbólica para as
comunidades envolvidas dando vazão a
uma manifestação cultural como a
Festa da Primavera e o Festival da
Polpa de Fruta. Entidade representativa
nos editais.

Comunidades adjacentes Participação nas festas e possíveis


articulações de fluxos de coisas assim
como sociabilidade, alianças, escolas
consumidoras de polpas, etc.

Esquema 2: Ciclo da polpa pós-Rompimento


Ciclo ou grupo de coisas coordenadas

CICLO Pomares e polpa de frutas

Coisas Água, pomares, animais, pessoas do arraial, pessoas do Retiro,


mulheres de Beira Córrego, homens de Beira Córrego, ASCOMBERE,
Lama-contaminação.

Caracterização da coordenação:

Água Preferencialmente advinda de poços


artesianos, manejada por homens em
sistemas de irrigação até os pomares.

Perturbação: volume de água


insuficiente para todas as tarefas.

Homens de Beira Córrego Manutenção de sistemas de acesso à


água, interesse na participação do
escoamento, tentativas de investimento
nos pomares, maior acompanhamento
das atividades da ASCOMBERE

Perturbação: incorporação de práticas


associadas a outro grupo sociocultural
adjacente, incorporação de prática
associada a diferente papel de gênero
interno a sua comunidade, integração
intensa à práticas de comércio com
dinâmicas do espaço urbano

Pomares Ciclos de frutificação no fim do ano,


pomares com pouca diversidade e com
desafios à vidaà vida, sem uso de
agrotóxicos

Perturbação: baixo fluxo de água,


invasão de braquiária e outras plantas
não desejáveis, desorganização da
paisagem

Animais Visitas aos pomares para se alimentar,


inscrição nas memórias coletivas
sobretudo das mulheres

Pessoas do arraial e pessoas do Retiro Manejo do pomar como estratégia


importante de habitabilidade,
subsistência e lucro subsidiário para
continuidade da vida (prática típica do
grupo), participação e
acompanhamento dos fluxos materiais
e assembleias da ASCOMBERE

Perturbação: incerteza quanto ao


retorno do investimento; maior
acompanhamento, ansiedade e busca
por respostas sobre escoamento com
lideranças da ASCOMBERE

Mulheres de Beira Córrego Trocas de frutas como sociabilidade


entre famílias (inclusive na produção de
doces que farão parte de cadeias de
comércio), cuidado com o pomar,
mobilização comunitária em torno das
assembleias da associação, gestão e
registro do fluxo de polpas, elaboração
de documentação para editais

Perturbação: Desânimo ao falar das


polpas. Cansaço e sobrecarga com a
tentativa de conseguir escoar as polpas
com editais.

ASCOMBERE Espaço e materialização da mobilização


em torno do ciclo das polpas, legitima o
escoamento da produção, tem
importância simbólica para as
comunidades envolvidas dando vazão a
uma manifestação cultural como a
Festa da Primavera e o Festival da
Polpa de Fruta. Entidade representativa
nos editais.
Perturbação: Estigma

Comunidades adjacentes Participação nas festas e possíveis


articulações de fluxos de coisas assim
como sociabilidade, alianças, etc.

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