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REPRESENTABILIDADE DOS AFETOS NOS TRANSTORNOS

ALIMENTARES

Daniel Magalhães Goulart1


Manoel Antônio dos Santos2

INTRODUÇÃO

A possibilidade de arriscar é o que nos faz homens.


Vôo perfeito no espaço que criamos,
Ninguém decide sobre os passos que evitamos.
Certeza de que não somos pássaros e voamos.
Tristeza de que não vamos por medo dos caminhos.
Damário da Cruz, Todo Risco

Os transtornos alimentares (TA) representam graves perturbações no


comportamento alimentar, que podem acarretar sérios problemas de saúde e, inclusive,
expor a pessoa acometida ao risco de morte. De acordo com Morgan, Vecchiatti e
Negrão (2002), os TA apresentam uma etiologia multifatorial, ou seja, são determinados
por uma diversidade de fatores que interagem entre si de modo complexo, para produzir
e, muitas vezes, perpetuar o quadro psicopatológico.
De acordo com Nunes, Appolinario, Galvão e Coutinho (2006), a AN é
caracterizada por uma busca incansável pela magreza, seguida de redução de peso e sua
manutenção abaixo do normal por processos inadequados de controle de peso, levando à
desnutrição grave. Já a BN refere-se à ingestão descontrolada de uma quantidade
imprópria de alimentos, que não visa somente a saciar uma fome inadequada, mas
atende a uma série de estados emocionais ou situações estressantes. Em geral, os
momentos de compulsão alimentar são seguidos por episódios purgativos para o
1
Aluno do curso de graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em
Psicologia da Saúde da FFCLRP-USP (CNPq). Estagiário do Grupo de Assistência em Transtornos
Alimentares - GRATA da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2
Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Núcleo de Ensino e
Pesquisa em Psicologia da Saúde da FFCLRP-USP (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq.

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controle de peso, tais como vômitos auto-induzidos, dietas, exercícios físicos em
excesso e uso abusivo de medicamentos, tais como laxantes, diuréticos e inibidores de
apetite.
Nesses transtornos, o privilégio que é dado à via corporal de expressão do
sofrimento remete diretamente à discussão da dinâmica psicossomática. Para Peres e
Santos (2010), o termo psicossomática deve ser utilizado, atualmente, como substantivo
para nomear uma disciplina científica, que faz da hipótese da existência de uma unidade
funcional entre o somático e o psíquico o seu principal pilar. Desse modo, a doença
corresponde a uma solução, ainda que problemática, que o indivíduo engendra na
tentativa de lidar com seus conflitos inconscientes. Tal visão sistêmica do ser humano
demanda alternativas de apreensão teórica que não se limitem à leitura do corpo como
organismo (Teixeira, 2006).
Nesse cenário, McDougall (1994) apresenta novas hipóteses sobre as facetas
psíquicas das doenças orgânicas, ao afirmar que pacientes somáticos são, em geral,
pouco capazes de lidar com afetos potencialmente desestruturantes. Por isso, lançam
mão de estratégias defensivas arcaicas para evitar a eclosão de mobilizações emocionais
que podem fugir a seu controle. Nesse processo, McDougall (1991) argumenta que os
afetos são “ejetados” do aparelho mental e não geram sintomas psicóticos, como
delírios ou alucinações, mas se perdem ou se desvanecem sem que haja qualquer tipo de
compensação psíquica, com a tendência, conseqüentemente, de serem reduzidos à sua
pura expressão somática.
No presente estudo, propomos inserir a compreensão das dimensões psíquicas
implicadas nos TA no quadro teórico da psicossomática, sem menosprezar a relevância
de outras vertentes compreensivas, necessárias para lançar luz às manifestações
sintomáticas que marcam os quadros clínicos e desafiam os profissionais em sua prática
clínica. Por se tratar de quadros graves e complexos, o tratamento dos TA deve abordar
estratégias de múltiplas naturezas. Nesse sentido, uma equipe multidisciplinar se faz
necessária, incluindo a importante atuação do psicólogo. A intervenção psicológica se
dá em diversos âmbitos, exigindo, via de regra, a aplicação combinada de recursos
complementares, como: psicoterapia individual, atendimento de apoio ambulatorial,
grupo de apoio com familiares e grupo terapêutico com pacientes (Abreu, & Filho,
2004; Dare, Russel, Treasure, & Dodge, 2001; Duschesne, & Almeida, 2002; Gorgati,
Holcberg, & Oliveira, 2002; Pinzon, Gonzaga, Cobelo, Labaddia, Beluzzo, & Fleitlich-
Bilyk, 2004; Santos, 2006).

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Considerando os propósitos do presente trabalho, o foco será colocado no
contexto do grupo terapêutico, considerado como uma das táticas que compõem uma
estratégia de tratamento mais ampla e que, necessariamente, inclui um “cardápio
variado” de intervenções. De acordo com Japur e Guanaes (2001), a prática da
psicoterapia de grupo tem apresentado acentuado crescimento na realidade brasileira,
constituindo um dos principais recursos terapêuticos nos mais diferentes contextos de
atendimento. Seu crescimento nos últimos anos foi impulsionado, sobretudo, por
mudanças implementadas no campo da saúde mental, a partir do movimento de reforma
psiquiátrica, que visava à reintegração social do paciente e o resgate da cidadania dos
assim chamados “loucos”.
Segundo Santos (2006), a partir da experiência de grupoterapia, com apoio dos
terapeutas, os participantes podem se permitir refletirem sobre suas emoções e condutas,
a partir de um novo e diferente vértice que é gerado pelas interações no espaço vital do
grupo, criando, desse modo, possibilidades de mudança em seus padrões relacionais.
Nesse amplo contexto de profundas transformações no modelo assistencial
vigente no campo da saúde está situado o Grupo de Assistência em Transtornos
Alimentares (GRATA) do Hospital das Clínicas, na Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). Trata-se de um grupo
multidisciplinar de assistência a pessoas com TA, que funciona junto a um serviço
especializado, criado em 1982, junto à Divisão de Nutrologia do HCFMRP-USP. A
equipe multiprofissional é formada por nutricionistas, psicólogos, nutrólogos,
psiquiatras, terapeutas ocupacionais e estagiários que assistem pessoas com diagnóstico
de AN e BN, basicamente em regime ambulatorial, e oferece acompanhamento
sistemático para os familiares e acompanhantes.
Tendo em vista essas considerações, o presente trabalho teve como objetivo
relatar a experiência de um estagiário de Psicologia como observador de um grupo
terapêutico constituído por pacientes com diagnóstico de AN e BN.

MÉTODO

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O princípio metodológico que fundamenta a elaboração deste trabalho foi o
estudo de caso. De acordo com Yin (2005), o estudo de caso pode ser utilizado para
descrever uma intervenção e o contexto da vida real em que os fatos ocorrem. Dessa
maneira, enquanto estratégia de pesquisa possibilita contribuir com o conhecimento de
fenômenos individuais, organizacionais, políticos e de grupos, agregando um aporte de
saber produzido em condições naturalísticas.
O contexto natural da presente investigação foi o grupo terapêutico constituído
por pacientes do GRATA-HCFMRP-USP. Esse grupo é constituído pelo coordenador,
co-coordenadora, dois observadores (estagiários do quarto ano do curso de graduação
em Psicologia) e pacientes – em média quatro a cinco participantes por sessão.
Trata-se de um grupo homogêneo quanto ao diagnóstico, que se desenvolve em
sessões semanais com duração de 90 minutos cada.
Embora os observadores não participem ativamente no decorrer do grupo, no
final de cada sessão são convidados pelo coordenador a compartilharem com os
participantes suas impressões pessoais acerca da sessão. Dessa maneira, um canal de
comunicação é aberto entre os observadores e o restante do grupo.
As sessões ocorreram em uma sala apropriada nas dependências do Hospital das
Clínicas no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. O estudo foi
desenvolvido no período de janeiro a julho de 2010. O projeto recebeu aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa da instituição hospitalar e os participantes consentiram
com a realização do estudo nas condições naturalísticas em que foi proposto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Logo na primeira sessão de que participou, o estagiário pôde desenvolver certa


percepção, ainda que incipiente, do funcionamento do grupo. Algo que desde as
primeiras falas foi percebido foi o movimento de constante troca de papéis, no qual os
pacientes se engajam no desenrolar da sessão.
No grupo, a escuta não é apenas ativa, como também mobiliza as pessoas a
ponto de, em outras situações, se tocarem fisicamente, por meio de gestos carregados de
afeto e empatia. Em uma sessão, uma paciente manifestou seu desejo de abraçar uma
outra, que tinha exposto sua fragilidade emocional, no que foi encorajada a expandir seu
gesto espontâneo pelo coordenador do grupo, o que acabou acontecendo em um clima
de enlevo e comunhão. A agressão intensamente aplicada sobre os próprios corpos

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parece, momentaneamente, aliviada, ao se valerem de suas mãos e braços para se
entrelaçarem em uma busca concreta por mutualidade. Assim, os mesmos corpos,
outrora utilizados como via direta de expressão dos afetos desencontrados, que acabam
confluindo para a auto-destruição, são agora utilizados como veículos para uma nova
experiência: a do toque e da carícia, que dão suporte à transmissão de aconchego e
carinho, estabelecendo novos sentidos ao estar-ali-com-o-outro-no-grupo e novas vias
de acesso à sensorialidade. Como descreve Santos (2006)
é a partir da descoberta de que é capaz de cuidar-do-outro que o paciente
começa a se perceber como alguém que também pode cuidar-de-si-
mesmo, aprimorando essas habilidades no sentido de desenvolver o auto-
respeito e uma maior sensibilidade às próprias necessidades emocionais.
O grupo torna-se, então, o celeiro de novas possibilidades de cuidar de si,
fazendo que pacientes que normalmente são vistos como incapazes de
tomar conta de sua própria vida possam se especializar na produção de
víveres que alimentam a mente e fecundam o espírito. (p. 400).
Situações como a retratada anteriormente mobilizaram intensa emotividade no
estagiário, ao testemunhar manifestações de carinho, companheirismo e cuidado entre
pessoas com tamanho sofrimento psíquico. Nas pacientes com anorexia e bulimia,
muitas vezes, sentimentos de abandono e desamparo vivenciados em suas histórias são,
pelo menos momentaneamente, reparados com gestos simples no espaço vital do grupo.
Talvez poucas pessoas tenham conseguido traduzir em palavras esses grandes
momentos ínfimos, verdadeiras epifanias, quanto o escritor Guimarães Rosa (1994):
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de
ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,
um descanso na loucura. (pp. 438-439)
Muitas vezes, até mesmo ao se dispor a compartilhar um momento de silêncio
representa uma forma de se estar com e para o outro. Há, então, a percepção do grupo
enquanto unidade e não uma soma fragmentada de indivíduos, como descrito por
Grinberg, Sor e Bianchedi (1973). De acordo com esses autores, em muitas
oportunidades o grupo parece funcionar como uma unidade ou como um todo, ainda
que esta unidade não se manifeste por meio de contribuições individuais.
Assim, o silêncio, frequentemente interpretado como certo tipo de resistência
expressa, seja por timidez de se expor ao grupo, ou por desinteresse diante de
determinado assunto, pode assumir outros sentidos e se transformar, por exemplo, em

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uma manifestação compartilhada de profunda sensibilização diante da dor do outro,
exposta nas fronteiras protegidas do espaço grupal. Nessa ótica, o não-dito ganha grande
destaque e torna-se pilar fundamental no processo de comunicação humana.
Para além das riquezas do silêncio, em outras ocasiões, o que é dito ganha
diversos sentidos em processos sumamente criativos. Por vezes, em determinada fala,
alguma representação do universo psíquico do paciente se revela por meio do uso de
metáforas, em um jogo aberto e construtivo da fantasia.
A seguinte vinheta clínica ilustra esse processo:
G.: As coisas na vida são como o meu pai diz: tem que matar um leão por dia
né.
Coordenador: E o que seria esse leão que a G. fala, hein? Vamos ver se a gente
descobre...
D.: Acho que o leão está dentro da gente, né? É algo que a gente tem que lidar
com a gente mesmo.
Coordenador: Eu penso que isso não é algo fácil de ser feito. A gente quer dar
conta dele, mas ao mesmo tempo tem medo... O quê que vocês acham?
L.: Eu acho que a gente tem que lutar com o leão, mas a gente tem que se
proteger dele também, senão ele acaba com a gente.
(Silêncio)
Co-coordenadora: Algo que eu pensei agora, L., tem a ver com essa necessidade
de se proteger. Daí me ocorreu uma imagem diferente. Para se proteger a gente
precisa de algo como uma grade de ferro bem resistente e, ao mesmo tempo, que essa
gaiola permita que a gente viva. Se não a gente fica preso e vai morrendo aos poucos.
(Silêncio por alguns instantes)
L.: Eu sei qual é o meu leão. Eu sei do que eu tenho que me proteger e com o
que eu tenho que lutar. Mas eu não quero falar isso agora aqui no grupo.
Coordenador: É um direito legítimo seu. Você fala quando se sentir à vontade.
Depois dessa fala, o grupo tratou de outros conteúdos emergentes. Contudo, de
forma recursiva, a metáfora do leão reaparecia, sob as mais variadas formas e
aplicações. Ao chegar o fim da sessão, os observadores foram convidados para
compartilharem com o grupo suas impressões acerca da sessão daquele dia. Um dos
observadores retomou, em sua fala, a metáfora leonina e a enriqueceu ainda mais com
novos elementos:

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O1: Eu fiquei pensando na imagem do leão, que foi sendo trabalhada ao longo
da sessão, e esse leão, a todo momento, foi tratado como sendo externo a nós, como
algo a ser temido e com o qual devemos lutar. Mas o que eu fiquei pensando é que pelo
fato de o leão estar dentro de nós, de certa forma ele nos constitui, o que nos faz lutar
contra nós mesmos. Ao invés de espantar ou vencer o leão, matando o animal, talvez
devêssemos aprender a lidar com a fera de uma forma diferente. De um modo que a
gente não precise de grades tão fortes e que também não precisemos morrer aos
poucos.
Como pode ser visto, uma vez compartilhada, a metáfora deixa de ser uma
representação individual e passa a ganhar a dimensão de uma construção coletiva.
Como uma tela que vai sendo gradualmente pintada pelos movimentos de diversas
mãos: cada participante dá a sua pincelada. Até o silêncio é uma contribuição, uma vez
que pode significar uma parcela de trabalho meditativo. Assim, dos pensamentos se faz
forma e dos sentimentos se fazem cores. Ao final, uma obra foi produzida: a sessão do
grupo terapêutico.
De acordo com Bleger (1993), não necessariamente precisamos fazer algo para
que se estabeleça o processo dialético do pensar, pois ele é espontâneo; entretanto, há
muito que fazer para remover as barreiras e bloqueios que impedem seu pleno
funcionamento. Uma profícua maneira desse processo ser facilitado é por meio da
atividade interpretativa, sempre muito presente no grupo, quer pela contribuição dos
terapeutas, quer pelas palavras dos pacientes. Como expressa sensivelmente Miranda
(2007), a palavra interpretativa instaura a conexão e repara o hífen que liga a psique ao
soma e, ao mesmo tempo, retira a separação do corpo-oral, fertilizando e abrindo frentes
para novas descobertas. A partir da próxima vinheta clínica pode-se perceber esse
processo de maneira mais clara:
M., que normalmente freqüenta as sessões do grupo somente nas datas pré-
agendadas para retorno às consultas individuais com nutrólogo, nutricionista e
psiquiatra, compareceu ao grupo, para surpresa de todos, em uma data diferente desse
retorno. Ela havia tido um outro tipo de atendimento médico no hospital na parte da
manhã, não relacionado ao tratamento do TA, e havia esperado cerca de três horas para
o início da sessão do grupo terapêutico do GRATA. Como ela reside em uma cidade
distante de Ribeirão Preto e vem com um carro da prefeitura local, ficou evidenciado o
esforço que fizera, além da longa espera, quando ela contou que teve de convencer o
motorista a esperá-la até o fim da sessão do grupo terapêutico, alegando ter outra

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consulta médica na segunda parte do dia. Ao iniciar a sessão, o coordenador chamou a
atenção do grupo para o fato inusitado. Ele acabara de conversar com M. a respeito.
Coordenador: Hoje estamos contando com a presença especial de M., que está
vindo em um horário que não é o seu habitual. Você quer falar para o grupo, M., por
que você fez tanto esforço para estar aqui?
M.: É que eu estava com saudades de todo mundo. Quando eu vi o M.
(coordenador) meu olho até encheu de lágrima e eu pensei: “que bom que eu tô aqui”.
É que vocês são mesmo a minha família, os amigos que eu tenho e cada um aqui está
dentro do meu coração.
M. estava visivelmente abalada, sensibilizada e com um olhar distanciado do que
estava se passando ali, apesar do relato emocionado para as pessoas do grupo. Então, o
coordenador, captando que haviam outros elementos por trás da fala da paciente, diz:
Coordenador: Está difícil agüentar a barra lá na sua cidade sozinha, né, M.
Emocionada, M. desaba a chorar:
M.: Tá muito difícil! Todo dia eu acho que eu não vou agüentar. Tem dia que
tudo o que eu quero na vida é morrer. Daí eu falo isso e minha filha me responde:
“Mãe, no dia em que você morrer, eu quero que o meu caixãozinho esteja lá do lado,
eu me mato junto, porque eu não consigo ficar aqui sem você.” E nesses momentos eu
lembro da internação que eu tive aqui, nossa, era tão bom, eles cuidavam de mim... me
davam comida... (pausa) era tão bom quanto colo de mãe... tudo o que eu queria era
ficar lá de novo.”
Pelo relato de outras pacientes que freqüentam o GRATA, percebe-se que a
internação, em geral, é um processo vivenciado de maneira traumática, um momento
muito difícil para a pessoa. Porém, a hospitalização integral é vista de modo
completamente diferente por M., que em seu relato comovente chega a solicitar que seja
novamente internada.
Coordenador: A internação é como o colo da mãe de que você sente falta, ou
que você não teve, né, M. E hoje o que eu vejo é que o grupo está sendo como uma
grande mãe também, né, disponível para você, como esse colo que você procura e não
acha em sua vida.
Nesse momento, M. desata um choro compulsivo, a ponto de ter dificuldade
momentânea para respirar. O grupo permanece em silêncio por alguns instantes,
impactado e de certo modo vivenciando também aquele momento de dor.

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No caso de M., como argumenta Teixeira (2006) em discussão acerca dos
fenômenos psicossomáticos, “a construção de discursos pelo sujeito sobre sua dor de
existir mostra-se suprimida, padecendo o corpo em sua concretude (p. 26)”. Há, então,
um árduo desafio colocado ao fazer clínico, na medida em que uma de suas funções
fundamentais nesse contexto é tornar legível o sujeito-corpo-doença em um jogo
simbólico que não se reduz ao exercício de escrutínio do biológico. De acordo com a
autora, o ethos que sustenta as experiências psicoterapêuticas deve residir na não
exclusão do doloroso e do insuportável da vivência subjetiva, mas na experimentação
do corpo em suas surpreendentes possibilidades de produzir saúde e doença. Entende-se
que, nessa dobra, o pathos precede o logos e é a experiência ética consigo e com os
outros que deve nortear o exercício clínico.
Ao discorrer acerca do processo de adoecimento, Miranda (2005) focaliza
possíveis falhas ocorridas no processo identificatório, que se desdobram nas questões de
identidade, áreas do desenvolvimento que ficaram sem representação e que foram,
portanto, impedidas de evoluírem. São mentes que burlam a possibilidade de pensar a
dor. De acordo com a autora, esses elementos seriam sinais dos nossos tempos,
marcados por sofrimentos que se expressam no nível do corpo. O vazio representacional
gera aparelhos psíquicos impermeabilizados, incapazes de abrigar áreas de
representabilidade do afeto. Nesse sentido, existiriam certas “representações-limite”,
circundando em todo o seu perímetro o abismo do não-saber.
A partir desse posicionamento, talvez fique mais clara a necessidade de
encontrar as palavras perdidas, como via de encontro do afeto deslocado, na busca do
sentido de si.
Tais idéias encontram sustentação teórica no conceito proposto por McDougall
(1984) de desafetação. Trata-se de um processo que envolve o rompimento do
indivíduo com seus próprios sentimentos e leva o sujeito, por conseqüência, a encontrar
dificuldades para apreender contrastes emocionais e discriminar não só os seus afetos,
mas, também, os das demais pessoas com as quais convive. Nesse sentido, Peres e
Santos (2010) argumentam que a diluição das fronteiras psíquicas tem seu correlato no
colapso dos contornos corporais, impulsionado pela regressão a um estágio de
indiferenciação primária em que se regride ilusioriamente à vivência de um único corpo
para dois seres vivos. Nas palavras dos autores, “essa condição, por manter-se às custas
da pulverização das emoções, enseja a tradução somática de uma história sem palavras,
a qual, privada de significado simbólico, ocupa o lugar de sonhos malogrados” (p. 106).

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Os atos passam a ser utilizados como única possibilidade de escoamento das tensões,
em detrimento de qualquer atividade provida de valor simbólico (Peres, 2006).
O grupo é espaço ideal para essa empreitada de traduzir experiências e conferir-
lhes uma representação simbólica, na medida em que vozes são distribuídas e o
pensamento se articula como uma construção de todos. Pode ser apenas um a dizer algo,
mas são vários a escutarem e, principalmente, a compartilharem, pois estão juntos ao se
empenharem na elaboração do que até então não tinha nome.
Diante de situações tão únicas e de momentos tão fecundos, diversos
sentimentos, por vezes muito intensos, foram vivenciados pelo estagiário: vontade de
chorar, desejo de sair da sala, súbito assomo de fadiga, sono. Em outras ocasiões,
angústias vivenciadas no decorrer do grupo deram espaço à sensação de peso após o
término da sessão, por meio da introjeção dos conteúdos emergidos. Em alguns desses
momentos, ocorreu a sensação de imobilidade, de estar paralisado diante de tanta dor.
Nesse processo de sentir-se sitiado – em vez de situado em si mesmo – muitas vezes
aconteceu a incapacidade momentânea de enxergar o outro como sujeito ativo no
processo de adoecimento e, sobretudo, na mobilização de recursos propícios para seu
processo de cura.
Sob esse aspecto, foi de suma importância o aprendizado extraído a partir da
observação direta da atuação de profissionais mais experientes na coordenação do
grupo, construindo uma ponte entre as gerações. Foi observada a capacidade dos
profissionais serem levados sensivelmente pelo paciente, de modo a se aproximarem de
uma compreensão dos seus sentimentos, em um engate empático no universo dos
desejos de quem sofre. Posteriormente, e de forma não menos importante, ocorreu a
retirada estratégica desse lugar provisório, desfazendo-se esse enlace para que pudesse
advir o estranhamento daquilo que ali se passava, de modo a ajudar a pessoa a
vislumbrar novas possibilidades e tecer alternativas ao se sentir apoiada pelo grupo.
Assim, foi observado na prática o conceito introduzido por Bleger (1993) de
dissociação instrumental. Essa capacidade para estar “tão longe” e, simultaneamente,
“tão perto”, foi percebida pelo estagiário como uma habilidade muito difícil de ser
adquirida, o que lhe trouxe a sensação de ainda haver um longo caminho a ser
percorrido em sua trajetória de vir-a-ser psicoterapeuta.
Como bem disse Guimarães Rosa (1994):

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A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e
desde aí perde o poder de continuação, porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada (p. 658).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Interpelar o desejo que move o estagiário a se inserir nesse grupo é uma


exigência ética do psicoterapeuta. Esse desejo não existe separado das motivações
conscientes que mobilizaram sua busca inicial de contato com esse campo, que foram
costuradas e aproveitadas em sua caminhada. Uma caminhada que só tem sentido
quando tomada pelo todo. Os passos são momentos destacados na trajetória da
formação do psicoterapeuta, que quando se encontram, não ligam o ponto de partida ao
de chegada, pois crescem em travessia.
O poder de continuação não está exclusivamente nas mãos dos profissionais,
tampouco nas mãos solitárias de um paciente. Ele pertence ao coletivo, ao espírito de
mutirão, que só subsiste pela capacidade do encontro. É no encontro que se adoece e é
só pelo encontro que podem ser encontrados os meios que conduzirão à cura.
Novamente é Guimarães Rosa (1994) que pode lançar luz a essa travessia:
O mais importante e bonito, no mundo, é isto, que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me
ensinou (p. 24-25).
As pessoas nunca perdem a capacidade de se transformar. O transtorno, visto
como crônico, não cronifica uma pessoa em suas potencialidades, não encerra as
alternativas de um caminho jamais perfeito. As pessoas emagrecem e engordam, afinam
e desafinam. A ambivalência de uma tentativa de suicídio só pode ser vista pelo grito de
socorro que sucede (e certamente antecede) o ato. Vozes roucas que não se calaram e
que, portanto, podem se fazer ouvir no grupo, porque
Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um
sentir é o do sentente e o outro é o do sentidor (Rosa, 1994, p. 439).
Como sentenciou o autor mineiro, “um sentir é o do sentente”, do que não tenta
e outro, muito diferente, é o “do sentidor”, daquele que experimenta a vida e que sente
na carne a dor de estar vivo.

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O contato profissional, que serviu de substrato para a realização do presente
trabalho, constituiu a primeira experiência em atendimento psicológico por parte do
estagiário. O grupo, que ocorre em doses semanais, já estava em pleno andamento
quando o estagiário foi introduzido, de maneira que os participantes já se conheciam.
Desse modo, houve, a princípio, um forte impacto emocional. Houve a percepção de
que o grupo é um espaço relacional, no qual, por meio do contato com o outro, novas
alternativas são tecidas para o devir humano. O paciente, nesse contexto, longe de ser
um indivíduo isolado, é considerado como sujeito ativo tanto no processo de
adoecimento, como na busca dos meios e recursos de cura.
A experiência foi gratificante e contribuiu para motivar ainda mais a
aprendizagem e o amadurecimento profissional, bem como o desejo de estar com o
outro no espaço de grupo. Além disso, o exercício de reflexão e sistematização dessa
experiência – proposta fundamental desse trabalho – mostrou ser uma fecunda via para
se repensar criticamente a atuação psicológica de um ponto de vista ainda pouco
estudado: o do estagiário/profissional de uma equipe multidisciplinar, em seus primeiros
passos com o terapeuta iniciante. Esse caminho pode ser interessante na tentativa de
tecer alternativas viáveis para uma prática mais humanizada e engajada no âmbito da
saúde.

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto (1971)

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REFERÊNCIAS

Bleger, J (1993). Temas em Psicologia: entrevista e grupos (R. M. M. de Morais, Trad.).


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