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REVISTA DA JOPIC | VOL.

01 | Nº 03 | 2018

AS CONEXÕES ENTRE ÉTICA E DIREITO EM DECISÕES DO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
The connections between ethics and law in decisions of the brazilian supreme court
Leonardo Figueiredo Barbosa1, Caroline da Rosa Pinheiro1, Jean Carlos Souza2, Tayná Cunha do Canto2,
Yuri Almeida Lima Barros2, Camila Ferreira de Almeida3, Alice Carolina Borges Moura3, Danilo Maia
Hiaths3, Victor Emanuel Ribeiro de Oliveira4, Carina Marciano dos Santos4, Letícia Ribeiro da Silva4.

1Docente do Curso de Graduação em Direito do UNIFESO – Teresópolis – RJ – BR, 2Egressos do Curso de Graduação

em Direito do UNIFESO, 3Discentes do Curso de Graduação em Direito do UNIFESO – Teresópolis – RJ – BR,


4Estudamntes do ensino médio vinculados ao Programa Jovens Talentos (FAPERJ).

Resumo

A pesquisa em desenvolvimento tem o objetivo de questionar o papel que os valores morais podem
desempenhar na identificação do conceito de Direito e o papel de tais valores nas decisões tomadas pelo Poder
Judiciário, mormente o brasileiro, no momento da construção de decisões judiciais. Esta questão será
analisada a partir da discussão entre as teorias de Herbert Hart (1907-1992) e Ronald Dworkin (1931-2013).

Palavras-chave: Conceito de Direito; Ética; Decisão Judicial.

Abstract

This work in progress intends to question what role moral values may play in identifying the concept of Law
and the role of such values in decisions taken by the Judiciary Branch at the moment of construction of judicial
decisions, specifically, in Brazil. A specific theoretical section has been established with this objective: this
problem shall be analyzed from the discussion between the theories of Herbert Hart (1907-1992) and Ronald
Dworkin (1931-2013).

Keywords: Concept of Law; Ethics; Judicial decision.


da atuação do STF, em relação às propostas
INTRODUÇÃO rivais de Hart e Dworkin, no que concerne à
influência dos valores morais no momento da
A pesquisa questiona qual o papel que os aplicação do direito.
valores morais1 exercem na identificação do Vivemos um momento em nosso país
conceito de Direito, bem como seu papel em onde fatores como a busca por justiça social; as
decisões concretas tomadas pelo Poder reivindicações de efetivação de direitos
Judiciário no momento da construção das individuais, coletivos ou de segmentos sociais
decisões judiciais. Esta pesquisa vem se específicos; diversas disputas que colocam em
desenvolvendo ao longo de alguns anos, conflito interesses públicos e/ou privados; e
buscando avançar na análise de diferentes outras questões complexas de filosofia do
teóricos e estudar alguns casos emblemáticos direito e política têm desaguado com maior
que foram ou estão sendo julgados pelo frequência e intensidade nas mãos de
Supremo Tribunal Federal. magistrados que devem decidir sobre esses
O presente artigo estabelece um corte temas polêmicos.
teórico específico – o debate entre as teorias de Aliás, essa utilização de meios judiciais e
Herbert Hart e Ronald Dworkin através da tribunais para tratar de dilemas morais
seleção de alguns pontos relevantes e que têm fundamentais, questões de políticas públicas e
gerado repercussão até os dias de hoje. Além de controvérsias políticas – conhecida pelo
disso, pretende-se realizar, ainda que de forma termo “judicialização da política” – não tem
inicial, apreciação crítica sobre o ajustamento ocorrido somente no Brasil, sendo apontada

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como um dos fenômenos mais significativos que deveria ser tomada) foram e continuam
dos governos de boa parte do mundo do final sendo decididas pelo Supremo, gerando grande
do século XX e do começo do século XXI repercussão social, política e moral.
(HIRSCHL, 2008). Conforme afirma Barroso Neste contexto, onde a capacidade de
(2012), mesmo na Europa, a visão que era influência do Poder Judiciário na sociedade
prevalecente nas democracias parlamentares aumenta de forma tão expressiva, o
tradicionais quanto à necessidade de evitar questionamento sobre os tipos de padrões
“governo de juízes”, reservando ao Judiciário empregados como justificativa para a
apenas uma atuação como legislador negativo, construção e/ou justificação das decisões que
já não corresponde à prática política atual, determinarão os direitos e obrigações de
onde os magistrados decidem, em caráter final, pessoas e instituições é de suma relevância.
questões relevantes do ponto de vista político, Dentre estes padrões, conforme afirmado por
social ou moral. Dworkin (2010), trata-se de uma questão
Diante das decisões proferidas – em fundamental para o Direito saber se critérios
assuntos significativamente controvertidos éticos "estão entre os critérios que os juízes e
sobre temas relativos à economia, política e outras autoridades devem usar para decidir"
moralidade – têm sido recorrentes quando as proposições jurídicas são
questionamentos sobre o papel do Poder verdadeiras "e, se assim for, de que modo isso
Judiciário na efetiva resolução destas questões ocorre".
e no desenvolvimento da sociedade e do país. A análise da influência que a ética
Termos como “ativismo judicial”, tem/deve ter na aplicação do direito
“judicialização da política”, “alargamento da compreenderá o estudo crítico das doutrinas
competência constitucional” e “protagonismo contrapostas de Hart-Dworkin. Após a
político do Judiciário” estão na ordem do dia compreensão das teorias contrapostas, será
não só na área acadêmica, mas também nos realizada pesquisa jurisprudencial de caso
meios de comunicação – com seus defensores e emblemáticos ocorrido no âmbito do Supremo
seus detratores. Tribunal Federal para verificar, de forma
O reconhecimento deste processo de inicial, a possível existência de adequação entre
transferência do poder decisório dos poderes a atuação desta corte e as propostas contrárias
Executivo e Legislativo para os juízes e acerca da influência dos valores morais no
tribunais – ou seja, de expansão decisória do momento da aplicação do direito.
Judiciário – é ainda mais expressivo, no caso Na segunda parte deste artigo, analisar-
brasileiro, quando focamos nossa atenção no se-á o caso Ellwanger (HC 82.424-2/RS) que
STF. envolve o conflito entre os valores (jurídicos,
Conforme afirma Oscar Vilhena Vieira mas também morais) da liberdade de
(2008), em seu artigo provocativamente expressão e de preservação da dignidade
denominado Supremocracia, “raros são os dias humana – além de outros conceitos e valores
em que as decisões do Tribunal [STF] não se relacionados como igualdade, democracia,
tornam manchete dos principais jornais solidariedade, tolerância, dentre outros – em
brasileiros, seja no caderno de política, função da publicação de livros com conteúdo
economia, legislação, polícia (e como!) e discriminatório aos judeus e que abarcou o
eventualmente nas páginas de ciências, debate acerca do conceito de raça e,
educação e cultura”. consequentemente, a extensão do crime de
Diversas questões de extrema racismo e do estabelecimento de limites à
complexidade (onde não inexistem normas liberdade de expressão.
claras acerca da opção política previamente
efetivada – ou existem normas que, AS TESES DE HART E DWORKIN
aparentemente, violam determinados
princípios explícitos ou implícitos em nosso Apresentar de forma sintetizada os
sistema constitucional – e nas quais a opinião pontos principais de um debate que dura quase
pública não apresenta consenso sobre a decisão cinco décadas pode ser uma tarefa arriscada,
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apesar disso, busca-se resumir abaixo, em um argumento de que “o critério último de


desencadeamento lógico de ideias, os validade jurídica deriva da prática dos
principais pontos do raciocínio de cada autor tribunais em aceitar o que denominei em meu
sobre o debate entre as teses da vinculação e da livro <<uma regra de reconhecimento>>”
separação entre direito e moral, com o único (HART, 1980).
intuito de facilitar as análises de decisões do
Supremo Tribunal Federal. b) Tese da discricionariedade
jurídica – Se o direito pode ser caracterizado,
A Teoria de Hart ao menos nos casos centrais, através desse
conjunto de regras primárias e secundárias,
A obra “O Conceito de Direito” de Hart isto significa que podem existir casos não
busca focar na questão estrutural do direito, cobertos por essas regras. Além da possível
tentando apontar os elementos comuns que ausência de regras, Hart admite que a
essa construção social teria em qualquer incompletude do direito também possa derivar
comunidade contemporânea e, portanto, que de limitações e indeterminações oriundas da
poderiam ser identificados, por qualquer própria linguagem humana, bem como da
pessoa razoavelmente instruída, como os relativa ignorância de fato e a relativa
pontos importantes de semelhança entre os indeterminação de finalidade, típicas de
diferentes sistemas jurídicos. Posteriormente, qualquer empreendimento que busca
Hart resumiria essas características da influenciar em comportamentos futuros,
estrutura semelhante dos diversos sistemas ocasionando o que o autor denomina textura
jurídicos contemporâneos em dois tipos de aberta do direito. Por tudo isso, é razoável
regras diferentes: primárias (que determinam afirmar que o direito é parcialmente
que os indivíduos façam ou deixem de fazer incompleto ou indeterminado2 e, em tais
algo) e secundárias (que permitem que se situações, caso o judiciário precise apresentar
possam criar novas regras do tipo primário, uma decisão, caberá ao magistrado exercitar
extinguir ou modificar as regras antigas; um poder discricionário – já que não existe
determinar sua incidência e aplicação; e norma legal aplicável e, portanto, não existe
identificar os aspectos ou características nenhum padrão obrigatoriamente vinculante
capazes de definir quais seriam as regras de (para os positivistas só o direito posto deve ser
direito válidas) cuja interação é considerada obrigatoriamente observado) – de criação do
pelo autor como “a chave para a ciência do direito para aquela situação específica.
direito”. Portanto, Hart elege como caso central
ou paradigmático, para seu projeto de c) Tese da separação conceitual entre
identificação do conceito de direito, a direito e moral – Por derradeiro, se é
combinação dessas normas, argumentando possível identificar o direito com base na
que sua correta observação e descrição poderia observação imparcial dessas regras que
esclarecer diversas questões que não eram ocorrem na prática social, não existiria relação
adequadamente explicadas pelas teorias necessária entre moralidade e legalidade
imperativas (como a de John Austin). (entre o que o direito é e o que ele deveria ser,
A escolha desse modelo de caso entre ética e direito, entre validade e justiça) –
paradigmático ocasiona algumas embora possam existir conexões contingentes
consequências, que podem ser resumidas nas em determinadas comunidades –, ou seja, a
seguintes teses: existência do direito é uma coisa; o seu mérito
ou demérito, outra3.
a) Tese das fontes sociais do direito –
A ideia de que o direito é composto por um Portanto, esses três pilares do
conjunto de normas – sejam elas regras ou positivismo hartiano seriam decorrências
princípios – que podem ser identificadas a lógicas de seu pressuposto teórico, ou seja, que
partir de critérios objetivos, ou seja, pela o cerne do direito é constituído pela união de
observação da prática social, acarretando o regras primárias e secundárias que podem ser

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objetivamente identificadas através de uma justificação; não procura justificar ou


metodologia descritiva. recomendar, por razões morais ou outras, as
Para o presente trabalho, uma das formas e estruturas que surgem na minha
consequências mais relevantes do pressuposto exposição geral do direito” e, portanto,
hartiano é a impossibilidade de realização de constitui um empreendimento radicalmente
avaliações de cunho valorativo, dentro de uma diferente da teoria do direito de Dworkin que é
ciência meramente descritiva, já que a vislumbrada como avaliadora e interpretativa,
metodologia pretende apenas observar e como será apresentado mais adiante.
descrever os elementos acima elencados. Isso Entretanto, mesmo que o projeto de
não significa que valores da própria Hart não se resuma à busca do conceito de
comunidade (que podem estar inseridos no direito através de uma análise do uso que se faz
ponto de vista interno) não possam estar da palavra ‘direito’, mas, antes, caracterize-se
presentes entre os elementos que serão como uma proposta de identificação de um
descritos – é nesse sentido que Hart (2005, p. conceito social através de uma metodologia
306) afirma que “uma descrição pode ainda descritiva que se concentre em casos centrais
continuar a ser descrição, mesmo quando o que ou paradigmáticos, caracterizados pela união
é descrito constitui uma avaliação”. Aqui, o de regras primárias e secundárias, ainda
autor busca defender que a postura descritiva persiste o questionamento se o pressuposto
não só não inviabiliza a consideração de valores adotado por Hart é verdadeiro ou se constitui a
que podem estar presentes no objeto de estudo, melhor opção na identificação do conceito de
mas, além disso, que o relato desses valores não direito, bem como se a metodologia adotada
significa uma aquiescência do pesquisador aos com base nesse pressuposto é adequada e
valores relatados. MacCormick (2010, p. 219), porque consistiria em um projeto mais
em defesa da razoabilidade dessa visão adequado do que a alternativa avaliadora e
hartiana, afirma que é possível “considerar justificadora proposta por Dworkin.
importante para uma melhor compreensão
estudar um objeto, instituição ou conjunto de A Teoria de Dworkin
instituições específico sem atribuir valor moral
específico ao objeto ou instituições estudadas”, Neste tópico, se assume que as
o que, por sua vez, não significa afirmar que discussões iniciais entre Hart e Dworkin (sobre
aquilo que foi descrito não é passível de se o direito é composto só por regras ou
avaliação moral, apenas que tal avaliação não também por princípios e se a regra de
será efetuada no âmbito da ciência que se reconhecimento pode incorporar princípios)
pretende tão somente descritiva e não está relativamente superada, portanto, não se
avaliativa. fará uma análise desses embates, ao invés
Isso não significa que Hart não disto, concentrar-se-á em questões mais
vislumbre possibilidade de influência da ética recentes que, segundo Shapiro (2007, p. 27),
na construção do direito. Desde a versão ainda representam uma “objeção
original de “O Conceito de Direito”, em 1961, extremamente poderosa” ao positivismo
Hart já havia reconhecido diversas jurídico.
possibilidades de conexão entre ambos4, mas Dworkin, mormente a partir da obra
todas essas relações seriam, para o autor, “Law’s Empire”, afirma que o positivismo não
meramente contingentes e externas, não sendo é capaz de explicar a ocorrência de
necessária a inclusão da moralidade como divergências ou desacordos teóricos. Seriam
critério de validade das normas jurídicas, o que casos onde as pessoas, apesar de não
permitiria afirmar a existência de normas divergirem sobre os fatos históricos relativos à
moralmente iníquas. determinada situação e nem mesmo sobre as
Delimitado esse contexto específico, é normas jurídicas existentes, ainda assim,
possível considerar inteligível a afirmação de discordam sobre a aplicação do direito ao caso
Hart (2005, p. 301-302) de que seu projeto “é concreto.
moralmente neutro e não tem propósitos de

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Para compreender essa crítica se deve abstrato de consenso, é possível a proposição


partir do argumento principal de “O Império de interpretações mais específicas daquela
do direito” (DWORKIN, 2007, p. 231, grifo ideia mais abstrata e consensual (o autor
nosso): “o conceito de direito [...] associa o chama de concepções a parte não consensual).
direito à justificativa de coerção oficial”, Para Dworkin, o direito seria um conceito
portanto, “uma concepção do direito deve interpretativo (2010, p.17), ou seja, um
explicar de que modo aquilo que chama de daqueles conceitos que as pessoas
direito oferece uma justificativa geral para o compartilham, apesar de agudas divergências
exercício do poder coercitivo pelo Estado”. Tal sobre os critérios (não existe consenso) para
argumento parece se embasar não somente na identificação e aplicação do conceito (e.g.
visão que muitos juristas, ao menos nas vencer um round de boxe). Tais conceitos “nos
democracias contemporâneas, teriam do estimulam a refletir sobre aquilo que é exigido
direito, mas parece também consistir numa por alguma prática que elaboramos, bem como
evolução da posição que Dworkin defendia em a contestar tal construto” e as respostas a estes
“Levando os direitos a sério” (2002, p. XIII- questionamentos “dependem da melhor
XV, grifo nosso), no qual considerava que os interpretação das regras, convenções e
direitos são trunfos políticos que o cidadão tem expectativas, bem como de outros fenômenos
“contra o Estado, anteriores aos direitos [...] e do melhor modo de aplicar tudo isso
criados através da legislação explícita”, conjuntamente quando da decisão de uma
embora, não se coadunando com as teorias situação específica”.
jusnaturalistas.
Como comentado na explicação sobre a c) Portanto, não seria possível definir
teoria de Hart, todo pressuposto teórico perfeitamente um conceito interpretativo
apresenta consequências e ter em mente esse através de uma metodologia meramente
pressuposto pode auxiliar a compreender descritiva: (i) seja porque não há um perfeito
melhor diversas afirmações provenientes da consenso sobre os critérios a serem utilizados
teoria de Dworkin: na definição/identificação do conceito; (ii) seja
porque tais conceitos demandam uma
a) Se o direito tem uma finalidade, isso interpretação (consequentemente uma análise
significa que sua identificação e aplicação avaliativa) e não simplesmente um relato
estão, em alguma medida, atreladas a tal daquilo que ocorre ou ocorreu ao longo da
propósito. É por isso que o direito consistiria história. Isto não significa que a metodologia
em uma prática argumentativa, ou seja, descritiva não seja importante e mesmo
caracterizada pela compreensão que os necessária, entretanto, ela não é suficiente
próprios participantes têm da necessidade de nesses casos, pois também se faz necessária
apresentarem razões para que as proposições uma metodologia avaliativa.
jurídicas que defendem sejam compreendidas
como verdadeiras pelos demais participantes Desenvolvido o raciocínio acima, talvez
dessa prática. Consequentemente, qualquer fique mais fácil compreender porque Dworkin
proposta sobre o que o direito significa deve ser acusa o positivismo hartiano de não ser capaz
uma interpretação que considera a de explicar a “divergência teórica”. Se o direito
intencionalidade e finalidade (dimensão pode ser explicado simplesmente de uma forma
valorativa) pressupostas pela prática. descritiva a partir de seus elementos
estruturais (factuais) porque as pessoas
b) Qualquer interpretação de uma prática divergem sobre o que o direito determina em
social, exatamente por albergar uma dimensão casos onde, aparentemente, todos concordam
valorativa, é caracterizada, em parte, por sobre os fatos e sobre os textos jurídicos
proposições mais abstratas que são existentes?
compartilhadas pelos integrantes da Dworkin (2007, p. 5-10) propõe que,
comunidade (o autor denomina conceito a para compreendermos a verdadeira natureza
parte consensual), mas, a partir desse platô dos desacordos que existem quando os juristas

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divergem sobre o direito, precisamos entender textos legais, divergem sobre o que o direito
dois conceitos essenciais: (a) “proposições determina para aquela situação específica.
jurídicas” (“propositions of law”) seriam as Dworkin afirma que a teoria jurídica que
alegações que são feitas sobre aquilo que o vincula o conceito de direito a simples questões
direito permite, proíbe ou autoriza (que podem factuais não consegue explicar as divergências
ser verdadeiras ou falsas), sendo que a teóricas porque desconsidera uma questão
veracidade ou não dessas proposições depende crucial sobre a prática jurídica: embora o
do que ele chama de (b) “fundamentos do direito seja um fato social, ele apresenta uma
direito” (“grounds of law”) que são “outros característica especial que não seria – segundo
tipos mais conhecidos de proposições, das o autor – comum a todos os fatos sociais: sua
quais as proposições jurídicas são parasitárias” prática é argumentativa, portanto, considera
e que especificam quando essas proposições as razões, os objetivos e finalidades (ou seja, os
jurídicas “devem ser aceitas como bem valores) que a prática social pretende alcançar.
fundadas ou verdadeiras” (DWORKIN, 2007,
p. 7 e 136 respectivamente). Ou seja, em última O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS
análise, aquilo que o direito realmente é 82.424-2/RS PELO STF
depende daquilo que considerarmos como
fundamentos para a identificação do direito. Resumidas as teses principais de Hart e
Portanto, para Dworkin (2007, p. 8), a Dworkin sobre a relação entre moralidade e
grande questão que gera divergência é “se o direito, cabe ainda verificar se existe alguma
corpus do direito escrito e as decisões judiciais aproximação entre essas respectivas propostas
esgotam ou não os fundamentos pertinentes do e a realidade jurídica brasileira. Com o intuito
direito”, bem como sobre o corolário dessa de dar alguns passos iniciais nesse estudo, far-
divergência: caso esses elementos não esgotem se-á análise de um caso específico que talvez
os fundamentos do direito, o que mais poderia possa caracterizar, de forma mais expressiva, o
ser considerado como elemento apto a tornar debate de (e entre) valores morais como uma
as proposições jurídicas verdadeiras? das questões relevantes que precisavam
Para Dworkin (2007, p. 10-15), a teoria ser/foram consideradas ao longo do processo
positivista de Hart só conseguiria explicar as de decisão judicial (seja na de identificação do
divergências empíricas porque pressupõe, em direito ou na justificação para escolhas feitas no
função da regra de reconhecimento (norma momento da decisão judicial): o “caso
“que faculta os critérios através dos quais a Ellwanger” (HC 82.424-2/RS) que envolve o
validade das outras regras do sistema é conflito entre os valores (jurídicos, mas
avaliada”), que os fundamentos do direito são também morais) da liberdade de expressão e de
fixados consensualmente entre as autoridades preservação da dignidade humana – além de
legais. Por isso, afirma Dworkin que os outros conceitos e valores relacionados como
positivistas, de uma forma geral, ou igualdade, democracia, solidariedade,
simplesmente desconsideram a existência de tolerância, dentre outros – em função da
divergências teóricas ou simplesmente publicação de livros com conteúdo
desqualificam esse tipo de desacordo, discriminatório aos judeus e que abarcou o
afirmando que não passa de uma ilusão, não faz debate acerca do conceito de raça e,
sentido ou é apenas política disfarçada. consequentemente, a extensão do crime de
Apesar disso, bastaria observar os casos racismo e do estabelecimento de limites à
decididos pelos tribunais (ao menos nas liberdade de expressão.
democracias ocidentais) bem como a
compreensão que os próprios juristas têm de Breve resumo do caso
sua prática para afirmar que efetivamente
ocorrem desacordos teóricos: em diversos O julgamento do Habeas Corpus
casos os juristas, apesar de concordarem sobre 82.424-2/RS pelo STF é considerado um dos
as questões factuais e sobre o que dizem os casos mais polêmicos da história recente da
Corte máxima de nosso país5. O histórico de
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toda a querela pode ser resumido da seguinte na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de
forma: Siegfried Ellwanger, proprietário da racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e
imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). (p. 524).
editora Revisão, teria escrito, publicado e
comercializado livros de conteúdo antissemita Mas é interessante observar que, após
no Rio Grande do Sul, sendo denunciado e ampla e controvertida discussão acerca dos
julgado pelo crime do artigo 20 da Lei 7.716/89, termos “raça” e “racismo”, o Supremo decidiu
na redação dada pela Lei 8081/90 – “Praticar, que a definição de tais conceitos não poderia
induzir ou incitar, pelos meios de comunicação ser feita através de critérios biológicos ou por
social ou por publicação de qualquer natureza, procedimentos científicos, mas somente
a discriminação ou preconceito de raça, por através de uma análise “político-social” e que
religião, etnia ou procedência nacional”. buscasse compatibilizar os entendimentos
O réu foi absolvido na 1ª instância, “etimológicos, etnológicos, sociológicos,
porém, após apelação dos assistentes da antropológicos ou biológicos, de modo a
acusação foi condenado em 1996 pela 3ª construir a definição jurídico-constitucional
Câmara Criminal do Rio Grande do Sul a dois do termo”:
anos de detenção e confisco de todos os
exemplares dos livros referidos nos processos. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a
A ementa do julgado tem o seguinte teor: definição e o mapeamento do genoma humano,
cientificamente não existem distinções entre os homens,
seja pela segmentação da pele, formato dos olhos,
RACISMO. Edição e venda de livros fazendo apologia altura, pêlos ou por quaisquer outras características
de ideias preconceituosas e discriminatórias. Art. 20 da físicas, visto que todos se qualificam como espécie
Lei n° 7.716/89 (redação dada pela Lei n° 8.081/90). humana. Não há diferenças biológicas entre os
Limites constitucionais da liberdade de expressão. seres humanos. Na essência são todos iguais.
Crime imprescritível. Sentença absolutória reformada.
(STJ, HC 15.155/RS, p. 3). 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em
raças resulta de um processo de conteúdo
meramente político-social. Desse pressuposto
Em abril de 2000, a condenação foi origina-se o racismo que, por sua vez, gera a
confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça discriminação e o preconceito segregacionista.
(STJ). O paciente, então, ingressa com ação de [...]
Habeas Corpus (HC) no STJ, tendo a 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos
solicitação sido denegada pelo tribunal em conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos,
dezembro de 2001. Ainda inconformado, o antropológicos ou biológicos, de modo a construir a
paciente ingressa com novo HC, então definição jurídico-constitucional do termo.
(setembro de 2002) no STF. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição
Federal, conjugando fatores e circunstâncias
Tecida esta pequena ambientação, cabe históricas, políticas e sociais que regeram sua
efetuar a análise específica da decisão do STF, formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido
apontando o ponto fulcral da querela: o debate e alcance da norma (p. 524-525, grifo nosso).
sobre os conceitos de raça e racismo e a
consequente possibilidade de caracterização do Ou seja, a corte sustenta que embora o
ato praticado como incluído neste tipo penal6. mapeamento do genoma humano tenha
comprovado que biologicamente todos os seres
O conceito de racismo e as teorias de Hart e humanos são iguais ainda persistiria o conceito
Dworkin de raça como uma construção social, cultural e
política. Portanto, “o real sentido e alcance” do
A decisão do STF no que concerne a termo e, consequentemente, da norma que dele
interpretação do crime de racismo – por uma faz uso, depende de uma interpretação que não
maioria de 8 a 3 – foi expressa no item 1 do se reduz a uma análise etimológica do
acórdão7: vocábulo.
Neste sentido, parece muito razoável
Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo
apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias" afirmar que o STF compreende que alguns
contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, conceitos não são meramente descritivos, mas

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devem ser construídos através de um processo Moreira Alves busca reforçar seu
que busca, na medida do possível, argumento enfatizando outros três pontos:
compatibilizá-lo com os diversos fatores
históricos, políticos e sociais. Apesar dessa I) A Lei 7.716/89 não teria
afirmação, ainda restam algumas questões: declarado expressamente que os crimes nela
Quais os critérios e mecanismos que descritos são imprescritíveis, nem que
regem a construção desta definição caracterizariam todos os tipos de preconceito,
jurídica de um termo controverso? Seria mas tão somente aqueles “crimes resultantes
possível estabelecer que uma das de preconceito de raça ou de cor”;
concepções seja mais “neutra” do que as
outras? Como avaliar quais dentre as II) Não haveria que se considerar
propostas de significado são melhores que a imprescritibilidade seria presumível em
que as outras? função da atrocidade do crime em comento (do
qual não se discorda) posto que crimes tão
Voto do Ministro Moreira Alves (Relator) atrozes como a tortura e o terrorismo
considerados, pela própria Constituição, como
Afirma que “a questão que se coloca hediondos não receberam tratamento
neste ‘habeas corpus’ é a de se determinar o imprescritível (CRFB, art. 5º, XLIII);
sentido e o alcance da expressão ‘racismo’”, não
só por uma questão teórica, mas pelos efeitos III) Considerando os “elementos
práticos de extrema relevância que dela históricos” (argumentos de congressistas que
decorrem: quais crimes estão ou não sujeitos à defenderam à inclusão do inciso XLII no artigo
imprescritibilidade e inafiançabilidade (p. 5º da CRFB) e doutrinários seria possível
534). As diversas alegações utilizadas no voto afirmar que o conceito de “racismo” (ao menos
do relator têm como intuito responder a como supostamente imaginado pelo poder
seguinte pergunta: todos os crimes tipificados constituinte originário) estaria vinculado
na Lei 7.716/89 – em especial os do artigo 20 – somente às discriminações com base em raça
configuram racismo e são, portanto, ou cor. Cita ainda diversos posicionamentos de
imprescritíveis? “respeitáveis autores judeus” que sustentam
Embora reconheça que a CRFB transfere não serem os judeus uma raça (no sentido
para a legislação infraconstitucional a biológico ou genético).
obrigação de tipificar as condutas a serem
identificadas como “prática de racismo” e IV) Com base em tais argumentos
quantificar a pena base, o voto alega que o afirma que a discriminação ou preconceito
inciso XLII do art. 5º “não delega à legislação contra os judeus, por mais nefasta e terrível que
ordinária dar o entendimento que lhe aprouver seja, não caracterizaria o crime de “racismo” (p.
sobre o significado de ‘racismo’” (p. 534). 540-544).
A partir dessa afirmação, defende que,
ainda que tal dispositivo constitucional esteja É interessante observar que o Relator
relacionado a um dos objetivos fundamentais reconhece a possibilidade daquilo que
de nosso país – artigo 3º, inciso IV: “promover denomina “interpretação evolutiva”, que
o bem de todos, sem preconceitos de origem, consiste na possibilidade de mudança de
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas interpretação quanto a um vocábulo “em que se
de discriminação” –, o crime de racismo não leva em consideração a mudança das condições
abarcaria “toda e qualquer forma de sociais”, ou seja, quando “por circunstâncias
preconceito ou de discriminação” – por novas, conduza a sentido diverso do que
exemplo, aqueles que se relacionam à idade ou decorre” do elemento histórico. Mas, apesar
ao sexo –, portanto, deveria o termo ser disso, alega que a exegese constitucional deve
interpretado de uma forma estrita, ainda mais render consideração especial ao “elemento
por tratar-se de direito penal. histórico do texto constitucional, [...] do que se

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discutiu na Assembleia Constituinte” (p. 536 e do ponto de vista físico e moral. Ou seja, “na
600). concepção nazista o povo judeu constitui uma
raça ou, menos do que isso, sub-raça [...] Fica
Voto-Vista do Ministro Maurício Corrêa assim explícito que tal conduta caracteriza
ato de racismo, segundo as convicções de
Maurício Corrêa concorda que o cerne quem o pratica”. O que restaria absolutamente
da “questão [...] gira em torno da exegese do comprovado através de uma das declarações de
termo racismo”, porém, desde o início, o Hitler, em seu livro “Minha luta”: “A grandeza
Ministro enfatiza que não se poderia definir o e superioridade da raça ariana/alemã existe em
termo apenas através de seu significado função da oposição à inferioridade da raça não
biológico. Segundo o autor, seria necessário, ariana, a semita/judaica”, sendo que “para
em função da “pluralidade de conceituações do preservar a raça ariana, seria preciso eliminar a
termo”, buscar não apenas o “sentido” anti-raça” (p. 565).
vernacular ou científico, mas também “sua Afirma, então, Maurício Corrêa:
valoração antropológica e de seus aspectos
sociológicos” (p. 557). O racismo, pois, não está na condição humana de ser
No que concerne ao conceito de raça judeu. O que vale não é o que pensamos, nós ou a
comunidade judaica, se se trata ou não de uma raça,
assevera que as diferenças físicas mas efetivamente se quem promove o preconceito
tradicionalmente referidas como diferentes tem o discriminado como uma raça e, exatamente
espécies de seres humanos são fruto de com base nessa concepção, promove e incita a sua
adaptações geográficas (clima, alimentação, segregação, o que ocorre no caso concreto. Assim,
comportamento de convivência com o esboçado o quadro, indiscutível que o racismo traduz
valoração negativa de certo grupo humano,
ambiente, etc.) e não de variações genéticas. tendo como substrato características socialmente
Portanto, quaisquer posturas de diferenciação semelhantes, de modo a configurar uma raça
seriam decorrentes de comportamentos sociais distinta, à qual se deve dispensar tratamento
relacionados à intolerância e à pretensão de desigual da dominante. Materializa-se à medida
superioridade de uns em detrimento de outros, que as qualidades humanas são determinadas
pela raça ou grupo étnico a que pertencem, a
sendo essa postura que produz o racismo e não justificar a supremacia de uns sobre os outros. [...]
supostos critérios científicos. Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma
Cita também documentos de direito científico, qualquer subdivisão da raça humana, o
internacional, como a “Declaração sobre a racismo persiste enquanto fenômeno social, o
raça e os preconceitos raciais” aprovada em que quer dizer que a existência das diversas raças
decorre de mera concepção histórica, política e
1978 pela UNESCO8, para referendar que tais social, e é ela que deve ser considerada na
comportamentos de diferenciação não só não aplicação do Direito. É essa circunstância de
encontrariam guarida em qualquer critério natureza estrita e eminentemente social e não biológica
científico, mas violariam também princípios que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no
que compõem o arcabouço valorativo da inciso XLII do artigo 5º da Carta Política. (p. 568, grifo
nosso).
humanidade.
No entanto, reconhecer que não existem Em resumo, o ministro afirma que a
critérios científicos ou biológicos para caracterização do conceito de raça seria
caracterizar os seres humanos em distintas baseada não em critérios científicos, mas no
raças não é suficiente para eliminar a reconhecimento de uma distinção que ainda
lamentável prática social do racismo. Nesse ocorreria na sociedade; sendo o crime de
sentido, citando expressamente os períodos da racismo, portanto, dependente da convicção e
Segunda Guerra Mundial afirma que tais atos intenção daquele que o pratica, que identifica
adquiriram uma conotação racista como pode seu alvo como integrante de uma raça diferente
ser comprovado pelos próprios documentos da do agente e, por conta disso, promove, incita
produzidos durante o período do nacional- ou induz atos que podem variar de uma
socialismo que visavam impedir a inferiorizacão até a eliminação dos integrantes
miscigenação entre “alemães” e judeus, deste grupo9.
baseando-se em falsas características negativas
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Sustenta uma interpretação ampliada do morais e dos costumes da sociedade,


conceito de racismo (apontando ainda diversos observado o contexto e o momento
tratados internacionais, leis e decisões de histórico de sua incidência (p. 587, grifo
outros países ou blocos e doutrina nacional nosso)10.
para argumentar a razoabilidade dessa
interpretação), visando efetivar o que define Desacordos teóricos, conceitos e concepções
como “uma interpretação teleológica e
sistêmica da Carta Federal” com fulcro na Defende-se que o caso é caracterizado
“busca da verdadeira acepção do termo, por uma divergência teórica: apesar de não
segundo uma visualização harmônica da existir desacordo sobre os fatos históricos
Carta da República”. Defende que é preciso (validade do Art.5º, XLII; tratados
dar a devida atenção aos fundamentos internacionais assinados pelo Brasil,
“inerentes ao verdadeiro Estado de publicação dos livros etc.), ainda assim, os
Direito Democrático” – a cidadania e a ministros divergem sobre a aplicação do direito
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, II e III) ao caso.
–, bem como ao princípio que inspira o Segundo Dworkin, isso ocorreria porque
combate ao racismo – o princípio da igualdade, os ministros discordam exatamente sobre a
que se confunde com o próprio identificação dos próprios fundamentos do
“reconhecimento mundial dos direitos do direito, ou seja, sobre o que torna uma
homem”. Considerando tudo isso, caberia ao proposição jurídica verdadeira: enquanto o
intérprete buscar a harmonização entre os bens voto-relator se debruça sobre a mens
jurídicos tutelados pela constituição no intuito legislatoris específica do inciso XLII do art. 5º,
de encontrar “o verdadeiro significado da o voto-divergente busca a intenção por trás da
norma”. Desta forma, a interpretação deve Constituição como um todo
considerar não só o respeito à norma específica (consequentemente de todo o sistema jurídico),
em tela, mas deve ter em mente que o bem como identificar os valores que
ordenamento jurídico é composto por diversos fundamentam o ordenamento jurídico e/ou o
princípios e, neste sentido, a interpretação deve próprio Estado Democrático de Direito.
buscar dar a toda norma um sentido ou Nesse sentido, talvez fique mais clara a
significado que auxilie na manutenção e crítica de Dworkin à tese da regra de
respeito destes outros princípios que também reconhecimento de Hart, pois, ao menos
são considerados relevantes, como se houvesse nesse caso, os ministros parecem não
(embora não sejam estas as exatas palavras do compartilhar exatamente os mesmos critérios
ministro) uma rede de princípios que deve ser para a identificação do direito: embora todos
mantida de forma harmônica, sob pena de se concordem que a Constituição é o ápice do
deixar ruir toda uma estrutura relevante para a ordenamento jurídico, existe uma divergência
sociedade (p. 578-587). posterior, por exemplo, sobre o uso ou não de
direito comparado para esclarecer o sentido de
Como afirmei quando do pedido de termos constitucionais não definidos
vista, revela-se essencial, na espécie, que se claramente pela própria CRFB ou a prevalência
proceda a uma interpretação teleológica e de dados históricos sobre os debates da
sistêmica da Carta Federal, a fim de Assembleia Constituinte. Se não há perfeito
conjugá-la com circunstâncias históricas, consenso sobre isso, como afirmar que existe
políticas e sociológicas, para que se uma regra de reconhecimento capaz de acabar
localize o sentido da lei para aplicá-la. Os com o caráter de incerteza sobre a identificação
vocábulos raça e racismo não são suficientes, do direito? Seria possível defender, nesse caso
por si sós, para se determinar o alcance da específico do HC 82.424-2/RS, a tese de Hart
norma. Cumpre ao juiz, como elementar, de que existe uma regra de reconhecimento
nesses casos, suprir a vaguidade da regra “que faculta os critérios através dos quais a
jurídica, buscando o significado das validade das outras regras do sistema é
palavras nos valores sociais, éticos, avaliada”? A resposta parece ser negativa,
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exatamente porque existe divergência sobre Dworkin chama a atenção para a diferença
quais critérios devem ser priorizados (embora entre os termos conceito e concepção. Os
exista relativo consenso sobre os fatos e conceitos seriam proposições mais abstratas
documentos jurídicos válidos11). Por exemplo, e que – por isso mesmo – são compartilhadas
alguns ministros defendem a prioridade da socialmente, servem como platô abstrato de
intenção do constituinte, outros defendem a consenso: todos concordam que o racismo é
identificação da mens legis do próprio sistema. caracterizado pela discriminação injusta entre
Mas, reitere-se, a verificação desses pessoas que são essencialmente iguais, mas
desacordos não significa a inexistência algum onde o perpetrador parte de um pressuposto
grau de consenso sobre a própria prática do equivocado de superioridade em relação ao(s)
direito ou mesmo sobre o conceito de racismo outro(s). Já as concepções seriam
(sob pena de não existir verdadeiro interpretações específicas daquela ideia mais
ordenamento jurídico e reinar o caos), mas abstrata e consensual: Moreira Alves
entre a completa insegurança do caos e o compreende que, ao menos no Brasil, o racismo
consenso absoluto da regra de reconhecimento, seria aquela discriminação quando relacionada
ocorrem diversas situações intermediárias ao conflito histórico entre negros e brancos,
caracterizadas pelo desacordo teórico. produzindo uma concepção mais restrita de
Hart tenta argumentar que os juízes racismo; já Maurício Corrêa tem uma
podem concordar com a existência de uma concepção mais abrangente de racismo,
regra de reconhecimento, mesmo que incluindo não só a discriminação com base em
discordem sobre a forma correta de aplicar tal cor ou raça, mas quaisquer atos
regra a determinados casos – especificamente segregacionistas baseados numa pretensa ideia
os difíceis –, principalmente quando a regra de superioridade/inferioridade fundada em
serve para explicar o funcionamento do sistema ódio ou intolerância entre seres humanos.
nas condições normais e que condizem com a
prática uniforme dos tribunais. Definição de conceitos, interpretação valorativa,
discricionariedade e vinculação
A função da regra é determinar apenas as condições
gerais que as decisões jurídicas corretas devem O modo de identificação/definição de
satisfazer nos modernos sistemas de direito. A regra
[...] de reconhecimento pode fornecer testes um vocábulo é, certamente, o ponto fulcral da
relacionados não com o conteúdo factual das leis e questão. Sendo assim, cabe lembrar como os
sim com a sua conformidade com valores ou com autores se posicionam sobre isso.
princípios morais essenciais. Claro que, em casos Da tese de Dworkin (2010, p. 212) se
concretos, os juízes podem discordar quanto à pode pinçar a proposta de conceito político,
questão de saber se tais testes estão satisfeitos, ou não,
e um teste moral quanto à regra de reconhecimento não evolução de sua proposta sobre a diferença
resolverá tal discordância. Os juízes podem estar de entre conceitos e concepções. O autor defende
acordo acerca da relevância de tais testes, enquanto que alguns vocábulos funcionam “como
algo resolvido por uma prática judicial estabelecida, conceitos interpretativos de valor”, isto é,
mesmo se discordarem sobre aquilo que os testes numa sociedade podem ocorrer concepções
exigem em casos concretos (HART, 2005, p. 320-31,
grifo nosso). divergentes desse mesmo conceito exatamente
porque existem discordâncias sobre os valores
(ou seus significados) que são albergados pelo
Mas Dworkin considera essa explanação vocábulo, em outras palavras: “a contestação
insatisfatória justamente porque não explica o [sobre o próprio valor] gira em torno de qual
funcionamento do sistema no que concerne a especificação de um sentido descritivo melhor
resolução dos chamados casos difíceis, apreende ou melhor dá conta desse valor”.
aqueles mais relevantes e significativos na A discussão sobre o significado do termo
opinião do professor norte-americano. É “racismo” parece obedecer à mesma lógica dos
exatamente para tentar explicar essa situação debates sobre os conceitos políticos conforme a
de parcial acordo que evita a desordem, mas de teoria de Dworkin (2010, p. 210): existe certo
possibilidade de algum grau de desacordo, que consenso sobre a importância dos valores
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envolvidos no conceito de racismo – é algo por outro lado, estabelece sua rejeição”,
terrível, que gerou abomináveis injustiças em mas para Hart (2005, p. 139-140, grifo nosso)
função de posturas de ódio, intolerância e esse seria um problema oriundo,
discriminação; além disso, caracteriza uma primordialmente, de uma incerteza inerente à
prática que viola outros valores e, por isso, deve própria linguagem. Mas então, como resolver
ser combatida –, mas, apesar disso, “esse essa incerteza? Nesses casos, onde a aplicação
consenso deixa em aberto questões (e, portanto, a correta definição) do termo é
substantivas cruciais sobre o que, mais incerta, torna-se necessário realizar “algo que
precisamente, tais valores são ou significam” – apresenta a natureza de uma escolha entre
o racismo é caracterizado por qualquer tipo de alternativas abertas”, e esse procedimento
discriminação? Se não, a quais tipos se aplica? “tem de ser feito por aquele que tem de as
Qual o objetivo de caracterizar o racismo como resolver”.
imprescritível? A imprescritibilidade do crime Essa parte da tese de Hart (2005, p.141-
deve influenciar para produzir uma 142) se relaciona de forma umbilical com a
interpretação restritiva ou extensiva? Na questão da definição jurídica do conceito de
definição do conceito, o contexto histórico- racismo, pois mesmo o positivismo hartiano
social específico do país é mais importante que reconhece que (ao menos em alguns casos) há
o contexto mundial? Os critérios científicos são que se questionar sobre a finalidade que se
mais importantes que os critérios culturais? De atribui à norma e essa finalidade pode ser
que forma os outros valores constitucionais e fundamental para determinar o grau de rigidez
dos tratados internacionais devem influenciar ou flexibilidade que conferiremos à definição
na determinação do conceito de racismo? de um conceito jurídico em um caso concreto.
Portanto, tais conceitos funcionam Para compreender essa finalidade há que se
como conceitos interpretativos de valor: são considerar aquilo que pode ser chamado de
compartilhados por nós porque objetivos sociais razoáveis o que só pode
compartilhamos as práticas sociais e ser feito “através da escolha entre os interesses
experiências onde tais conceitos figuram; concorrentes”, ainda que esta escolha não
concordamos que eles se relacionam a valores, possa ser confundida com uma conduta
mas, algumas vezes, discordamos quanto a sua “arbitrária ou irracional”.
correta concepção porque divergimos sobre Entretanto, e este talvez seja o cerne
quais valores melhor justificam as práticas desta questão da teoria de Hart, podem ocorrer
(nesse caso, na prática de combate ao racismo conflitos entre a verificação destas
sem descurar dos outros valores presentes no finalidades e aquilo que se denomina
ordenamento jurídico) nas quais eles ocorrem. “segurança jurídica”. A importância relativa
de cada uma dessas dimensões e do conflito
Alguns de nossos conceitos funcionam [...] que pode se instaurar entre elas é expressa na
como conceitos interpretativos que nos estimulam obra de Hart que advoga a favor da necessidade
a refletir sobre aquilo que é exigido por alguma
prática social que elaboramos, bem como a
de uma escolha ulterior e critica as tentativas
contestar tal construto. [...] dependem da melhor de ignorar ou exagerar a necessidade e os
interpretação das regras, convenções e expectativas, efeitos dessa escolha posterior:
bem como de outros fenômenos [...] e do melhor Aqui ocorre o que Hart denomina de
modo de aplicar tudo isso conjuntamente quando disputa entre interesses concorrentes ou
da decisão de uma situação específica (DWORKIN,
2010, p. 17, grifo nosso).
conflitantes, sendo que tais conflitos somente
podem ser solucionados através do confronto
No que concerne à teoria de Hart, é entre a regra geral e o caso concreto não
importante reconhecer que o autor já havia previsto e a consequente definição mais
observado aquilo que denominou de textura específica da finalidade inicial da norma, que
aberta do direito, ou seja, situações onde “há deverá ser estabelecida à luz das próprias
razões, quer a favor, quer contra o nosso uso de finalidades sociais (HART, 2005, p. 143).
um termo geral e nenhuma convenção Até aqui, em alguma medida, parece
firme ou acordo geral dita o seu uso, ou, haver uma correlação entre as teorias de Hart e

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Dworkin no que concerne a necessidade de moral que puder sobre quaisquer questões
interpretação das regras e da relação dessa morais que possa ter para decidir.
interpretação com finalidades, objetivos e Considerando-se que a determinação do
valores para a determinação do significado de conceito de racismo, neste caso, é um exemplo
termos e conceitos utilizados no direito – o que perfeito de caso difícil – i) o direito não regulou
demonstra claramente que o filósofo britânico ou regulou de forma parcialmente incompleta
não está tão afastado da ideia de finalidades ou ou indeterminada (Hart) ou ii) casos em que a
valores como alguns erroneamente pensam. resolução é feita não somente pelo uso de
Mas então, poder-se-ia explicar a regras, mas também pela consideração dos
necessidade de interpretação e a referência a princípios (Dworkin) que vinculam a decisão,
valores para a definição de conceitos através de apesar de juízes razoáveis, inteligentes e bem
ambas as teorias? Ainda que os dois autores intencionados poderem discordar sobre a
reconheçam a necessidade de exercer uma resposta a ser dada – será que é possível
atividade interpretativa, mormente nos casos verificar sua adaptação a uma dessas
concretos considerados difíceis, bem como a propostas?
necessidade (Dworkin) ou possibilidade (Hart) As argumentações dos ministros
de referência a valores morais, existem parecem favorecer a teoria de Dworkin, pois se
divergências fundamentais entre as teorias, das vislumbra tentativas de demonstrar como o
quais serão destacadas algumas para análise do ordenamento jurídico forneceria previamente
presente caso. instrumentos para uma tomada de decisão.
Para Hart (2005, p. 314), o sistema Não se vislumbra qualquer insinuação de que
jurídico é “parcialmente indeterminado ou se está diante de uma situação de escolha não
incompleto”, o que significa que nos casos determinada pelo direito – ainda que possa não
difíceis, “quando a questão é de saber se uma ter sido determinada especificamente pelo art.
dada regra se aplica a um caso concreto, o 5º, XLII da CRFB ou pela Lei 7716/89. Além
direito é incapaz de determinar uma resposta disso, o apelo a princípios, finalidades ou
em qualquer dos sentidos e, assim, vem a objetivos é utilizado tanto pelos que seguem o
provar-se que é parcialmente indeterminado”. voto divergente quanto pelo voto do relator,
Seja em função da textura aberta, da relativa como razões para defender o que o direito
ignorância de fato ou da relativa determina (não aquilo que deveria
indeterminação de finalidade, caberia ao juiz, determinar).
nessas hipóteses, “exercer a função restrita de Mas Hart já havia se posicionado no
criação de direito”. Para Dworkin, o direito sentido de que a retórica judicial oficial, que se
pode ser controvertido, mas isso não significa socorre de princípios, objetivos e finalidades
que seja incompleto. Portanto, nos casos supostamente jurídicas, pode esconder o que
difíceis, para Hart, os juízes efetuariam uma realmente ocorre: a pura e simples criação de
escolha (ainda que sujeitas a determinados um novo direito que não era predeterminado
limites), que não foi previamente estabelecida pelo ordenamento.
pelo direito; já para Dworkin, os princípios Se considerarmos a tese de Hart correta
(explícitos ou implícitos), que albergam valores e afirmarmos que nesse caso difícil os
e fazem parte do direito, vinculariam a decisão magistrados tinham o poder discricionário de
judicial, portanto, não haveria que se falar em escolher entre padrões que não são jurídicos (já
escolha, mas sim na busca de descobrir aquilo que o direito não determinava previamente o
que o direito já determina. conceito de racismo), então, o que o poder
Hart (2005, p. 316) insiste que nos casos judiciário fez foi escolher, posteriormente à
difíceis – mesmo que se compreenda que a prática do fato, entre princípios concorrentes.
moral exerce influência na decisão judicial – a A conclusão lógica, do ponto de vista prático, é
discussão sobre se o magistrado cria novo que uma pessoa foi condenada por racismo,
direito ou revela o direito já existente não embora, à época da prática de seu ato, ela não
teria relevância prática, pois o dever do juiz tenha praticado qualquer ato que o direito,
será o mesmo: a saber, fazer o melhor juízo então, definia como racista!

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Qualquer pessoa poderia questionar Ressalte-se de forma veemente que não


sobre a injustiça de se condenar alguém por se está aqui defendendo a ideia de que os
uma prática que não seria considerada crime conceitos de raça ou de racismo devem,
ou que, de forma mais específica no caso necessariamente, ter uma interpretação
Ellwanger, não seria considerada racismo e, restritiva, mas tão somente o argumento de que
portanto, estaria sujeita à regra geral da para não se efetivar essa interpretação
prescritibilidade. restritiva, especificamente no caso da
Hart responde que essa ideia da Constituição brasileira, há que se admitir que a
injustiça da decisão ex post facto depende do utilização de princípios foi feita com base em
pressuposto de que tais decisões não dão o critérios previamente estipulados pelo
devido respeito às expectativas justificadas, direito.
mas, nos casos difíceis, não haveria que se falar
em expectativas justificadas exatamente A insuficiência das metodologias descritivas para a
porque o direito não regulou de forma perfeita identificação de um conceito jurídico
tais situações.
Ainda que se possa concordar com Hart Considerando que existem diferentes
de que só haveria, ao menos do ponto de vista posições (ou princípios que defendem
jurídico, “expectativas justificadas” quando o analogias concorrentes) sobre a definição do
direito de fato regula algo, não se pode esquecer conceito de “racismo”, é possível afirmar que
que existem máximas ou princípios gerais em alguma destas concepções é mais neutra (no
qualquer campo do conhecimento, inclusive do sentido valorativo) do que as outras? É
direito, que são condições de validade para as razoável se adotar uma postura meramente
demais proposições. No direito, descritiva (por exemplo, dos debates realizados
especificamente, existem princípios gerais durante a Assembleia Constituinte) para a
exatamente para gerar alguma segurança perfeita definição de um conceito político?
naquelas situações em que o direito é omisso e Dworkin defende a insuficiência da
um desses é o princípio nullum crimen nulla metodologia descritiva para identificação de
poena sine lege, ou seja, a ideia de que não há conceitos políticos e argumenta que qualquer
crime sem lei anterior que o defina nem pena postura que privilegie elementos históricos ou
sem prévia cominação legal. Ora, se o legislador científicos não é, só com base nisso, menos
constituinte definiu que o racismo é valorativa ou engajada do que outra que
imprescritível, mas – segundo a tese de Hart advogue em favor de elementos morais.
em função da textura aberta, da relativa Obviamente isso não significa que não se possa
ignorância de fato ou da relativa propor a devida atenção, e até a primazia, de
indeterminação de finalidade – não está elementos históricos, científicos,
evidente o conceito de racismo – e as diferentes criteriológicos sobre outros. O que se quer é
decisões desde a primeira instância até o STF, evidenciar que quaisquer propostas que deem
além dos debates entre os ministros, seriam primazia a algum aspecto interpretativo são tão
suficientes para demonstrar o desacordo – engajadas quanto quaisquer outras, pois
então, somado ao princípio geral citado, pode- produzirão efeitos concretos na
se razoavelmente falar em expectativa identificação/aplicação do direito e, sendo
justificada. assim, acabam “tomando partido”,
Mas o sistema jurídico brasileiro traz um representam uma tomada de posição. Nesta
complicador a mais, qual seja o de que o visão, no caso em tela, a proposta que defende
princípio nullum crimen nulla poena sine lege a vontade do legislador constituinte como mais
é, aqui, um princípio constitucional (CRFB 5º, importante do que a evolução social, ou que as
XXXIX). Sendo assim, haveria que se declarar questões históricas específicas de um
a inexistência do crime sob pena de estar se dispositivo são mais importantes que
criando novo direito contra expressa determinados objetivos sociais ou jurídicos
determinação constitucional. (CRFB 1º, III; 3º, IV; 4º, II e VIII, dentre
outros) seria tão engajada e valorativa quanto a
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proposta inversa, pois ambas gerarão Nesse sentido, parece haver certa
consequências específicas, não sendo possível conformidade com a proposta de Dworkin:
afirmar que uma é mais neutra ou mais
engajada que a outra. Compartilhamos esse conceito como atores em práticas
Quando Moreira Alves propõe uma políticas complexas que exigem que interpretemos essas
práticas a fim de decidir sobre a melhor maneira de
interpretação que privilegia o que ele chama de dar-lhes continuidade, e utilizamos o conceito
“elementos históricos” – os debates produzidos doutrinário de direito para apresentar nossas
durante a Assembleia Constituinte – ele acaba conclusões. Para elaborar o conceito, atribuímos valor
“tomando partido” por uma interpretação e propósito à prática e formulamos concepções sobre as
restritiva. A questão, nesse momento, não é se condições de veracidade das afirmações particulares
que as pessoas fazem no contexto da prática, à luz dos
isso é bom ou mau, mas sim evidenciar que esta propósitos e valores que especificamos (DWORKIN,
postura não pode tomar para si o título de 2010, p. 19, grifo nosso).
posição neutra e não valorativa como Hart
pretende.
É evidente que um pesquisador pode CONSIDERAÇÕES FINAIS
fazer um levantamento sobre como o conceito
de racismo foi encarado ao longo da história; ou Esta fase da pesquisa ainda requer
se existem critérios científicos capazes de aprofundamentos e análises mais detalhadas
identificar a questão racial; ou dos debates e também se fazem necessárias.
manifestações sociais que levaram a inclusão Exemplificativamente, conforme
de um determinado dispositivo normativo indicado, a análise inicial dos votos
contra o racismo no ordenamento jurídico. Mas majoritários no presente caso, parecem
essas descrições – que são importantes e indicar a aproximação do STF com a teoria
necessárias – não são suficientes para não positivista. Entretanto, há que se verificar
empreender a definição de um conceito de forma mais aprofundada se realmente se
político, ou seja, não é possível identificar trata de uma decisão vinculada às teses não
cabalmente o significado de um conceito positivistas ou meramente um discurso de
político, através de uma metodologia justificação para uma posição que foi tomada,
meramente descritiva (embora esta possa pelos magistrados, com base em argumentos
contribuir, até certo ponto) exatamente por que de política (no sentido dworkiniano) ao invés
este tipo de conceito demanda uma de argumentos de princípios. Além disso, é
interpretação sobre a prática social relacionada necessária a análise contínua de diferentes
ao conceito e, consequentemente, é processos relevantes, para se identificar a
dependente de uma análise dos valores, existência ou não de coerência teórica nas
finalidades e objetivos que se pretende atingir decisões dos ministros e do próprio Supremo
através dessa prática. Tribunal Federal.
É razoável afirmar que ambos os votos (e 1
Embora exista vasta bibliografia debatendo a existência ou
aqueles que os seguiram), mesmo não de diferenças entre os conceitos de ética e moral, para
apresentando interpretações divergentes, construção do presente trabalho não analisaremos tal discussão
reconhecem a necessidade de apresentar e tomaremos os termos como sinônimos.
motivos, razões que justifiquem uma
2
escolha em detrimento da outra. O voto Nas situações onde não existem regras claramente aplicáveis
(porque não houve previsão desse fato ou porque as normas
que apela a elementos históricos e de descrição criadas incorrem na textura aberta do direito), não existe
dos debates dos constituintes de 88, por “direito” previamente estabelecido.
exemplo, também postula a afirmação de
3
atrocidade do caráter de imprescritibilidade Essa afirmação é baseada na obra de Austin (2007, p. 157),
penal e das consequências supostamente originariamente publicada em 1832, The Province of
nocivas que a atribuição de uma interpretação Jurisprudence Determined.
menos restritiva poderia gerar para a prática 4
Em especial no Capítulo IX, Seção 3, da citada obra.
social.

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5
Fato afirmado pelo próprio sítio do STF, em 19 de março de conceitos criteriológicos: porque não há consenso sobre os
2004, quando da publicação do acórdão. Disponível em: critérios que devem ser utilizados, mesmo que haja consenso
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idC sobre os fatos e documentos jurídicos existentes sobre o tema.
onteudo=62411&caixaBusca=N>.. Além disso, “elaborar uma teoria desse tipo de conceito
[criteriológico] significa propor uma definição mais precisa,
6
Não se fará, no âmbito do presente artigo, a análise da questão para uma finalidade específica. Mas seria um erro afirmar que
do conflito entre os princípios constitucionais da dignidade qualquer definição mais precisa apreende melhor do que outras
humana (CRFB, art. 1º, III) e da liberdade de expressão e de a essência do conceito. É um erro afirmar, por exemplo, como
pensamento (CRFB, art. 5º, IV e IX; Art. 220) que também tantos fazem hoje, que a essência do casamento é uma união
ocorreu no âmbito do julgamento. entre um homem e uma mulher, pois tal afirmação faz do
casamento gay uma contradição em termos”. (DWORKIN,
7
Todas as citações referentes à decisão do STF no HC 82424- 2010, p. 16).
2/RS serão feitas com base no chamado “inteiro teor”
publicado no sítio do STF: STF – HC 82424/RS – Tribunal REFERÊNCIAS
Pleno – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 19/03/2004). Disponível
em
<http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=7 BARBOSA, Leonardo. A influência da ética na
9052&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20HC%20/%2 identificação e aplicação do direito: uma
082424>. Acesso em: 14 ago. 2017. análise do debate Hart vs. Dworkin. 2013. 267
8
f. Tese (Doutorado em Filosofia) –
“Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm
a mesma origem”.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2013.
9
E, neste ponto (p. 570), cita diversos trechos das obras
editadas e escritas por Ellwanger que caracterizariam esta _______. Ronald Dworkin: uma homenagem
vontade de imputar “aos judeus todas as responsabilidades a um filósofo porco-espinho / Ronald Dworkin:
pelas tragédias registradas na Segunda Guerra” e “falsear a
a tribute to a hedgehog philosopher. Revista
verdade e reacender a chama do ideal nazista, para instigar a
discriminação racial contra o povo judeu”. Direito e Práxis v. 4 n. 7, dez. 2013, Rio de
Janeiro: UERJ. Disponível em:
10
Poder-se-ia dizer que nada mais comum do que buscar o <http://dx.doi.org/10.12957/dep.2013.8348>.
sentido das palavras – que compõem o direito, como qualquer Acesso em: 07 ago. 2017.
prática social – no contexto social (incluindo os aspectos
morais, históricos e políticos). Porém, também se pode
questionar, de um ponto de vista juspositivista, o seguinte: se
_______. Pressupostos teóricos e questões
existem diversos posicionamentos doutrinários, de direito metodológicas relevantes no debate Hart-
comparado e de direito internacional, além dos próprios Dworkin. In: CUNHA, José Ricardo (Org.).
ditames da constituição (que no Brasil é analítica e não Epistemologias críticas do direito. Rio de
sintética), porque se torna necessário revolver as questões Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 375-396.
histórico-político-sociais, bem como os valores morais e
éticos para definir o sentido de uma palavra? Que
“vaguidade” é essa que ainda resta, mesmo após a citação de BARROSO, Luís Roberto. Constituição,
doutrinadores brasileiros do mais alto calibre; da referência ao democracia e supremacia judicial: direito e
direito internacional de tratados que vão de 1948 até 2001; da política no Brasil contemporâneo. In: RFD -
apresentação de leis e decisões judiciais de diversos países de Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 2,
diferentes continentes? n. 21, jan./jun. 2012. Disponível em:
Talvez a resposta seja dada pelo próprio Ministro através da
citação que faz de Alexandre de Moraes: “a interpretação <http://www.e-
‘deve buscar a harmonia do texto constitucional com suas publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/
finalidades precípuas, adequando-a a realidade e pleiteando view/1794/2297>. Acesso em: 10 mai. 2017.
a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São
públicas”. Mas as finalidades não são passíveis de Paulo: Martins Fontes, 2010.
identificação com base exclusiva no texto, antes, é necessário
se questionar sobre os valores que estão por trás da norma,
pois só assim se pode identificar a ‘verdadeira’ finalidade, _______. A raposa e o porco-espinho: justiça
objetivo, sentido (ou, como diria Dworkin, point) seja da e valor. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
norma, seja da própria prática social que se deseja estimular,
proteger ou repudiar. _______. Levando os direitos a sério. Trad.
11 Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
Por isso, Dworkin defende que não é possível compreender
os conceitos políticos, valorativos ou interpretativos como 2002.
81
REVISTA DA JOPIC | VOL. 01 | Nº 03 | 2018

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