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Judicialização da política, Poder Judiciário

e Comissões Parlamentares de Inquérito


no Brasil

Eduardo Meira Zauli

Sumário
1. Judicialização da política. 2. O esquema
da tripartição dos poderes na Constituição de
1988. 3. Funções do Poder Legislativo federal no
Brasil. 4. Estatuto das Comissões Parlamentares
de Inquérito no Brasil. 5. O Supremo Tribunal
Federal e o controle judicial do funcionamento
e dos atos das Comissões Parlamentares de In-
quérito. 6. Considerações finais: hermenêutica
constitucional, direitos e garantias fundamentais
e procedimentalização do direito.

1. Judicialização da política
O interesse dos cientistas políticos pelos
aspectos legais do funcionamento das insti-
tuições não é algo propriamente novo. Há
muito reconhece-se na magistratura um ator
cujas decisões afetam de maneira impor-
tante a dinâmica da interação política nas
nossas sociedades. De maneira que as condi-
cionantes, as características e as consequên-
cias dos processos de tomada de decisão no
âmbito das instituições judiciais constituem
os aspectos centrais de sua abordagem pela
Ciência Política. Sumarizando os postulados
Eduardo Meira Zauli é bacharel em Ciências básicos da literatura da Ciência Política so-
Sociais (1986) e Mestre em Sociologia (1991) pela bre o assunto, Gibson (2006) sugere que “in
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); a nutshell, judges decisions are a function of
Doutor em Ciência Política (1996) pela Universi- what they prefer to do, tempered by what
dade de São Paulo. Professsor do Departamento they think they ought to do, but constrained
de Ciência Política da UFMG, coordenador do by what they perceive is feasible to do”1
Curso de Especialização em Políticas Públicas
da UFMG e consultor científico na área de edu- 1
“Em suma, as decisões dos juízes são uma função
cação superior. do que eles preferem fazer, temperada pelo que eles

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(GIBSON, 2006 p. 515-516). As variáveis “1. the process by which courts and
independentes mencionadas informariam judges come to make or increasingly
o cerne de diferentes abordagens teóricas to dominate the making of public
no campo da Ciência Política. Assim, as policies that had previously been
preferências da magistratura seriam o foco made (or, it is widely believed, ought
privilegiado de um modelo de análise atitu- to be made) by other governmental
dinal; o que os magistrados deveriam fazer agencies, especially legislatures and
é a preocupação do modelo legal e da teoria executives, and
dos papéis, enquanto a preocupação com 2. the process by which nonjudicial
a viabilidade das decisões judiciais é parte negotiating and decision-making
central de abordagens estratégicas. forums come to be dominated by
Nos últimos anos, diante da constata- quasi-judicial (legalistic) rules and
ção da expansão dos poderes judiciais nas procedures”3.
democracias contemporâneas, tornou-se Na experiência brasileira posterior à
corrente entre os cientistas políticos o uso promulgação da Constituição de 1988,
da expressão judicialização da política pode-se observar o desenvolvimento de
para referir-se à interferência de decisões ambos processos de judicialização da políti-
judiciais e à introdução de procedimentos ca, sendo que, em se tratando de investigar
de natureza judicial em diversas arenas as relações entre o Poder Judiciário e as co-
políticas. Assim, Vallinder (1995, p. 13) missões parlamentares de inquérito, deve-
propõe que a noção de judicialização da se estar atento para ambas as perspectivas
política envolve mencionadas anteriormente por Vallinder e
“... (1) the expansion of the pro- Tate (1995). Mais ainda, alguns dos fatores
vince of the courts or the judges at que respondem por tal fenômeno no Bra-
the expense of the politicians and/ sil assemelham-se àquelas condições que,
or the administrators, that is, the segundo Tate (1995), facilitaram a expan-
transfer of decision-making rights são do poder judicial em outros sistemas
from legislature, the cabinet, or the democráticos:
civil service to the courts or, at least, 1. a operação de um sistema político
(2) the spread of judicial decision- democrático;
making methods outside the judicial 2. a existência de um ordenamento
province proper. In summing up we institucional baseado na separação de
might say that judicialization essen- Poderes;
tially involves turning into a form of 3. a existência de uma Carta de direi-
judicial process”2. tos;
No mesmo tom, Tate (1995, p. 28) define 4. o uso dos tribunais por grupos de
a judicialização da política como interesse;
5. o uso dos tribunais pela oposição;
pensam que deveriam fazer, mas constrangida pelo
que eles percebem que é viável fazer” (Tradução 6. a inefetividade das instituições ma-
nossa). joritárias em impedir o envolvimento de
2
“(1) a expansão do campo dos tribunais ou dos
juízes em detrimento dos políticos e/ou dos adminis- 3
“o processo pelo qual os tribunais e juízes ten-
tradores, isto é, a transferência de poder de decisão dem a dominar cada vez mais a criação de políticas
do legislador, do governo, ou da administração civil públicas já criadas (ou, acredita-se amplamente, que
para os tribunais ou, pelo menos, (2) a propagação dos pelo menos deveriam ser criadas) por outras agências
métodos da tomada de decisão judicial para fora do governamentais, especialmente legislativos e executi-
campo judicial propriamente dito. Em resumo, pode- vos, e 2. o processo pelo qual os fóruns de negociação
mos dizer que a judicialização envolve essencialmente e de tomada de decisão não-judiciais tornam-se do-
uma transformação na direção do processo judicial” minados por normas e procedimentos quase-judiciais
(Tradução nossa). (legalistas)” (Tradução nossa).

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instituições judiciais em certas disputas 4. Os novos mecanismos de acesso ao
políticas; Poder Judiciário5.
7. percepções negativas acerca das Para além das condições mencionadas,
instituições majoritárias e legitimação de observa-se no Brasil também certo des-
instituições judiciais; compasso entre os valores e orientações
8. algum grau de delegação de poderes predominantes no âmbito das instituições
de decisão das instituições majoritárias em majoritárias, por um lado, e os valores e
favor de instituições judiciais. orientações predominantes no âmbito das
Contudo, outros fatores também con- instituições judiciais, por outro lado. Assim,
tribuíram para a ocorrência de uma maior de uma combinação de ativismo judicial e
ascendência do Poder Judiciário sobre o choque de valores entre aqueles dois tipos
sistema político brasileiro. de instituição, a resultante tem sido o fenô-
1. Em primeiro lugar, a promulgação de meno da judicialização da política.
uma Constituição cujo caráter principioló- “Even under a very favorable cons-
gico e programático, acompanhado de uma tellation of facilitating conditions,
nova hermenêutica que confere normativi- the actual development of the judi-
dade aos valores e princípios constitucionais, cialization of politics requires that
permitiu um processo de constitucionaliza- judges have the apropriate personal
ção do direito, no sentido da irradiação dos attitudes and policy preferences or
princípios e valores constitucionais por todo values, especially relative to the va-
o sistema jurídico, abrindo espaço para uma lues of other decision makers. Under
releitura do direito infraconstitucional e das otherwise favorable conditions, judi-
decisões dos Poderes Legislativo e Executivo cialization develops only because judges
à luz da Constituição (BARROSO, 2009), decide that they should (1) participate
interpretada “(...) em torno de enunciados in policy-making that could be left to
abertos, indeterminados e plurissignificati- the wise or foolish discretion of other
vos – as fórmulas lapidares que integram a institutions, and, at least on occasion,
parte dogmática das constituições” (MEN-
DES, COELHO; BRANCO, 2008, p. 58). das. Também na Itália o pubblico ministero, em virtude
de sua posição institucional, vem desempenhando um
2. A ampliação do elenco de intérpretes papel decisivo na judicialização da política. Isso faz
da Constituição por meio da abertura do com que a situação italiana afaste-se significativamen-
sistema de controle de constitucionalidade a te das experiências em curso em outras democracias,
um leque mais amplo de atores legitimados ao ponto de ser considerada por Di Federico (1995)
como um caso peculiar. Quanto ao Poder Judiciário
para propor ações de constitucionalidade; italiano stricto sensu, a adoção de um elemento carac-
3. As novas garantias de independên- terístico de sistemas de common Law (um maior grau
cia do Poder Judiciário e do Ministério de independência interna da magistratura) tem contri-
Público4; buído para a limitada autonomia do Judiciário frente
às diversas forças políticas externas em um contexto
4
Com relação ao Ministério Público, seus membros marcado pelo aumento da importância política do
foram equiparados à magistratura quanto às garantias Poder Judiciário” (GUARNIERI, 1995).
da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de 5
“Pode-se destacar a criação e institucionalização
subsídio. Adicionalmente, suas funções foram amplia- dos juizados especiais; o novo estatuto das Defensorias
das, fazendo com que a instituição fosse legitimada, Públicas; a ampliação do alcance do instituto da ação
entre outras prerrogativas, para a promoção das ações popular, além das novas prerrogativas processuais do
civil pública e de inconstitucionalidade; componentes Ministério Público. Tais mecanismos, dentre outras
importantes do processo de ativação do Poder Judici- alterações do sistema de justiça do país, inserem-se no
ário e de judicialização de diversos conflitos políticos âmbito da adoção de uma Constituição ‘processual’
(MAZZILLI, 1998; ARANTES 1999; VIANNA et al. que comporta uma série de instrumentos jurídicos
1999; SILVA, 2001; PAES, 2003; KERCHE, 2007; CA- que permitem a participação dos cidadãos em ações
SAGRANDE, 2008). “Nesse sentido o caso brasileiro demandando a concretização dos direitos previstos no
assemelha-se à experiência italiana nas últimas déca- texto constitucional” (CASAGRANDE, 2008).

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(2) substitute policy solutions they derive civil na comunidade de intérpretes
for those derived by other institutions6” com direito à participação no con-
(TATE, 1995, p. 33). trole da constitucionalidade das leis.
“Activist judges, by definition, may A partir dessa inovação, segmen-
be expected to take every opportu- tos organizados da sociedade civil
nity to use their decision-making to passaram a gozar da faculdade de
expand the policy values they hold provocar a intervenção do Supremo
dear. But when those values are con- Tribunal Federal no sentido de ar-
sistent with the values dominating güir a inconstitucionalidade de lei
majoritarian institutions, there will ou norma da Administração. Nessa
be much less incentive for activist mesma direção, constitucionalizou
judges to seek to judicialize a politi- os institutos da ação popular e da
cal process that is already producing ação civil pública, dando-lhes maior
such good policy results, even though abrangência, recriou a figura do Mi-
the conditions are favorable for doing nistério Público, incumbindo-lhe da
so7” (TATE, 1995, p. 34). defesa da ordem jurídica, do regime
Sintetizando as mudanças que têm democrático e dos interesses sociais
permitido algum grau de minimização dos e individuais indisponíveis. Sob essa
efeitos nocivos para a democracia brasileira nova formatação institucional, pela
do estreitamento da esfera pública decor- via da procedimentalização da apli-
rente da predominância do Poder Executivo cação do direito, tem sido possível
sobre um Poder Legislativo insulado da so- criar um outro lugar de manifestação
ciedade civil, afirma Vianna (2002, p. 11): da esfera pública, decerto que ainda
“Com efeito, a Carta de 1988 veio embrionário, na conexão do cidadão
a redefinir as relações entre os Três e de suas associações com o Poder Ju-
Poderes, dando eficácia, entre nós, diciário e que é capaz de atuar sobre
ao sistema do judicial review, prin- o sistema político.”
cipalmente quando admitiu perso- A amplitude do fenômeno é tamanha
nagens institucionais da sociedade a ponto de permitir que se estabeleçam
paralelos entre a situação dos Estados
6
“Mesmo sob uma constelação muito favorável de
condições facilitadoras, o desenvolvimento atual da
Unidos captada pela análise de Tocqueville
judicialização da política exige que os juízes tenham as da democracia na América jacksoniana e o
atitudes pessoais e as preferências políticas ou valores cotidiano de muitos sistemas políticos da
apropriadas, especialmente em relação aos valores atualidade.
de outros tomadores de decisão. De outro modo, em
condições favoráveis, a judicialização só se desenvolve
“Scarcely any political question
porque os juízes decidem que devem (1) participar na arises in the United States that is
elaboração de políticas que poderiam ser deixadas not resolved, sooner or later, into a
ao critério sábio ou tolo de outras instituições, e, pelo judicial question. Hence all parties
menos de vez em quando, (2) substituir as soluções
políticas de outras instituições por soluções políticas are obliged to borrow, in their daily
próprias” (Tradução nossa). controversies, the ideas, and even
7
“De juízes ativistas, por definição, pode-se the language, peculiar to judicial
esperar que aproveitem todas as oportunidades de proceedings. (…) The language of the
utilizar suas decisões para disseminar os valores que
lhes são caros. Mas quando esses valores são consis- law thus becomes, in some measure,
tentes com os valores dominantes nas instituições a vulgar tongue; the spirit of the law,
majoritárias, haverá muito menos incentivos para which is produced in the schools and
que juízes ativistas tentem judicializar um processo
courts of justice, gradually penetrates
político que já esteja produzindo aqueles resultados
políticos, mesmo que as condições sejam favoráveis beyond their walls into the bosom
para fazê-lo” (Tradução nossa). of society, where it descends to the

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lowest classes, so that at last the influenciará de maneira decisiva todo o
whole people contract the habits and constitucionalismo moderno. De fato,
the tastes of the judicial magistrate”8 “... o princípio da separação de po-
(TOCQUEVILLE, 1997). deres adquiriu um status de forma que
virou substância no curso do processo
2. O esquema da tripartição dos poderes de construção e de aprimoramento
na Constituição de 1988 do Estado de Direito, a ponto de
servir de pedra de toque para se
A moderna doutrina da separação de dizer da legitimidade dos regimes
poderes do Estado, que encontra em Mon- políticos, como se infere do célebre
tesquieu a formulação que se converterá artigo XVI da Declaração dos Direitos
em dogma constitucional9 a partir do século do Homem e do Cidadão, de 1789,
XIX, remonta ao processo de afirmação do onde se declara que não tem consti-
credo político liberal e sua preocupação tuição aquela sociedade em que não
central com a contenção dos poderes do Es- estejam assegurados os direitos dos
tado. Com efeito, diante dos riscos inerentes indivíduos, nem separados os pode-
à concentração dos poderes do Estado, a res estatais” (MENDES; COELHO;
técnica da separação de poderes emerge BRANCO, 2008, p. 155).
como mecanismo institucional central O princípio da separação de poderes
para a garantia dos direitos individuais10 e estatais é um dos fundamentos de uma
pré-condição para o exercício de controles certa noção de Estado de Direito recepcio-
sobre o Estado. nada pelo texto da Constituição de 1988
Tem-se aí uma doutrina que, uma vez no Brasil. Assim como todas as constitui-
transformada em princípio constitucional, ções republicanas brasileiras anteriores, a
Constituição de 1988 incorporou em seu
8
“Dificilmente surge nos Estados Unidos qualquer
questão política que não seja transformada, mais
arcabouço o princípio da separação de
cedo ou mais tarde, em uma questão judicial. Daí poderes estatais, desta feita como cláusula
todos os partidos são obrigados a assimilar, em suas pétrea. “São poderes da União, indepen-
controvérsias diárias, as ideias, e mesmo a linguagem dentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
peculiar aos processos judiciais. (...) A linguagem da
lei torna-se assim, em alguma medida, uma língua
o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 2009a,
vulgar; o espírito da lei, que é produzido nas escolas art. 2o). “Não será objeto de deliberação a
e tribunais de justiça, gradualmente penetra, além de proposta de emenda tendente a abolir: [...]
suas paredes, no seio da sociedade, descendo às classes III – a separação dos Poderes” [...] (BRASIL,
mais baixas, de forma que finalmente o povo como
um todo assimile os hábitos e os gostos do magistrado
2009a, art. 60, § 4o, III).
judicial” (Tradução nossa). Deve-se notar, entretanto, que a evolu-
9
Segundo Madison (1973, p.130), “o oráculo ção da doutrina da separação de poderes
sempre consultado e sempre citado nesta matéria é do Estado terminou por produzir um re-
Montesquieu. Se ele não é autor do inestimável pre-
ceito de que falamos, pelo menos foi ele quem melhor
sultado significativamente diverso daquele
o desenvolveu e quem o recomendou de uma maneira proposto por Montesquieu. Diante da ne-
mais efetiva à atenção do gênero humano”. cessidade da criação e manutenção de um
10
Em meio às controvérsias suscitadas pela certo equilíbrio entre os três poderes, em
utilização das expressões separação/divisão de po-
deres, separação/divisão de funções, são sugestivas
vez de um equilíbrio natural decorrente de
as observações de Dallari (2003, p. 216) que podem uma rígida e excludente separação de pode-
ser interpretadas no sentido de que o uso daqueles res, a resultante foi uma complexa interação
termos ora decorre da preocupação com a limitação entre os órgãos integrantes de cada um dos
dos poderes e consequente proteção dos direitos
individuais, ora da preocupação com a separação/
três poderes na qual cada um dos Poderes
divisão de funções visando garantir maiores níveis é chamado a desempenhar funções típicas
de eficácia e eficiência estatais. e atípicas, ocorrendo, portanto, uma inter-

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seção entre os três poderes, em vez de uma vontade à dos seus constituintes.
completa separação de funções excludentes Muito mais razoável é a suposição
entre os diferentes ramos do Estado. de que a Constituição quis colocar os
De fato, com o surgimento e posterior tribunais judiciários entre o povo e a
constitucionalização da doutrina dos freios legislatura, principalmente para con-
e contrapesos11, introduzem-se, nos moder- ter esta última nos limites das suas
nos ordenamentos jurídicos, mecanismos atribuições. A Constituição é e deve
institucionais que configuram o que se ser considerada pelos juízes como a
convenciou chamar de transferência cons- lei fundamental; e como a interpre-
titucional de competências12. A propósito, é tação das leis é a função especial dos
nítida a linha de continuidade entre certas tribunais judiciários, a eles pertence
proposições relativas ao papel do Poder determinar o sentido da Constituição,
Judiciário n’O Federalista e o teor da sen- assim como de todos os outros atos
tença da Suprema Corte norte-americana do corpo legislativo. Se entre estas
redigida pelo juiz Marshall no leading case leis se encontrarem algumas con-
Marbury vs Madison que, em 1803, foi um traditórias, deve-se preferir aquela
marco decisivo na inflexão da doutrina da cuja observância é um dever mais
separação de poderes. sagrado; que é o mesmo que dizer
Assim, sob o ordenamento de uma que a Constituição deve ser preferida
Constituição limitada13, pondera Hamilton a um simples estatuto; ou a intenção
(1973, p. 169): do povo à dos seus agentes”.
“Se me disserem que o corpo legis- Por sua vez, os juízes da Suprema Corte
lativo é constitucionalmente juiz estabelecem que:
dos seus poderes e que a maneira “The powers of the legislature are
por que ele os interpretar fica tendo defined and limited; and that those
força de lei para os outros funcioná- limits may not be mistaken, or for-
rios públicos, respondo que não é gotten, the Constitution is written.
essa a presunção natural, quando a To what purpose are powers limited,
Constituição expressamente o não and to what purpose is that limitation
determina; porque não é possível committed to writing, if these limits
que a Constituição tenha querido may, at any time, be passed by those
dar aos representantes do povo o intended to be restrained? […] It is a
direito de substituir a sua própria proposition too plain to be contested,
that the Constitution controls any
11
Note-se que a formulação clássica da doutrina
da separação dos Poderes não comporta a institucio-
legislative act repugnant to it; or, that
nalização dos freios e contrapesos característicos dos the legislature may alter the Consti-
ordenamentos jurídicos contemporâneos. Enquanto tution by an ordinary act.
na primeira o equilíbrio entre os Poderes é uma re- Between these alternatives there is
sultante natural da separação das várias funções do
Estado entre seus três ramos (Executivo, Legislativo no middle ground. The Constitution
e Judiciário), a teoria dos freios e contrapesos supõe is either a superior paramount law,
interferências recíprocas que relativizam a noção de unchangeable by ordinary means,
independência entre os três Poderes. or it is on a level with ordinary le-
12
Por transferência constitucional de competência
entendem-se aqueles procedimentos que, amparados gislative acts, and, like other acts, is
pelo texto constitucional, consistem na atribuição das alterable when the legislature shall
funções típicas de cada um dos Poderes aos outros please to alter it.
Poderes, que as exercem atipicamente.
If the former part of the alternative
13
Por Constituição limitada, Madison (1973, p.
168) entende uma Constituição que limita a autoridade be true, then a legislative act contrary
legislativa ordinária. to the Constitution is not law: if the

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latter part be true, then written cons- 3. Funções do Poder Legislativo
titutions are absurd attempts on the federal no Brasil
part of the people to limit a power in
its own nature illimitable” (UNITED Em geral, do ponto de vista funcional,
STATES OF AMERICA, 1803)14. os parlamentos são instituições polivalentes
Portanto, com relação à problemática cujas funções extrapolam em muito o es-
das relações entre o Poder Judiciário, por quema clássico da separação entre os três
um lado, e os demais Poderes de Estado, poderes do Estado. Mesmo nos sistemas
por outro, o aspecto central a ressaltar é o políticos alicerçados na tripartição clás-
do princípio da supremacia da Constituição sica entre os ramos Executivo, Legislativo
que está na origem da noção de rigidez con- e Judiciário, os parlamentos estão longe
stitucional e que se constitui em condição de se confinarem à função estritamente
fundamental para o exercício, pelo Poder legislativa, embora esta seja a mais típica
Judiciário, de todo e qualquer controle de de suas funções, a ponto de fazer com que
constitucionalidade de atos emanados do os parlamentos sejam qualificados como
Executivo e do Legislativo. Poderes Legislativos (COTTA, 1992).
Introduzido um novo elemento na hi- No caso brasileiro, o estatuto consti-
erarquia das normas jurídicas, o princípio tucional do Poder Legislativo federal está
da supremacia da Constituição, e diante de contido no Título IV, Da Organização dos
uma antinomia que oponha a Constituição Poderes, Cap. I, Do Poder Legislativo, arti-
a uma outra norma qualquer, a magistra- gos 44 a 75 da Constituição.
tura deve aplicar o critério hierárquico re- Quanto à sua função legislativa (típica),
solvendo o conflito em favor da prevalência relativa à edição de atos normativos primári-
da norma constitucional hierarquicamente os que instituem direitos e criam obrigações,
superior15. o art. 44 estabelece: “O Poder Legislativo é
exercido pelo Congresso Nacional, que se
14
“Os poderes da legislatura são definidos e limi- compõe da Câmara dos Deputados e do
tados; e, para que esses limites não sejam mal compre- Senado Federal” (BRASIL, 2009a), sendo
endidos ou esquecidos, a Constituição foi escrita. Com
que propósito seriam os poderes limitados, e com que
que as iniciativas que informam o processo
propósito essa limitação teria sido posta por escrito, se legislativo16 (emendas à Constituição, leis
esses limites pudessem ser ultrapassados, a qualquer complementares, leis ordinárias, leis delega-
momento, por aqueles que pretendiam inibir? (...) É uma das, medidas provisórias, decretos legislati-
proposição muito evidente para ser contestada, a de que
ou a Constituição restringe todo ato legislativo que a
vos, e resoluções) são elencadas no art. 59.
contrarie, ou a legislatura pode alterar a Constituição A função de controle e/ou de fiscal-
por meio de um ato ordinário. Entre essas alternativas, ização (típica) encontra amparo em vários
não há meio termo. Ou a Constituição é uma lei supe- dispositivos constitucionais. O art. 49, por
rior, suprema, imutável por meios ordinários, ou se
encontra no mesmo nível dos atos legislativos ordiná- exemplo, confere ao Congresso Nacional
rios, e, como os outros atos, pode ser alterada quando a uma competência genérica para fiscalizar
legislatura assim o desejar. Se a primeira parte da alter-
nativa é verdadeira, então um ato legislativo contrário de segundo grau, entre os critérios de superação das
à Constituição não é lei; se a última parte é verdadeira, antinomias, o critério hierárquico prevalece sobre o
então constituições escritas são tentativas absurdas por cronológico; o da especialidade sobre o cronológico;
parte do povo para limitar um poder ilimitável em sua e o hierárquico sobre o da especialidade.
própria natureza” (Tradução nossa). 16
O texto da Constituição de 1988 não faz distin-
15
Tradicionalmente, os conflitos entre normas são ção entre procedimento legislativo e processo legislativo.
resolvidos pela aplicação de três critérios: cronológico Assim, entende-se aqui por processo legislativo o iter
(prevalência da norma antinômica posterior em detri- legis, que certos autores preferem qualificar como pro-
mento da anterior); hierárquico (prevalência da norma cedimento legislativo: “(...) uma seqüência juridicamente
antinômica superior em detrimento da inferior); e preordenada de atividades de vários sujeitos na busca
de especialidade (prevalência da norma antinômica de um determinado resultado: a formação ou a rejeição
especial em detrimento da geral). No caso de conflitos da lei” (OLIVETTI, 1992, p. 996).

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e controlar o Poder Executivo, incluída a no Brasil. Com relação à Constituição bra-
administração indireta. O artigo 58, § 3o, é sileira, tais órgãos do Poder Legislativo são
a fonte de legitimidade constitucional para objeto do § 3o do seu artigo 58:
a realização de investigações pelas CPIs. “Art. 58. O Congresso Nacional e suas
Os artigos 70 a 74 tratam da prerrogativa Casas terão comissões permanentes e
do Poder Legislativo de exercer a fiscali- temporárias, constituídas na forma e
zação contábil, financeira, orçamentária e com as atribuições previstas no res-
patrimonial da União e das entidades da pectivo regimento ou no ato de que
administração direta e indireta. O Poder resultar sua criação.
Legislativo dispõe de mecanismos ins- ...
titucionais distintos por meio dos quais § 3o As comissões parlamentares de
exerce suas prerrogativas de controle e/ inquérito, que terão poderes de in-
ou de fiscalização: opera tanto por meio vestigação próprios das autoridades
de comissões parlamentares (temporárias judiciais, além de outros previstos
e permanentes)17 quanto por meio do Tri- nos regimentos das respectivas Ca-
bunal de Contas da União18. sas, serão criadas pela Câmara dos
São funções administrativas (atípicas) Deputados e pelo Senado Federal,
do Poder Legislativo federal a elaboração em conjunto ou separadamente, me-
de seus regimentos, a provisão de cargos diante requerimento de um terço de
da sua estrutura, medidas relativas à sua seus membros, para a apuração de
organização administrativa, etc (BRASIL, fato determinado e por prazo certo,
2009a, arts. 51 e 52). A função julgadora sendo suas conclusões, se for o caso,
(atípica) relaciona-se com a prerrogativa de encaminhadas ao Ministério Público,
proceder ao julgamento de diversos agentes para que promova a responsabilida-
públicos com base em dispositivos constitu- de civil ou criminal dos infratores”
cionais (arts. 52, I e II, e 55, §§ 2o e 3o). (BRASIL, 2009a).
As comissões parlamentares de inquéri-
to são ainda disciplinadas pelos regimentos
4. Estatuto das Comissões
da Câmara dos Deputados, câmara baixa
Parlamentares de Inquérito no Brasil com representação proporcional do elei-
No âmbito federal, as comissões par- torado; e do Senado Federal, câmara alta/
lamentares de inquérito são disciplinadas territorial com representação dos Estados
tanto pelo texto constitucional quanto pelos subnacionais por meio de eleições majori-
regimentos das casas legislativas federais tárias. São também objeto do Regimento
Comum do Congresso Nacional, que reúne
17
Para uma análise calcada na preocupação com aquelas duas casas legislativas.
a efetividade das comissões parlamentares de in- Em seu art. 35, o Regimento da Câmara
quérito como mecanismos de controle sobre o Poder
Executivo, ver Figueiredo (2001) e Calcagnotto (2005).
dos Deputados define o requisito constitu-
Para uma análise comparativa do funcionamento cional do fato determinado para a criação
das comissões parlamentares das câmaras baixas de CPIs; da recepção do requerimento de
na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, ver Rocha e criação de CPIs pelo presidente da Câ-
Barbosa (2008).
18
As competências do Tribunal de Contas da
mara e de possível recurso à sua decisão
União estão elencadas no art. 71 da Constituição da ao Plenário da Câmara; do período de
República. No exercício do controle externo, o Con- funcionamento das CPIs; da limitação de
gresso Nacional disporá do auxílio desse Tribunal no máximo cinco CPIs funcionando conco-
cujos ministros “(...) terão as mesmas garantias, prerro-
gativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos
mitantemente; da composição numérica e
Ministros do Superior Tribunal de Justiça” (BRASIL, da provisão dos meios necessários ao bom
2009a, art. 73, § 3o). funcionamento das CPIs.

14 Revista de Informação Legislativa


Em seu art. 36, o Regimento da Câmara igual à metade do núme­ro dos titulares
dos Deputados trata da requisição de fun- mais um.
cionários para a realização de trabalhos nas Nos termos do art. 146, obsta-se a cria-
CPIs; da realização de diligências; da oitiva ção de CPI sobre maté­rias pertinentes à
de indiciados e inquisição de testemunhas; Câmara dos Deputados, às atribuições do
da requisição de informações e documen- Poder Judiciário, e aos Estados.
tos de órgãos e entidades da administra- O art. 148 explicita os poderes das CPIs:
ção pública e de serviços de quaisquer poderes de investigação próprios das au-
autoridades; da requisição de audiência toridades judiciais, fa­cultada a realização
de deputados e ministros de Estado; da de diligências; a convocação de Ministros
tomada de depoimentos de autoridades de Estado; a tomada de depoimento de
públicas; da investidura de seus membros qualquer autoridade; a inquirição de tes-
ou funcionários requisitados na realização temunhas, sob compromisso; a oitiva de
de sindicâncias ou diligências; da realização indiciados; a requisição de informações ou
de investigações e audiências públicas em documentos a outros órgãos públi­cos; e a
todo o território nacional; dos prazos para requisição ao Tribunal de Contas da União
atendimento das providências e realização da realização de inspeções e auditorias.
das diligências definidas por CPI; da prer- Aplica-se o disposto no Código de Pro-
rogativa de, em sendo diversos os fatos cesso Penal relativamente à intimação de
inter-relacionados e objetos do inquérito, indiciados e testemunhas, e na inquirição
pronunciar-se separadamente sobre cada de testemunhas e autoridades.
um, mesmo antes de finda a investigação O art. 150 determina, ao término dos
dos demais; e da adoção das normas do trabalhos da CPI, o envio de seu relatório
Código de Processo Penal na condução dos e conclusões à Mesa Diretora do Senado
trabalhos das CPIs. Federal para conhecimento do Plenário.
No art. 37, há disposições relativas à Segundo o art. 151, a CPI encaminhará
apresentação, publicação e encaminha- suas conclu­sões, se for o caso, ao Ministério
mento de relatório circunstanciado ao final Público, para que promova a responsabili­
dos trabalhos da CPI à Mesa da Câmara dade civil ou criminal de possíveis infra-
dos Deputados; ao Ministério Público ou tores.
à Advocacia-Geral da União; ao Poder O art. 153 estabelece que, nos diversos
Executivo; à Comissão parlamentar perma- atos processuais, aplicar-se-ão, subsidia-
nente afim à matéria investigada pela CPI; riamente, as dispo­sições do Código de
à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Processo Penal, sendo que, nos termos do
Públicos e Fiscalização; e ao Tribunal de art. 152, o prazo de funcionamento de CPI
Contas da União. poderá ser prorrogado desde que não seja
O Regimento Interno do Senado Fede- ultrapassado o período da legislatura em
ral, em seu art. 145, disciplina o processo que for criada (art. 76).
de criação de CPI, determinando que o O Regimento Comum do Congresso Na-
requerimento de criação desse tipo de cional (art. 21) prescreve que as Comissões
comissão contenha o fato determinado a Parlamentares Mistas de Inquérito serão
ser apurado, o número de seus membros, criadas em sessão conjunta das duas casas
o prazo de duração e o limite das despesas legislativas, requerendo-se a assinatura de
a serem realizadas pela comissão. Nesse 1/3 (um terço) dos membros da Câmara
mesmo artigo, determina-se que cada dos Deputados mais 1/3 (um terço) dos
senador só poderá integrar duas CPIs, membros do Senado Federal. Tais comis-
uma como titular, outra como suplente. O sões terão a participação de um número
número de suplentes é fixado em número igual de deputados e senadores.

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 15


5. O Supremo Tribunal Federal e o controle “O CONTROLE JURISDICIONAL
judicial do funcionamento e dos atos das DE ABUSOS PRATICADOS POR
Comissões Parlamentares de Inquérito COMISSÃO PARLAMENTAR DE
INQUÉRITO NÃO OFENDE O
Desde a promulgação da Constituição PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE
de 1988, o Supremo Tribunal Federal vem PODERES.
proferindo decisões que permitem diag- – a essência do postulado da divisão
nosticar um avanço do Poder Judiciário no funcional do poder, além de derivar
sentido do estreitamento dos mecanismos da necessidade de conter os excessos
de controle judicial sobre as CPIs19. dos órgãos que compõem o aparelho
Deixando de lado importantes decisões
de Estado, representa o princípio con-
anteriores à vigência da Constituição de
servador das liberdades do cidadão e
198820, a competência jurisdicional origi-
constitui o meio mais adequado para
nária do STF para o exercício do controle
tornar efetivos e reais os direitos e
judicial sobre os atos praticados em CPIs
garantias proclamados pela Consti-
no Congresso Nacional foi reafirmada em
tuição.
Mandado de Segurança, cuja decisão con-
Esse princípio, que tem assento no
tém interpretação mais ampla do Art. 102,
art. 2o da Carta Política, não pode
I, da Constituição:
constituir e nem qualificar-se como
“... a Comissão Parlamentar de In-
quérito, enquanto projeção orgânica um inaceitável manto protetor de
do Poder Legislativo da União, nada comportamentos abusivos e arbitrá-
mais é senão a longa manus do pró- rios, por parte de qualquer agente
prio Congresso Nacional ou das Ca- do Poder Público ou de qualquer
sas que o compõem, sujeitando-se, em instituição estatal.
consequência, em tema de mandado O Poder Judiciário, quando intervém
de segurança ou de habeas corpus, ao para assegurar as franquias constitu-
controle jurisdicional originário do cionais e para garantir a integridade
Supremo Tribunal Federal [...]” (MS e a supremacia da Constituição, de-
23.452, Rel. Min. Celso de Mello. DJ sempenha, de maneira plenamente
no 91 de 12/05/2000). legítima, as atribuições que lhe confe-
Diante de uma representação em sede riu a própria Carta da República.
de mandado de segurança contra omissão O regular exercício da função juris-
atribuída à Mesa do Senado Federal, re- dicional, por isso mesmo, desde que
presentada por seu Presidente, frustrando pautado pelo respeito à Constituição,
a instauração de inquérito parlamentar, não transgride o princípio da separa-
assim manifestou-se o STF: ção de poderes.
Desse modo, não se revela lícito afir-
19
Tais decisões envolvem, em boa medida, um mar, na hipótese de desvios jurídico-
tratamento simétrico às CPIs do Legislativo Federal,
às CPIs no âmbito das Assembleias Legislativas esta- constitucionais nos quais incida uma
duais, às CPIs na Câmara Legislativa distrital e às CPIs Comissão Parlamentar de Inquérito,
nas Câmaras Municipais, ainda que as prerrogativas que o exercício da atividade de con-
das Câmaras Municipais tenham sofrido limitações trole constitucional possa traduzir
adicionais decorrentes da inexistência de um Poder
Judiciário municipal, o que implica restrição ao re- situação de ilegítima interferência na
querimento de quebra de sigilo por parte das CPIs esfera de outro Poder da República
municipais. Ver ACO 730, Rel. Min. Joaquim Barbosa, (RTJ, 173/806, Rel. Min. Celso de
julgamento em 22-9-04, DJ de 11/11/05.
Mello)”[...]
20
RHC 32.678, 05/08/1953. Rel. Min. Mário Gui-
marães. Ver ainda MS 1.959, 23/01/1953. Rel. Min. “A separação de poderes – conside-
Luiz Gallotti. radas as circunstâncias históricas que

16 Revista de Informação Legislativa


justificaram a sua concepção no plano apurar fato determinado (BRASIL, 2009a,
da teoria constitucional – não pode art. 58, § 3o). Todavia, não está impedida de
ser jamais invocada como princípio investigar fatos que se ligam, intimamente,
destinado a frustrar a resistência ju- com o fato principal” (HC 71.231, Rel. Min.
rídica a qualquer ensaio de opressão Carlos Velloso, julgamento em 5-5-94, DJ
estatal ou a inviabilizar a oposição a de 31/10/1996).
qualquer tentativa de comprometer, Quanto à duração dos trabalhos das
sem justa causa, o exercício do direito CPIs, em face da indefinição do texto do
de investigar, em sede de inquérito art. 58, § 3o, da Constituição da República,
parlamentar, abusos que possam definiu o STF que o término da respectiva
ter sido cometidos pelos agentes do sessão legislativa constitui-se no limite
Estado” (MS 24.831, Rel. Min. Celso máximo para a prorrogação das atividades
de Mello, julgamento em 22-6-05, DJ das CPIs21. E isso não obstante o Regimento
4-8-06). Interno da Câmara dos Deputados fixar o
O espectro das ações das CPIs está delimi- prazo máximo de duração dos trabalhos
tado pelas competências constitucionais do das CPIs em cento e vinte dias, prorrogá-
Poder Legislativo. Assim, veis por até sessenta dias, mediante delibe-
“podem ser objeto de investigação ração do Plenário.
todos os assuntos que estejam na “A duração do inquérito parlamen-
competência legislativa ou fiscaliza- tar — com o poder coercitivo sobre
tória do Congresso. particulares, inerente à sua atividade
Se os poderes da comissão parlamen- instrutória e a exposição da honra e
tar de inquérito são dimensionados da imagem das pessoas a desconfian-
pelos poderes da entidade matriz, os ças e conjecturas injuriosas — é um
poderes desta delimitam a competên- dos pontos de tensão dialética entre
cia da comissão, ela não terá poderes a CPI e os direitos individuais, cuja
maiores do que os de sua matriz. solução, pela limitação temporal do
De outro lado, o poder da comissão funcionamento do órgão, antes se
parlamentar de inquérito é coexten- deve entender matéria apropriada
sivo ao da Câmara dos Deputados, à lei do que aos regimentos: donde
do Senado Federal e do Congresso a recepção do art. 5 o, § 2o, da Lei
Nacional” (HC 71.039-5, Rel. Min. 1.579/52, que situa, no termo final
Paulo Brossard. 1994). de legislatura em que constituída,
Com relação ao objeto ou à amplitude o limite intransponível de duração,
do campo de atuação das CPIs, o enten- ao qual, com ou sem prorrogação do
dimento do art. 58, §3o, da Constituição prazo inicialmente fixado, se há de
da República pelo STF é no sentido de restringir a atividade de qualquer
que a exigência de fato determinado “não comissão parlamentar de inquérito.
impede a apuração de fatos conexos ao A disciplina da mesma matéria pelo
principal, ou ainda, de outros fatos, ini- regimento interno diz apenas com
cialmente desconhecidos, que surgirem as conveniências de administração
durante a investigação” (MORAES, 2008, parlamentar, das quais cada câma-
p. 419). “Tudo o que disser respeito, direta ra é o juiz exclusivo, e da qual, por
ou indiretamente, ao fato determinado isso — desde que respeitado o limite
que ensejou a Comissão Parlamentar de 21
HC 71.261, DJ de 24/06/1994. Rel. Min. Sepúl-
Inquérito pode ser investigado” (MENDES, veda Pertence. No mesmo sentido, HC 71.193, DJ
COELHO; BRANCO, 2008, p. 860). “A de 23/03/2001. Rel. Min. Sepúlveda Pertence; e HC
comissão parlamentar de inquérito deve 71.231, DJ de 31/10/1996. Rel. Min. Carlos Velloso.

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 17


máximo fixado em lei, o fim da le- subseqüentes e necessários à efetiva
gislatura em curso —, não decorrem instalação da CPI, não lhe cabendo
direitos para terceiros, nem a legiti- qualquer apreciação de mérito sobre
mação para questionar em juízo sobre o objeto da investigação parlamentar
a interpretação que lhe dê a Casa do (...)” (MS 24.831, (MS 24.831, Rel. Min.
Congresso Nacional” (HC 71.261, Rel. Celso de Mello, julgamento em 22-06-
Min. Sepúlveda Pertence, julgamento 05, DJ 04-08-06).
em 11/05/94, DJ de 24/06/1994). O legislador constituinte atribuiu às
Com base na previsão constitucional de CPIs no âmbito do Congresso Nacional
requerimento de um terço dos membros da “[...] poderes de investigação próprios das
Câmara dos Deputados e/ou do Senado autoridades judiciais [...]” (BRASIL, 2009a,
Federal para a criação de CPIs (BRASIL, art. 58, § 3o). Contudo, a jurisprudência do
2009a, art. 58, § 3o), o Supremo Tribunal STF orienta-se no sentido da negação, às
Federal entende tal instituto como um di- CPIs, dos poderes gerais de cautela titula-
reito das minorias parlamentares. Satisfeito rizados pela magistratura.
aquele número mínimo de requerentes, há Entre os poderes de instrução assegu-
que se proceder à criação e instalação da rados às CPIs, está o de intimação de tes-
respectiva CPI, direito subjetivo público temunhas e indiciados; podendo recorrer à
das minorias parlamentares22. condução coercitiva, caso necessário. Além
“O Parlamento recebeu dos cidadãos de apresentar-se, é dever do convocado não
não só o poder de representação “fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a
política e a competência para legis- verdade como testemunha, perito, tradutor
lar, mas, também, o mandato para ou intérprete, perante a Comissão Parla-
fiscalizar os órgãos e agentes do mentar de Inquérito” (BRASIL, 1952).
Estado, respeitados, nesse processo Admite-se, contudo, na jurisprudência
de fiscalização, os limites materiais do STF, o privilégio do interrogando de
e as exigências formais estabelecidas permanecer em silêncio para não se autoin-
pela Constituição Federal. O direito criminar. Ademais, o direito de permanecer
de investigar – que a Constituição da em silêncio é reconhecido pelo STF no caso
República atribuiu ao Congresso Na- de depoentes que estejam ao alcance do
cional e às Casas que o compõem (art. dever de sigilo profissional23.
58, § 3o) – tem, no inquérito parlamen- Ainda com relação aos poderes instru-
tar, o instrumento mais expressivo de tórios, as CPIs dispõem, entre outras, da
concretização desse relevantíssimo prerrogativa de quebra dos sigilos bancário,
encargo constitucional, que traduz fiscal e de dados de seus investigados; e
atribuição inerente à própria essência da determinação da realização de buscas e
da instituição parlamentar. A instau-
ração do inquérito parlamentar, para 23
Tal jurisprudência encontra amparo no art. 5o,
LXIII, da Constituição Federal: “o preso será informa-
viabilizar-se no âmbito das Casas le-
do de seus direitos, entre os quais o de permanecer ca-
gislativas, está vinculada, unicamen- lado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de
te, à satisfação de três (03) exigências advogado”; e na Convenção Americana Sobre Direitos
definidas, de modo taxativo, no texto Humanos, também conhecida como Pacto de San José
da Carta Política: (...). Atendidas tais da Costa Rica, de 1969, ratificada pelo Brasil em 1992:
Artigo 8o – Garantias judiciais (...) 2. Toda pessoa acu-
exigências (BRASIL, 2009a, art. 58, § sada de um delito tem direito a que se presuma sua
3o), cumpre, ao Presidente da Casa inocência, enquanto não for legalmente comprovada
legislativa, adotar os procedimentos sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito,
em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
22
MS 26.441, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento (...) g) direito de não ser obrigada a depor contra si
em 25/04/2007. mesma, nem a confessar-se culpada; (...).

18 Revista de Informação Legislativa


apreensões. Tais poderes, contudo, encon- Outra limitação importante à ação dos
tram limite em cláusula de reserva juris- membros das CPIs, também esta objeto de
dicional contida no texto constitucional24. decisão do STF, é aquela que impede a proi-
Assim, diferentemente do que ocorre com bição ou restrição à assistência jurídica aos
outras informações sigilosas, a intercep- convocados a comparecer, seja como teste-
tação e consequente quebra do sigilo de munhas, seja como investigados, perante
comunicação telefônica estão submetidas CPI. Tendo o texto constitucional fixado
à reserva de jurisdição, dependendo de em seu Título IV (Da Organização dos Po-
ordem judicial. O mesmo ocorre com a deres), Capítulo IV (Das Funções Essenciais
busca e apreensão em domicílio de pessoa à Justiça), o caráter essencial do exercício da
investigada por CPI (MENDES; COELHO; advocacia para uma adequada prestação
BRANCO, 2008). jurisdicional estatal27, entende o STF:
As CPIs estão impedidas também de “A Comissão Parlamentar de Inqué-
decretar prisão, salvo nos casos de flagrân- rito, como qualquer outro órgão do
cia, decorrente de reserva jurisdicional, em Estado, não pode, sob pena de grave
situações não-excepcionais, de decretar a transgressão à Constituição e às leis
privação da liberdade individual25. da República, impedir, dificultar ou
Destaque-se também o impedimento de frustrar o exercício, pelo Advogado,
adoção de medidas cautelares, como a hipo- das prerrogativas de ordem pro-
teca judiciária, a indisponibilidade de bens, fissional que lhe foram outorgadas
o arresto, o sequestro, a proibição de ausen- pela Lei no 8.906/94. O desrespeito
tar-se do país, etc.. Segundo a interpretação às prerrogativas – que asseguram,
predominante no STF acerca do alcance dos ao Advogado, o exercício livre e
poderes de autoridade judicial conferidos independente de sua atividade pro-
às CPIs pela Constituição, tais medidas fissional – constitui inaceitável ofensa
não são consideradas como instrutórias, ao estatuto jurídico da Advocacia,
âmbito ao qual se restringem seus poderes, pois representa, na perspectiva de
por analogia com os poderes instrutórios nosso sistema normativo, um ato de
de que dispõem os magistrados durante a inadmissível afronta ao próprio texto
instrução processual penal, e sim como me- constitucional e ao regime das liber-
didas de provimento cautelar de eventual dades públicas nele consagrado.
sentença futura, competência reservada aos [...] assiste ao Advogado a prerro-
membros do Poder Judiciário26. gativa – que lhe é dada por força
e autoridade da lei – de velar pela
24
“Art. 5o XI – a casa é asilo inviolável do indiví- intangibilidade dos direitos daquele
duo, ninguém nela podendo penetrar sem consenti-
mento do morador, salvo em caso de flagrante delito que o constituiu como patrono de sua
ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, defesa técnica, competindo-lhe, por
por determinação judicial; XII – é inviolável o sigilo isso mesmo, para o fiel desempenho
da correspondência e das comunicações telegráficas, do munus de que se acha incumbido
de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
esse profissional do Direito, o exer-
forma que a lei estabelecer para fins de investigação cício dos meios legais vocacionados
criminal ou instrução processual penal”. à plena realização de seu legítimo
25
“ninguém será preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade julgamento em 18-8-1999, DJ de 09-11-2007; MS 23.471,
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 10-11-1999,
militar ou crime propriamente militar, definidos em DJ de 10-08-2000.
lei” (BRASIL, 2009a, art 5o, LXI). 27
“O advogado é indispensável à administração
26
MS 23.480, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifes-
julgamento 04-5-2000, DJ de 15-9-2000. No mesmo tações no exercício da profissão, nos limites da lei”
sentido: MS 23.446, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, (BRASIL, 2009a, art. 133).

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 19


mandato profissional. O Advogado za, lhe deve necessariamente ceder. A
– ao cumprir o dever de prestar assis- opinião de que somente a legislação
tência técnica àquele que o constituiu, seria política – mas não a ‘verdadeira’
dispensando-lhe orientação jurídica jurisdição – é tão errônea quanto aque-
perante qualquer órgão do Estado – la segundo a qual apenas a legislação
converte a sua atividade profissional, seria criação produtiva do direito, e
quando exercida com independência a jurisdição, porém, mera aplicação
e sem indevidas restrições, em prática reprodutiva. Trata-se, em essência, de
inestimável de liberdade. Qualquer duas variantes de um mesmo erro. Na
que seja o espaço institucional de medida em que o legislador autoriza
sua atuação, ao Advogado incumbe o juiz a avaliar, dentro de certos limi-
neutralizar os abusos, fazer cessar o tes, interesses contrastantes entre si, e
arbítrio, exigir respeito ao ordena- decidir conflitos em favor de um ou
mento jurídico e velar pela integrida- outro, está lhe conferindo um poder
de das garantias jurídicas – legais ou de criação do direito, e portanto, um
constitucionais – outorgadas àquele poder que dá à função judiciária o
que lhe confiou a proteção de sua mesmo caráter ‘político’ que possui
liberdade e de seus direitos, dentre – ainda que em maior medida – a
os quais avultam, por sua inques- legislação. Entre o caráter político da
tionável importância, a prerrogativa legislação e o da jurisdição há apenas
contra a auto-incriminação e o direito uma diferença quantitativa, não qua-
de não ser tratado, pelas autoridades litativa” (KELSEN, 2003, p. 251).
públicas, como se culpado fosse, Tendo como pressuposto a doutrina
observando-se, desse modo, diretriz da separação de Poderes, as transferências
consagrada na jurisprudência do Su- constitucionais de competências e os meca-
premo Tribunal Federal” (MS 23576 / nismos de freios e contrapesos inseridos em
DF – Distrito Federal. Rel. Min. Celso nosso ordenamento jurídico, o controle judi-
de Mello, Julgamento em 02/10/2000, cial do funcionamento e dos atos das CPIs no
DJ de 06/10/00 – P – 00103). Brasil sob a vigência da Constituição de 1988
tem sido exercitado a partir de uma nova
6. Considerações finais: hermenêutica constitucional pós-positivista
hermenêutica constitucional, assentada no reconhecimento da normativi-
dade dos princípios constitucionais.
direitos e garantias fundamentais
“Procurando apontar os traços mais
e procedimentalização do direito significativos desse novo constitucio-
Na medida em que se entende a Cons- nalismo, concordam os estudiosos em
tituição como um estatuto que consagra caracterizá-lo pelas notas indicadas
determinadas opções políticas tomadas a seguir, expressivas o bastante para
pelo Soberano, a tarefa de interpretar o que o consideremos substancialmen-
texto constitucional reveste-se inexoravel- te distinto de todas as experiências
mente de um caráter político. Portanto, o constitucionais precedentes:
Supremo Tribunal Federal desempenha um a) mais Constituição do que leis;
papel eminentemente político no exercício b) mais princípios do que regras;
da jurisdição constitucional. c) mais ponderação do que subsunção;
“O caráter político da jurisdição é tan- e
to mais forte quanto mais amplo for o d) mais concretização do que interpre-
poder discricionário que a legislação, tação” (MENDES; COELHO; BRANCO,
generalizante por sua própria nature- 2008, p. 126-127).

20 Revista de Informação Legislativa


Com efeito, a partir da recepção pelo tex- “No regime político que consagra
to constitucional de certos direitos e garan- o Estado democrático de direito, os
tias fundamentais28 associados ao princípio atos emanados de qualquer Comissão
da dignidade da pessoa humana29, todos os Parlamentar de Inquérito, quando
poderes públicos vinculam-se ao conteúdo praticados com desrespeito à Lei Fun-
daqueles direitos e garantias. Com relação damental, submetem-se ao controle
especificamente ao Poder Legislativo: jurisdicional (BRASIL, 2009a, art. 5o,
“Não há dúvida, portanto, de que os XXXV). As Comissões Parlamentares
atos normativos do Poder Legislativo de Inquérito não têm mais poderes
sujeitam-se aos direitos fundamen- do que aqueles que lhes são outor-
tais, mas também outros atos desse gados pela Constituição e pelas leis
Poder, com eficácia externa – atos de da República. É essencial reconhecer
comissões parlamentares de inqué- que os poderes das Comissões Parla-
rito, por exemplo –, não escapam à mentares de Inquérito – precisamente
sujeição aos direitos fundamentais. porque não são absolutos – sofrem as
Registre-se, a propósito, a jurispru- restrições impostas pela Constituição
dência com que o Supremo Tribunal da República e encontram limite nos
Federal, em sede de habeas corpus direitos fundamentais do cidadão,
ou de mandado de segurança, vem que só podem ser afetados nas hipóte-
delimitando as deliberações de CPIs, ses e na forma que a Carta Política es-
em favor de postulados dos direitos tabelecer” (MS 23.452, Rel. Min. Celso
fundamentais” (MENDES; COELHO; de Mello. DJ no 91 de 12/05/2000).
BRANCO, 2008, p. 246). Desde a promulgação da Constituição de
Reafirmado pela Constituição de 1988 1988, o papel do Poder Judiciário, como ár-
o princípio da jurisdição una e dada a con- bitro dos conflitos de interesses envolvendo
sagração da tutela que assegura proteção os direitos e garantias fundamentais consti-
judicial contra lesão ou ameaça a direito30, tucionais, vem sendo potencializado pelos
o Supremo Tribunal Federal tem sido vários fatores anteriormente mencionados.
acionado, especialmente em sede de habeas Longe de se conformar ao papel de bouche de
corpus31e de mandado de segurança, tendo la loi, o exercício da prerrogativa de controle
em vista o controle judicial das CPIs. de constitucionalidade pelo Poder Judiciário
tem sido um elemento novo na dinâmica
28
Diferentemente do que ocorre com os chama-
dos direitos humanos, por direitos fundamentais das relações assimétricas e desarmônicas
entendem-se aqueles direitos tidos como inerentes à entre os três Poderes no Brasil. Corrobora-
condição da dignidade da pessoa humana e que foram se assim uma situação que fez com que os
recepcionados pelo ordenamento jurídico de um Esta-
cientistas políticos propusessem que as ins-
do. Por direitos fundamentais entende-se, aqui, tanto
os direitos quanto as garantias fundamentais. Para tituições judiciárias fossem vistas como um
aqueles que procuram diferenciar essas duas categorias subsistema do sistema político global,
de normas, os direitos são disposições declaratórias, “... partilhando com este a caracte-
enquanto as garantias são assecuratórias (MORAES,
2008; MENDES; COELHO; BRANCO, 2008).
rística de processarem uma série de
29
O princípio da dignidade da pessoa humana, inputs externos constituídos por estí-
como princípio fundamental da República Federativa
do Brasil, encontra-se enunciado no Título I, art. 1o, da que afetem direitos individuais sob o amparo do texto
Constituição de 1988. constitucional e da evolução da doutrina do habeas
30
O chamado princípio da jurisdição una assumiu a corpus no âmbito do ordenamento jurídico do Estado
seguinte forma: “a lei não excluirá da apreciação do brasileiro, veja-se a célebre Oração de Rui Barbosa
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (BRASIL, perante o STF em 1892. Com relação ao contexto das
2009a, art. 5o, XXXV). decisões do STF em sede de habeas corpus por ocasião
31
A propósito do surgimento da problemática do da impetração dos HC. 300 (1892), 1063 e 1073 (1898),
recurso ao Poder Judiciário diante de decisões políticas ver Costa (2006).

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 21


mulos, pressões, exigências sociais e que alcança o reconhecimento e a salva-
políticas e de, através de mecanismos guarda da titularidade, pelos cidadãos, de
de conversão, produzirem outputs (as uma série de direitos individuais32.
decisões) portadoras elas próprias Assim, a judicialização da política no
de um impacto social e político nos Brasil envolve um processo de procedi-
restantes subsistemas. mentalização33 do direito que, ao permitir
[...] Uma tal concepção dos tribunais a participação dos cidadãos na produção
teve duas conseqüências muito im- do direito, contribui para que as decisões
portantes. Por um lado, colocou os judiciais assimilem um caráter deliberativo
juízes no centro do campo analítico. que lhes proporciona níveis mais elevados
Os seus comportamentos, as decisões de legitimidade procedimental. O que se
por eles proferidas e as motivações passa no Poder Judiciário é uma mudança
delas constantes passaram a ser uma institucional que produz uma maior aber-
variável dependente cuja aplicação tura daquele Poder à sociedade e contribui
se procurou nas correlações com para o aprofundamento da dimensão parti-
variáveis independentes, fossem cipativa da democracia brasileira.
elas a origem de classe, a formação Ora, no que diz respeito mais direta-
profissional, a idade ou sobretudo a mente ao Supremo Tribunal Federal, desde
ideologia política e social dos juízes. a promulgação da Constituição de 1988,
A segunda conseqüência consistiu uma das inovações participativas presentes
em desmentir por completo a idéia na democracia brasileira foi a abertura do
convencional da administração da processo de interpretação constitucional
justiça como uma função neutra pela via da ampliação da comunidade de
protagonizada por um juiz apostado intérpretes da Constituição por meio da le-
apenas em fazer justiça acima e eqüi- gitimação de vários atores para a proposição
distante dos interesses das partes” de ações de caráter constitucional no STF34.
(SANTOS, 1995, p.172-173).
32
Para uma síntese de diferentes argumentos
Ainda que o tema do papel do Poder
relativos à legitimação democrática da interpretação
Judiciário nas democracias contemporâneas constitucional sob a ótica de um cientista político, ver
seja algo eminentemente controverso entre Shane (2006).
os cientistas políticos (DREWRY, 1996), no
33
O tema da procedimentalização do direito é
parte integrante da preocupação mais ampla com a
caso específico do controle de constitucio- formulação de uma teoria procedimental da democra-
nalidade das CPIs, o teor das decisões pro- cia. Neste registro, a fonte da legitimidade democrática
feridas pelo STF, em vez de constituir um do direito é a sua produção a partir de condições que
elemento prejudicial ao bom funcionamen- atendam ao cânone democrático deliberativo. A pro-
pósito de uma abordagem do agir comunicativo com
to do sistema democrático por conta de suas especial ênfase ao direito nas sociedades democráticas,
supostas restrições ao poder do Soberano na ver Habermas (2003).
ordem política nacional, pode ser tomado 34
“Art. 103. Podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade e a ação declaratória de cons-
como indicador de que o Poder Judiciário titucionalidade: I – o Presidente da República; II – a
vem afirmando-se como uma nova arena Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos
para a defesa de direitos no âmbito da de- Deputados; IV – a Mesa de Assembléia Legislativa
mocracia brasileira. Nesse sentido, as linhas ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V – o
Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI – o
da interpretação constitucional trilhadas Procurador-Geral da República; VII – o Conselho
pelo STF na defesa dos direitos e garantias Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII
fundamentais encontrariam legitimação em – partido político com representação no Congresso
Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de
suas consequências em termos da proteção
classe de âmbito nacional. § 1o – O Procurador-Geral
das liberdades individuais, componente da República deverá ser previamente ouvido nas
fundamental de uma noção de democracia ações de inconstitucionalidade e em todos os proces-

22 Revista de Informação Legislativa


Essa mesma abertura do STF aos influ- funções de regulação” (VIANNA;
xos externos provenientes da sociedade BURGOS, 2002, p. 371).
manifestam-se por ocasião das diversas Portanto, diante de lesão ou ameaça de
decisões proferidas no âmbito daquele lesão de um direito que lhe é assegurado
tribunal tendo como objeto as CPIs. Tanto pelo texto constitucional, o cidadão que
o habeas corpus quanto o mandado de se- representa contra membro de CPI perante
gurança configuram-se como direitos de o Supremo Tribunal Federal participa de
proteção previstos pelo texto constitucional um processo de procedimentalização da
no Título Dos Direitos e Garantias Funda- aplicação do direito que, para além das ins-
mentais (art. 5o, LXVIII, LIX e LXX). Assim tituições representativas de cunho eleitoral,
como ocorre por ocasião da proposição de permite-lhe fazer-se representado em âmbi-
uma ação direta de inconstitucionalidade, to judicial em defesa de seus direitos.
o que os legitimados a proporem ações
de habeas corpus e mandado de segurança
perante o STF demandam daquela Corte é Siglas
uma declaração da inconstitucionalidade
de eventuais atos praticados por membros ACO – Ação Cível Originária
de CPIs. ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
Enfim, o significado de tal abertura do CR – Constituição da República
Supremo perante a sociedade e de suas CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
decisões relacionadas ao funcionamento DJ – Diário da Justiça
das CPIs remete à noção de soberania com- HC – Habeas Corpus
plexa e suas repercussões sobre o exercício MS – Mandado de Segurança
da cidadania nas sociedades democráticas RE – Recurso Extraordinário
contemporâneas.
RDA – Revista de Direito Administrativo
“... essa complexidade se faria pre-
RHC – Recurso Ordinário em Habeas Corpus
sente pelo fenômeno emergente da
RTJ – Revista Trimestral de Jurisprudência
pluralidade das formas expressivas
da soberania [...]. Paralelamente, STF – Supremo Tribunal Federal
verifica-se que a pluralização da
soberania tem coincidido com a am-
pliação dos níveis de representação, Referências
que passam a compreender, além dos
ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o Minis-
representantes do povo por desig- tério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista
nação eleitoral, os que falam, agem Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 39, p.
e decidem em seu nome, como a 83-102, fev. 1999.
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de medida para tornar efetiva norma constitucional, BARROSO, Luis Roberto. O novo direito constitucional e
será dada ciência ao Poder competente para a adoção a constitucionalização do direito. TV Justiça, Aula Magna.
das providências necessárias e, em se tratando de 21 fev. 2009. Disponível em: <http://www.tvjustica.
órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. § jus.br/videos/AULA_MAGNA_Luis_Roberto_
3o – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a Barroso_21_02_09.wmv>. Acesso em: 03 out. 2009.
inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato
normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legiti-
da União, que defenderá o ato ou texto impugnado” midade (algumas observações sobre o Brasil). Estudos
(BRASIL, 2009a, art. 103). Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, p.127-150, 2004.

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 23


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