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46º Encontro Anual da Anpocs

ST51: Memória e Sociedade: as lutas por memória e os desafios das novas


tecnologias digitais

GUINÉ-BISSAU ENTRE A POLÍTICA DE MEMÓRIA E DE ESQUECIMENTO:


uma análise do conflito político-militar de 1998-1999

Paulo Anós Té

Mestrando em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política


da Universidade Federal de Pelotas (PPGCPol/UFPel)
GUINÉ-BISSAU ENTRE A POLÍTICA DE MEMÓRIA E DE ESQUECIMENTO:
uma análise do conflito político-militar de 1998-1999

Paulo Anós Té1

Resumo: Após a proclamação da independência da Guiné-Bissau em 1973, o país foi


governado por um regime de partido único liderado pelo Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Nesse período assistiu à aplicação da
política de unanimidade, perseguições e assassinatos que nunca foram esclarecidos. Em
1980 teve lugar o primeiro golpe de Estado, expulsando Luís Cabral da presidência do
país. A partir de então, o PAIGC entrou numa fase marcada pela personalidade de Nino
Vieira. Os dezoito anos de predominância de Nino Vieira foram marcados por sucessivas
e crescentes crises políticas que despoletaram o conflito político-militar de 7 de junho de
1998-1999. Dito isto, a questão é: como é que o Estado bissau-guineense lidou com a
política de memória e esquecimento após o conflito político-militar de 1998-1999? A
Guiné-Bissau tem enfrentado dificuldades políticas e a justiça de transição para lidar com
os abusos, repressão policial, assassinatos, e violação dos direitos humanos. A inoperância
das instituições democráticas tornou impossível à sociedade e aos familiares das vítimas o
conhecimento da verdade e dos crimes cometidos durante e após o conflito. Desse modo
aponta-se que os fatos sobre os acontecimentos são silenciados porque o Estado adotou
uma política de esquecimento institucional como se nada houvesse acontecido.
Palavras-chave: Política de memória; Esquecimento; Dor; Conflito; Guiné-Bissau.

Introdução
A história dos países africanos em geral, e da Guiné-Bissau, em particular, foi
marcada pelo processo da invasão e da colonização europeia. O fato deixou marcas de
brutalidade e de des-subjetividade dos bissau-guineenses das suas cosmoperspectivas em
direção ao protótipo ocidentalocêntrico. Em 1446, os primeiros portugueses chegaram à

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Paulo Anós Té (N’Dermei), filho de Anós Té e Isabel Djú (N’Pona), nasceu em Bijimita, na Guiné-Bissau.
Foi seminarista no Seminário Menor Diocesano de Bissau (2013-2016), mas se retirou para ingressar nos
estudos acadêmicos. É bacharel em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira –UNILAB/Brasil; e licenciando em Sociologia pela mesma instituição. Foi
bolsista do programa PULSAR (2019-2020) e do Programa de Residência Pedagógica (PRP) (2020-2021)
na UNILAB. Atualmente, é bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) na
mesma instituição e do grupo de pesquisa Sistema político: partidos, eleições e relações entre os poderes, da
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL/Brasil) e mestrando em Ciência Política pela UFPEL/Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3658-2359. E-mail: pauloanoste0@gmail.com
região; região hoje denominada Guiné-Bissau. Ao se instalarem, a ocupação do território
pelas autoridades portuguesas só foi efetivada com a fundação da vila de Cacheu em 1588
e, em 1630, foi formada a capitania-Geral da Guiné-Portuguesa.
No contexto da conferência de Berlim, em 1884-1885, a Guiné-Bissau, com as suas
fronteiras delineadas, foi entregue às autoridades portuguesas. Por sua vez, na década de
1950, as autoridades portuguesas consideram-na como uma província ultra marítima2 sob
a jurisdição portuguesa. No entanto, após algumas tentativas da negociação pacíficas sem
efeitos, foi somente, em 1973, que os guerrilheiros do Partido Africano para Independência
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), através do cano da luta armada de 1963-1973,
proclamaram unilateralmente a independência do país, marcando uma nova fase do Estado
em construção, que teria a missão de criar as condições necessárias para estabilidade
política e da edificação de um Estado de Direito (GOMES, 2019).
Hoje, 49 anos após a proclamação da independência, o país enfrenta problemas
expressivos da inoperância de um Estado Democrático de Direito (EDD), na consolidação
da democracia, na construção da(s) política(s) de memória(s), na justiça de transição e ou
processo de reparação às vítimas da guerra de 7 de junho de 1998-1999, e outros
assassinatos ocorridos no país. Os primeiros indícios da desestruturação de Estado de
direito, tiveram o seu prelúdio nos anos subsequentes da independência, marcados pelas
prisões arbitrárias, assassinatos enigmáticos de algumas figuras políticas e da sociedade
civil na década de 1970.
Em consonância do primeiro golpe militar, em 1980, a constituição ora vigente,
através da primeira Assembleia Nacional Popular (ANP), foi posta de “lado”, sendo,
portanto, criada um Conselho da Revolução3 constituído na sua maioria pelos militares e
alguns civis para gerir o país. O golpe de Estado militar denominado Movimento

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A província ultramarina é uma divisão arbitrária feita pelo Estado colonial português atribuída às colónias
portuguesas entre as quais: Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, Angola, Macau, Estado da índia, Timor
Leste, São Tomé e Príncipe. Portugal na altura chegou a negar ser um império colonial, justificando que as
regiões fazem parte do Reino de Portugal e, posteriormente, da República Portuguesa. Em 1946, Portugal
designou o Estado da Índia como a primeira província ultramarina. O objetivo de Portugal era “vender” uma
imagem fantasmagórica, justificando no âmbito internacional como se não fosse uma país colonizador. As
outras colônias passaram a ter a designação a partir de 1951. Com essa política, o Estado colonial português,
o ditador e nacionalista português, António de Oliveira Salazar e Marcelo José das Neves Alves Caetano
consideravam-nas como parte integrante e inseparável de Portugal e não como colônias. Na base dessa
suposta política colonial, Portugal chegou a vangloriar como uma “Nação Multirracional e Pluricontinental”.
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O Conselho de Revolução, em 14 de novembro de 1980, era formado por: João Bernardo Vieira
(presidente), Vitor Saúde Maria (vice-presidente), Iafai Camará, Buota Nambatcha, João da Silva, Benghate
Na Beate, Saturnino da Costa e Samba Lamine Mané (outros membros), Joseph Turpin, Victor Freire
Monteiro, Mário Cabral e João Cruz Pinto (assessores do Conselho).
Reajustador4, liderado por João Bernardo Vieira (Nino), destituiu o primeiro Presidente
do país, Luís de Almeida Cabral, pondo fim a construção da unidade entre a Guiné-Bissau
e Cabo Verde, cujo projeto político foi idealizado por Amílcar Lopes Cabral. Na sequência,
Nino assumiu a presidência do país com viés autoritário e totalitário.
Diante da incapacidade de resolver os problemas de forma eficiente, o país
mergulhou-se numa cíclica crise política, econômica e social, fazendo-o ficar cada vez
mais vulnerável à pressão internacional e, sobretudo, das agências financeiras
internacionais como Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM). Das
pressões ao liberalismo político, os dirigentes bissau-guineenses, conforme Koudawo
(2001), foram vulneráveis aos condicionalismos das agências e acabaram por adotar uma
democracia marcada pela ausência de debates e discussões organizadas sobre os seus
diferentes aspectos: democráticos, sócio-políticos e econômicos (CARDOSO, C.,1996).
O país adotou formalmente o pluralismo político, em 1991, tendo realizado as
eleições gerais (legislativas e presidenciais), em 1994, tendo Nino eleito democraticamente
como presidente, embora não havendo nenhuma alternância da cultura política, ou seja, do
bonapartismo presidencial e das posturas autoritárias e totalitárias. Perante a alacridade de
uma transição política – do regime do partido único para o pluralismo político – e da
construção de um EDD, a sociedade Bissau-guineense derrapou-se (e depara-se ainda hoje)
com o marasmo resultante da guerra de 7 de junho de 1998-1999, da (des)estruturação
familiar, cíclicas instabilidades políticas e letargia social – marcada pela ausência de ânimo
diante de algumas circunstâncias nebulosas que ainda ofuscam o imaginário bissau-
guineense.
Geralmente, o país depara-se com problemas estruturais: problemas que,
mormente, impossibilitam a criação das políticas de memórias. Nesse sentido, ao final de
um regime ditatorial, de um conflito político-civil marcado pela violação dos direitos
humanos, emergem demandas que reivindicam a “preservação da memória, a reparação
das vítimas e a punição dos responsáveis pela violência” (GALLO; SOUZA; BUENO,
2021, p.13), porém, o trabalho da memória não só envolve reclamações de verdade e

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Há várias interpretações pela ala bissau-guineense e caboverdiana sobre as razões que levaram ao golpe. É
importante salientar neste trabalho que, o movimento não reajustou “nada”, inclusive, usou os mesmos modus
operandi para perseguir, assassinar e silenciar as vozes discordantes. O movimento tratava-se de uma política
de unanimidade aplicada à restrita classe dos dirigentes políticos do PAIGC como partido-estado. Sem
mecanismos eficientes, para resolução dos problemas e das demandas do povo, instaurou-se um clima de
medo, insegurança, tensões e desconfiança entre os atores políticos.
justiça, também pode incluir exigências de reconciliação, esquecimento, vingança e até
promover o autoritarismo. Os fatos evidenciam que as irrupções da memória comprovam
empiricamente que ignorar ou enterrar o passado conduz a crises recorrentes (BRITO;
SZNAJDER, 2014) que podem colocar em jogo a paz social.
Num país, como a Guiné-Bissau, marcada pela cultura de impunidade e de
inoperância do sistema judiciário, torna-se difícil levar ao banco dos réus os responsáveis
do conflito, os cúmplices e as milícias que orquestraram a guerra de 7 de junho. As
sucessivas violências políticas, institucionais e militares têm marcado profundamente a
memória individual, coletiva e histórica dos bissau-guineenses.
É neste contexto que a Justiça de transição se refere “ao Estado e suas instituições
atuando com vistas à promoção dos direitos humanos e ao fortalecimento de instituições e
práticas democráticas”, enquanto políticas de memórias “são políticas públicas através das
quais governos lidam com problemas relacionados à memória” (GALLO, 2020, p.168s).
A política de memória refere-se à dimensão pragmática de efetivação dos objetivos-
premissas da justiça de transição, representando, efetivamente, o que Estado realizará, na
nova dimensão política (e até social, história e econômica) para enfrentar/resolver os
crimes cometidos no pretérito recente ou retroativo. É nessa base que, se insere o direito à
memória como um instrumento fundamental dos bissau-guineenses de recordar e/ou
desvendar os enigmas que pairam sobre os fatos sejam materiais ou imateriais concernentes
à história do país e, sobretudo, da guerra, que, efetivamente, se enquadra numa dimensão
multi, trans e plurianalíticas.
Apesar de haver estudos sobre o conflito político-militar, importa realçar que, ao
analisar as pesquisas e os trabalhos analisados até à presente investigação, nenhum destes
trabalhos, analisou a política de memória ligada aos acontecimentos de 7 de junho de 1998.
Nesta reflexão, parte-se hipoteticamente que, a não reparação das vítimas e a punição dos
responsáveis pelo conflito, é o resultado da desestruturação e da inoperância do Estado.
Não se objetiva aqui nesta reflexão alargar este debate sobre as causas que levaram
aos acontecimentos concernentes ao conflito. Por isso, faz-se referências a algumas
perspectivas, que, ao nosso ver, elucidam alguns fatores que levaram à guerra. Só com base
nestas reflexões é que se pode compreender o balanço em termos das perdas humanas
(incluindo crianças, adolescentes, jovens, mulheres, velhos, etc.), da violação dos direitos
humanos e os seus prejuízos econômicos, habitacionais, políticos e sociais causados pela
guerra.
Metodologicamente, a pesquisa insere-se numa dimensão qualitativa, através da
consulta bibliográfica publicada na revista Soronda e outras revistas. Através disso foi
possível construir um modelo analítico e interpretativo inspirado em alguns estudos sobre
a política de memória. Assim, a presente reflexão estrutura-se em quatro partes: na
primeira parte aborda-se sobre os antecedentes que levaram ao conflito político-militar. Na
segunda parte, aborda-se sobre os 11 meses de conflitos e suas implicações políticas. Na
terceira, debruça-se sobre a política de memória e do esquecimento e, finalmente, na quarta
parte aborda-se sobre a Justiça de transição e a política de memória.

Gênese do conflito político militar de 7 de junho de 1998-1999


Os fatores que levaram à guerra de 7 de junho de 1998 até 7 de maio de 1999 são
passíveis de várias interpretações. Para algumas literaturas, as causas do motim estão
ligadas à disfuncionalidade do Estado e da sua incapacidade em resolver os problemas
menos complexos da população. A situação política, econômica e social não era a melhor.
Alguns autores como, por exemplo, Carlos Cardoso C. (2000), aponta as falhas cometidas
e abusos de poder, a deterioração e a erosão do Estado, e dos elementos republicanos como
pressuposto basilar (e não único) para explicar as causas do conflito. Ademais, pode-se
buscar na história colonial, na antiga questão polêmica territorial da zona de Casamansa
entre Portugal e França, como um dos pivôs que contribuíram para o desenrolar do conflito
militar (AUGEL, 2007).
Os militares bissau-guineenses, há mais de quinze anos, vinham fornecendo as
armas ao Movimento das Forças Democráticas de Casamansa que lutaram (e ainda lutam)
para a independência da região5. A situação não foi bem vista pelo governo senegalês e
francês, provocando certos descontentamentos. O governo senegalês tem o interesse na
exploração agrícola e de petróleo offshore ali descoberto, fato desconhecido, quando,
Portugal, em 1986, assinou uma Convenção com a França (AUGEL, 2007) para a
delimitação das respectivas possessões na costa do continente africano com a qual se deu
por finda a fase de alargamento, dando-se continuidade ao processo da ocupação militar e
submissão dos autóctones às autoridades coloniais portuguesas. Porém, só em 1905 que a
fronteira da atual Guiné-Bissau foi marcada, havendo uma necessidade de ratificar o limite
oriental, tendo dado à França a região de Casamansa. Assim, para compensar Portugal da

5
Sobre o conflito de Casamansa, cfr.: GOMES (2019).
área concedida, a fronteira foi alargada em igual superfície a sul do Rio Cacine (GARCIA,
2000).
Outra situação tem a ver com o agravamento da situação política, social e
econômica que atingiu o apogeu com o governo saído das primeiras eleições gerais em
1994; governo esse liderado pelo primeiro-ministro Manuel Saturnino da Costa, sendo
destituído em maio de 1996, em consequência de crise aguda, greves e contestações
públicas. Na sequência de incapacidade de conter a situação, “o sistema funcionava com
uma ficção política administrativa, que teve um efeito perverso: desresponsabilização por
parte do Estado em relação às suas obrigações mais elementares” (BARROS, 1998 apud
CARDOSO, c., 2000, p.91), ou seja, representado uma política de não assumpção do
Estado da sua responsabilidade, passando a demonstrar as evidências da “privatização do
Estado”. Sobre isso, pode-se asseverar que,

desde pelo menos a segunda metade dos anos 80, as tarefas sociais eram
confiadas a organizações internacionais e a sociedade civil, dado o descrédito
do sistema governativo vigente. Vivia-se um ambiente de ausência de Estado,
com exceção aparente da política e do demais aparelho repressivo, que se
impunham com poderosos e onipresentes. [...] pode-se dizer que o Estado
guineense quase deixou de existir (CARDOSO, C., 2000, p.92).

Por falta de boa gestão da coisa pública, por exemplo, alguns projetos financiados
pelos organismos internacionais no quadro de política cooperativa com as instituições
públicas do país estavam sob a responsabilidade da sociedade civil e do monitoramento
dos financiadores. Em todos setores do país, havia um desengajamento do Estado e uma
precariedade exacerbada, ocasionando a inoperância do Estado. Nesse contexto, as
instituições políticas e/ou públicas perderam a capacidade de prevenir os eventuais
conflitos que possam advir e, sobretudo, procurar as soluções pacíficas para resolvê-los,
sendo que, o Estado tornou-se incapaz de governar e, portanto, não tinha condições factuais
para lidar com os conflitos e problemas de diferente ordem social, política e econômica.
Essa situação é elucidada da seguinte forma: “o governo já não tinha condições e não podia
continuar a dirigir da mesma forma, e o povo, por seu lado, não queria continuar e não
suportava viver nas mesmas condições” (CARDOSO, L., 2000, p.127). A crise da
liderança, da governação e a má gestão da coisa pública, e as condições precárias da
população, deixavam pistas para uma crise. Assim,

as discórdias laborais, as tensões entre as facções seio da classe política, as lutas


pelo controle dos escassos recursos econômicos, todas estas discórdias que
numa situação de pleno funcionamento das instituições e estruturas podiam ser
negociadas e ultrapassadas, foram convergindo e afunilando-se num feixe de
problemas que se tornaram incomportáveis para um tecido social já bastante
estratificado (CARDOSO, C., 2000, p.93).

Após a crise econômica ocorrida nos anos de 1980, a Guiné-Bissau passou a sentir
os efeitos da queda do muro de Berlim na área política, social, militar e, sobretudo,
econômica. Esse fato levou o país a aproximar-se ainda mais da França. Fato que teve
consequências: o fim do fornecimento de armas aos rebeldes de Casamansa. Mesmo com
as sucessivas denúncias da autoridade senegalesa e francesa, as autoridades bissau-
guineenses supostamente estavam envolvidas no tráfico de armas na região. A Guiné-
Bissau, em 1997, integrou a União Económica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA),
renunciando à sua moeda (peso bissau-guineense), adoptando Franco das Colônias
Francesas em África (Franco CFA), em que de um dia para o outro 65 pesos passaram a
valer 1 FCFA6. Quando o país o adotou, tornou-se mais ligada à França do que Portugal
economicamente (AUGEL, 2007; CARDOSO, C., 2000).
Ademais, Nino, presidente da República, decidiu afastar o General Assumane
Mane, do seu cargo de Chefe de Estado Maior das Forças Armadas (CEMFA), alegando
que Mané esteva implicado na venda de armas aos rebeldes de Casamansa. Esse fato, para
alguns analistas, marcou a fase inicial da guerra mais sangrenta jamais vista na história do
país. Mané, militar e companheiro de Nino na luta de libertação nacional e conhecedor dos
segredos do Estado e militar, segundo Augel (2007), não podia aceitar tais acusações
levianas sem contestá-las. Mané, diante das informações recolhidas pela Comissão de
Inquérito formada pela Assembleia Nacional Popular (ANP), declinou assumir a
responsabilidade, acusando, inclusive, o Nino de estar envolvido no comércio de armas
com os rebeldes de Casamansa. O homem, para Djaló (2000), não tolerou as circunstâncias
de ser o bode expiatório das acusações cujas implicações manchariam a sua honra e
dignidade.
A disfuncionalidade das instituições da República, as dificuldades na resolução dos
problemas, motivadas pela cultura de violência, assinalaram os acontecimentos que
levaram ao conflito político-militar, acentuando ainda mais o nível de violência política

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Atualmente, a moeda, o Franco CFA, é usada em 14 países africanos entre os quais: Burkina Faso, Gabão,
Camarões, Togo, Guiné-Bissau, Mali, Senegal, Benin, Guiné-Equatorial, República Centro-Africana,
Congo, Chade, Níger e Costa do Marfim. Sendo dividido em Franco CFA central (XAF) e Franco CFA
ocidental (XOF). Para mais informações sobre a integração da Guiné-Bissau na UEMOA, cfr.: SILVA,
Jersey Inácio da. A integração da Guiné-Bissau na UEMOA, 2015.
institucionalizado, agravando ainda mais a impunidade, que há anos aumentou-se
exponencialmente no Guiné-Bissau. A tragédia de 11 meses de conflito representa o
descaminho que os políticos tomaram para resolver as suas desavenças políticas. Assim,
eles são responsabilizados pela “direção disfuncional” do Estado.

A tragédia de 11 de meses do conflito político-militar


A tentativa de prisão de Ansumane Mané na madrugada do domingo, 7 de junho
de 1998, fez os episódios que marcaram o prelúdio da guerra. Mané reagiu à voz da prisão
e, com os seus prosélitos, conseguiram controlar o quartel de Santa Luzia, ocupando depois
o de Brá (bairros da capital Bissau). Este último era o quartel onde se encontravam as
armas mais pesadas do país. Seguidamente, os homens de Mané ocuparam o aeroporto da
base aérea de Bissalanca (bairro ao redor de Bissau) (AUGEL, 2007).
Na sequência dos fatos, o governo reagiu e, já pela manhã eram travados combates
na cidade, ocasionando mortes em ambos os lados. Dois dias depois, Ansumane Mané
proclamou-se como chefe da junta militar para a Consolidação da Paz, Democracia e
Justiça7. Após isso, Mané anunciou os seus propósitos: a demissão do presidente da
República, João Bernardo Vieira (Nino), do governo e a realização das eleições legislativas
em julho (AUGEL, 2007).
Apesar de a situação surpreender a maioria dos bissau-guineenses, as instâncias
internacionais, jornalistas, representantes religiosos tinham procurado fazer as duas partes
reconciliarem-se para criar um clima de paz. Porém, Nino recusou-se a sentar à mesa para
discutir com Mané, chamando-lhe de rebelde e, ainda, solicitando a deposição das armas.
Na sequência disso, para Augel (2007), Mané recusou-se a ser rotulado como “rebelde”,
justificando-se com os seus companheiros da Junta de combatentes de liberdade de pátria.
Uma grande parte dos exército bissau-guineense apoiou Mané. Sem apoio massiva do
exército, Nino solicitou ajuda ao Senegal e à Guiné-Conakry, assim, Senegal enviou cerca

7
João Tambá, um dos apoiadores da Junta Militar, que acabou por ser nomeado secretário pessoal do ex-
primeiro-ministro, Francisco Fadul – primeiro ministro da transição, sublinhou que a Junta Militar “não tinha
projeto” para o futuro imediato do país. Após o conflito, Tambá salienta que a guerra de 7 de junho surgiu
como mecanismo de proteção pessoal daqueles que alinharam com a Junta, pois a luta nunca trouxe
resultados profícuos. Entrevista disponível em: https://bit.ly/3Rr93cj. Acesso em: 12 jul. 2022.
de um milhão e meio na primeira hora alguns soldados, enquanto Guiné-Conakry enviou
meio milhão8.
Sobre isso, pode-se dizer que, o presidente Nino pretendia ser o presidente de todos
os bissau-guineenses, mas não tinha apenas a maioria dos militares do regime contra ele,
como também os seus antigos companheiros de luta de libertação nacional, por isso, ele
pediu ajuda aos dois países vizinhos para se manter no poder, ceifando a vida de milhares
de pessoas, incluindo os seus homens e companheiros de luta. Nino adotou medidas
severas, antidemocráticas, bárbaras e ortodoxas9 para afastar quaisquer vozes que lhe
quisessem fazer sombra, para se manter como presidente do PAIGC e do país,
autoproclamando-se como líder incontestável e intocável, faltando-lhe um projeto de
sociedade (CARDOSO, C., 2000).
O conflito se intensificou e espalhou para o interior do país, porém com uma grande
concentração na capital Bissau. Não faltavam as denúncias de maus-tratos e torturas
perpetuados pelos soldados senegaleses. Assim,

cada vez mais os escombros tomaram conta de Bissau. Dos seus trezentos mil
habitantes, mais de oitenta por cento abandonaram suas moradias e fugiram em
pânico, tanto para o interior do país como para fora. As pequenas cidades e vilas
não dispunham em absoluto de infraestrutura para acolher tal multidão. Bissau
queimou em parte abandonada e destruída, edifícios públicos e particulares (e
até as embaixadas estrangeiras) foram arrombados e saqueados pelos soldados
senegaleses, outros incendiados ou destruídos por obuses e granadas, a pilhagem
das lojas e das residências foi generalizada. A fome e as moléstias grassavam no
interior, onde a carência era dramática: alimentos, água, combustível,
medicamentos, tudo faltava (AUGEL, 2007, p.69).

Além desses entulhos, foram ceifadas vidas humanas com um número


indeterminado de mortos – cujos números exatos nunca foram revelados e/ou determinado
–, mas também outros setores dos bissau-guineenses não escaparam a situação, tais como:
o setor das infraestruturas (sociais, habitacionais, escolares, bibliotecas, centros de estudos,

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O pedido foi feito conforme os acordos de defesa mútuos assinados pela Senegal, Guiné-Conakry e Guiné-
Bissau para salvaguarda de um regime constitucional e democrático, porém, o envio dos soldados de Senegal
e Guiné-Conakry para a Guiné-Bissau não foi visto de bom grado por uma parte dos bissau-guineenses,
sendo que a situação foi interpretada como uma invasão estrangeira.
9
José Américo Bubo Na Tchuto (Bubo Na Tchuto), ex-almirante guineense e antigo chefe do Estado-Maior
da Marinha do país entre 2003-2008, afirmou que, Nino num comício de 5 de junho de 1998, afirmou que
“ia mandar na Guiné-Bissau para sempre. E depois os seus filhos, e depois até a sua camisa”. Os colegas de
Nino de luta viviam mal e não tinham melhores condições de vida. Muitos deles chamam Nino de um
“Selvagem, um bandido”. Essa situação fez com que muitos dos seus colegas de luta de libertação pegassem
nas armas para derrotá-lo. Alguns chamam a guerra da “Revolta dos mais velhos”. Entrevista disponível em:
« https://bit.ly/36gxZju». Acesso em: 19 fev. 2022: 23:56.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e outros), bem como números
incalculáveis de bens privados e públicos danificados durante os onze meses da
hostilidade.
Para Jao (2000), só na capital de Bissau, presume-se que os prejuízos das
infraestruturas é de aproximadamente a mais de cinco mil casas. Em termos da perda
humana, os valores rondam em torno de seis mil vítimas, entre as figuras das duas partes
e da população civil. Com isso, pode-se reconhecer que não houve resultados palpáveis e
nem positivos na sociedade bissau-guineense. O que houve foi, de fato, mortes de milhares
de inocentes, destruição dos bens públicos e privados.
Não há uma projeção das pessoas desaparecidas nessa guerra. O que se sabe é que
muitas pessoas desapareceram durante o conflito e, de fato, em algumas situações, os
corpos nunca foram localizados. Os assassinatos e desaparecimentos durante o conflito
político militar nunca foram investigados pela Comissão Nacional de Verdade (CNV), ou
pela Comissão Nacional de Reconciliação (CNR), por comissões regionais, pelas entidades
de direitos humanos e nem outras comissões ou entidades criadas para os efeitos,
diferentemente do que aconteceu no Brasil, Argentina, Chile, Portugal, África do Sul e
outros. Em algumas situações, restam os familiares por questões próprias fazerem as
investigações para saber do paradeiro dos seus familiares desaparecidos. Assim, a
sociedade e os familiares constroem uma memória traumática do conflito.
A solidariedade entre os cidadãos constitui o principal mecanismo de salva-vidas
das populações durante o conflito, sobretudo, dos deslocados de Bissau, apesar dos papéis
desempenhados pelas Igrejas, Organizações não Governamentais, Bombeiros, Cruz
Vermelho, ajuda humanitária, entre outros. Em alguns casos, os moradores colocavam a
comida, água e outros utensílios junto à entrada à disposição das pessoas que abandonavam
a capital Bissau. Essa situação marcou três fases no país: 1ª fase: junho-outubro 1998 (uma
solidariedade generalizada entre os bissau-guineenses); 2ª outubro 1998-janeiro 1999 (a
duração do conflito fez as coisas piorarem e a boa vontade começou a desgastar e a
paciência); e a 3ª fase a partir de janeiro 1999 em diante (havia zonas em que as pessoas
não estavam dispostas a receber mais os deslocados (JAO, 2000).
Com a guerra de 7 de junho, os bissau-guineenses foram surpreendidos com uma
situação antes vista na história do país. Porém, para alguns analistas a forma como o país
estava a ser gerido dava evidências para convulsões sociais, políticas e econômicas. Todos,
ao nosso ver, não imaginavam que a deterioração e a erosão do Estado pudessem provocar
a guerra mais sangrenta nunca vista no país. Os 11 meses de guerra provocaram
consequências indeléveis mnemo-história individual, coletiva e histórica do país,
ocasionando a destruição do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa10 e das fontes
históricas da Biblioteca Nacional11 que o país construiu ao longo dos anos. Trata-se da
destruição de documentos importantes da memória coletiva e da identidade da Guiné-
Bissau. Essa destruição faz parte da (des)construção da memória do país desde a sua
independência, em 1973, até os dias atuais.
Em termos da memória coletiva, individual e história, o conflito político-militar
deixou sinais de tristeza e de muita preocupação com o rumo do país. O conflito ainda fez
o rejuvenescimento de novos atores menos preparados na condução do destino do país.

Políticas de esquecimento e a dor


Na condição de ter sido vítima de qualquer situação ou regime político lhe dá o
direito de reclamar, protestar e fazer reivindicações, como aduz Ricoeur (2003). Com isso,
talvez seja interessante indagar: como se lida com a política de esquecimento e de dor, ou
como reclamar, ou acertar as contas do passado na Guiné-Bissau?
No país, o acerto de contas com o passado da guerra civil (1998-1999) (e não só)
não passou. A investigação séria sobre os fatos que levaram ao conflito nunca foi
apresentada ao povo. Ainda “prevalecem a ocultação dos acontecimentos, a negação do
direito à verdade e de acesso à justiça, o que limita a articulação e a transmissão da herança
daqueles anos de violência” (TELES, 2008, p.243) e anos subsequentes, pois todos nós
estamos expostos às consequências da violência (JELIN, 2017). Após anos de violação dos
direitos humanos, a responsabilização é a devida após as atrocidades, pois os legados
desses crimes maciços não podem simplesmente ser esquecidos ou enterrados e, devem de
alguma forma, serem debatidos na/pela sociedade e punir os responsáveis (HAYNER,
2011).
Desde o conflito, os familiares dos mortos e desaparecidos políticos têm
protagonizado lutas por verdade e justiça, mas as dificuldades não cessaram no período
pós-conflito para amenizar o sofrimento. Assim, “a dor, o sofrimento, não são um valor,

10
Sobre isto, cfr.: SANÉ, Samba. O impacto do conflito político-militar sobre o instituto nacional de estudos
e pesquisa. Soronda: Revista de Estudos Guineenses, v. 2, p. 203-220. 2000.
11
Sobre isto, cfr.: DJALÓ, Ianguba. O conflito político-militar na Guiné-Bissau e os desafios da
Reconstrução e Recuperação da Memória e da Identidade Nacional. Soronda, n. 8, p. 97-108, 2004.
são uma experiência” (VINYES, 2020, p.5) dos familiares dos mortos e desaparecidos. No
contexto bissau-guineense, no campo jurídico “nada” se tem feito e foram as ações civis
iniciadas pelas ONG e familiares que visam garantir o direito à verdade em relação aos
crimes do terrorismo de Estado durante o conflito. O Estado não assumiu e nem assume a
responsabilidade por danos causados durante o conflito armado. Ele nega os fatos e as
informações sobre o conflito. Conforme o direito internacional, em caso de graves
violações de direitos humanos, “o Estado tem o dever de investigar e punir” (TELES, 2008,
p.254) os responsáveis das atrocidades.
Na Guiné-Bissau, essa obrigação foi deixada de lado devido a vários fatores entre
os quais: a impunidade, a suposta unidade nacional, “consensos” ou reconciliação12, que,
por sua vez, produz formas de memória consensual coletiva, como aduz Ansara (2005,
2012). Essa situação dificulta ainda mais o processo de escuta dos sobreviventes e dos
familiares dos desaparecidos, o trabalho de luto dos familiares e da sociedade em geral,
por isso, para Ricoeur (2003), a impunidade é uma grande injustiça cometida às custas da
lei e, ainda mais, das vítimas. Entretanto, a confusão pode ter sido alimentada pelo fato de
que a enormidade dos crimes rompe com o princípio da proporção que regula a relação
entre a escala dos crimes ou delitos e a escala da punição. Assim, os crimes cometidos
durante conflito político-militar evidenciam que “não há punição apropriada para um crime
desproporcional. Neste sentido, tais crimes constituem um imperdoável de fato”13
(RICOEUR, 2003, p.614), devendo ser observada a expiação – o cumprimento da pena
conforme à culpa ou delito, pois houve, de fato, a desproporcionalidade do uso da força,
culminando com assassinatos e mortes de muitos inocentes – crianças, mulheres, jovens,
homens. Essa persistência da impunidade é um mecanismo “para impedir abertura de
ações criminais” (GALLO, 2017, p.73).
Corroborando com as asseverações de Ricoeur e Gallo, pode-se afirmar que uma
das estratégias de política de esquecimento adotada pelo governo ou Estado da Guiné-
Bissau foi a impunidade – estado de impune, ou seja, falta de julgamento – o que, de fato,
gera um elemento de “coerção” (VINYES, 2020) na luta pela justiça e verdade. Não se
pode negar que os familiares dos desaparecidos e mortos têm levado as lutas contra as

12
Essas expressões que substituem e ocultam processos e causalidades históricas e, consequentemente,
fazem desaparecer os protagonistas que levaram à instauração do conflito e as consequências que sustentam
o conflito e as atrocidades cometidas durante e após o conflito (VINYES, 2020).
13
As citações de textos em outros idiomas foram traduzidas de forma livre pelo autor.
“mentiras institucionalizadas” para manter a memória viva dos entes queridos, exigindo o
esclarecimento das circunstâncias e os fatos que levaram às mortes e dos desaparecidos
políticos, bem como exigindo a responsabilização judicial dos criminosos e seus
cúmplices. Porém, apesar das lutas desencadeadas, nenhuma lei foi promulgada, limitando
cada vez mais o acesso à informação, à verdade e à justiça. O debate político em torno dos
presos políticos, desaparecidos, mortos e dos seus filhos na Guiné-Bissau, hoje, levanta
algumas questões fundamentais sobre a violação dos direitos humanos e a responsabilidade
do Estado.
Assim, na Guiné-Bissau “desacelerar em vez de acelerar, expandir a natureza do
debate público, tentando curar as feridas provocadas pelo passado, alimentar e expandir o
espaço habitável em vez de destruí-lo em função de alguma promessa futura, garantindo o
tempo de qualidade” (HUYSSEN, 2000, p.34-35), constituem desafios que o país precisa
enfrentar numa situação pós-conflito e não a adoção das políticas de esquecimento.
A manutenção do segredo sobre os crimes e a repressão policial tem sido prática
do Estado, antes da independência até o presente momento. No período pós-conflito nada
se tem feito para garantir o conhecimento da verdade jurídica e da justiça. Desse modo,
“mantém-se o veto ao acesso aos documentos públicos contidos nos arquivos dos órgãos
de informação daquele período e, principalmente, os das Forças Armadas” (TELLES,
2008, p.255) o que torna quase impossível acessá-los, pois eles continuam sendo
protegidos de forma rígida pelo Estado, dado que nunca foram abertos ao público. Assim,
o Estado da Guiné-Bissau tenta construir uma política de esquecimento sobre o pretérito
recente.
Ao evidenciar tais situações do conflito político militar, pode-se retomar a outras
realidades de vários países da América Latina, da África e da Europa que experimentaram
momentos da ditadura ou conflito político. Assim, percebe-se, embora com certas
diferenças, que esses Estados promoveram, por meio de seus aparatos estatais, políticas de
esquecimento que foram implementados, seja através de “reconciliações nacionais e
anistias oficiais, seja através do silêncio repressivo” (HUYSSEN, 2000, p.16), da censura,
da autocensura e da fabricação de “consensos”, a fabricação da suposta unidade nacional
que, efetivamente, visavam formar a memória consensual coletiva sobre os fatos como se
nada houvesse acontecido (ANSARA, 2005, 2012). Os modus operandi de política de
esquecimento ficam mais nítidos, observando-se para os dados no quadro 1:
Quadro 1 – As políticas de esquecimento
Formas Explicações
Demarca a criação de memória consensual coletiva sobre um determinado fato. A
Fabricação de fabricação de consensos é um fenômeno de recuperação e de (re)criação da “harmonia
consensos ou de nacional” usada pelos Estados ou governos ditatoriais, ou pós-ditatoriais para
memória consensual “eliminar” o passado e promover uma política institucionalizada de esquecimento.
coletiva Essa política tenta criar uma suposta harmonia nacional, para ocultar os crimes
cometidos nas ditaduras ou nos conflitos armados e, apagando a(s) memória(s) das
lutas e das resistências desenvolvidas para levar aos bancos dos réus os cúmplices das
atrocidades.
A anistia é como um esquecimento institucional, ocultando o relacionamento com o
passado através da interdição como se nada houvesse acontecido. Os processos de
anistia ao tentarem buscar a paz, reconciliando os cúmplices, provocam o
Anistia esquecimento institucional. A anistia além do esquecimento jurídico, ela aponta para a
existência de um pato secreto com a negação do passado e da memória que, na verdade,
distancia do perdão. Esquecer o passado traumático, as violações dos direitos humanos,
é impedir que os familiares e a sociedade conheçam os cúmplices das atrocidades. Essa
política parece ter sido utilizada durante o conflito e pós-conflito de 7 de junho com o
ocultamento dos assassinatos, de presos e de desaparecidos políticos.
O regime político utiliza a manipulação política e ideológica para ocultar os familiares
Manipulação política e a sociedade destes acontecimentos. A tal manipulação está bem representada ou
e ideológica: presente na suposta ideia de que “todos” precisam unir-se para formar a nação e,
consequentemente, todos devem se reconciliar e “esquecer o passado”.
A queima ou o desaparecimento dos fatos do conflito fazem parte da política de
esquecimento – muitos dos arquivos sobre a situação política, assassinatos e
A queima de arquivos desaparecimentos de algumas pessoas foram destruídas ou desapareceram na
procuradoria Geral da República, Ministério Público, ou nas outras entidades
vocacionadas para o efeito, inclusive, houve denúncias da queima e de
desaparecimento dos arquivos, porém ninguém foi responsabilizado pelo ocorrido.
A política de impunidade penal foi criada antes da própria proclamação da
independência em 1973, dado que, a Guiné-Bissau nunca puniu os torturadores e
Impunidade assassinos do período em que ocorreu a luta de libertação nacional até os dias atuais –
2022. O Estado nunca assumiu publicamente a sua responsabilidade sobre os crimes
praticados durante o conflito de 7 de junho de 1998-1999. O não reconhecimento dos
crimes ainda deixa marcas “indeléveis” na memória da sociedade e dos familiares que
nunca poderão dizer adeus aos seus entes queridos.
Fonte: quadro adaptado pelo autor a partir dos estudos de: Ansara (2005, 2012); Ricoeur (2003) e Vinyes
(2020).

Analisando as informações disponíveis no Quadro 1 sobre as políticas de


esquecimento, percebe-se que na Guiné-Bissau, a implementação das Comissões Nacional
da Verdade, a reparação história ou simbólica, a indenização às vítimas, o julgamento dos
cúmplices, não fazem parte das medidas políticas implementada para lidar com o passado
recente, diferentemente, do que aconteceu no Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai
e Uruguai), Portugal, África do Sul, Ruanda e entre outros países.
No Cone Sul, por exemplo, as indenizações começaram a ser feitas alguns anos
após a transição. Na Argentina (1994), no Brasil (1995), Uruguai (2005) (GALLO, 2007)
e Chile (2011). No mesmo ano, Chile foi obrigado a pagar 3 milhões de dólares em
indenização às famílias de vítimas da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989). A
instauração das comissões da verdade no cone sul é compreendida como uma força
importante que buscou trazer à tona o terrorismo do Estado durante a ditadura. Esse
processo possibilitou as lutas por justiça, reparação e pelo reconhecimento apesar do seu
processo conflituoso (SOUZA, 2020).
Essa política de esquecimento na Guiné-Bissau, segundo Ricoeur (2003), realiza o
seu trabalho contra a política de memória. A política de esquecimento atua no que se teme
ser temporariamente ou para sempre lembrada, conectando o passado com o presente, com
base nas experiências ordinárias da(s) lembrança(s) do ocorrido. Assim, a política de
esquecimento institucional atua nas seguintes situações: a destruição definitiva dos
vestígios do que foi aprendido anteriormente – rememoración laboriosa, ou de um
impedimento temporário – rememoración instantánea. É na base desta política que o
esforço de lembrança não pode ter sucesso. Assim, como forma de contornar a situação,
para Huyssen (2000), é importante que se compreenda os passados usáveis e os
dispensáveis.
A política de esquecimento exercida através do terrorismo do Estado é, com
certeza, perpetuada pelo/no aparato institucional através das instituições comodatárias
fundamentais – escola, família e moralidade – nas quais as ideologias são encarnadas e
transmitem os seus quadros axiológicos de referência14. Para compreender o caráter da
construção da política de esquecimento, deve-se tentar analisar, o mais cuidadosamente
possível, as constantes estruturas de significados destas três instituições que atuam para
formar a memória coletiva (MARTÍN-BARÓ, 1998). O Estado adota uma memorização
forçada, dando lugar ao benefício do esquecimento da lembrança dos abusos e das
vicissitudes dos crimes cometidos pelo Estado. Dessa forma a política de esquecimento
está a serviço do impedimento tanto da memória laboriosa e, assim, como da instantânea.
Por isso, para Ricoeur (2003, p.117), os desafios da política de memória “son demasiado
grandes como para confiarlos al entusiasmo o a la cólera”.
A política de esquecimento é uma estratégia usada pelos Estados para esconder as
práticas repressivas e a violação dos direitos humanos, atribuindo o terrorismo do Estado
como legítimo e, portanto, normalizando os acontecimentos como se não tivesse destruído

14
Para aprofundar sobre isso, cfr.: Martín-Baró (1998, p.65-71).
a vida de pessoas. Com isso, o Estado tenta estabelecer mecanismos coercitivos, políticos
e ideológicos, alienando e falsamente, justificando as ações como necessárias para a
manutenção da suposta ordem social, ou da Consolidação da Paz, Democracia e Justiça.
Tais situações, segundo Ansara (2012), são contrárias à política de memória que se pode
defender, dado que, quaisquer ações de combate ao esquecimento institucional deve,
impreterivelmente, ser baseada na elaboração e na adopção de políticas públicas concretas
contra quaisquer formas de violência, contribuindo a favor dos direitos humanos,
garantindo, principalmente, à população o direito ao passado, à memória, à justiça, à
reparação das vítimas e ajustes de contas com o passado.
Com isso, talvez seja interessante indagar: como lidam os familiares dos
desaparecidos políticos da guerra civil com “o passado que não passa”? Não se trata de um
olhar (des)localizado; trata-se do passado que não passa na vida familiar dos
desaparecidos. Todos os dias eles têm que conviver e (re)inventar novas formas para
conviver com a dor permanente. O conflito político impôs uma situação complicada às
famílias daquelas pessoas que foram assassinadas, desaparecidas, ou seja, daqueles que o
Estado assassinou sem assumir a responsabilidade dos seus atos e daquelas que foram
sequestradas pelo Estado. Várias famílias tiveram que enfrentar dramas na vida, sendo
algumas famílias destruídas por completo. Muitos familiares lutam com a vida e com as
palavras para buscar a verdade e a memória dos mortos e desaparecidos políticos.
Assim, basta rever o caso de 7 de junho, quiçá se percebe que o passado não passou
na sociedade e, sobretudo, para os familiares dos mortos e desaparecidos. Todos os dias a
família e a sociedade é “condenada” a viver e a lembrar dessas famílias. É uma dor
inexplicável. As sombras de 7 de junho (e não só) ofuscaram (e ainda ofuscam) o
imaginário social e cultural.
Quando as instituições judiciais não funcionam, não se pode esperar que os
cúmplices das atrocidades sejam levados ao banco dos réus. Tanto é que as políticas de
transição não são apenas o episódio daquilo que pode, em sentido mais acadêmico, ser
chamado “política da memória” ou algo semelhante. Saber se a Guiné-Bissau enfrenta(rá)
o passado, como aduzem Brito; Sznajder (2014), através de julgamentos, comissões da
verdade, saneamentos, indenizações ou anistias (ou uma combinação desses meios) não
fecha definitivamente as “feridas” daqueles que nunca podem fazer o velório e prestar a
homenagem aos seus familiares. De fato, o passado não desaparece; ele continua presente
na memória daqueles ou daquelas que nunca poderão dizer adeus aos seus entes queridos,
ou que nunca saberão onde estão os seus familiares desaparecidos: assim,

de fato, o passado não desaparece: haverá contínuos “ciclos da memória”


pontuados por “irrupções de memória” quando se fizerem tentativas de enterrar
o passado ou de institucionalizar a amnésia [ou política de esquecimento] haverá
contínuos “ciclos da memória” por “irrupções de memória de forma
propositada” pontuados quando se fizerem tentativas de enterrar o passado ou
de institucionalizar a amnésia (BRITO; SZNAJDER, 2014, p.222).

A sociedade bissau-guineense tem vivido níveis elevados de violência estrutural,


tortura sistemática e tolerância à impunidade. Sem dúvida, a cultura de virilidade tem sido
apontada como a principal prática dessa violência estrutural. Por isso, do ponto de vista
democrática e legal, a justiça deve funcionar para levar os cúmplices aos bancos dos réus
e tornar intolerável a impunidade, as violações dos direitos humanos e quaisquer crimes
contra a humanidade e, para Brito e Sznajder (2014), democraticamente, as punições dos
cúmplices dão sinais importantes para a construção e a consolidação da democracia, ao
contrário, a impunidade transformou-se para os cúmplices numa “impunidade de jure
como recompensa pelas confissões sem contrição” (RICOEUR, 2003, p.630). Com isso,
os responsáveis recusaram (e ainda recusam) de pedir desculpas aos familiares e à
sociedade. Essa recusa pode suscitar ainda mais a cultura da violência, da impunidade e do
desprezo político pelas mortes. Portanto, o Estado da Guiné-Bissau fabricou o suposto
consenso de memória coletiva, fez da manipulação política e ideológica a sua arma,
queimou e fez desaparecer arquivos com as provas. Por isso, são necessárias a justiça de
transição e a política de memória como mecanismo para luta contra a política de
esquecimento.

Justiça de transição e a política de memória: a luta contra a política de esquecimento


institucionalizada

A justiça de transição está ligada a um conjunto de medidas judiciais e políticas


adotadas pelo Estado como política de reparação das vítimas de violações dos direitos
humanos, ou seja, ao direito à memória, à justiça, à reparação simbólica ou material e à
reforma institucional. Com isso, não basta o governo pedir apenas “desculpas” públicas às
famílias de desaparecidos ou mortos, mas adoptar medidas que possibilitem prevenir os
possíveis conflitos. Ela é entendida como “ajuste de contas com o passado autoritário por
meio de instrumentos legais ou extralegais, por iniciativa quer da elite política, quer de
organizações da sociedade civil, durante o período de mudança de regime” (RAIMUNDO,
2014, p.57). Assim, um Estado pode adotar vários mecanismos para responder os abusos
do passado entre os quais:

para punir os infratores, estabelecer a verdade, reparar ou tratar os danos, prestar


respeito às vítimas, e reformar as instituições para evitar novos abusos. Pode ser
também outros objetivos maiores, tais como promover a reconciliação nacional
e reduzir os conflitos sobre o passado, ou destacar a preocupação de um governo
de direitos humanos e ganhando assim o favor dos parceiros internacionais. Da
mesma forma, há uma variedade de mecanismos ou políticas para alcançar estes
objetivos: a realização de processos [judiciais]; purgação de perpetradores de
postos públicos ou de segurança; criação de comissões de inquérito;
fornecimento de acesso individualizado a arquivos de segurança; fornecimento
de reparação às vítimas; construção de memoriais; ou implementação militar,
polícia, judicial [...] (HAYNER, 2011, p.8).

Um país após conflito, a questão da justiça de transição é de suma importância, pois


quando outros regimes e, sobretudo, democráticos assumem o poder, é necessário criar ou
restaurar uma cultura política democrática para enfrentar os abusos cometidos pelo Estado.
Isso requere buscar as soluções dos problemas que anteriormente não foram resolvidos
devido a constrangimentos políticos, sociais ou econômicos marcada pela instabilidade
política, econômica e social para lidar com o terrorismo do Estado, aceitando a
responsabilidade de desaparecimento e de assassinatos motivados por questões políticas.
A justiça pode ser considerada a primeira instância na resolução dos conflitos, mas
é a mais difícil. Na Guiné-Bissau a justiça tem sido “rotulada” pelos próprios políticos e
aqueles que todos “sabem” que são culpados não são julgados. Assim, corrobora-se com
as afirmações de HAYNER (2011) quando afirma que a justiça pós-transição nos tribunais
nacionais não é fácil e não é comum. Na Guiné-Bissau nunca houve um julgamento sobre
o caso de 1998-1999 e outros assassinatos. O judiciário (com alguns juízes) está
politicamente comprometido e funciona de forma parcial. Os números dos acusados das
mortes e dos desaparecidos são inúmeros, porém, as investigações demoraram (e ainda
demoram) “do que o normal”, fato que deixa os cúmplices como “intocáveis” pela justiça.
Por isso, pode-se dizer que as análises feitas até o momento levam à situação geral de que,

embora os governos democráticos recebam um mandato para gerir os desafios


de hoje de modo a forjar o melhor futuro possível, é frequentemente esquecido
que as políticas da memória também são cruciais, porque uma história recente
de violações maciças dos direitos humanos também é um problema do presente
e pode ter um impacto grave no futuro de uma democracia. As democracias
devem promover a justiça, e não a impunidade, e devem igualmente respeitar o
princípio da igualdade perante a lei. Quando não o fazem, a política de
esquecimento irá, a médio ou longo prazo, gerar irrupções, potencialmente
desestabilizadoras, da memória [...]. Portanto, a justiça de transição também
requer as ações para prevenir futuras violações dos direitos humanos, porque os
legados de violações maciças dos direitos humanos constituem um problema
que é extremamente difícil de resolver dentro de um enquadramento
democrático e têm a capacidade de desestabilizar uma transição para a
democracia ou — o que pode ser pior — corroer os princípios básicos sobre os
quais assenta a democracia (BRITO; SZNAJDER, 2014, p.244).

Assim, na medida em que as nações, Estados ou governos lutam para criar as


políticas democráticas no rastro de histórias de violação dos direitos humanos, eles se
defrontam com a missão sem precedentes de assegurar a legitimidade política e o futuro
das suas ações políticas emergentes, buscando maneiras de avaliar os erros do passado
recente para lidar da melhor forma possível com a justiça de transição (HUYSSEN, 2000).
Os estudos da justiça de transição destacam três vertentes: a) a dimensão legal da
justiça de transição – o papel do sistema judicial, dos instrumentos legais punitivas para
punir ou perdoar os cúmplices da ditadura ou do conflito, o papel do direito internacional
na criação das condições necessárias à punição, reconciliação, anistia ou ao perdão; b) a
dimensão social e meios extralegais – meios mobilizados pelas organizações da sociedade
civil, os impactos dos legados autoritários e de repressão sobre a memória coletiva,
individual e histórica e c) a dimensão político-institucional da justiça de transição –
dimensão que começou a ser abordado recentemente de forma sistêmica, incluindo as
influências de poderes e das estratégias partidárias, constrangimentos político-
institucionais que influenciam o processo decisório durante a transição (RAIMUNDO,
2014).
Das três dimensões abordadas, a dimensão legal da justiça de transição e a político-
institucional na Guiné-Bissau deixam a “desejar”. Tanto é que os partidos políticos e a
própria justiça são cúmplices de algumas atrocidades e violação dos direitos humanos no
país, dado que são acusados de serem coniventes com as atrocidades e/ou até um certo
ponto os responsáveis das atrocidades. O ajuste de conta com o passado deve envolver
várias estruturas e mecanismos legais e extralegais, pois ele “dificilmente se faz com
recurso a instrumentos puramente legais” (RAIMUNDO, 2014, p.61), e o caso da Guiné-
Bissau não é uma exceção.
Assim, a própria transição pós-conflito iniciada após o conflito não criou espaços
para uma verdadeira justiça da transição, quer da natureza legal, quer da natureza
extralegal. Tais situações não possibilitaram mecanismos para lutar e ajustar as contas com
o passado. Quando se fala de política de memória, fala-se da ampliação de debates que
consigam trazer à tona outras memórias que se contrapõem às narrativas das histórias
oficializadas e quaisquer formas de política de esquecimento. Essa postura permite romper
com a institucionalização da mentira e, segundo Ansara (2012), com o caráter ideológico
e alienante da memória oficial. É neste quadro que “recuperar a memória histórica”
(VINYES, 2020) significa “um refazer histórico” (SOUZA, 2020) que expressa um
desacordo memorial e ética diante da impunidade e suas consequências mantidas pelos
governos, por isso, o quadro 2 pode ilustrar algumas formas da memória e de luta contra o
esquecimento institucional.

Quadra 2 – política da memória e a luta contra o esquecimento institucionalizado


Formas Explicações
Memória de resistência A construção da(s) memória(s) pelos familiares, ONGs e a sociedade sobre os
familiar ou da sociedade acontecimentos, contrapondo as narrativas do Estado
Abrir os arquivos da época É um direito à memória, justiça e verdade; conhecer os fatos é dizer “basta” à
do conflito e anos violência. O próprio Estado impede os familiares de abrir os arquivos do Exército
subsequentes da época, evocando a segurança do Estado.
É necessária a reparação dos danos e perdas das vítimas da violência política no
Necessidade de reparação e país, bem como aos seus familiares que não cessam em querer dar aos seus entes
não à impunidade queridos o direito de serem enterrados com dignidade. Indenizar e punir os
responsáveis é pelo menos amenizar o sofrimento dos familiares; é dizer “basta”
à impunidade; é atribuição de culpa aos cúmplices;
Preservar a Memória da É importante preservar a memória para permitir a construção de uma memória
Ditadura ou do conflito coletiva da ditadura ou da guerra civil para as gerações vindouras.
Combater à repressão Legado da ditadura militar; uso de torturas e espancamentos por parte de
policial e não à policiais, por abuso da autoridade policial através de ameaças, constrangimentos,
criminalização das vítimas agressões físicas; é um atentado contra a democracia. Em nome da suposta
“ordem”, a polícia continua usando a violência brutal contra a população;
Desmascarar ou A manipulação política e ideológica atua para institucionalizar as mentiras,
desideologizar ocultando os fatos, isto é, as mentiras institucionalizadas. Por isso, as políticas da
memória também devem atuar neste campo “ideológico e político” para
desmascarar ou desideologizar.
Fonte: elaboração própria a partir dos estudos de Ansara (2005, 2012); Martín-Baró (1998, p.182).

Ademais, percebe-se que, não foram criadas as leis de impunidade, condições


propícias para Comissões investigarem os fatos, os cúmplices pelas violações dos direitos
humanos não foram julgados, as vítimas de repressão não foram indenizadas ou
compensadas e não houve qualquer relatório sobre o terrorismo do Estado, apenas foi
criada a Comissão para Organização da Conferência Nacional (COCN) conhecido como
“Caminhos para a Paz e Desenvolvimento”. A Comissão foi encarregue de preparar a
reconciliação, justiça e o diálogo para a construção da “paz” no contexto da Guiné-Bissau.
A comissão nunca chegou a fazer a conferência.
A COCN iniciou os seus trabalhos de auscultação nacional e na diáspora em 2010,
trabalhos esses que foram interrompidos em 2012 devido a mais um golpe de Estado, da
instabilidade e da insegurança decorrente do golpe. A comissão havia realizado vinte e
duas seções, das quais vinte a nível nacional e duas na diáspora (em Dakar e Lisboa)
(COCN, 2018). Na sequência da interrupção, a Comissão liderada pelo Padre Domingos
da Fonseca, falecido em 2019, só foi restabelecida pela Assembleia Nacional Popular
(ANP) em 2015 para retomar os trabalhos que já haviam começado. A COCN visa através
de uma política da Conferência Nacional, escolher os aportes e mecanismos de
reconciliação nacional para que o país possa conhecer e aprofundar melhor as causas das
cíclicas instabilidades e conflitos, visando construir o desenvolvimento almejado (COCN,
2018; GUERREIRO, s/d).
Na sequência da morte de da Fonseca, Pe. Domingos Cá foi escolhido e investido
no dia 4 de setembro de 2020, pela ANP para substituir o malogrado da liderança da
COCN, criado pelo Ex-presidente, Manuel Serifo Nhamadjo em 2010. Porém, o
presidente, Umaro Sissoco Embaló, negou a tomada de posse do Cá, justificando que os
lugares dos padres são nas igrejas e não na participação política. E ainda vai mais longe ao
afirmar que na Guiné-Bissau há paz e não há problema, questionando “quem vai reconciliar
com quem”. Essa intervenção de Embaló é uma demonstração clara de uma tentativa de
institucionalizar as mentiras e, sobretudo, esconder a verdade dos problemas reais que
passaram e ainda passam no país.
Essa postura do presidente de tentar institucionalizar a mentira é, segundo Martín-
Baró (1998), a negação de verdades objetivas, o fingimento de que o ato de fingir que é a
“verdade” do torturador ou do cúmplice, ou seja, evidencia uma postura de negação e de
silenciamento perante os fatos (JIEN, 2017). Assim, para o autor, quem nega a verdade
objetiva, por exemplo, é idêntico ao torturador. No caso da Guiné-Bissau, as mentiras
institucionalizadas permanecem na memória coletiva do povo a tal ponto que se acaba por
forçar a construção de um mundo imaginário cujas “verdades” permanecem num mundo
fantasmagórico e o seu aparato é o medo da própria verdade dos fatos de conduzir de forma
eficiente o debate público sobre o ocorrido.
A mentira institucionalizada é um fundamento pânico daqueles que querem
ideologizar a sociedade, e, na verdade, poder-se-ia perguntar a quem interessa essas
mentiras? Seja qual for a resposta, como aduz Huyssen (2000, p.28), o importante é que se
deve tentar combater as mentiras, o medo e o perigo de esquecimento como estratégias de
sobrevivência e de rememoração pública e privada para, de fato, “construir uma proteção
contra a obsolescência e o desaparecimento” no drama moral da memória ou “lutar contra
as mentiras e as negações desenfreadas para desvendar verdades ainda perigosas que
muitos no poder podem resistir” (HAYNER, 2011, p.18) todos os dias. Apesar disso, o
sentimento da injustiça e de luta não termina com essas resistências, dado que, ele “se
acalma e muda, mas existe e gera perplexidades diversas, inconformidades múltiplas,
resistências distintas” (VINYES, 2020, p.5) em busca da verdade e da justiça.
As declarações de Umaro Sissoco Embola convidam a sociedade bissau-guineense
a olhar para os limites e a “falta” de vontade política a tal projeto de reconciliação nacional.
A auscultação levada a cabo pela COCN demonstra que a violência do conflito de 7 de
junho e outras atrocidades cometidas no país deixaram sinais “indeléveis” que a própria
auscultação e intervenções públicas não podem sarar daquelas que tiveram que lidar até
hoje com o desaparecimento dos seus familiares, dado que o dano causado é irreparável,
ou seja, “nada, absolutamente nada, pode reparar o dano causado, nem na esfera individual,
tampouco para a sociedade, porque o que ocorreu deixa marcas para sempre em qualquer
esfera social” (VINYES, 2020, p.15). Desta maneira, os familiares e a sociedade lembram
com pesar e pena a morte dos seus entes queridos. Por isso, na observação de Kodalle: “o
povo não perdoa”. É na base disso que se pode questionar: como uma família pode perdoar
se não sabe dos verdadeiros motivos que levaram a morte ou desaparecimento do seu
familiar?
Muitos familiares lutam diariamente para conhecer a verdade sobre os fatos e
expõem situações de desespero que são, de fato, impossíveis de serem suportadas para a
situação de perdão ou de reconciliação com os cúmplices. É na base disso, que, para
Ricoeur (2003), é preciso reconhecer os limites circunstanciais e estruturais de
reconciliação ou de perdão. Esse processo requer muito tempo e trabalho no qual não é
demais discernir a situação como incógnita de perdão versus reconciliação como se isso
resolvesse as feridas. Não basta o exercício público da reconciliação, é preciso ir além do
idealismo discursivo e ouvir as testemunhas e os familiares, adotando medidas que
permitam a responsabilização dos atores.
Assim sendo, é preciso ir mais fundo para dar conta daquilo que Huyssen chama
“cultura da memória” além de duas situações: a de pedir “peço perdão” e a de perdoar “eu
te perdoo”. Esses dois discursos, para os que adotam a política de esquecimento, fazem
com que eles digam: a culpa é realmente confessada; a culpa é realmente perdoada. Com
isso, torna-se importante compreender como, de e para quem os dois discursos são feitos.
Resolver as feridas vai além do perdão e da(s) promessa(s). Desassociar o agente de seu
ato é incentivar a impunidade numa sociedade marcada pela violação dos direitos
humanos.

CONCLUSÃO
A Guiné-Bissau tem enfrentado a dificuldade política e a justiça de transição para
enfrentar os abusos, repressão policial, assassinatos e os acontecimentos que levaram ao
conflito político-militar de 1998-1999. O país é marcado pela cultura de impunidade e pela
erosão do Estado. Assim sendo, torna-se difícil levar ao banco dos réus os responsáveis
pelo conflito. Esse fato impossibilitou a sociedade e os familiares das vítimas conhecerem
a verdade e os crimes que foram cometidos. Resgatar e conhecer o passado, o país poderá
reforçar a sua consciência do pretérito e fortalecer as instituições.
Ao final do conflito emergiram demandas familiares que reivindicam o
esclarecimento das circunstâncias da morte e do desaparecimento dos familiares, a punição
dos responsáveis, a preservação da memória e a reparação das vítimas. Portanto, o Estado
adotou uma política de esquecimento institucional como se nada tivesse acontecido. Tanto
é que a memória do conflito confronta a sociedade bissau-guineense, não com uma história
melhor, mas com uma história de destruição política, a qual, em princípio, impede qualquer
tentativa de “glorificar” o conflito político-militar, como algo positivo.
O país pós-conflito de 1998-1999 possui alto índice de violência política,
assassinatos e perseguições. Tanto é que as medidas de reparação, de justiça e de verdade
não chegaram a ser implementadas diferentemente do que aconteceu no cone sul –
Argentina, Chile, Brasil e Uruguai – ainda que reduzidas, podem ser compreendidas como
um marco importante para a reparação das vítimas e “ajustar” as contas com o pretérito
recente. Como a Guiné-Bissau lida com o seu pretérito recente requer uma compreensão
da disfuncionalidade do Estado, a sua incapacidade de resolver os problemas e a
institucionalização da cultura da violência. Na base disso, alguns grupos, familiares e
atores sociais (re)criam e articulam memória coletiva e cultural, como instrumento frente
às demandas e lutas pela justiça, reconhecimento, reparação e até levar os cúmplices do
conflito ao banco dos réus que são, em algumas circunstâncias, a ampliação dos canais de
solidariedade e valores democráticos.
No processo da justiça transicional, podem ser aplicadas as medidas como, por
exemplo, as reformas institucionais envolvidas em práticas abusivas, ou nas leis que
permitiram tais abusos. Em outras situações, medidas de reparação simbólicas tais como
desculpas oficiais às famílias ou reconhecimento do Estado da sua responsabilidade pelo
ocorrido, ou a construção de memória política, podem oferecer caminhos para amenizar as
lutas desencadeadas pelos familiares. Feito isso, pode-se (não cabalmente) oferecer
mecanismo de reconhecimento de erros no pretérito recente, contribuindo para a
construção de uma sociedade mais democrática.

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