Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Introdução
Em Quimbundo, uma das línguas mais faladas em Angola, existe uma palavra
chamada “cazucuta”. Esse vocábulo pode possuir dois principais significados: o primeiro,
nome dado a uma dança típica do país; o segundo, expressão que significa confusão ou
tumulto. Muitos adjetivos poderiam caracterizar, em Angola, os meses que se estenderam
entre a Revolução dos Cravos em Portugal e a consequente independência do jovem país
africano. Confusão, desentendimento, tumulto – ou melhor – cazucuta, possa servir para
representar o zeitgeist angolano do período.
O objetivo deste breve artigo é apresentar pontuações teóricas sobre as mudanças
de posicionamento político nas “diretrizes nacionalistas” propostas pela UNITA de Jonas
Savimbi nos meses entre o fim do regime Salazarista português (25 de abril de 1974) e
alguns meses após a independência de Angola (11 de novembro de 1975). Tais
apontamentos pretendem levantar algumas possibilidades de análise dos movimentos
políticos de Savimbi sob a ótica de diferentes vertentes teóricas de estudos sobre o
nacionalismo. Não pretendo, portanto, indicar uma categorização fechada e definitiva das
colocações e atitudes políticas de Savimbi em relação às teorias nacionalistas. Mas sim,
elencar certos pontos de contato entre suas posturas político-partidárias nacionalistas e
algumas teorias e produções historiográficas que desejam indicar, pontualmente,
características – atos políticos e culturais – que seriam considerados como
“nacionalismo” e “nação”.
1
O regime Salazarista se instalara em Portugal no ano de 1933 (MAXWELL, 2006).
2
Após um acidente que o levara a falecer, Salazar teve suas funções de primeiro ministro passadas
para Marcelo Caetano ainda no final dos anos da década de 1960 (MAXWELL, 2006).
3
Estado Unidos e a União Soviética formaram a bipolaridade política e ideológica que permeara
o planeta entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início da década de 1990 (SILVA, 2013).
conjunturas políticas globais estabeleceram-se rapidamente. Aquelas que tocaram o
regime Salazarista com maior força foram as relativas aos crescentes sentimentos
nacionalistas provindos de diversas “colônias” europeias pelo mundo e pela própria
vontade de separação entre a metrópole e suas periferias (SILVA, 2013). O mal-estar
social presente em solo europeu depois de 1945 originara, entre os países afetados pelo
terrível desenrolar do conflito, um sentimento de questionamento quanto a real
necessidade da pesada manutenção financeira do sistema colonial. Governos e sociedades
da Europa ocidental passaram, gradativamente, a vislumbrar suas colônias não mais como
heranças gloriosas de seus antepassados oitocentistas, mas como um fardo econômico e
social insuportável (M’BOKOLO, 2011).
Diferente de outros países da Europa ocidental, o desgaste financeiro que a guerra
trouxera a países como a França e a Inglaterra não tocara os cofres públicos de Lisboa
com a mesma intensidade. Em contrapartida, Portugal mantivera-se análogo aos
sentimentos de descolonização manifestados por outros antigos países imperialistas. O
regime salazarista apoiara-se de tal maneira na mística colonialista para validar sua
agenda política que, de tão arraigado em sua índole política, o cultivo de quaisquer ideias
que promovessem o fim do sistema colonial português traria a ruína do próprio regime.
É muito possível que, devido a essas conjunturas históricas diferenciadas – ou seja, pelo
fato de não ter participado diretamente do conflito mundial e por sua política nacionalista
– Portugal tenha tido ainda mais motivos para manter sua mentalidade nacional
colonialista e de manutenção do território ultramarino (MAXWELL, 2006).
Em 1951, Salazar e seu conselho promoveram uma revisão constitucional de
determinadas legislações coloniais vigentes, especialmente, aquelas que estiveram
presente no Ato Colonial. Promovido nos anos de 1930 pelo Ato Colonial, o conceito de
“império” fora eliminado, o nível institucional das colônias fora, então, passado ao de
“províncias ultramarinas”. Essa manobra política portuguesa tivera em vista a sua adesão
às Nações Unidas; a ideia de “nação pluricontinental” serviria com um subterfúgio às
pressões internacionais sobre suas colônias. Ainda assim, os estatutos assimilacionistas
proclamados em 1920 continuaram a ter vigência sobre os povos angolanos. Conhecidos
como “estatutos dos indígenas”, termo que designava os nativos das colônias africanas,
estas leis impossibilitavam a inserção da maioria gritante das populações coloniais
africanas à sociedade do moribundo “império” português (ALEXANDRE, 2000).
O acesso à educação de uma parcela mínima da população nativa de Angola criara
uma situação semelhante a outras regiões coloniais do continente, o surgimento de um
estrato social nativo “pensante”, intelectualizado e extremamente desconfortável com a
situação do status quo colonial. Devido a inexistência de órgãos de ensino superior para
nativos nas colônias, inúmeros assimilados migraram à metrópole portuguesa em busca
de melhores condições de ensino. A maioria desses indivíduos foram filhos de famílias
abastadas e que possuíram condições financeiras de arcar com seus estudos no exterior.
Involuntariamente, esses intelectuais emigrados da colônia deram origem a uma
vanguarda pensamento e de formação identitária nacional própria e distante da condição
de seus “compatriotas” na África (MBOKOLO, 2011). Esses assimilados acabaram
situando-se, em âmbito político, entre duas civilizações completamente diferentes, quase
que como num limbo social e cultural.
Pelos anos iniciais da década de 1950, inúmeros movimentos e partidos políticos
formados por grupos de “nativos assimilados” surgiram em Angola e no estrangeiro.
Vigorosamente perseguidos pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)
salazarista, esses incipientes grupos tiveram, como objetivo principal, o fim do domínio
do governo de Lisboa sobre os povos nativos de Angola. Tiveram forte apoio de forças
portuguesas contrárias ao regime salazarista e sua organização fora, em um primeiro
momento, muito frágil e permeada por embates e desavenças ideológicas. Esses
movimentos possuíram pouquíssimos recursos financeiros, e suas lideranças tiveram que,
enfaticamente, lutar por relevância política em um território dividido por inúmeras etnias
e conjuntos demográficos difusos. Tais grupos, em 1961, deram início a Guerra Colonial
angolana, conflito que duraria até 1974 e envolveria três movimentos revolucionários
angolanos contra as forças militares coloniais de Lisboa (MAXWELL, 2006).
O conflito colonial em Angola fora mantido, até o ano de 1966, por dois
movimentos distintos: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Respectivamente, o primeiro nascera a partir
das pretensões políticas de grupos de assimilados residentes em Luanda e arredores por
volta do ano de 1954. Estes indivíduos possuíam ideais marxistas e liberais, e eram
motivados em sua luta pelas latentes desigualdades sociais vividas entre brancos e negros
nas cidades costeiras de Angola. Agostinho Neto – líder fundador do MPLA – promovera
um pensar político modernista4, de viés pan-angolano e antitribalista. Assim como outros
líderes revolucionários africanos, estudara na metrópole e carregara, consigo, novas
ideologias políticas para sua terra de nascença. Nomeadamente, o MPLA recebera
assistência internacional dos países (ditos) do “bloco soviético” (PÉLISSIER;
WHEELER, 2009).
O segundo, inicialmente, chamara-se União das Populações do Norte de Angola
(UPNA), depois, passara a ser a União dos Povos de Angola (UPA), para, finalmente,
tornar-se o FNLA em 1963. Fundada por Holden Roberto, o FNLA, como força
revolucionária, tivera um arcabouço ideológico diferente do MPLA. A frente de Roberto
era, essencialmente, voltada às vontades étnicas e tribais5 dos Bakongo, população do
norte-noroeste de Angola. Seus contatos eram, majoritariamente, com órgãos do serviço
secreto internacional dos Estados Unidos (PÉLISSIER; WHEELER, 2009).
Em 1966, um novo ator político interno juntara-se à luta contra o colonialismo
português em Angola. Fundada a partir da dissidência de Jonas Savimbi da FNLA, a
União Nacional para a Independência Total de Angola viria a ser a terceira componente
do conflito colonial angolano. Na data de sua fundação, a UNITA era um incipiente
partido revolucionário de viés ideológico maoísta, contrário a presença de brancos –
portugueses – em Angola, e que visava a consolidação governamental “pan-angolana” de
um futuro estado angolano. Mal equipado e sem grandes aliados internacionais além de
China e Zâmbia, a UNITA esteve, no início dos anos de 1970, perto de ser aniquilada.
Fora então, que Savimbi, honrando seu apelido de “manobrador”, dera início às primeiras
modulações ideológicas de seu partido. A aliança com comerciantes portugueses e, em
seguida, com quadros do exército português em 1972 foram o primeiro indício do caráter
mais pragmático que ideológico de Jonas Savimbi (FERNANDO, 2012).
4
Os movimentos nacionalistas chamados de “modernistas” tiveram seu surgimento durante os
anos que permearam as ondas de descolonização nos continentes asiático e africano. As teorias
nacionalistas tidas como modernistas foram compostas por inúmeras vertentes teóricas internas,
e atingiram seu ápice de formulação teórica durante a década de 1960. Em linhas gerais, o
modernismo pregava a formação das nações como “produto de um constructo histórico”, portanto,
fruto de uma criação intencional (ÖZKIRIMLI, 2000).
5
O etnosimbolismo surgira, como teoria nacionalista, a partir de estudos que confrontaram a ideia
modernista de surgimento nacional “criado” ou “inventado”. Teóricos do etnosimbolismo
argumentaram, a partir dos anos de 1980, que muitos dos teóricos do pensamento modernista de
nação ignoraram a importância dos “laços e sentimentos étnicos” dos povos para a formação
nacional. Para os etnosimbolistas, os mitos, símbolos e valores culturais de um povo são aspectos
chaves para compreensão de sua formação e existência como “nação” (ÖZKIRIMLI, 2000).
3. UNITA e a Cazucuta em Angola
6
Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974 marcara o fim da ditadura do Estado Novo em
Portugal e nas Colônias (MAXWELL, 2006).
e possíveis para garantir, novamente, a sobrevivência de seu partido (FERNANDO, 2012
p. 158).
Apesar dos dirigentes da UNITA se declararem marxistas e defensores do
socialismo científico, em abril de 1975, Savimbi declarara que seu partido seria
“orientado europeísticamente”. Tais declarações a um jornal português7, assim como o
histórico de acordos com setores militares e civis portugueses, deram a Savimbi certa
credibilidade política entre os habitantes brancos de Angola (FERNANDO, 2012, p. 163).
É necessário, portanto, que se entenda Jonas Savimbi como um homem de múltiplas
imagens, assim como aquilo que fora parte de sua política e aquilo que pertencera ao
universo de atitudes políticas pragmáticas do líder angolano. Portanto, imediatamente
após o Acordo de Alvor em janeiro de 1975 – e que combinara a transição governamental
de Angola para sua independência em novembro do mesmo ano – qual era a percepção
de Savimbi sobre uma “nação” angolana?
Savimbi deixa claro, nesse trecho de seu livro Angola: a resistência em busca de
uma nova nação, que suas pretensões de criar um estado nacional angolano sob os moldes
dos países europeus poderia ser um grande erro. Sem as devidas “modificações”, as
fórmulas do “velho mundo” não poderiam se adequar à realidade africana8. Este é um
aspecto opinativo comum a outros líderes africanos durante o período de descolonização
de grandes porções do continente durante os anos de 1960 e 1970. Como trazer em união
comunidades étnicas distintas – não somente etnias autóctones de Angola, mas a
problemática racial entre brancos e negros também – dentro de uma mesma égide
governamental e nacional?
O estado pelos moldes cívicos é um produto de ideologias ocidentais e europeias,
notadamente, desenvolvidas após a Revolução Francesa. O estado, nessa ótica, é uma
7
Diário de Notícias do dia 16 de abril de 1975 (FERNANDO, 2012, p. 161).
8
“Os países [africanos] compartilham tradições políticas pré-coloniais e coloniais... Eles têm
um duplo patrimônio de valores políticos. ” (KI-ZERBO; MAZRUI; WONDJI, 2010, pg. 568).
concepção racional de delimitação territorial e legislativa cujo controle reside na mão de
instituições legais e centralizadas na entidade do “governo” (SMITH, 1991, pg. 23).
Segundo Smith (1991, pg. 23), a concepção política de Savimbi de Angola após o
início de 1975 representaria o que poderia ser chamado de modelo não ocidental de
nação9, ou, simplesmente, de “concepção ‘étnica’ de nação”. Nele, haveria uma ênfase
em prezar, primeiramente, por uma noção de “comunidade de nascimento e de cultura
nativa”, e não pelos meios e mecanismo legais e cívicos colocados como sustentáculos
das nações “ocidentais” (SMITH, 1991, pg. 25). Contudo, Savimbi deixa claro que havia
uma necessidade de construir-se uma nação angolana; ou seja, a espontaneidade da
existência de uma Angola não era posta como algo natural para Savimbi. Tal colocação
remete a indagações teóricas sobre o âmbito modernista de Savimbi perante a jovem
Angola a tornar-se independente, e, portanto, multiétnica (ÖZKIRIMLI, 2000).
9
“... a luta de libertação estava ligada, através da mediação da memória histórica, a um passado
mobilizador, a conferir-lhe a sua legitimidade. “ (KI-ZERBO; MAZRUI; WONDJI, 2010, pg.
573).
A necessidade da continuidade dos brancos em angola tornara-se evidente para
Savimbi, tanto pelo apoio que era recebido por parte dos colonos, como pela própria
necessidade de mão-de-obra administrativa e industrial bem preparada (formada, quase
que totalmente, por brancos portugueses). Savimbi iniciara sua aproximação com
comerciantes brancos ainda no início dos anos de 1970. Após os anos da “Operação
Madeira”10, Savimbi jamais desfizera-se de seus preciosos contatos brancos
(FERNANDO, 2012). Aos poucos, o ódio racial nutrido pelo líder da UNITA durante o
início de sua caminhada política em 1966 fora desfazendo-se até transmutar-se em um
discurso de unidade nacional em 1975. Savimbi tentara, mas, para sua infelicidade
política, os colonos portugueses decidiram por um basta na sua permanência em solo
africano. Os quase 330 mil portugueses que se encontravam em Angola durante o ano de
1974 minguaram para pouco mais de 30 mil em meados de março de 1976 (PÉLISSIER;
WHEELER, 2009, p. 360).
Essa unidade nacional possuiria características muito próprias às vontades
políticas expressas por Jonas Savimbi. A união total do “povo angolano” em uma única
forma de representação nacional – aos moldes de um viés stalinista e soviético
(KEDOURIE, 1970, pg. 555) – não seria uma manobra interessante, tanto em âmbito de
representação ideológica contra o MPLA (apoiado pela União Soviética), como contra
aquilo que Savimbi chamara de “imperialismo soviético” em terras angolanas
(SAVIMBI, 1979, p. 9). Ou seja, uma transfiguração do jugo colonial português para uma
nova dominação política e de unificação cultural angolana através de ideologias
stalinistas massificadoras (KEDOURIE, 1970, pg. 559) das etnias do país.
No entanto, Savimbi tentara deixar claro que suas intenções não eram “anti-
socialistas”, mas, especificamente, anti-soviéticas.
10
Operação militar na qual as tropas da UNITA auxiliaram o exército colonial português na luta
contra o MPLA. Savimbi, durante os contatos com os militares, criara laços com comerciantes de
madeira (portugueses) e salvaguardara o transporte de suas mercadorias (FERNANDO, 2000).
“Mas interessa dizer que, no nosso conceito socialista, a
iniciativa privada deve ser encorajada, nunca eliminada. Porque,
e isto voltado aos valores africanos da nossa negritude, a
propriedade privada – no caso da terra, de algum gado e de uma
casa, por mais pobre que seja – faz parte dos nossos próprios
valores. Mas esses valores nunca permitiram que, ao lado de uma
grande riqueza, indivíduos da mesma comunidade passassem
mal. É o sentido do equilíbrio. ” (SAVIMBI, 1979, pg. 96)
Referências