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EM PERSPECTIVA CRÍTICA

A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA
A presente obra compõe-se de uma coletânea de artigos
que partem de uma premissa comum: a de que o processo
legislativo está a merecer um olhar mais atento e reflexivo dos
estudiosos, para além de abordagens meramente descritivas
do fenômeno procedimental. É preciso encarecer a relação
A elaboração
umbilical entre processo legislativo e democracia, tendo
presente que as muitas vicissitudes verificadas na gênese da
legislativa em
lei comprometem o aperfeiçoamento democrático do País.
Daí a relevância de se submeter o processo de elaboração perspectiva crítica
legislativa a uma análise crítica e reflexiva, a partir de
múltiplas perspectivas.

Bernardo Motta Moreira José Adércio Sampaio Bernardo Motta Moreira e

Escola do Legislativo – Núcleo de Estudos e Pesquisas


Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais
Christiane Costa Assis José Alcione Bernardes Júnior José Alcione Bernardes Júnior
Ciro Antônio da Silva Resende José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior Coordenação
Eduardo Moreira da Silva Manoel Leonardo Santos
Élida Graziane Rachel Barreto
Guilherme Wagner Ribeiro Rafael Cardoso Sampaio
Isabele Batista Mitozo Rafael Dilly Patrus

Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais


Escola do Legislativo
Núcleo de Estudos e Pesquisas
A elaboração
legislativa em
perspectiva crítica
Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais
Escola do Legislativo
Núcleo de Estudos e Pesquisas

A elaboração
legislativa em
perspectiva crítica
Bernardo Motta Moreira
José Alcione Bernardes Júnior

Coordenação

Belo Horizonte, Minas Gerais


Dezembro de 2020
Mesa da Assembleia FICHA TÉCNICA
Deputado Agostinho Patrus Diretoria de Comunicação
Presidente Escola do Legislativo
Deputado Antonio Carlos Arantes edição:
1o-vice-presidente Antônio José Calhau de Resende
Deputado Cristiano Silveira Celeno Ivanovo
2o-vice-presidente José Alcione Bernardes Júnior
Deputado Alencar da Silveira Jr. revisão:
3o-vice-presidente Escola do Legislativo
Deputado Tadeu Martins Leite Gerência de Publicidade e
1o-secretário Comunicação Visual
Deputado Carlos Henrique publicação:
2o-secretário Gerência de Publicidade e
Deputado Arlen Santiago Comunicação Visual
3o-secretário
projeto gráfico:
SECRETARIA Gerência de Publicidade e
Comunicação Visual
Cristiano Felix dos Santos Silva
Diretor-geral editoração:
Letícia Martinez Matos
Luíza Homen Oliveira
Secretária-geral da Mesa

E37 A elaboração legislativa em perspectiva crítica / Bernardo Motta


Moreira, José Alcione Bernardes Júnior, coordenação. – Belo
Horizonte : Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais,
Escola do Legislativo, Núcleo de Estudos e Pesquisas, 2020.
415 p.

ISBN: 978-65-89426-00-4

1. Elaboração legislativa – Coletânea – Brasil. 2. Processo


legislativo – Brasil. I. Moreira, Bernardo Motta. II. Bernardes Júnior,
José Alcione.

CDU: 340.134(81)
SUMÁRIO
9 APRESENTAÇãO

15 Levando o modo de produção dos


direitos a sério: o direito fundamental
ao devido processo legislativo
José Alcione Bernardes Júnior

65 Financiamento de campanha e lobbying


na Assembleia Legislativa do Estado de
Minas Gerais: um estudo de caso sobre
o setor de mineração
Manoel Leonardo Santos
Ciro Antônio da Silva Resende
Eduardo Moreira da Silva

115 Processo legislativo tributário


Bernardo Motta Moreira

155 A cobertura midiática do processo


legislativo
Rachel Barreto

201 As prerrogativas legislativas do


Congresso Nacional e as medidas
provisórias
José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior

235 Democracia digital e o processo de


abertura dos parlamentos
Rafael Cardoso Sampaio
Isabele Batista Mitozo
267 Processo legislativo orçamentário
sob histórico e recorrente risco de
arbitrariedade
Élida Graziane

323 A internacionalização do direito,


o poder legislativo e o problema
democrático: soberania, Constituição
e pluralismo na era pós-nacional
Rafael Dilly Patrus

367 Controle de fatos e prognoses


legislativos pelo Tribunal
Constitucional
José Adércio Sampaio
Christiane Costa Assis

389 Desenvolvimento institucional,


participação e Regimento Interno da
Assembleia Legislativa de Minas Gerais
Guilherme Wagner Ribeiro
AGRADECIMENTOs

Aos colegas da Biblioteca Deputado Camilo Prates, pelo


indispensável auxílio nas pesquisas.
APRESENTAÇãO

A presente obra compõe-se de uma coletânea de artigos que


partem de uma premissa comum: a de que o processo legislativo
está a merecer um olhar mais atento e reflexivo dos estudiosos,
para além de abordagens meramente descritivas do fenômeno
procedimental. É preciso encarecer a relação umbilical entre
processo legislativo e democracia, tendo presente que as
muitas vicissitudes verificadas na gênese da lei comprometem
o aperfeiçoamento democrático do País. Daí a relevância de se
submeter o processo de elaboração legislativa a uma análise
crítica e reflexiva, a partir de múltiplas perspectivas. É esse o
propósito do livro que ora oferecemos aos leitores, composto
de dez capítulos, dispostos, em apertada síntese, da seguinte
maneira.

O capítulo 1, intitulado Levando o modo de produção


dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido
processo legislativo, da lavra de José Alcione Bernardes Júnior,
aborda o descompasso entre a atenção dispensada ao direito
posto e aquela endereçada ao modo de produção do direito,
este último, comumente negligenciado. Trata-se de um grande
paradoxo, pois todo o prestígio atribuído à lei enquanto fonte do
direito deriva da exigência de sua sujeição a um procedimento
discursivo, ensejador da participação igualitária das diversas
correntes político-ideológicas com assento no Legislativo. Como
decorrência dessa distorção, proliferam práticas ilegítimas em
nossa produção legislativa, analisadas de modo crítico pelo
autor, que sugere caminhos para a superação desse quadro. 9
NEPEL
O capítulo 2, de autoria de Manoel Leonardo Santos, Ciro
Antônio da Silva Resende e Eduardo Moreira da Silva, tem
por título Financiamento de campanha e lobbying na
Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais: um
estudo de caso sobre o setor de mineração. O trabalho traz
uma percuciente análise da influência do lobbying e do poder
econômico sobre o processo político-decisório, na ALMG, na
área da mineração. Alicerçada em consistente base empírica, a
pesquisa reveste-se da maior importância, sobretudo em face da
posição de centralidade da atividade mineradora no contexto
da economia estadual, bem como em razão dos significativos
impactos ambientais e sociais dessa atividade.
O capítulo 3, de Bernardo Motta Moreira, recebe o título
Processo legislativo tributário. O autor encarece a necessidade
de abertura e pluralização do processo de produção das normas
tributárias, de modo a promover a parlamentarização do debate,
excessivamente preso à instância governamental, e vislumbra
a existência de uma disciplina híbrida, qual seja, o processo
legislativo tributário, decorrente da confluência de três vertentes
do direito público: o direito constitucional, o direito processual e
o direito tributário. O correto manejo, pelos operadores jurídicos,
dos postulados e princípios dessa nova especialidade afigura-se
imprescindível para a produção de uma tributação mais justa e
racional.
A cobertura midiática do processo legislativo é o
título do capítulo 4, subscrito por Rachel Barreto. Trata-se
de interessante análise de aspectos diversos da cobertura
exercida pela imprensa comercial e institucional acerca dos
trabalhos legislativos. A autora desenvolve ricas reflexões sobre
a transparência da atividade parlamentar e sobre a influência
da internet e das mídias legislativas na publicidade das fases
do processo legislativo, além de abordar o uso estratégico da
cobertura midiática como forma de mobilização da sociedade e
10 de pressão sobre os parlamentares.
NEPEL
O capítulo 5 é intitulado As prerrogativas legislativas
do Congresso Nacional e as medidas provisórias, de
autoria de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior. O autor
empreende detida análise da evolução da atividade legislativa
do Poder Executivo no Brasil, ao longo dos anos, com foco nas
medidas provisórias, destrinçadas desde sua introdução em
nosso ordenamento jurídico em 88, passando pela edição da
Emenda Constitucional nº 32/2001, que trouxe substanciais
alterações nesse instituto. Baracho nos mostra como o emprego
abusivo das medidas provisórias impactou de modo sensível as
relações de poder entre Legislativo e Executivo, a comprometer
significativamente as prerrogativas legislativas do Parlamento.
O capítulo 6 é denominado Democracia digital e o
processo de abertura dos parlamentos, de autoria de Rafael
Cardoso Sampaio e Isabele Batista Mitozo, e aborda o impacto
das tecnologias digitais nas atividades parlamentares. Os autores
discorrem sobre conceitos básicos dessa área de estudos,
apresentam exemplos práticos de desenvolvimento de tecnologia
digital no Brasil e no mundo e refletem sobre o histórico das
relações entre democracia e tecnologia. Essa temática ganha
ainda mais relevo com o advento da pandemia da Covid-19, o
que forçou a adoção de procedimentos de deliberação remota
no âmbito das casas legislativas.
O capítulo 7, Processo legislativo orçamentário sob
histórico e recorrente risco de arbitrariedade, escrito por
Élida Graziane, expõe, de maneira clara e contundente, as
fragilidades do processo de orçamentação pública no Brasil.
Segundo a autora, o caráter meramente protocolar do processo
de elaboração das leis que compõem o ciclo orçamentário rende
ensejo a práticas ilegítimas de patrimonialismo decisório. A partir
de sólidas bases conceituais e metodológicas, são apontadas
as graves inconsistências do orçamento público, como a falta
de aderência substantiva entre planejamento e orçamento,
a insuficiente estimativa de impacto nas metas fiscais para 11
NEPEL
concessão de renúncias fiscais, boa parte delas concedida
por prazo indeterminado, bem como os riscos de captura
patrimonialista mediante emendas parlamentares impositivas,
transferências voluntárias, entre outras.
No capítulo 8, intitulado A internacionalização do
direito, o poder legislativo e o problema democrático:
soberania, Constituição e pluralismo na era pós-
nacional, Rafael Dilly Patrus nos convida a refletir sobre o
fenômeno da internacionalização do direito e as dificuldades
concernentes ao equacionamento da legitimidade democrática
das normas internacionais. A partir de um sofisticado e denso
referencial teórico, o autor revisita categorias conceituais do
constitucionalismo, perspetivando-as no contexto da era pós-
nacional e ressignificando a internacionalização do direito à luz
de um pluralismo constitucional abrangente e plurilateral.
O capítulo 9, de autoria de José Adércio Sampaio e Christiane
Costa Assis, intitula-se Controle de fatos e prognoses
legislativos pelo Tribunal Constitucional e versa sobre tema
pouco explorado pela doutrina pátria. Tendo em vista as relações
entre o princípio da segurança jurídica e a justiça, os autores
desenvolvem relevantes discussões acerca dos parâmetros
que devem balizar o controle judicial dos fatos e prognoses
legislativos à luz de nosso regime jurídico-constitucional.
O capítulo 10 foi elaborado por Guilherme Wagner Ribeiro
e intitula-se Desenvolvimento institucional, participação
e Regimento Interno da Assembleia Legislativa de Minas
Gerais. O autor analisa, em perspectiva histórica, o processo
de amadurecimento institucional da ALMG, desde as décadas
de 70 e 80, passando pelo processo constituinte estadual e pela
década de 90, até o momento atual. A análise confere especial
ênfase aos reflexos dessas transformações no Regimento Interno
da Casa, sobretudo quanto à institucionalização de mecanismos
de participação da sociedade civil no processo político-decisório.
12
NEPEL
Eis aí uma breve sinopse dos capítulos que compõem esta
coletânea, que, esperamos, possa contribuir para estimular outras
reflexões sobre o instigante tema do fazer legislativo, essencial
para o aprimoramento de nossas instituições democráticas.
Uma boa leitura a todos!

Os coordenadores

1. Judicialização da política, ativismo judicial e princípio isonômico

13
NEPEL
1
LEVANDO O MODO
DE PRODUÇÃO
DOS DIREITOS A
SÉRIO: O DIREITO
FUNDAMENTAL AO
DEVIDO PROCESSO
LEGISLATIVO
José Alcione Bernardes Júnior*

*Mestre em Direito Constitucional, Consultor legislativo e professor da Escola do Legislativo


(ALMG)
1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
1. INTRODUÇÃO

Ronald Dworkin escreveu uma obra de grande repercussão


na literatura jurídica intitulada “Taking rights seriously” em que
defende a centralidade dos direitos fundamentais, que funciona-
riam como trunfos contra decisões políticas fundadas tão somente
em cálculos utilitaristas, as quais, ainda que implicassem ganhos
para a sociedade, haveriam de ser rechaçadas se importassem em
sacrifícios de direitos fundamentais.
Assim, fundado na distinção entre argumentos de política,
que tomam em consideração o ganho social, em termos de bem-
-estar, decorrente de uma dada política pública, e argumentos
de princípios, alicerçados nos direitos fundamentais, o autor sus-
tenta que esses últimos devem ser levados a sério, prevalecendo
sobre os primeiros, tal a sua relevância. Ou seja, ainda que uma
determinada política pública traga, ao final, uma maior utilidade
para a sociedade, ela não pode ser implementada se importar no
sacrifício de direitos fundamentais.
Parafraseando o ilustre autor, chamamos a atenção para a
necessidade de se levar a sério o modo de produção dos direitos,
tendo presente que o direito ao devido processo legislativo é um
dos direitos fundamentais mais importantes, pois está na base
da produção das demais normas jurídicas. Há que se respeitar o
devido processo legislativo, com todas as garantias e característi-
cas que lhe são inerentes, como a transparência, a discursividade,
a participação popular, entre outras.
17
NEPEL
O presente trabalho parte da constatação da existência de
um grande paradoxo presente em nossa prática jurídica, nas
mais diversas searas, seja no ensino jurídico, na dogmática e
mesmo na jurisprudência. Trata-se do fato de que damos muita
importância ao direito posto, ao direito já positivado, mas não
há o mesmo empenho e o mesmo labor intelectual quanto ao
modo de produção do direito, aos procedimentos de sua for-
mação, que muitas vezes são vistos como meras formalidades,
a partir de uma perspectiva por vezes tecnicista. Na verdade,
tais procedimentos, longe de meras formalidades, apresentam-
-se como condição de possibilidade para que haja igualdade e
liberdade no momento de criação das normas regentes da vida
social (BERNARDES JÚNIOR, 2009).

Com efeito, no âmbito do ensino jurídico, é facilmente per-


ceptível que as grades curriculares dos cursos de direito em geral
reservam pouco espaço para disciplinas ligadas à elaboração legis-
lativa, como processo legislativo, legística, técnica legislativa, com
raras e honrosas exceções1.

No campo doutrinário, há uma vastíssima produção acadêmica


voltada para o direito positivo, para o momento de aplicação e
interpretação do direito, todavia, quanto ao momento de elabora-
ção legislativa, a produção é bem mais escassa e, em geral, preva-
lecem abordagens meramente empírico-descritivas, sem maiores
aprofundamentos, e desprovidas do devido adensamento teórico,

1 Louve-se, a propósito, o belo trabalho desenvolvido pela professora Fabiana


Menezes Soares, da UFMG, à frente do “Observatório para a qualidade das
leis”, não só elevando o nível da reflexão sobre a elaboração legislativa, mas,
acima de tudo, estabelecendo uma salutar e qualificada interlocução com
expoentes da legística no mundo, como os professores Luzius Mader, Jean-
18 -Daniel Delley, Marta Tavares, Ulrich Karpen, entre outros.
NEPEL
ressalvadas, uma vez mais, as exceções de praxe2. De fato, tão
logo é promulgada uma lei, em pouco tempo os doutrinadores já
estão a produzir livros e artigos sobre a nova legislação, buscando
destrinçá-la em seus aspectos mais importantes: “Comentários ao

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
novo código civil”, “A lei de responsabilidade fiscal comentada”,
“O novo marco regulatório da internet”, “Comentários à lei anti-
corrupção”, e vai por aí afora. Rios de tinta resultam da reflexão
sobre o direito positivo. Mas e quanto ao modo de positivação
desse direito? E quanto ao caminho trilhado para que se chegue
àquela legislação?

Com efeito, avançamos muito no que respeita ao direito


posto, em especial no que concerne à sua aplicação e interpre-
tação. Resgatamos a centralidade da Constituição, que passou
de mera carta retórica, de conteúdo político-filosófico, a princi-
pal instrumento normativo de nosso ordenamento; assentamos,
pois, o reconhecimento da força normativa da Constituição e
de sua primazia no ordenamento jurídico, posição que durante
amplo período foi ocupada pelo direito civil; instituímos vários
instrumentos de defesa da Constituição, multiplicando as ações
constitucionais; promovemos o resgate da dimensão normativa
dos princípios, superando a perspectiva do legalismo estrito, em
que só tinha bom direito quem pudesse invocar em seu favor
uma regra expressa; ampliamos o leque dos legitimados a propor
ação direta de inconstitucionalidade, prerrogativa antes concen-
trada de forma monopolística no procurador-geral da República.
Tudo isso levou a uma explosão de litigiosidade, dado o maior
conhecimento da população acerca de seus direitos. Todavia, em
contraste, continuamos engatinhando em relação ao momento

2 No mesmo sentido, a crítica de Leonardo Augusto de Andrade Barbosa: “O


fato de os currículos de direito não tratarem de conteúdos ligados ao proces-
so legislativo, quando muito abordando rapidamente as regras constitucionais
sobre a matéria, também reforça a percepção de que as legislaturas não se-
riam um problema genuinamente jurídico. A produção bibliográfica a respeito
da atuação das legislaturas no campo do direito é igualmente reduzida.”
(BARBOSA, 2010, p. 89-90). 19
NEPEL
de criação do direito, deixado em segundo plano, sem a devida e
merecida atenção.

Na jurisprudência não é diferente. Figure-se, a título de exem-


plo, a posição majoritária do STF em relação a controvérsias
regimentais atinentes à elaboração legislativa, segundo a qual
essas questões constituem matéria interna corporis, e devem ser
solvidas no âmbito do próprio Parlamento. E aí abrem-se as portas
para que as maiorias literalmente tratorem os direitos das mino-
rias. O pior é que o STF, além de ampliar indevidamente a noção
de matéria interna corporis, invoca, em apoio a sua posição, o
princípio da separação dos Poderes, subvertendo sua ideia-força,
que é precisamente a de evitar abusos e arbitrariedades, mas é
exatamente a isso que conduz tal entendimento jurisprudencial: a
abusos e arbitrariedades dos grupos majoritários.

Portanto, retomando o apontado paradoxo, é forçoso reco-


nhecer que há um evidente descompasso na atenção dispensada
ao direito posto e aquela endereçada ao modo de produção do
direito, sendo que todo o prestígio de que goza a lei no sistema
de fontes do direito resulta do fato de que ela deve promanar
de um procedimento normativamente estruturado que propicie
o mais amplo debate público acerca da matéria objeto de legis-
lação. É precisamente por resultar de uma instância de represen-
tação plural da sociedade – o Parlamento – mediante o devido
processo legislativo, que a lei ganha especial destaque como prin-
cipal fonte do direito, apresentando-se como uma salvaguarda do
cidadão contra arbitrariedades e desmandos de toda ordem. Não
é sem razão que questões centrais afeitas à cidadania se inserem
na chamada reserva legal, a proteger o cidadão contra incursões
indevidas em sua esfera jurídica. Daí o preceito constitucional
segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei. Contudo, como não se dá a
devida importância ao processo de criação do direito, fragiliza-se
20 tal salvaguarda.
NEPEL
Com isso, o processo legislativo entre nós é conduzido muitas
vezes na base do improviso, em um contexto marcado pela cul-
tura do imediatismo, com as leis sendo produzidas no calor dos
acontecimentos e de forma açodada. A propósito, é bom lembrar

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
a máxima de que o tempo se vinga das coisas que são feitas sem
a sua colaboração. Entre nós é comum a chamada “legislação do
pânico”, quando então, diante de casos rumorosos, que causam
grande comoção social, os nossos legisladores tentam resolver a
questão a golpes de caneta.
Mesmo na sociedade em geral, verifica-se um evidente desa-
preço em relação ao processo de elaboração legislativa. É certo
que, com a redemocratização do País e o advento da Constituição
de 88, houve um tendencial aumento da conscientização das pes-
soas acerca de seus direitos, e a própria Lei Maior, não sem razão,
recebeu a alcunha de Constituição Cidadã, sobretudo em virtude
dos inúmeros direitos nela consignados.
É muito bom as pessoas despertarem para a conscientização de
seus direitos, mas em termos de cidadania, mais relevante ainda
é conscientizar-se da importância do seu modo de produção e
ainda engajar-se na construção desses direitos. Há uma relação
de precedência lógica aqui. Quem se preocupa e se envolve com
a construção do arcabouço legislativo sob o qual deverá nortear
suas condutas é conhecedor dos direitos (e dos deveres) em um
grau bem maior do que o daquele que só se preocupa em saber,
ao fim e ao cabo, quais os direitos que lhe assistem.
Portanto, é urgente que haja um esforço voltado para o res-
gate da relevância do processo de elaboração legislativa, e de seu
profundo significado, nessas várias instâncias – ensino jurídico,
dogmática e jurisprudência – e mesmo na sociedade em geral.
É claro, que quanto a essa última, não se deve exigir dos cida-
dãos um maior aprofundamento e a expertise na matéria, nem o
conhecimento técnico do processo legislativo, mas, pelo menos,
um interesse maior pelos assuntos públicos e noções básicas da 21
NEPEL
tramitação de um projeto de lei, bem como uma visão geral dos
meios de que a sociedade dispõe para influenciar de algum modo
a agenda política.

Veremos, ao longo deste trabalho, inúmeras situações que


bem demonstram o menoscabo pelo processo legislativo, con-
forme dito, analisando-as a partir de um enfoque crítico e refle-
xivo. Preliminarmente, buscamos no tópico seguinte demonstrar
a relevância do processo legislativo como fator de legitimação do
direito.

2. O processo legislativo como fator de


legitimação do direito

Do ponto de vista conceitual, impõe-se aclarar o significado do


processo de elaboração legislativa para além do truísmo de que
se trata do modo de elaboração das normas legais, ideia que já se
deixa entrever da própria expressão objeto de análise.

A depender da perspectiva, há várias formulações conceituais


sobre o processo legislativo. Segundo Sampaio (1996, p. 27), sob
o prisma sociológico, o processo legislativo pode ser visto como “o
conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os
legisladores e o modo como eles costumam proceder ao realizar a
tarefa legislativa”. Sob essa ótica, ganham relevo aspectos como
“opinião pública, crises sociais, pressões de grupos organizados,
lobbying, acordos de partidos, compensações políticas, com-
posição partidária ou social de assembleia, troca de votos entre
parlamentares (logrolling) etc” (SAMPAIO, 1996, p. 27). Sampaio
sugere a designação “conduta legislativa” ou “comportamento
legislativo”, para referir essa abordagem sociológica e reserva
a expressão “processo legislativo” para o enfoque estritamente
jurídico. Sob esse ângulo, o processo legislativo seria espécie do
22 gênero processual. Assim, trata-se do conjunto de normas “que
NEPEL
regulam a produção – criação, modificação ou revogação – de
normas gerais”. (SAMPAIO, 1996, p. 28).
José Afonso da Silva adota um conceito técnico-jurídico a par-
tir de uma visão descritiva e analítica do procedimento legislativo:

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
“processo legislativo é um conjunto de atos preordenados visando
a criação de normas de Direito. Esses atos são: (a) iniciativa legisla-
tiva; (b) emendas; (c) votação: (d) sanção e veto; (e) promulgação
e publicação”. (SILVA, 1995, p. 496-497).
Por seu turno, Cristiano Viveiros de Carvalho sublinha o aspecto
“político” do processo de elaboração legislativa ao conceituá-lo

como um sistema destinado a organizar a delibe-


ração sobre valores, para extrair uma conclusão a
respeito de determinada expectativa social de nor-
matização, para orientar a negociação em torno
da condução das políticas públicas e realizar,
enfim, a interseção entre os planos do ser e do
dever-ser, concretizando ideais e aspirações que
dão ensejo à formação do Estado. (CARVALHO,
2002, p. 64).

Portanto, o processo legislativo pode ser perspectivado de


várias formas, ora com ênfase em sua dimensão sociológica, ora
realçando o aspecto jurídico, ou ainda com foco na dimensão
política. Mais adiante, este estudo aborda de modo particular os
fatores reais de poder que influenciam o processo de elaboração
legislativa, de modo que, por ora, dedicaremos a atenção à inter-
face entre o político e o jurídico na elaboração legislativa. Nesse
sentido, a indagação que se põe é a seguinte: de que modo, a
partir da interligação entre direito e política, o direito pode criar-se
legitimamente?
A resposta a essa indagação passa necessariamente pela ideia
de Constituição, que, na definição de Canotilho (1994, p. 12), é
o estatuto jurídico do político. Conforme nos mostra Luhmann 23
NEPEL
(1996), a Constituição desempenha o papel fundamental de inter-
ligar o direito e a política, de modo que ambos se prestem serviços
recíprocos. Assim, a Constituição, ao prever normas que presidem
a elaboração de normas, traçando o núcleo básico do processo
de elaboração legislativa, conferiu ao direito um alto grau de
variabilidade estrutural, dissociando-o de um núcleo externo que
determinava o seu conteúdo, representado pelo direito natural.
Vale dizer, a Constituição opera como um sucedâneo funcional
do direito natural, permitindo, assim, a autonomização do direito
e a sua relativização, de modo que o que é direito hoje pode
deixar de sê-lo amanhã, ante um novo tratamento normativo da
matéria, e vice-versa, desde que as novas disposições normativas
ingressem no orbe jurídico pelo devido processo legislativo.
Cabe ao sistema político a tomada de decisões coletivamente
vinculantes, consubstanciadas nas novas legislações, mas com
a estrita observância dos procedimentos jurídicos previamente
estabelecidos para tal deliberação, e que foram concebidos para
propiciar o mais amplo debate público sobre a matéria objeto de
legislação. Dessa forma, o sistema político fornece as premissas
materiais para a construção do direito, a partir da escolha dos valo-
res sociais que reputa mais caros à sociedade, positivando-os, vale
dizer, transformando-os em normas jurídicas. Ao mesmo passo,
o sistema jurídico confere legitimidade à política, na medida em
que tais deliberações devem observar os procedimentos jurídicos
que as regulam, adredemente estabelecidos de modo a propiciar
simétricas condições de participação aos envolvidos no fazer legis-
lativo. Dessa forma, a legalidade gera a legitimidade e vice-versa.
Tal é a importância do processo legislativo, que suas normas
básicas devem constar do texto constitucional, sendo secundadas
pelas disposições constantes dos regimentos internos das casas
legislativas. Assim, os regimentos devem compatibilizar-se com
esse núcleo já delineado na Lei Maior, o que evita que maiorias
ocasionais possam desnaturar as normas regentes do processo
24 legislativo, moldando-as ao sabor de seus interesses casuísticos.
NEPEL
Sob tal prisma, o processo legislativo consiste em fator de legi-
timação do direito, de modo que a discussão sobre o processo
legislativo é, em última análise, uma discussão sobre a base de
legitimidade do direito. Ou, como afirma Habermas, “somente as

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
condições processuais da gênese democrática das leis asseguram
a legitimidade do direito.” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 326).
Assim, na linha habermasiana, a institucionalização jurídica de
mecanismos procedimentais voltados para a formação discursiva
da vontade e da opinião públicas torna-se tanto mais necessária
em face de uma sociedade hipercomplexa, plural, em que inexiste
a possibilidade de se eleger uma eticidade substantiva conforma-
dora da sociedade como um todo. Essa postura teórica se mostra,
pois, mais condizente com o pluralismo e a complexidade que
marcam as sociedades contemporâneas, e supera o reducionismo
próprio de uma visão substantivante do discurso político, que des-
considera precisamente toda essa heterogeneidade.
Trata-se, pois, da institucionalização de mecanismos jurídicos
que propiciem a instauração de um debate público o mais amplo
possível e condições simétricas de participação entre as diversas
correntes político-ideológicas com assento no Parlamento, de
modo que a norma que daí resulte seja efetivamente uma norma
de integração.
A partir desse enfoque reflexivo, é possível dizer que o pro-
cesso de elaboração legislativa constitui uma técnica de que se
vale o direito para articular e coordenar as múltiplas vontades que
se entrecruzam para a formação do ato legislativo. Ou, por outra:
trata-se de um mecanismo seletivo de escolha dos valores sociais a
serem positivados, isto é, transformados em normas jurídicas, de
modo a receberem a tutela estatal.
Dessa perspectiva conceitual, resulta claro que os procedimen-
tos de elaboração legislativa, longe de serem meras formalidades,
constituem, antes, condição de possibilidade da gênese democrá-
tica da lei. São, pois, condição para que haja igualdade e liber- 25
NEPEL
dade no momento de criação das normas regentes da vida social.
Daí dizer-se que forma e conteúdo estão imbricados e expressam
a relação entre legalidade e legitimidade.

Assim, a relação entre forma e matéria traduz, em última aná-


lise, a relação entre o operar legislativo e o resultado desse operar.
Impõe-se, pois, levar o processo de elaboração legislativa a sério,
pois de nada adianta a institucionalização de procedimentos dis-
cursivos e democráticos se, na prática, faz-se tábula rasa desses
preceitos. Eis aí o nosso grande problema, conforme veremos no
tópico seguinte.

3. Processo legislativo e práticas


ilegítimas

Não temos dado a devida importância ao processo legislativo.


Ao contrário, frequentemente ele é conduzido na base do impro-
viso e apresenta-se repleto de práticas ilegítimas que lhe desnatu-
ram a razão de ser. Tais práticas assumem formas variadas, como
a inobservância acintosa dos ritos e procedimentos estabelecidos,
ou exegeses distorcidas que, a pretexto de darem cumprimento
às disposições procedimentais, são, na prática, a sua negação. E,
não raro, tem-se a observância meramente pro forma das dispo-
sições procedimentais, sendo o processo legislativo conduzido de
maneira açodada e sem o mínimo desejável de transparência e de
abertura ao debate público, a produzir normas totalmente desar-
razoadas. Há, ainda, a recorrente prática do culto da forma pela
forma, totalmente dissociada da motivação que inspirou a formu-
lação dos ritos e procedimentos empregados. A esse propósito,
não podemos menosprezar os riscos de solaparmos a democracia
mediante a manipulação dos instrumentos formais da própria
democracia, com desconsideração pelos valores substanciais que
26 a inspiram.
NEPEL
3.1. O exemplo emblemático das medidas
provisórias: da redação original da Constituição
Federal à Emenda 32, um longo percurso repleto de
inconstitucionalidades

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
As medidas provisórias consistem em atos normativos expedi-
dos privativamente pelo chefe do Executivo, com força de lei, para
fazer face a situações de relevância e urgência. O texto original da
Constituição Federal de 88 estabelecia que as medidas provisórias
deveriam ser submetidas de imediato ao Congresso Nacional, que
teria o prazo de 30 dias para sobre elas deliberar. Se não fossem
convertidas em lei no referido prazo, elas perderiam a eficácia,
desde a edição, devendo o Congresso Nacional disciplinar as rela-
ções jurídicas delas decorrentes (Art. 62). Posteriormente, a dis-
ciplina constitucional das medidas provisórias sofreu substancial
alteração por meio da Emenda Constituicional nº 32, conforme
veremos adiante.

Em tese, a medida provisória permite que haja uma expedita


atuação estatal em face de situações relevantes e urgentes, deman-
dantes de uma intervenção normativa que não pode depender
das delongas próprias do processo legislativo, sem que, contudo,
se descure da legitimação democrática desse ato, ante a condição
de sua superveniente aprovação pelo Congresso Nacional para
que seus efeitos jurídicos perdurem no tempo. Assim, busca-se
uma solução conciliatória entre a premente necessidade do agir
estatal – a qual é atendida com a imediata entrada em vigor da
MP – e a não menos relevante necessidade de legitimar tal decisão
normativa mediante o condicionamento de sua aprovação pelo
Parlamento. Daí também a previsão de que o Congresso Nacional
discipline as relações jurídicas decorrentes de MP não convertida
em lei, quer em razão de sua rejeição, quer em virtude do decurso
do prazo sem a deliberação congressual. 27
NEPEL
Porém, na prática, houve um emprego abusivo das medidas
provisórias por parte do Executivo, sem a adequada consideração
da exigência constitucional dos requisitos de relevância e urgên-
cia para a edição dessa espécie normativa. É preciso dizer que,
sob a égide da Constituição anterior, quando havia o instituto
do decreto-lei, cuja edição também pressupunha os requisitos de
relevância e urgência, o STF acolheu a tese de que o juízo sobre
tais requisitos consistia numa questão política, e como tal, seria
insindicável, de modo que aquela Corte não poderia substituir-se
ao chefe do Executivo nessa avaliação.3
Ora, o entendimento segundo o qual questão política deve
ficar a cargo exclusivo do presidente da República, sem possibi-
lidade de contraste judicial, é despropositado, para além de, no
caso, esvaziar o sentido das prescrições constitucionais da rele-
vância e da urgência. Com efeito, em um Estado Democrático de
Direito não há espaço para nenhuma ação insindicável, de modo
que toda atividade estatal há de se sujeitar a balizas jurídicas,
ainda que elásticas, como no caso de questões políticas, sendo
oportuna a lição de Freitas (2002), que emprega a expressão “dis-
cricionariedade vinculada a princípios”, a evidenciar que mesmo a
atividade discricionária não está inteiramente liberta de condicio-
namentos jurídicos.
Outrossim, do ponto de vista da teleologia subjacente ao prin-
cípio da tripartição dos Poderes, é preciso dizer que tal princípio se
prende muito mais à ideia de equilíbrio do que propriamente à de
separação, de modo a propiciar o chamado mecanismo de freios
e contrapesos, mediante o qual um poder interfere no âmbito de
atribuições de outro de modo a refrear eventuais abusos e exces-
sos. Eis a ideia-força do aludido princípio. Nesse sentido, é forçoso
reconhecer que o entendimento originalmente esposado pelo STF
legitima justamente o arbítrio e o abuso, precisamente o que
haveria de ser combatido a partir desse cânone constitucional.

28 3 Recurso Extraordinário 62739-SP. Relator Ministro Aliomar Baleeiro.


NEPEL
Após a promulgação da Constituição de 88, esse entendi-
mento foi flexibilizado em julgados posteriores, quando o STF
passou a admitir que excepcionalmente o Judiciário poderia pro-
ceder à apreciação da relevância e urgência da matéria, o que

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
não foi suficiente para refrear a avalanche de medidas provisórias
editadas pelo presidente da República4.
Quanto à exigência constitucional de que o Congresso discipli-
nasse as relações jurídicas decorrentes de medidas provisórias não
convertidas em lei, na prática, simplesmente se ignorava olimpi-
camente tal preceito.
Outra distorção evidente na tramitação das medidas pro-
visórias, ainda sob a égide da redação original da Constituição
Federal, refere-se às sucessivas reedições desses atos normativos.
Com isso, uma mesma medida provisória era indefinidamente
reeditada, e algo que era para ser provisório – ao menos até
que houvesse uma decisão emanada do Congresso Nacional –
estendia sua vigência de modo indefinido. Como resultado prá-
tico, a medida provisória perde precisamente aquilo que deveria
caracterizá-la, isto é, a sua capacidade de conciliar, de um lado, a
necessidade urgente de normatização estatal, e de outro, a super-
veniente legitimação democrática dessa decisão pelo Parlamento.
Também aqui resulta evidente mais um exemplo, entre tantos,
de descaso para com o processo legislativo e de inoperância do
Poder Legislativo, que cede passo para o Executivo no que res-
peita ao protagonismo normativo, muito embora a Constituição
da Repúbica outorgue ao Parlamento o exercício, em caráter pre-
ponderante, da função legislativa.
Uma medida provisória, a que tratava dos títulos da dívida
pública de responsabilidade do tesouro nacional, teve 88 reedi-
ções! Também foi reeditada diversas vezes a medida provisória

4 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.213 – DF. Relator Ministro Celso


de Mello.
No mesmo sentido, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 162 – 1 DF.
Relator Ministro Moreira Alves. 29
NEPEL
que autorizava a cobrança de juros sobre juros, institucionali-
zando a prática do anatocismo em terras tupiniquins. Isso condiz
com o requisito da urgência? Uma “urgência” que perdura inde-
finidamente? E o que dizer da legitimidade de um ato normativo
que atende aos interesses do sistema financeiro, em especial das
instituições bancárias, institucionalizando a cobrança de juros
compostos, em detrimento da sociedade em geral, sujeita a juros
escorchantes? É mais que razoável supor que uma proposição
dessa natureza, se tivesse se sujeitado ao devido processo legis-
lativo ordinário, em um contexto de discussão alargada e ampla
transparência, sob intenso escrutínio público, bem possivelmente
não teria obtido aprovação.
Cumpre dizer que a prática de sucessivas reedições, a nosso
juízo flagrantemente inconstitucional, foi avalizada pelo STF,
que chegou a editar a Súmula 651, segundo a qual “a medida
provisória não apreciada pelo Congresso Nacional podia, até a
EC 32/2001, ser reeditada dentro do seu prazo de eficácia de
trinta dias, mantidos os efeitos de lei desde a primeira edição”
(BRASIL, 2003).
Após tantas distorções na edição de medidas provisórias,
sobreveio a Emenda Constitucional nº 32, que buscou estabelecer
limites na expedição desse ato normativo, a começar por estabe-
lecer um extenso rol de matérias que não poderiam ser disciplina-
das por medida provisória, como direito penal, processual penal,
processual civil, direito eleitoral, matéria orçamentária (ressalvada
a permissão para créditos extraordinários), nacionalidade, cidada-
nia, direitos políticos, entre outras. Citem-se ainda, em apertada
síntese, como alterações importantes, o alargamento do prazo
para a apreciação congressual das medidas provisórias, que pas-
sou de 30 para 60 dias, prorrogável uma vez por igual período;
a exigência de que a votação do Parlamento fosse precedida de
juízo prévio acerca do atendimento de seus pressupostos cons-
titucionais, com parecer de comissão mista sobre a matéria; a
30 proibição expressa de sua reedição.
NEPEL
Ressalte-se que a Emenda Constitucional Nº 32 manteve o
comando constitucional de que o Congresso disciplinasse, por
decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes de medidas
provisórias que fossem rejeitadas ou perdessem eficácia pelo

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
decurso de prazo sem deliberação parlamentar. Contudo, desta
feita, como que já antevendo a habitual e recorrente inércia
legislativa em matéria de medida provisória, o constituinte deixou
expresso que, não editado o referido decreto legislativo no prazo
de 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia da medida provisó-
ria, consolidam-se as relações jurídicas constituídas e decorrentes
de atos praticados sob sua vigência.
Mas a alteração mais impactante, relativa ao trancamento da
pauta, veio inscrita no § 6 do art. 62, o qual estabelece que, se a
medida provisória não for apreciada no prazo de 45 dias contados
de sua publicação, entrará em regime de urgência, em cada uma
das Casas Legislativas, sobrestando-se, até ultimar-se a votação,
todas as demais deliberações da Casa onde estiver tramitando.
Ocorre que a prática reiterada foi a de ausência de delibera-
ção parlamentar acerca das medidas provisórias, de modo que se
tornou comum o trancamento da pauta do Legislativo. Vale dizer,
aos abusos no exercício da função legiferante pelo Executivo,
somou-se a monopolização da agenda política por aquele Poder.
Essa habitual desídia do Parlamento para com a tramitação das
medidas provisórias se mostrou também presente no que respeita
à exigência constitucional de que comissão mista do Congresso
emitisse um parecer sobre o atendimento dos pressupostos
constitucionais de sua edição. Simplesmente não se cumpria
tal comando constitucional. Esse foi um dos argumentos, entre
outros, a embasar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 40295,
movida pela Associação Nacional dos Servidores do Ibama para

5 ADI nº 4029, relator: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 08/3/2012,
Acórdão Eletrônico; DJe – 125 Divulgação: 26 jun. 2012; Publicação 27 jun.
2012. 31
NEPEL
impugnar a Lei nº 11.516/2007, que criou a autarquia federal Ins-
tituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio.
Tal lei originou-se da MP 366/2007. Arguiu-se a inobservância do
rito próprio das medidas provisórias, em especial a inexistência do
parecer prévio de comissão mista antes da deliberação legislativa,
conforme determina a Constituição. Nessa ação, o STF decidiu
pela obrigatoriedade do parecer da comissão mista, declarando a
inconstitucionalidade de disposições da Resolução nº 1, de 2002,
do Congresso Nacional, as quais, ao prever a possibilidade de
parecer em plenário, na prática, esvaziavam o comando consti-
tucional que exigia o mencionado parecer emanado da comissão.
Porém, o STF modulou os efeitos de sua decisão, projetando-os
daquele momento para o futuro, à vista do quadro de grande
insegurança jurídica que adviria, caso não houvesse a modulação,
diante das inúmeras leis já em vigor que se originaram de medidas
provisórias eivadas do mesmo vício.
Ante tudo o que foi dito sobre as medidas provisórias, desde
o texto original da Constituição Federal, passando pela Emenda
nº 32, conclui-se que o nosso problema não é de fragilidade nor-
mativa, mas de fragilidade institucional. Reiteramos: não se leva
o processo legislativo a sério. Tem-se um Executivo que abusa
das medidas provisórias, um Judiciário leniente e tímido ante
tais abusos e um Legislativo que renuncia a suas prerrogativas.
E, certamente, a superação desse quadro não passa pela simples
edição de novas normas. Já tivemos ocasião de dizer que a lei
é tão somente um elemento operativo de todo um complexo
contextual de que se compõe o direito, e que é essencial mudar
a gramática das práticas sociais intersubjetivamente compartilha-
das, pois são essas que são atributivas de significado aos signos
linguísticos (BERNARDES JÚNIOR, 2019). E a Emenda Constitucio-
nal nº 32/2001 o demonstra de modo claro, pois introduziu uma
série de restrições para a edição das medidas provisórias – limita-
ção material, proibição de reedição, imposição de parecer prévio
32 de comissão mista – e, ainda assim, a média anual de edição de
NEPEL
medidas provisórias subiu de 44, no período de 1988 a 2000, para
60,7, no período de 2001 a 2008. É o que nos mostra Gobatto,
em minucioso estudo sobre a matéria, lastreado em cuidadosa
pesquisa empírica. Ainda segundo Gobatto, essa média caiu para

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
37,8 entre os anos de 2009 a 2012. (GOBATTO, 2013).

Os parlamentares devem aplicar as disposições constitucionais


e regimentais segundo o espírito dessas normas. O que mais se vê
são interpretações literais dando ensejo aos mais diversos abusos
em sua aplicação. E aí, são feitas alterações nos respectivos textos
de modo a barrar tais abusos. É como enxugar gelo. Tome-se o
exemplo da regra constitucional proibitiva da reedição – algo que,
a rigor, nem precisaria de norma expressa. Pois bem, mesmo ante
tal proibição, o Executivo incorporou uma outra prática ardilosa,
qual seja, a edição de medida provisória que, na verdade, diferia
minimamente de outra que se encontrava na iminência de per-
der a validade em razão do decurso de prazo sem deliberação
congressual. Como se uma mínima diferença no pormenor des-
caracterizasse a reedição, pouco importando a identidade quanto
ao essencial.

Uma vez mais, encarecemos que, se não houver uma mudança


de mentalidade que importe na elevação do patamar de nossa
cultura política e na mudança da gramática das práticas sociais, o
texto, por si só, vira pretexto para práticas ilegítimas.

A expedição abusiva de sucessivas medidas provisórias,


editadas aos borbotões, portanto, é um meio de se evadir do
processo ordinário de elaboração legislativa e configura, pois,
uma forma espúria de se editarem normas unilateralmente. E
mesmo quando tais medidas são submetidas à apreciação do
Legislativo, segundo os trâmites constitucionais e regimentais, o
que se vê, na prática, como dito, é a inobservância aberta desses
procedimentos, além do travamento da pauta legislativa, que é
monopolizada pelo Executivo. 33
NEPEL
3.2. Vetos pendentes de deliberação

Na questão dos vetos pendentes de deliberação, o desprezo


pelas normas regentes do processo legislativo chegou às raias
do absurdo, como veremos neste tópico. A Constituição Federal
estabelece que, uma vez oposto o veto presidencial à proposição
legislativa – seja total ou parcial, seja por considerá-la inconstitu-
cional ou contrária ao interesse público –, este será encaminhado
à apreciação do Parlamento (art. 66, § 1º). Segundo a Lei Maior,
a deliberação sobre o veto dar-se-á em sessão conjunta, no prazo
de 30 dias contados de seu recebimento, exigindo-se, para sua
rejeição, o voto da maioria absoluta dos senadores e deputados
(art. 66, § 4º). Na prática, o congresso simplesmente não delibe-
rava sobre os vetos. A questão ganhou repercussão nacional por
ocasião do Veto nº 38/2012, oposto ao Projeto de Lei nº 2.565/12,
que estabelecia novas regras de distribuição, entre os entes da
federação, dos royalties da exploração do petróleo, do gás natural
e de outros hidrocarbonetos fluidos. Tendo em vista os altos inte-
resses econômicos envolvidos e a vontade política majoritária de
se derrubar o veto presidencial, aprovou-se um requerimento de
urgência para a apreciação do referido veto, em meio a milhares
de outros vetos pendentes de deliberação e que, há anos, aguar-
davam a apreciação congressual.

Assim, explicitou-se o absurdo de que havia mais de 3000


vetos pendentes de deliberação, muitos no limbo por 13 anos!
Houve um interstício de mais de 10 anos sem que se analisasse
um único veto!

Eis aí o mais evidente descaso pelo processo legislativo e, por


conseguinte, igual desprezo pela cidadania, pela democracia e
pela Constituição. De lamentar, ainda, a constatação de que, não
fossem os altos interesses econômicos envolvidos na repartição
dos roalyties do petróleo, essa questão de vetos pendentes de
34 deliberação, bem provavelmente, nem sequer teria vindo à baila e
NEPEL
ganhado o domínio público, ao menos com o alcance e a dimen-
são que o problema assumiu.
Tal situação desencadeou uma batalha jurídica no STF, com a
impetração do Mandado de Segurança nº 31.816/DF, que objeti-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
vava evitar a apreciação do Veto nº 38/2012 antes dos demais. Foi
expedida uma liminar da lavra do Ministro Fux, determinando que
os vetos pendentes de deliberação fossem apreciados seguindo-se
a ordem cronológica de sua apresentação ao Congresso Nacional.
Certamente, tal determinação judicial seria impraticável, à vista
dos milhares de vetos aguardando apreciação, e a liminar aca-
bou cassada pelo Pleno do STF, que se pronunciou pela incons-
titucionalidade da prática de não deliberação congressual sobre
os vetos, mas com efeitos ex nunc, tendo em vista o quadro de
insegurança jurídica que se instauraria caso a decisão alcançasse
todos os vetos pretéritos.
Façamos um breve paralelo com uma situação hipotética,
para fins de reflexão. Imaginemos um processo judicial em que
os autos seguem conclusos ao juiz para que profira sua decisão, e
este não o faz, engavetando-os, por anos a fio. Seria um absurdo!
Vale lembrar que, em geral, uma decisão judicial opera efeitos
inter partes, atingindo apenas autor e réu. No caso do engave-
tamento do veto, trata-se de um problema de dimensões bem
maiores, pois um ato normativo produz efeitos de modo difuso
na sociedade. E é precisamente disso que se trata. Ao deliberar
sobre o veto, rejeitando-o, por exemplo, segue-se que um novo
comando legislativo ingressa no ordenamento jurídico, atingindo
a quantos se enquadrem na hipótese de incidência normativa.
Portanto, o que está em pauta é a produção de um ato normativo,
que já se encontra na fase terminal do procedimento legislativo,
prestes a concluir seu ciclo de formação, mas que queda inerte
ante a ausência de deliberação congressual. Dessa forma, uma
questão demandante de disciplina normativa permanece sem
o devido regramento. Mobiliza-se todo o aparato legislativo do
Estado, gastam-se recursos, há o dispêndio de tempo e de energia 35
NEPEL
processual, o envolvimento de diversos agentes públicos, a reali-
zação de inúmeros debates, para não se concluir o procedimento
legislativo.

E o que é pior: inverte-se a lógica que deveria presidir a diver-


gência aberta entre Executivo e Legislativo, em razão do veto
oposto à proposição legislativa, qual seja, a de que quem deve dar
a palavra final, quer pela rejeição do veto, quer por sua manuten-
ção, é o Parlamento, até porque é um órgão colegiado e plural,
representativo das diversas correntes político-ideológicas da socie-
dade. De fato, a ausência prolongada de deliberação congressual
leva, na prática, à manutenção do veto, esvaziando o seu caráter
relativo, e fazendo prevalecer a vontade do chefe do Executivo,
instância unipessoal de poder, ao arrepio do que determina a
Constituição da República.

É importante ressaltar que, sob a égide da Constituição ante-


rior, a omissão congressual na deliberação sobre o veto acarretava
a sua manutenção, privilegiando, pois, o Executivo em detrimento
do Legislativo (art. 59, § 4º). Tratava-se de norma condizente, por
óbvio, com o contexto político da época, de viés marcadamente
autoritário. Já o que passou a suceder com a tramitação sobre o
veto na vigência da atual Constituição revela uma prática que res-
taura o arbítrio sob o verniz da legalidade. O verniz fica por conta
do texto constitucional, que impõe a deliberação congressual no
prazo de 30 dias. Já o contexto e a realidade apontam para o
acúmulo despudorado de vetos pendentes de deliberação, numa
espécie de limbo jurídico. Restaura-se, assim, a primazia do Execu-
tivo em relação ao Legislativo, à maneira da ordem constitucional
anterior, de feição marcadamente autoritária, e em aberto litígio
com a Constituição atual.

Com efeito, na prática, a não deliberação sobre o veto equi-


vale à sua manutenção, o que, a toda evidência, aproveita ao
36 Executivo, em detrimento do Legislativo, ainda que a Constituição
NEPEL
seja expressa em conceder a este último a palavra final sobre a
matéria.

Como bem assevera o Ministro Joaquim Barbosa, “veto é um


dos mais significativos fatores de check and balances”6. Tal sis-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
tema de controle recíproco simplesmente é neutralizado com essa
prática espúria, esvaziando-se, de todo, o caráter relativo do veto,
e dessubstancializando o princípio da separação dos Poderes em
um de seus aspectos principais.

Não bastasse tudo isso, faz-se ainda um uso promíscuo de


medida provisória combinada com veto, quando, então, o chefe
do Executivo veta parcialmente uma determinada matéria e edita,
ato contínuo, uma medida provisória versando sobre o mesmo
assunto. Com isso, o presidente contorna, por via oblíqua, o óbice
constitucional de alterar texto de proposição que lhe é encami-
nhada para sanção, sendo-lhe permitido tão somente sancioná-la
ou vetá-la, mas não alterar-lhe o teor. Ora, uma vez mais, cabe
indagar: isso tudo é levar a sério o processo de elaboração legis-
lativa?!

Como decorrência natural de um quadro como esse, o Exe-


cutivo passa a ter amplo domínio da agenda legislativa, seja pelo
emprego abusivo das medidas provisórias – prática que, além de
usurpar a função legiferante, paralisa a pauta do Legislativo –, seja
pela absurda ausência de deliberação congressual sobre os vetos
governamentais, ou, ainda, em razão da ação combinada e espú-
ria do veto com medida provisória. Citem-se ainda os reiterados
pedidos de urgência em proposições de autoria governamental.

Evidentemente, tudo isso concorre amplamente para o esvazia-


mento do princípio democrático, deslocando-se o poder decisório, de
uma arena plural, discursiva e dialógica – o Parlamento –, para uma
instância unipessoal de poder, qual seja, a Presidência da República.

6 Agravo regimental na medida cautelar no Mandado de Segurança nº


31.816. 37
NEPEL
3.3. Os projetos frankenstein

Outra prática desviante e recorrente em nosso processo de ela-


boração legislativa dá-se por ocasião da apresentação de emendas
a proposição em tramitação. Trata-se da inobservância da exigên-
cia regimental de relação de pertinência temática que deve haver
entre a emenda, que é uma proposição acessória, e a proposição
principal. Com isso, surgem os chamados projetos frankenstein,
de que resultam leis que mais parecem uma verdadeira colcha de
retalhos normativa. Muitas emendas oportunistas são apresenta-
das nesse contexto e acabam passando despercebidas.

Saulo Ramos, ex-ministro de Justiça do governo Sarney, desig-


nava tal prática, muito propriamente, de verdadeiro contrabando
legislativo.

Ressalte-se que os parlamentares têm uma predileção especial


por apresentar essas emendas em face de medidas provisórias,
cujo rito usualmente é mais célere, além de menos controlável do
que o das leis ordinárias. Tome-se o exemplo da MP 350/2007, que
versava sobre o Programa de Arrendamento Residencial. Por oca-
sião de sua tramitação, foi apresentada e aprovada uma emenda
parlamentar que alterava um dispositivo da Lei nº 11.265/2006,
que regulamenta a comercialização de alimentos para lactantes e
crianças de primeira infância e também a de produtos de puericul-
tura correlatos. É evidente que não havia nenhuma relação entre
o conteúdo da medida provisória e o da emenda, as quais tratam
de assuntos totalmente diversos. Nem por isso a referida emenda
deixou de ser admitida, sendo, ao final, aprovada e incorporada
ao texto da medida provisória.

O dispositivo objeto da alteração, o qual dizia respeito à rotu-


lagem desses alimentos, em sua redação original, empregava a
tradicional expressão “o Ministério da Saúde adverte”, que veio a
ser substituída pela expressão “aviso importante”. Para o Conse-
38 lho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea –, tal
NEPEL
modificação minimizava os riscos desses alimentos ao substituí-
rem o leite materno.
Há que se ter muita atenção quanto a tais emendas, pois fre-
quentemente buscam viabilizar fortes interesses econômicos rela-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
cionados aos mais diversos assuntos, desde produtos alimentares,
como no exemplo dado, passando pela flexibilização de licencia-
mento em matéria ambiental ou mesmo um afrouxamento nas
regras relativas ao emprego de agrotóxicos. Trata-se de assuntos
que costumam despertar uma natural rejeição, razão pela qual
seus proponentes buscam lançar mão desse expediente, de modo
a fazer passar despercebida a aprovação da matéria, no “vácuo”
do assunto principal veiculado pela proposição legislativa em tra-
mitação.

3.4. Outras práticas ilegítimas

Para além dos problemas apontados, como inobservância


acintosa dos ritos e procedimentos da elaboração legislativa, ou
exegeses distorcidas dos preceitos que os disciplinam, tem-se
ainda a observância meramente pro forma das disposições proce-
dimentais, sendo o processo legislativo conduzido de forma aço-
dada e sem o mínimo desejável de transparência e de abertura ao
debate público. Com isso, formam-se maiorias que são forjadas
sem um amplo debate acerca da matéria, comprometendo-se a
legitimidade da norma aprovada. Desse modo, a legalidade resta
apartada da legitimidade.
Temos, ainda, a prática recorrente do culto da forma pela
forma, totalmente dissociada da motivação que inspirou a for-
mulação dos ritos e procedimentos empregados. Desse modo,
pode-se solapar a democracia mediante a manipulação dos ins-
trumentos formais da própria democracia, com desconsideração
dos valores substanciais que a inspiram. É o caso do emprego
abusivo de dispositivos que, em tese, encerram prerrogativas
dos parlamentares, mas que, utilizados de forma desarrazoada e 39
NEPEL
descontextualizada, desvirtuam a razão de ser desses preceitos.
Apela-se à literalidade da norma em detrimento do espírito que
a anima, dando-se de ombros para a teleologia que inspirou sua
formulação. E muitas vezes recorre-se a interpretações diversas,
conforme o lado em que se está na disputa política.
Tome-se o exemplo do destaque de votação em separado
(DVS). Tal instituto foi concebido para explicitar o dissenso na
busca do consenso possível. Assim, as questões consensuais são
votadas em bloco e as disposições que suscitam forte polêmica
são votadas em separado. Figure-se a hipótese de um projeto que
contenha um grande número de dispositivos. Isso, certamente,
pode virar um prato cheio para a oposição exercer suas práticas
obstrucionistas, apresentando diversos pedidos de destaque. Não
é à toa que o DVS já suscitou várias disputas jurídicas, sendo,
inclusive, objeto de alterações regimentais até mesmo casuísticas,
voltadas para a imposição de restrições a esse instituto, na confor-
midade do interesse das maiorias ocasionais. Bem sabemos que o
exagero nas práticas obstrucionistas decorre, em boa medida, de
uma tentativa de resistir à dominância exacerbada exercida pelas
maiorias no chamado presidencialismo de coalizão, com todas as
vicissitudes próprias desse sistema, resultando numa espiral de
práticas distorcidas em que uma leva à ocorrência de outra.
Novaes (2013) nos mostra a que ponto pode chegar o
emprego desmedido e desarrazoado das “prerrogativas” parla-
mentares, em artigo que aborda de modo crítico a bizarra sessão
do Congresso Nacional em que tais práticas chegaram às raias
do absurdo, quando se votava a Medida Provisória nº 595, a MP
dos Portos. O título do artigo é bem sugestivo de seu conteúdo:
“Quando a ordem vira desordem no processo legislativo”.
Cite-se, ainda, o exemplo da prática, no âmbito das casas
legislativas, de se condensar mais de um comando normativo num
só dispositivo de uma proposição legislativa, de modo a impedir
40 a incidência do veto governamental. Com efeito, a Constituição
NEPEL
estabelece que o veto parcial incida sobre texto integral de dispo-
sitivo, assim considerado o artigo, o parágrafo, o inciso e a alínea
(art. 66 § 2º). Ressalte-se que tal preceito constitucional foi con-
cebido precisamente para evitar que o chefe do Executivo vetasse

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
frases ou palavras isoladas da proposição aprovada, desvirtuando
seu sentido original e impondo à Casa Legislativa alcançar o quo-
rum de maioria absoluta para derrubar o veto governamental.
Assim, um dispositivo constitucional cujo objetivo era evitar o mau
uso do veto parcial pelo Executivo passou a “respaldar” a mali-
ciosa prática, já agora por parte do Legislativo, de condensar duas
disposições que, a rigor, seriam comandos autônomos, em um só
dispositivo, de modo a evitar o veto sobre a parte que, suposta-
mente, poderia encontrar oposição do chefe do Executivo. Vale
lembrar que a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de
1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e
a consolidação das leis, alterada pela Lei Complementar nº 107,
de 26 de abril de 2001, determina que, na redação das disposi-
ções legislativas, o conteúdo de cada artigo deve restringir-se a
um único assunto ou princípio, utilizando-se os parágrafos para
complementos explicativos ou restritivos do caput, bem como os
incisos e alíneas para as discriminações e enumerações (art. 11,
II, “b”, “c” e “d”). Mas, no contexto de desprezo pelo processo
legislativo, tal lei não tem feito a menor diferença, e segue a roti-
neira prática de se aglutinar mais de uma disposição autônoma
em um só artigo para imunizá-las contra o veto governamental.

Outra prática comum é o emprego abusivo de remissões feitas


tão somente para tornar o texto legal deliberadamente confuso,
sobretudo quando a matéria trata de questões nada republicanas,
daí o “zelo” pela opacidade.

Os exemplos citados bem demonstram o risco permanente de


desvirtuamento das exigências formais do procedimento legisla-
tivo, devendo-se ter presente que tais exigências devem buscar a
realização do princípio democrático, e não a sua negação. 41
NEPEL
A lista de práticas distorcidas e ilegítimas arroladas neste
estudo é meramente exemplificativa e poderia estender-se inde-
finidamente ante um meticuloso esforço de seleção, a ponto de
cansar o leitor. Os exemplos trazidos à colação bastam para evi-
denciar o grau de desapreço e desrespeito para com o processo
de elaboração legislativa. Conclusão inarredável: o processo legis-
lativo definitivamente não é levado a sério entre nós.

Como resultado prático, tem-se um quadro desolador: hipe-


rinflação legislativa, leis injustas, má qualidade normativa, explo-
são de litigiosidade, insegurança jurídica, desequilíbrio entre os
Poderes constituídos, entre outros.

Ante um quadro tão caótico, não é sem razão que temos


tantos problemas em nossas principais institucionalidades: no
sistema político, no sistema tributário, no sistema previdenciário,
entre tantas outras.

Ressalte-se, ainda, o cenário de grande insegurança jurídica


que daí resulta, pois qualquer juiz, no âmbito do controle difuso,
pode, incidentalmente, declarar a inconstitucionalidade de normas
resultantes dessas práticas, diametralmente contrárias ao texto
constitucional, as quais sobejam em nosso ordenamento jurídico.
Imagine-se o sem-número de medidas provisórias cuja expedição
não observou os requisitos constitucionais de relevância e urgên-
cia; quantas mais não se seguiram sem que se cumprisse, durante
sua tramitação no congresso, ao menos a exigência constitucional
de parecer da comissão mista para ajuizar da existência de tais
requisitos; figure-se, ainda, o quantitativo de leis aprovadas deri-
vadas de proposições que deveriam ter sido sobrestadas em razão
de vetos pendentes de deliberação por anos a fio; ou mesmo o
expressivo número de normas em pleno vigor que ingressaram
ilegitimamente no ordenamento jurídico por meio de emendas
frankenstein, sem relação de pertinência com a proposição princi-
42 pal. O rol de inconstitucionalidades é por demais extenso.
NEPEL
Vale lembrar que o vício de inconstitucionalidade é impres-
critível, de modo que pode ser impugnado a qualquer tempo.
Naturalmente, eventuais questionamentos judiciais nesses casos
demandariam uma solução que passa necessariamente pela expe-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
dição de decisões de caráter modulador pelo STF, tal como se
deu, como visto, por ocasião do julgamento da citada Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 4.029 e do Mandado de Segurança nº
31.816, em linha com a máxima de que o direito não pode colidir
com os fatos. Afinal, o direito existe para a vida, e não a vida para
o direito, na impagável lição de Miguel Reale (1996).

4. Jurisprudência, dogmática e ensino


jurídico: um círculo vicioso

A jurisprudência do STF em matéria de processo legislativo é


marcada por uma visão desjuridicizante, formalista e impregnada
de dogmatismo, mostrando-se totalmente incompatível com o
paradigma do Estado Democrático de Direito. Basta dizer que
aquela Corte só admite intervir em controvérsia procedimental
atinente à elaboração legislativa se a norma processual em ques-
tão tiver sede constitucional. Caso o conflito gire em torno de nor-
mas regimentais, haverá de ser solvido pelo próprio Parlamento,
pois configuraria, na visão do STF, matéria interna corporis. Dessa
perspectiva, eventual intervenção judicial violaria o princípio da
separação dos Poderes7.

Ora, vimos que o processo legislativo apresenta uma natureza


híbrida, pois ostenta tanto uma dimensão política, quanto uma
dimensão jurídica. A primeira diz respeito à tomada de decisões

7 Para um aprofundamento no tema, confira-se nossa obra “O controle jurisdi-


cional do processo legislativo” (BERNARDES JÚNIOR, 2009). Confira-se ainda
“Controle judicial e processo legislativo: a observância dos regimentos inter-
nos das casas legislativas como garantia do Estado Democrático de Direito”
(CARVALHO, 2002). 43
NEPEL
coletivamente vinculantes, a cargo dos representantes políticos.
Mas tais decisões devem observar os preceitos procedimentais
adredemente estabelecidos com vistas a proporcionar uma discus-
são em simétrica paridade de todos os envolvidos no operar legis-
lativo. Já aqui sobreleva a sua dimensão jurídica. O STF, ao eximir-
-se de intervir em controvérsias regimentais, reduz o processo
legislativo à sua dimensão exclusivamente político-deliberativa e
relega o fato de que tal procedimento acha-se normativamente
estruturado de modo a propiciar uma regulação imparcial e igua-
litária da produção da lei. Com isso, o procedimento legislativo
transcorre ao sabor das maiorias de ocasião, cujos interesses, não
raro, se mostram pouco afeitos a balizas jurídico-constitucionais.
De fato, as maiorias que compõem as casas legislativas não hesita-
rão em desprezar os ritos e procedimentos legislativos sempre que
esses representarem, a seus olhos, obstáculos para a realização
de seus interesses e objetivos, como sói ocorrer. Nesse passo, em
linha com o pensamento habermasiano, há que ressaltar que tais
procedimentos, longe de representarem obstáculos à atuação das
maiorias, são, na verdade, limites que não podem ser ultrapassa-
dos e, por isso mesmo, constituem condição de possibilidade de
igualdade e liberdade no processo de produção legislativa. São,
pois, condição de possibilidade da própria democracia.
Assim, nesse contexto de menoscabo do processo legislativo,
abrem-se as portas para os mais diversos abusos, como buscamos
demonstrar, os quais, ainda que questionados em juízo, terminam
por ser avalizados e acobertados por uma jurisprudência pouco
afeita à relevância do processo formativo das leis. Uma jurispru-
dência marcada por um dogmatismo estéril, que distorce e amplia
indevidamente a noção de questão interna corporis e subverte
por completo a ideia central do princípio da separação dos Pode-
res, que é exatamente evitar abusos e arbitrariedades.
De fato, controvérsias regimentais sobre processo legislativo
não são questões interna corporis, até porque se trata de normas
44 que presidem a elaboração de normas, por isso consideradas por
NEPEL
abalizada doutrina como disposições materialmente constitucio-
nais, como nos mostram Horta (1995, p. 530) e Carvalho Netto
(1992, p. 204-205); a intervenção judicial não fere a autonomia
do Parlamento, pois este não se reduz aos blocos políticos hege-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
mônicos, mas compõe-se de maioria e minoria, e esta última deve
ter seus direitos respeitados. Nesse ponto, é preciso dizer que
a violação à autonomia do Parlamento tanto pode ocorrer por
fatores externos – como seria a hipótese de o Judiciário intervir
não para assegurar as regras do jogo, mas para jogar o próprio
jogo, substituindo-se ao legislador na tomada de decisão política
– como também por fatores endógenos, como na hipótese em
análise, quando as maiorias, em um processo de autofagia da
sua legitimidade, atropelam os direitos das minorias; e por último,
longe de se violar o princípio da tripartição dos Poderes, uma
eventual intervenção do STF para fazer valer as normas que pre-
sidem a elaboração legislativa evitaria abusos e arbitrariedades,
essa sim, a ideia-força do aludido princípio constitucional, que se
prende muito mais à noção de equilíbrio do que propriamente à
ideia de separação rígida. Portanto, o STF, ao eximir-se de exami-
nar controvérsias regimentais, longe de se manter equidistante
das disputas políticas, está, ao contrário, tomando partido das
maiorias e convalidando abusos dos blocos políticos hegemôni-
cos, com base numa visão equivocada do princípio da separação
dos Poderes.
Nesse passo, é oportuno rever a máxima de que “decisão judi-
cial não se discute, cumpre-se”. Quanto à parte final, nenhum
reparo, pois decisão judicial deve ser cumprida, a bem da ordem e
da segurança jurídica, valores imprescindíveis à convivência social.
Mas decisão judicial deve ser discutida sim, sobretudo quando
contém inconsistências, como a que vimos de apontar. E, nesse
ponto, a ciência jurídica cumpre um papel essencial no Estado
Democrático de Direito, ao fornecer o instrumental teórico neces-
sário ao balizamento das possíveis leituras dos textos jurídicos,
como ensina Carvalho Netto (1992, p. 222). Realmente, o fenô- 45
NEPEL
meno jurídico ostenta uma inafastável dimensão textual, nas suas
múltiplas manifestações (doutrinária, jurisprudencial, legal), de
modo que é essencial para o operador jurídico socorrer-se de um
instrumental teórico que lhe permita balizar as possíveis leituras
desses textos, descartando entendimentos que comprometam a
unidade e a lógica interna do sistema.
Portanto, faz-se necessária uma doutrina mais sintonizada
com o paradigma do Estado Democrático de Direito e que exerça
efetivamente o papel que lhe cabe enquanto instância crítica das
decisões judiciais. Uma doutrina que dê mais atenção ao momento
de criação do direito, ao menos na mesma proporção em que
se debruça sobre o momento de aplicação do direito, até para
desincumbir-se a contento de seu importante papel de elemento
balizador das possíveis leituras dos textos jurídicos. Desse modo,
a dogmática exerce um duplo papel: fornecer um balizamento
para a adequada leitura dos textos jurídicos e para o seu correto
manejo pelos operadores do direito, bem como operar como ins-
tância crítica das decisões judiciais.
Outro indicativo do pouco apreço que dedicamos ao processo
legislativo, tanto na doutrina quanto no ensino jurídico, é a incor-
poração tardia entre nós da teoria e prática da chamada legística,
campo do conhecimento que se ocupa da concepção e da elabo-
ração da lei, de forma metódica e sistemática. A legística material
deve contribuir para evitar uma discussão enviesada, desprovida
dos subsídios e elementos necessários para uma boa decisão
legislativa. Ela contribui para o aprimoramento do processo de
elaboração legislativa para além dos ritos e formas, abordando
aspectos como diagnose legislativa, planejamento legislativo,
avaliação de impacto, abordagem multidisciplinar, entre outros.
É necessário, pois, que as faculdades de direito deem mais aten-
ção às disciplinas ligadas à elaboração legislativa, como processo
legislativo, técnica legislativa e legística.

46
NEPEL
Temos, pois, um cenário marcado por um ensino jurídico defi-
citário em termos de elaboração legislativa, uma doutrina pouca
afeita ao tema e uma jurisprudência falha e distorcida, sendo
certo que esses aspectos se reforçam mutuamente, um retroali-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
mentando o outro, de modo a se criar um círculo vicioso no que
concerne à elaboração legislativa.

5. Ativismo judicial em relação ao


direito posto x retraimento judicial
em relação ao modo de produção do
direito

Eis aí outro grande paradoxo: ativismo judicial quanto ao direito


posto; autocontenção quanto ao modo de produção do direito.
É razoável supor que haja uma conexão entre essas duas consta-
tações. A falta do devido controle durante a formação da norma
acaba implicando um controle mais amplo num momento poste-
rior. Aqui, faz-se oportuno o sábio dito popular segundo o qual é
melhor prevenir que remediar. Deve haver, pois, um controle mais
responsável e sério por ocasião da tramitação das proposições
legislativas, adstrito – que fique claro – à observância das regras
do jogo político, na linha preconizada por John Hart Ely (1980),
vedada, pois, a interferência judicial em aspectos conteudísticos
da decisão. Esses são atinentes a opções valorativas que devem
ficar a cargo de quem tem legitimidade popular para tomá-las.
Mas como tal controle entre nós é por demais acanhado, vemo-
-nos na circunstância de ter que remediar lá na ponta, vale dizer,
quando uma norma mal produzida é impugnada judicialmente. E
haja ativismo judicial e judicialização da política!
Portanto, é imprescindível o devido embasamento conceitual
para a otimização da prática e do labor cotidiano não só daqueles
que lidam com o assessoramento do processo legislativo, como
47
NEPEL
também dos que atuam no controle jurisdicional do fenômeno
procedimental. Há que se conferir a devida importância tanto ao
processo legislativo em si, por ocasião de seu transcurso, como
também ao controle judicial que sobre ele incide.
É preciso ter clareza quanto à insuficiência apenas do controle
judicial a posteriori, daí a necessidade de uma postura mais inci-
siva e menos leniente do Judiciário no controle do processo legis-
lativo em curso. Não basta o exame judicial apenas após a edição
da lei, pois ainda que se expurgue do ordenamento jurídico uma
norma em razão de um vício incidente sobre o processo legislativo
em um controle a posteriori, perde-se todo um rico trabalho de
discussão legislativa que poderia ser aproveitado se tal controle
judicial tivesse ocorrido no momento mesmo da tramitação da
proposição normativa, em relação ao ato viciado, escoimando-o
da cadeia procedimental, que seguiria seu curso normalmente.
Frise-se novamente: tal controle deve incidir sobre as regras do
jogo, mas não pode adentrar as decisões políticas, que expressam
preferências valorativas de quem detém um mandato popular
para fazê-las em nome do povo. Repise-se: uma coisa é intervir
para dirimir conflitos referentes às regras procedimentais que
regem as deliberações políticas. Outra, bem diferente, é interferir
no conteúdo mesmo dessas deliberações.
Outrossim, fala-se muito em ativismo judicial e no protago-
nismo do Judiciário no controle a posteriori, mas não se pode
perder de vista que tal problema deriva, em boa medida, da ino-
perância do Legislativo em relação a vários temas, ou mesmo do
modo negligente como se produzem as normas. De fato, muitas
vezes o Judiciário é alvo de críticas contundentes, quando, na ver-
dade, tais críticas deveriam ser endereçadas ao Legislativo, que,
em larga medida, contribui para o ativismo judicial. Não raro, o
Parlamento se omite para não ter que arcar com o ônus político
de decisões difíceis, restando ao Judiciário, uma vez provocado,
proferir sua decisão, pois, em razão do princípio do non liquet,
48
não lhe é dado eximir-se de decidir fundado na ocorrência de
NEPEL
lacuna normativa. Portanto, a inoperância do Legislativo decor-
rente do ônus político que adviria de determinadas decisões espi-
nhosas resulta na transferência dessas decisões para o Judiciário,
que, ao decidir, recebe as críticas pelo seu ativismo.

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
Nesse passo, é preciso dizer que, quando uma questão que
deveria originalmente ser resolvida no âmbito do Parlamento
migra para o Judiciário em razão da inoperância ou da inépcia
da casa legislativa, paga-se um alto preço por isso. Com efeito,
como explica Barroso (2017), a judicialização tem uma dimen-
são excludente, uma vez que poucos podem arcar com os custos
de um processo judicial, que afasta do debate a maior parte das
pessoas, ficando a discussão restrita às partes litigantes. A judi-
cialização pressupõe ainda um rito próprio, marcado pelo her-
metismo da linguagem jurídica, o famigerado juridiquês. Assim,
deve-se reduzir quanto possível a judicialização, tendo em conta
fatores como legitimidade democrática, capacidade institucional
do órgão decisor e participação no debate público. Desse modo,
há que se envidar esforços no sentido de prestigiar a ação do Par-
lamento, que é o fórum próprio para a tomada de decisão acerca
das grandes questões de interesse coletivo, reduzindo-se, tanto
quanto possível, o excessivo protagonismo judicial.

6. Processo legislativo, Parlamento e


democracia

A democracia contemporânea pressupõe a interação entre


as instâncias oficiais de poder e a sociedade em geral, sendo
certo que o Poder Legislativo é, entre os Poderes constituídos,
o mais democrático, o mais permeável à participação popular e
o mais plural. Desse modo, é ao Parlamento que deve caber o
protagonismo na elaboração legislativa. Todavia, conforme visto,
inobstante o Legislativo seja, por expressa determinação constitu-
cional, o Poder que deveria protagonizar a função de produção
49
NEPEL
normativa, ele abdica de suas prerrogativas em favor do Execu-
tivo – como na questão dos vetos e das medidas provisórias, aqui
debatidas – ou em favor do Judiciário, quando, por inoperância,
proporciona vácuos normativos que acabam sendo preenchi-
dos pelos tribunais em demandas judiciais. Isso é péssimo para
a democracia. A partir do momento em que tal protagonismo
migra para o Executivo ou mesmo para o Judiciário, esvazia-se a
democracia e o princípio democrático perde substância.
É preciso resgatar com urgência a relevância do Parlamento
enquanto arena democrática e locus ideal para propiciar o mais
amplo debate público sobre as normas regentes da vida social.
Quando a produção das normas jurídicas passa a ter como fonte
principal o Poder Executivo, deixando em plano secundário o Par-
lamento, as perdas, em termos democráticos, são imensuráveis.
Isso por razões óbvias, pois, como visto, é o Parlamento um órgão
colegiado, de representação plural da sociedade, e, entre os Pode-
res constituídos, o mais permeável à participação dos cidadãos,
ao passo que a Presidência da República constitui uma instância
unipessoal de poder.
Tome-se o exemplo da pandemia do coronavírus, que impac-
tou sensivelmente as relações de trabalho, ante a necessidade do
confinamento social. Se dependesse do governo, por medida pro-
visória, produzida nas frias instalações da tecnocracia estatal, sem
discussão, sem contraponto, os trabalhadores não teriam direito
a praticamente nada. Era exatamente essa a proposta do governo
federal, que previa a possibilidade de suspensão do contrato de
trabalho por quatro meses, para que o empregado participasse
de curso de capacitação e treinamento à distância, fornecido pelo
empregador, sem que o trabalhador recebesse um centavo sequer
de salário, embora a MP falasse vagamente na possibilidade de
uma “ajuda compensatória mensal” pactuada (MP 927). Desone-
rava-se o empregador de qualquer encargo trabalhista, e o traba-
lhador que se virasse durante aquele período. Ante tal proposta
50
draconiana, melhor seria, para o trabalhador, ser demitido, pois
NEPEL
isso ensejaria ao menos o pagamento de encargos trabalhistas de
natureza indenizatória. A indignação em face dessa medida pro-
visória foi geral e, graças a forte reação do Congresso Nacional,
chegou-se a uma normatização mais justa e sensível à situação da

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
classe trabalhadora, com disposições sobre redução de jornadas e
antecipação de férias para tentar equacionar a questão, além da
previsão de recursos da seguridade social para remunerar os dias
não trabalhados.
Quanto aos trabalhadores informais e aos autônomos, a pro-
posta inicial do governo previa uma ajuda de míseros 200 reais
como auxílio emergencial! Diante da grita generalizada que tam-
bém se seguiu a mais essa proposta indecente, coube ao Con-
gresso Nacional aprovar por lei o auxílio no valor de 600 reais
(Lei nº13.982/2020), já aqui em um ambiente de ampla discussão
pública, após várias tratativas e propostas apresentadas.
Naturalmente, tudo isso só foi possível em razão da gravidade
da situação da pandemia, que impactou de maneira sensível as
relações de trabalho, como de resto alterou profundamente todos
os aspectos da vida social, monopolizando a atenção de todos.
Mas bem sabemos que, em condições de normalidade, o contexto
é bem diferente e a utilização excessiva das medidas provisórias
leva a abusos que, muitas vezes, ficam sem a devida correção.
Portanto, um olhar mais atento ao processo de elaboração
legislativa significa, em última análise, um cuidado e um apreço
maior para com a própria democracia. Isso é fundamental, sobre-
tudo em um País com tantas desigualdades e assimetrias sociais.
Devemos, pois, fomentar na sociedade em geral o espírito
participativo e a conscientização da importância do engajamento
político de todos para a resolução das questões pertinentes à
coletividade. Uma população devidamente esclarecida e partici-
pativa daria o seu aval para a aprovação de uma medida legislativa
que lhe é tão prejudicial, como a Emenda Constitucional nº95, e
que importa na contenção de gastos primários, comprometendo
51
NEPEL
programas sociais e investimentos em infraestrutura? Por que não
uma discussão séria sobre uma PEC do teto dos juros do serviço
da dívida pública, como sugere Ladislau Dowbor (2017)?
Um olhar mais atento ao processo de elaboração legislativa
nos levaria, inclusive, a ricas reflexões sobre qual o melhor arranjo
institucional para tornar o debate público ainda mais plural, par-
ticipativo e igualitário, na linha preconizada por Flávia Pessoa
Santos. A autora busca vislumbrar mecanismos institucionais que
propiciem a máxima discussão acerca da matéria sob tramitação,
de modo a que sejam incorporados ao debate todos os potenciais
conflitos atinentes à questão. Assim, restaria ampliada a possi-
bilidade de deliberar a partir dos mais diversos pontos de vista
relevantes para o adequado tratamento legislativo do assunto em
tela. (SANTOS, 2017).
A advertência que fazemos acerca da pouca atenção que se dá
ao processo legislativo se mostra ainda mais pertinente quando
nos damos conta de que o Parlamento tanto pode ser uma instân-
cia de construção de cidadania como também pode degenerar-se
numa instância de exclusão de cidadania. E a postura dos cida-
dãos, entre tantas outras coisas, vai ser determinante num sentido
ou noutro. Cidadania não é só na hora do voto. Na verdade, ela
precede mesmo o momento eleitoral, pois, antes de comparecer
às urnas, o cidadão deve buscar inteirar-se dos candidatos e de
suas propostas para fazer uma escolha consciente. Trata-se, mais
propriamente, de uma questão de atitude cívica. E, claro, uma
atitude cidadã pressupõe também indivíduos que se mantêm
vigilantes acerca da conduta de seus representantes, em linha
com a teoria da chamada democracia monitória, de John Keane
(2010), bem como também cidadãos participativos, na medida do
possível. Essa é a ideia de cidadania dinâmica, e não estática, pois
pressupõe uma postura ativa dos cidadãos não só por ocasião das
eleições, mas também durante os interstícios eleitorais.

52
NEPEL
Figure-se, por exemplo, a questão da alocação dos recursos
públicos. O cidadão deve saber como é gasto todo esse dinheiro,
bem como participar ativamente da elaboração das leis orçamen-
tárias, que definem como se dará a alocação dos recursos públi-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
cos. Segundo o escritor e economista Eduardo Giannetti (2020),
39% da renda nacional passa pela intermediação do Estado,
pois 33% do PIB é tributo, e o Estado ainda gasta 6% a mais
do que arrecada. Na síntese lapidar de Giannetti, precisamos de
mais Brasil, menos Brasília. Temos uma alta carga tributária com
uma retribuição pífia em termos de serviços públicos. A propósito,
na feliz expressão de Ignácio Ramonet (apud SADER, 2007), “os
serviços públicos constituem o patrimônio daqueles que não têm
patrimônio”. E boa parte da população brasileira, dada a péssima
distribuição de renda que temos, depende fundamentalmente dos
serviços públicos. Será que em um ambiente de maior informação
e de práticas participativas, a sociedade se mostraria favorável a
orientações governamentais e decisões legislativas que privilegiam
o pagamento de uma dívida pública impagável e juridicamente
indevida, em detrimento de políticas públicas voltadas para a
população em geral? É nesse sentido que aponta a aprovação
da Emenda Constitucional nº 95, como visto, que instituiu o teto
de gastos, a qual importa em contenção de gastos primários, ao
mesmo passo em que o céu se torna o limite quando em pauta o
pagamento do serviço da dívida. Ou seria ainda a sociedade favo-
rável à instituição, entre nós, do anatocismo (cobrança de juros
sobre juros), a causar a escravidão financeira das pessoas, e ainda
veiculado por medida provisória?
Para uma sociedade minimamente esclarecida e politizada,
seriam inadmissíveis absurdos institucionalizados, como, por
exemplo, uma forte tributação sobre o consumo, de caráter niti-
damente regressiva, e a não incidência de imposto sobre grandes
fortunas, ou sobre lucros e dividendos; a incidência do IPVA para
quem possui um carro, ainda que de modesto valor, mas não para
o proprietário de helicóptero, jatinho particular ou iate (inequívo-
53
NEPEL
cos sinais exteriores de riqueza). Tudo isso em aberto litígio com
o princípio da capacidade contributiva, inscrito no texto constitu-
cional. Por que deixar para nos indignarmos quando a norma já
está posta – quando fica bem mais difícil contrapor-se a ela – em
vez de nos indignarmos por ocasião da tramitação de propostas
legislativas tão indecorosas como essas? E o que dizer dos privilé-
gios dos bancos? Não seria o caso de se limitar normativamente
a cobrança abusiva de tarifas pelas instituições financeiras, que,
só com isso, faturam anualmente mais de 100 bilhões de reais,
como nos mostra Moreira (2017, p. 40)? Para não falar do lucro
estratosférico de tais instituições com a cobrança abusiva de juros
escorchantes, respaldadas por uma política creditícia que só faz
drenar recursos das instâncias produtivas para o setor bancário.
É bem provável que, se dedicássemos mais atenção ao processo
legislativo, talvez não estivéssemos tão indignados com tantas
normas disparatadas, não ao menos no grau e na dimensão que
o problema assumiu no País.
Portanto, um olhar mais atento ao momento de criação do
direto tende não só a contribuir para a melhoria da qualidade da
produção normativa, como, ainda, a fomentar e robustecer nossa
democracia. Ao revés, o menoscabo pelo processo de elaboração
das leis fragiliza a democracia e fere de morte a cidadania.

7. Processo legislativo e fatores reais de


poder

Embora o processo legislativo tenha sido concebido para ideal-


mente propiciar uma participação igualitária, em simétricas condi-
ções, de todas as correntes político-ideológicas representadas no
Parlamento, é preciso reconhecer que, na prática, há o concurso
de fatores reais de poder que tornam o processo decisório bas-
tante assimétrico. Desse modo, fatores como o lobby, o acesso
privilegiado aos canais institucionais de transformação política, o
54
NEPEL
acesso facilitado à mídia, ou mesmo o controle da mídia, o poder
econômico, tudo isso em boa medida contribui para tornar o pro-
cesso de elaboração legislativa extremamente desigual.
No outro extremo, há parcelas significativas da sociedade

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
que, dada sua situação de grande vulnerabilidade, não conse-
guem sequer vocalizar suas demandas e necessidades, as quais,
portanto, não são sequer incorporadas ao debate público, ao
tradicional embate entre maioria e minoria, para o qual tende a
refluir o entrechoque das diversas correntes político-ideológicas
com assento no Legislativo.
Portanto, essas gritantes diferenças sociais inviabilizam o
acesso de significativas parcelas da sociedade aos canais institu-
cionais de transformação política, ao mesmo passo em que seg-
mentos privilegiados têm acesso facilitado a tais canais, o que, em
boa medida, acaba por deslegitimar o processo decisório.
De fato, somos um País profundamente desigual e com uma
péssima distribuição de riqueza, que se concentra nas mãos de
poucos. O desprezo habitual pelo processo de elaboração legisla-
tiva contribui ainda mais para retroalimentar tantas desigualdades.
Entre os fatores reais de poder que acabam por deslegitimar o
processo legislativo, ganha especial destaque o sistema financeiro
global. A propósito, recomendamos a leitura da obra do Pro-
fessor Ladislau Dowbor (2017), “A era do capital improdutivo”,
que demonstra com uma clareza meridiana como se dá esse
mecanismo de dominância do capital financeiro e de sua nefasta
interferência na agenda pública. Numa visão realista, não pode-
mos deixar de reconhecer a fragilidade do processo legislativo
democrático frente a essa nova arquitetura mundial do poder,
alicerçada nos grandes conglomerados financeiros.
Como nos mostra Ladislau Dowbor (2017) o grande capital
financeiro se apropria do excedente social e o acúmulo de dinheiro
é de tal ordem que não tem como se transformar em consumo,
55
NEPEL
nem mesmo de sucessivas gerações, de modo que ele se converte
em poder político. Em termos mais concretos, ele se transmuda
no poder de influenciar as eleições, financiando-as, no poder que
compra a mídia, que forja narrativas, que se blinda juridicamente.
Veja-se o exemplo do serviço da dívida pública, que sempre
abocanha expressiva parcela do orçamento estatal, sem que isso
seja amplamente tematizado a partir de uma perspectiva crítica.
Se é para impor contingenciamentos, o establishment determina
que esses incidam sobre os gastos primários! Nada de teto para o
serviço da dívida! Pouco importa se isso sacrifica a maior parte da
população, pois restam comprometidos os programas sociais, os
serviços públicos e os investimentos em infraestrutura.
Outro bom exemplo é o da reforma da previdência, que tam-
bém passou longe de uma cobertura midiática minimamente
justa, de modo que se emplacou a narrativa de que são os ser-
vidores públicos os verdadeiros vilões da previdência. A ironia é
que, mesmo entre os servidores, mantiveram-se os privilégios de
algumas poucas castas, enquanto a grande massa dos agentes
públicos que presta relevantes serviços à sociedade saiu prejudi-
cada com a reforma.
O caso das instituições bancárias é emblemático. Não se vê
a grande mídia apresentar críticas às instituições financeiras,
embora sejam essas as responsáveis pela drenagem de boa
parte dos recursos socialmente produzidos, seja pela cobrança
de juros escorchantes, seja pela instituição de infindáveis tarifas
a preços absurdos. Basta dizer que, mesmo na pandemia, os
bancos anunciaram lucros exorbitantes, em meio a uma crise
generalizada nos demais setores da economia. Mas, nada de
críticas da grande mídia… afinal, tais instituições são os princi-
pais anunciantes dessas empresas de comunicação e o poder do
dinheiro fala mais alto.
A propósito de uma narrativa talhada para atender aos inte-
resses do setor financeiro, figure-se o exemplo da recorrente
56
NEPEL
discussão sobre juros altos para evitar a inflação. Isso é o que
aparece na grande mídia, embora não faltem vozes abalizadas,
como a do professor DOWBOR (2017), a denunciar o verdadeiro
objetivo de juros em níveis escorchantes, que é precisamente

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
o de proporcionar a transferência de recursos públicos para
o setor financeiro, que passa a prevalecer sobre as atividades
produtivas. Como nos mostra Dowbor, vincular a absurda alta
dos juros ao risco de inflação é um verdadeiro despropósito,
pois não há demanda superior à oferta. Ocorre justamente o
contrário no País, com as indústrias operando com menos de
70% de sua capacidade instalada. Mas qual a versão que sai na
grande mídia? Com isso, instaura-se um perverso mecanismo
de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos,
drenando-se tais recursos para o setor financeiro, de caráter
especulativo, e não para o setor produtivo, comprometendo-
-se a renda das famílias, os investimentos empresariais e os
investimentos públicos em programas sociais e em infraestru-
tura, os quais, em conjunto, compõem justamente os motores
que dinamizam a economia (DOWBOR, 2017). A propósito, o
professor Ladislau Dowbor tem desenvolvido a ideia de “demo-
cracia econômica”, que parte da concepção de que a própria
economia tem de ser democratizada, com novos mecanismos de
regulação, transparência, participação e controle democrático.
(DOWBOR, 2017).
Considere-se também a questão da reforma tributária: o foco
da grande mídia invariavelmente recai sobre a simplificação do
sistema tributário. Não que ela não seja importante – na ver-
dade é até imperativa. Mas não é a prioridade. A prioridade é
um sistema tributário mais justo, igualitário, que efetivamente
consubstancie o princípio da progressividade. O atual sistema
tributário é injusto, iníquo, regressivo, ao tributar essencial-
mente produção e consumo e aliviar na tributação sobre renda
e patrimônio.

57
NEPEL
A propósito, o que dizer do dispositivo constitucional acerca
do imposto sobre grandes fortunas (art. 157, VII)? Trata-se de
norma que há anos aguarda regulamentação e que parece ter
cumprido seu papel simbólico e retórico de apenas acenar para a
realização da justiça, mas desde que não passe disso… um mero
aceno, como eterna promessa fadada a nunca ser cumprida. Ao
que parece, tal dispositivo continuará a reverberar no vazio.
Assim, embora a Constituição preveja a instituição do
imposto sobre grandes fortunas, a cargo de legislação integra-
dora, essa nunca é editada; como mencionado, não há tributa-
ção sobre lucros e dividendos; cobra-se IPVA de proprietários de
carro, mas não de quem possui helicóptero, jatinho particular ou
iate. Como se vê, tudo isso em flagrante violação ao princípio da
capacidade contributiva, expressamente previsto no texto cons-
titucional (art. 147, § 1º).
Esses são apenas alguns exemplos de como fatores reais de
poder interferem na formação da agenda política, determinando-a
e moldando-a segundo seus interesses.
Frise-se que esse agigantamento do poder financeiro, que
acaba comprometendo a democracia, não ocorre só no Brasil,
mas também no âmbito dos demais países mundo afora, e não só
no âmbito doméstico de cada país, mas também no plano inter-
nacional, quando então se tem todo um grande conglomerado
financeiro organizado e articulado que não tem como ser con-
trolado por um poder político fragmentado em mais ou menos
200 países, como demonstrado por Ladislau Dowbor (2017). Mas,
aqui no Brasil, essa dominância se dá de modo ainda mais acacha-
pante. Certamente, isso se deve em boa medida ao pouco caso
que damos ao processo de elaboração legislativa, o que torna
ainda mais fácil aos setores financeiros imporem as normas que
melhor atendam a seus interesses, como se deu, conforme visto,
com a institucionalização do anatocismo entre nós pela via da
medida provisória.
58
NEPEL
8. Considerações finais

A gênese democrática das leis depende das condições comu-


nicacionais de sua produção, daí a importância de uma raciona-

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
lidade procedimental que propicie a mais ampla discussão nas
casas legislativas. Essa racionalidade instrumental evidencia a
íntima relação existente entre forma e matéria como expressão da
relação entre legitimidade e legalidade.
Portanto, temos que levar o processo legislativo a sério e
fomentar uma cultura de responsabilidade e seriedade na pro-
dução da lei. Nesse sentido, o primeiro passo para resolver um
problema é diagnosticá-lo, reconhecê-lo. Parece que nem isso
fizemos ainda quanto ao menoscabo em relação ao processo
legislativo, que segue sem receber a merecida atenção. O objetivo
deste trabalho, para além de chamar a atenção para a relevância
do processo de produção das leis como fator de legitimação do
direito, é apontar caminhos que possam modificar esse quadro.
Um desses caminhos consiste em fomentar processos e práticas
participativas. Frise-se, uma vez mais, que é expressão de cidada-
nia não só conhecer os próprios direitos, mas, sobretudo, conhe-
cer e participar do modo de produção desses direitos, o que tende
a minimizar as injustificáveis desequiparações presentes em nossa
legislação.
Outro ponto sensível diz respeito ao controle jurisdicional do
processo legislativo, que há muito está a merecer uma nova reo-
rientação jurisprudencial, consentânea com a relevância e a razão
de ser do procedimento legislativo em um regime que se pretende
efetivamente democrático. A jurisprudência atual é marcada por
um dogmatismo estéril, que distorce o sentido da questão interna
corporis, subverte a ideia-chave do princípio da separação dos Pode-
res – a de evitar o abuso do poder, precisamente o que não ocorre
atualmente – e leva a um quadro inteiramente favorável ao arbítrio
da maioria. Sem falar no formalismo do critério do locus normativo
59
NEPEL
como determinante para legitimar a intervenção do Judiciário no
processo de elaboração legislativa. Ou seja, sob tal ótica distorcida,
o STF só deve intervir para dirimir controvérsias incidentes sobre
normas procedimentais de sede constitucional, pois conflitos sobre
normas regimentais devem ficar a cargo do Parlamento. Como se
fosse possível racionalizar mediante fórmulas apriorísticas, e não
por meio de princípios operacionais, como o princípio democrático.
Vale ressaltar que a timidez do STF na apreciação judicial do
processo legislativo facilitou a proliferação de práticas ilegítimas,
sobretudo por parte do Executivo – mas não só –, em especial,
no emprego abusivo das medidas provisórias, vicejando, nesse
contexto, inúmeras inconstitucionalidades.
Uma vez mais repisamos que esse conjunto de práticas nega-
tivas no âmbito da elaboração legislativa apontadas neste estudo
propiciam um deslocamento de poder do Legislativo para o Exe-
cutivo, em descompasso com todo nosso arcabouço constitucio-
nal, que, em tese, reservou ao Poder Legislativo o protagonismo
no campo da produção das leis. Mas, na prática, o Parlamento
tem-se tornado, muitas vezes, um mero coadjuvante em matéria
de edição de atos normativos, restando todo o protagonismo ao
Poder Executivo, seja quanto ao volume dos atos normativos edi-
tados, seja quanto à definição da agenda legislativa.
Assim, em termos de processo legislativo, temos, no concerto
entre os Poderes constituídos, uma indevida hipertrofia do Exe-
cutivo, uma notória desídia do Legislativo quanto a suas prer-
rogativas constitucionais e a incúria do Judiciário, que, quando
acionado, não desempenha a contento o importante papel de
garante supremo das regras do jogo democrático. Antes, ostenta
um evidente retraimento quando provocado para dirimir contro-
vérsias relativas à elaboração legislativa, em contraste, paradoxal-
mente, com posturas ativistas em relação ao direito positivo.
À vista de todo o exposto, resulta risível, para dizer o mínimo,
o disposto no art. 49, V, da Constituição da República, segundo
60
NEPEL
o qual é da competência exclusiva do Congresso Nacional “zelar
pela preservação de sua competência legislativa em face da atri-
buição normativa dos outros Poderes”.
É claro que um cenário como esse, de tamanho descaso para

1. Levando o modo de produção dos direitos a sério: o direito fundamental ao devido processo legislativo
com a função legiferante, só se torna possível graças a uma
postura leniente e irresponsável do Congresso, que acaba por
demitir-se de suas prerrogativas constitucionais.
O aperfeiçoamento da elaboração legislativa é uma exigência
inafastável para a consolidação da democracia e para o exercí-
cio da cidadania. Isso passa necessariamente por uma mudança
de mentalidade, não só entre a classe política, mas também na
comunidade jurídica e mesmo na sociedade em geral. Impõe-se
um olhar mais atento ao modo de produção do direito, o que só
faz robustecer a democracia.
É preciso, pois, pôr em perspectiva crítica o processo legisla-
tivo, tanto a teoria quanto a prática. Há que se ter clareza em
relação ao modo como tal processo deve estar estruturado, bem
como a que ele se destina, e o que tem efetivamente ocorrido
em nossa realidade institucional. Vale lembrar que práticas dis-
torcidas não invalidam as teorias. Devemos, sim, envidar esforços
para afastar tais práticas, o que deve ser feito em várias frentes
de atuação: na academia, com uma revisão da grade curricular,
de modo a se conferir a devida atenção a disciplinas ligadas à
elaboração legislativa; na doutrina, que deve se debruçar sobre
o processo legislativo com o mesmo empenho e labor intelectual
dispensado ao direito já positivado, e exercer um controle crítico
das decisões judiciais. De sua parte, o Judiciário, em especial o
STF, deve internalizar o seu papel de instância contramajoritária, a
permitir o justo equilíbrio entre democracia e constitucionalismo,
entre a soberania popular e os limites constitucionais, entre a
fonte e os limites do exercício do poder, de modo a evitar abusos
da maioria. Tal papel já parece suficientemente entronizado pela
Corte no que se refere ao controle de constitucionalidade das
61
NEPEL
leis. Porém, essa dimensão de instância contramajoritária tem-se
perdido quando se trata da elaboração legislativa e está sendo
obscurecida por uma visão marcada por um dogmatismo estéril,
que amplia indevidamente o alcance da noção do que seja maté-
ria interna corporis, distorce a ideia de autonomia do Parlamento,
tomando-a como se fora a autonomia dos blocos políticos hege-
mônicos – que desrespeitam as regras do jogo político – , e ainda
subverte a ideia-força do princípio da separação dos poderes, qual
seja, evitar o abuso de poder.
Quanto à sociedade em geral, é preciso fomentar uma cultura
participativa, de modo a promover um maior engajamento dos
cidadãos nas questões de interesse público. Impõe-se reforçar o
senso de pertencimento à coletividade, o que implica não só direi-
tos de participação, mas também um dever cívico de colaborar
para a construção de uma sociedade mais igualitária e democrá-
tica. Portanto, educação, conscientização política e mobilização
cidadã voltada para o fortalecimento e a democratização de
nossas instituições públicas constituem o caminho seguro rumo
à consolidação de um autêntico Estado Democrático de Direito.

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64
NEPEL
2
FINANCIAMENTO
DE CAMPANHA
E LOBBYING NA
ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DE
MG: UM ESTUDO
DE CASO SOBRE
O SETOR DE
MINERAÇÃO*
Manoel Leonardo Santos**
Ciro Antônio da Silva Resende***

Eduardo Moreira da Silva****

*Os autores agradecem os comentários prévios de Guilherme Wagner Ribeiro (ALMG). Suas
observações ao texto inicial agregaram muito à versão final.
** Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor
do Dep. de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do
Centro de Estudos Latino- americanos (Cela) da UFMG.
*** Doutorando e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da UFMG (CEL-UFMG).
**** Pós-doutor, doutor e mestre em Ciência Política pela UFMG. Professor Adjunto do Depar-
tamento de Ciência Política da UFMG.
2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre
1. INTRODUÇÃO

Numa democracia, decisões políticas são, invariavelmente,


tomadas em contextos de múltiplas influências. Varia o grau de
abertura dos sistemas políticos a essas influências, a depender do
desenho institucional. Desenhos institucionais dotados de meca-
nismos participativos são mais inclusivos, vis-à-vis modelos volta-
dos exclusivamente para a representação de origem eleitoral. Mas,
independente do desenho institucional, a assimetria de recursos
entre grupos na sociedade gera um viés na representação política.
Como afirma o cientista político Adam Przeworski,

Em qualquer sociedade de mercado os recursos


que os participantes podem trazer para a competi-
ção pela influência política são desiguais. A igual-
dade de direitos não é suficiente para sustentar
a igualdade de influência política, em sociedades o setor de mineração.
economicamente desiguais. (PRZEWORSKI, 2011,
p. 36).

Quando cidadãos, movimentos sociais e grupos de interesse


têm suas reivindicações sistematicamente ignoradas no processo
decisório em relação a grupos poderosos que gozam de influ-
ência desproporcional, as consequências decorrentes desse dese-
quilíbrio podem ser muito negativas. Elas podem gerar injustiça,

67
NEPEL
privilégios não justificáveis e ganhos desproporcionais, minando a
legitimidade da democracia.
A arena legislativa é um espaço privilegiado para a represen-
tação plural dos interesses. Embora não seja o único espaço onde
se pode exercer influência política, por ser um órgão colegiado de
ampla representação, para lá convergem grupos organizados da
sociedade, em busca da defesa de suas causas e interesses. E esse
fenômeno tem sido crescente no sistema político brasileiro, pelo
menos desde a redemocratização.
Estudos que analisam a Câmara dos Deputados registram
que, desde a Constituição Federal de 1988, é crescente atuação
legislativa de grupos de interesse que pautam suas ações com
o objetivo de influir no processo decisório (SANTOS, 2014). Na
Assembleia Legislativa de Minas Gerais – ALMG - não é diferente.
Além da tendência de maior participação, consequência esperada
com a redemocratização, é notório o esforço da ALMG em ino-
var no que se refere aos mecanismos de participação ampliada,
a exemplo dos Seminários Legislativos1. Ou seja, à medida que a
democracia amadurece e se torna mais inclusiva, o Legislativo se
converte em uma arena cada vez mais marcada pela competição
por influência.
Esse fenômeno vem gerando uma consequência importante,
que se observa cada vez mais no sistema político brasileiro: a pro-
fissionalização da atividade de lobbying. Embora essa profissio-
nalização não seja tão recente (ARAGÃO, 1994; DINIZ; BOSCHI,
1999; MANCUSO, 2004, 2007) nem exclusividade dos segmentos
empresariais, como se poderia pensar, ela está mais presente
entre os grupos com maior poder econômico (SANTOS; BAIRD;

1 O primeiro Seminário Legislativo, sob a denominação de “Educação: a hora


da chamada”, ocorreu entre os dias 21 e 24 de outubro de 1991 e foi a
primeira tentativa de se criar um novo lócus de interação entre o Poder Legis-
lativo mineiro e a sociedade. Desde lá, os seminários passaram por mudan-
ças, sempre buscando o aperfeiçoamento de sua metodologia, mostrando o
direcionamento claro no sentido de qualificar a participação da sociedade no
68 processo decisório (ORNELAS, 2011).
NEPEL
MANCUSO; RESENDE, 2017). Assim, lobbies profissionalizados
podem influir de maneira assimétrica na competição por influên-
cia no processo decisório.
Outro aspecto que seguramente tem efeito sobre essa assime-

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


tria de influência é o financiamento de campanhas por empresas.
A relação entre o financiamento eleitoral e a influência pode ser
pensada de três formas. A primeira é que, uma vez financiado pelo
setor empresarial, o parlamentar usaria seu mandato em favor dos
seus financiadores. A segunda é que, atuando em favor de um
determinado setor, o parlamentar pode fazê-lo visando o finan-
ciamento futuro, nas próximas eleições. E a terceira aponta para
um compromisso de longo prazo, que combina as duas estraté-
gias. Em qualquer uma delas, o poder econômico é determinante
para tornar assimétrica a influência em favor dos financiadores.
Em que pesem os estudos realizados a nível nacional sobre
lobbying e financiamento de campanha, sabe-se pouco sobre
esse fenômeno em nível subnacional. Isso justifica o esforço aqui
empreendido, replicando o método de análise para a ALMG. Por-
tanto, neste capítulo, procura-se analisar a atuação dos grupos de
interesse econômicos na ALMG, vis-à-vis outras organizações da
sociedade civil.
Trata-se de um estudo de caso do setor da mineração, e sua
capacidade de influência no processo legislativo. O estudo busca o setor de mineração.
elucidar a seguinte questão: em que medida o financiamento de
campanha e o lobbying do setor de mineração estão presentes no
parlamento mineiro, e quais suas consequências?
Além desta introdução, a seção dois descreve o caso selecio-
nado, justificando sua escolha, e apresenta a estratégia analítica
adotada no capítulo. A seção três apresenta os principais resul-
tados derivados da análise do montante total de recursos des-
tinados ao financiamento das campanhas dos candidatos e dos
deputados estaduais ativos na legislatura em estudo. A seção
quatro descreve as policy networks formadas em torno da Comis- 69
NEPEL
são Permanente de Minas e Energia e da Comissão Extraordinária
das Barragens, tomando como referência a presença de grupos
de interesse nas audiências públicas realizadas. Nas considerações
finais, são apresentadas as principais contribuições do capítulo,
com destaque para os avanços e o possível do aperfeiçoamento
das regras de financiamento eleitoral e da regulamentação do
lobbying.

2. O caso e as estratégias analíticas

A escolha do setor de mineração justifica-se pela elevada


centralidade que possui na economia mineira. Minas Gerais é o
maior estado minerador do país, com atividades desenvolvidas em
mais de 250 municípios, nos quais existem mais de 300 minas em
operação. Destaca-se, ainda, o fato de que, entre os 10 maiores
municípios mineradores do país, 7 estão localizados em Minas
Gerais, sendo Itabira o maior deles. Ressalta-se também o fato
de o estado ser o responsável por 59% da produção de minerais
metálicos e 29% do total de minerais. São extraídos das supraci-
tadas minas, anualmente, cerca de 160 toneladas de minério de
ferro (INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO, 2012).

O peso do setor na economia mineira não é a única razão


que justifica a escolha do caso. Nos últimos anos o setor foi mar-
cado por dois acontecimentos graves, as tragédias de Mariana,
em 2015, e Brumadinho, em 2019. Essas tragédias colocaram o
setor nos holofotes da mídia, e sob severa crítica da sociedade,
há, pelo menos, cinco anos. E isso teve consequências nas ações
do legislativo mineiro.

Ainda em 2015, foi criada a Comissão Extraordinária de Bar-


ragens, com a finalidade de realizar estudos, promover debates e
propor medidas de acompanhamento das consequências sociais,
70 ambientais e econômicas da atividade mineradora no estado,
NEPEL
notadamente no que tange ao rompimento das barragens ocor-
rido em Mariana, seus desdobramentos e ações de recuperação
dos danos causados, bem como discutir a situação de outras bar-
ragens existentes no estado. A comissão iniciou suas atividades

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


em 12 de novembro 2015, e as concluiu em 07 de julho 2016.
Em 2018, o tema do Seminário Legislativo foi Minas de Minas.
Naquela ocasião, a Comissão de Representação do Seminário
Legislativo apresentou à Comissão de Minas e Energia propostas
que foram consideradas prioritárias, e elas foram recebidas pela
Comissão de Minas e Energia, que passou a apreciá-las. Esse dado
revela a relevância que o tema tomou, passando a se tornar cen-
tral nos debates legislativos.
Em 2019, esse longo processo culminou com uma nova legis-
lação instituindo a política estadual de segurança de barragens,
que foi aprovada pela ALMG e sancionada sem vetos pelo gover-
nador2. Uma mudança institucional significativa, em resposta ao
ocorrido. A nova lei acatou quase todas as propostas contidas
no PL 3.695/16, de iniciativa popular, conhecido como “Mar de
Lama Nunca Mais”, e no PL 5.316/18, do deputado João Vítor
Xavier (PSDB). Para muitos, trata-se legislação avançada. Inédita
no Brasil, a lei deve ajudar a evitar que continuem ocorrendo tra-
gédias com as que aconteceram recentemente.
A opção por um estudo de caso, considerando um setor espe- o setor de mineração.
cífico, também tem razões metodológicas. Em estudos sobre a
influência de grupos de interesse, recomenda-se o foco em seto-
res específicos porque, como decisões políticas são influencia-
das por múltiplos setores, torna-se mais difícil identificar se essa
influência foi do grupo em análise ou foi decorrente das ações

2 Lei 23.291, de 2019, que institui a Política Estadual de Segurança de Barra-


gens e determina a erradicação das barragens construídas pelo método de
alteamento a montante no Estado de Minas Gerais. A nova lei é derivada do
Projeto de Lei 3.676/16, de autoria da Comissão Extraordinária das Barragens,
aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em 22 de feve-
reiro de 2019 (fonte: ALMG, 2019)). Disponível em: https://www.almg.gov.
br/acompanhe/noticias/arquivos/2019/02/25_sancao_projeto_barragens.html 71
NEPEL
de outros grupos. Ou seja, estudos mais generalizados tornam
mais difícil saber se uma determinada arena decisória respondeu
realmente à influência de um grupo específico, gerando o risco
de subestimar ou superestimar essa influência, ou até mesmo
atribuir a um grupo uma influência que, na verdade, vem de
outros grupos.
A primeira estratégia foi identificar a presença do financia-
mento de campanha por empresas em geral, e pelo setor de
mineração em particular, considerando o financiamento dos
candidatos a cargo de deputado estatual, dos deputados esta-
duais que exerceram mandato na ALMG e dos membros das
comissões selecionadas para a análise. Essa estratégia visa iden-
tificar em que medida o plenário e essas comissões são com-
postas por parlamentares financiados por empresas ligadas ao
setor. São utilizados dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
sobre o financiamento de campanha e da Classificação Nacional
das Atividades Econômicas (CNAE) para identificar a origem dos
recursos.
Como o financiamento de campanha por empresas foi proi-
bido no Brasil desde 2015, analisamos aqui as eleições anterio-
res, de 2014, que culminaram na composição da 18a legislatura
(2015/2019). A insistência em verificar os efeitos do financiamento
eleitoral permanece válida por dois motivos. Primeiro, porque
nada impede que o financiamento empresarial volte a ser permi-
tido no Brasil. A trajetória da regulação eleitoral apresenta uma
trajetória pendular que sugere insegurança jurídica nesse campo
(CAMPOS; PEIXOTO, 2015)3. Segundo, porque permaneceu o

3 Nas eleições presidenciais de 1989, primeira na nova ordem constitucional,


estavam proibidas as doações de pessoas jurídicas para as campanhas eleito-
rais. Em 1993, nova legislação estipulou regras para o financiamento privado
em campanhas eleitorais. Essa regra passou por revisões, mas a mudança mais
radical aconteceu na chamada Minirreforma Eleitoral de 2015. Na ocasião, o
Congresso Nacional incorporou à legislação eleitoral a decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalida-
de (ADI) 4650, que declarou inconstitucional o financiamento de campanhas
72 eleitorais por empresas.
NEPEL
autofinanciamento que, embora com teto limitado nas eleições
de 2020, provavelmente continuará permitindo que o dinheiro
influencie os resultados eleitorais e, consequentemente, a compo-
sição do parlamento e os seus resultados legislativos.

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


A segunda estratégia analítica foi identificar a participação de
grupos de interesse no processo legislativo. Aqui, foram utilizados
dados das audiências públicas realizadas no âmbito das comissões
selecionadas. Nesse caso, por meio da abordagem de análise de
redes sociais, procuramos identificar quais grupos são centrais nas
policy networks que se formam em torno dessas comissões, que
são colegiados de interesse direto do setor de mineração. Como
não existem dados sobre as atividades de lobbying no Brasil, pois
não há regulamentação da atividade, a presença desses grupos
em audiências públicas é a única informação disponível. Assumi-
mos na análise, portanto, que a centralidade nas redes é uma boa
proxy de oportunidade de influência dos grupos de interesse no
processo legislativo.

3. Financiamento de campanha nas


eleições para deputado estadual em MG

A eleição de 2014 para deputado estadual em Minas Gerais


contou com 1.199 candidatos, que receberam 23.691 diferentes
o setor de mineração.

doações, totalizando o montante de R$ 141.330.969,00. Esse é


o valor declarado das doações que foram recebidas pelos can-
didatos ao cargo4. Conforme se pode verificar na Tabela 1, dos
recursos recebidos pelos candidatos, a maioria foi proveniente
de financiamento direto de pessoa jurídica (PJ), que respondeu
por 34,7% do total. Em seguida, têm-se os recursos próprios (ou
autofinanciamento), com 22,1%, e as doações diretas de pes-

4 Importante deixar claro que estamos considerando apenas os recursos devi-


damente contabilizados. Ou seja, esse valor pode estar subestimado, conside-
rando a prática corrente do Caixa 2 de campanha no Brasil. 73
NEPEL
soa física, com 18,9%. Outros 24,2% são referentes às doações
realizadas pelos partidos aos candidatos (13,2%), e as trans-
ferências de recursos realizadas por outros candidatos/comitês
correspondem a 11,1%. Os demais recursos não tiveram origem
identificadas ou foram provenientes de rendimentos de aplica-
ções financeiras.

Dois dados chamam a atenção. O primeiro é o valor doado


por empresas diretamente aos candidatos, que foi de R$
49.062.216,36; o segundo é o valor do autofinanciamento, que
foi de R$ 31.179.050,66.
Tabela 1 – Origem das doações recebidas por candidatos ao cargo de
deputado estadual (MG, 2014)

Origem Valor R$ %
Pessoas jurídicas 49.062.216,36 34,7
Recursos próprios 31.179.050,66 22,1
Pessoas físicas 26.707.205,97 18,9
Partido político 18.698.898,85 13,2
Recursos de outros candidatos/comitês 15.648.081,10 11,1
Recursos de origens não identificadas 31.951,66 0,02
Rendimentos de aplicações financeiras 3.564,41 0,01
Total 141.330.969,00 100,0
Fonte: TSE.

O que a Tabela 1 nos mostra é a confirmação do que já se sabe


das eleições em geral, no Brasil, até 2014. Se compararmos as
eleições de deputado estadual e federal, o que se vê é semelhante
em dois aspectos. Primeiro, que existe considerável parcela do
financiamento de recursos provenientes das empresas. Segundo,
o autofinanciamento. Nos dois casos, isso certamente está rela-
cionado com nosso sistema eleitoral proporcional de lista aberta,
que se caracteriza não só pela competição entre partidos, mas
sobretudo pela disputa intrapartidária. Essa disputa intrapartidária
74 encoraja os candidatos ao parlamento a escolher estratégias indi-
NEPEL
viduais, em detrimento da estratégia partidária. E isso serve tanto
para as estratégias de comunicação e de campanha, quanto para
a arrecadação de recursos. O argumento encontra fundamento
na própria Tabela 1, que mostra que o financiamento das candi-

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


daturas conta com apenas 13,2% das doações feitas por partidos
aos candidatos.

Pouco mais da metade do financiamento foi empregado nos


candidatos que venceram as eleições. Ou seja, os deputados esta-
duais mineiros eleitos em 2014 receberam R$ 72.312.470,54.
Considerando os deputados ativos na 18ª legislatura (aqueles
que, em algum momento das quatro sessões legislativas, exerce-
ram mandato5), o valor sobe para R$ 80.084.240,826. A Tabela 2
apresenta a origem desses recursos.
Tabela 2 – Origem das doações recebidas pelos deputados estaduais
ativos na legislatura (MG, 2014)

Origem dos recursos Valor %


Pessoas jurídicas 31.256.412,00 39,0
Recursos próprios 17.616.605,00 21,9
Pessoas físicas 13.506.957,00 16,8
Partido político 12.447.760,00 15,5
Outros candidatos/Comitês 5.252.921,00 6,5
Rendimentos de aplicações financeiras 3.154,92 0,0 o setor de mineração.

Recursos de origem não identificados 431,66 0,0


Receita total 80.084.241,00 100,000
Fonte: TSE.

5 Na 18ª legislatura, foram 87 os deputados ativos. Ou seja, além dos 77 de-


putados eleitos, outros 10 exerceram o mandato em algum momento das 4
sessões legislativas.
6 É comum haver deputados que se licenciam da legislatura para ocupar outros
cargos ou por outros motivos, sendo seus suplentes convocados. Dessa for-
ma, deve-se realmente esperar um aumento no valor relativo aos candidatos
considerados ativos, em relação aos eleitos, dada essa rotatividade. 75
NEPEL
É de se esperar, portanto, que no exercício do mandato,
parlamentares que foram financiados com recursos de pessoa
jurídica dediquem esforços a atender aos seus financiadores.
Essa expectativa tem fundamento porque, de um lado, os finan-
ciadores têm interesse em conseguir regulação favorável para
o seu setor, ou de impedir que regulações contrárias aos seus
interesses sejam aprovadas. De outro lado, temos parlamentares
que precisam de financiamento privado direto para as suas ati-
vidades políticas.
Os dados gerais dizem muito do tipo de financiamento que
alimentou as eleições de 2014, mas eles podem esconder aspec-
tos importantes desse financiamento. Por exemplo, se quisermos
realmente saber a origem exata desse dinheiro que chegou aos
candidatos, precisamos identificar os doadores. Dessa forma,
torna-se possível refazer o caminho das doações e identificar
exatamente os setores econômicos com preponderância no
financiamento7. Esse procedimento é fundamental para este
capítulo, pois estamos investigando a influência de um setor
específico, que é o da mineração.

Financiamento de campanha por setor

A Tabela 3 traz os dados do financiamento por setor. É


importante destacar que, nas tabelas 1 e 2, aplica-se a classifi-
cação do TSE no que tange à origem das doações. Mas, como
vimos, isso não permite identificar os doadores por setor. Na
Tabela 3, por sua vez, apresenta-se a distribuição das doações
considerando a classificação da CNAE, e também os recursos
advindos de pessoa física.

7 Para identificar a origem das doações, e partir para uma identificação do setor
de mineração, utilizamos os dados disponíveis no site Leis e Números (https://
leisenumeros.wordpress.com/). Agradecemos ao professor e pesquisador Bru-
76 no Carazza dos Santos, responsável pelo site.
NEPEL
Tabela 3 – Origem das doações, por setor, para os candidatos ao cargo de
deputado estadual (MG, 2014)

Setor Total Financiado %


Pessoa física 60.692.915,03 42,94

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Construção 17.393.460,10 12,31
Comércio 15.157.691,53 10,72
Indústrias de transformação 14.242.790,93 10,08
Indústrias extrativas* 6.747.113,22 4,77
Atividades financeiras, de seguros e
6.687.531,49 4,73
serviços relacionados
Outras atividades de serviços 5.298.279,05 3,75
Atividades profissionais, científicas e
3.782.454,91 2,68
técnicas
Artes, cultura, esporte e recreação 2.126.232,19 1,50
Atividades administrativas e serviços
1.991.216,06 1,41
complementares
Transporte, armazenagem e correio 1.770.061,79 1,25
Informação e comunicação 1.454.593,66 1,03
Saúde humana e serviços sociais 1.042.683,33 0,74
Atividades imobiliárias 705.090,32 0,50
Eletricidade e gás 690.677,77 0,49
Água, esgoto, atividades de gestão de
592.200,01 0,42
resíduos e descontaminação*
o setor de mineração.

Agricultura, pecuária, produção florestal,


466.486,20 0,33
pesca e aquicultura*
Alojamento e alimentação 193.909,15 0,14
Educação 192.200,00 0,14
Não identificado 103.382,27 0,07
Total 141.330.969,00 100,00
Fonte: Leis e Números.
* Segmentos que compõem o setor de mineração.

77
NEPEL
Duas diferenças precisam ser esclarecidas entre as Tabelas 1
e 2 (classificação do TSE) e a Tabela 3 (classificação da CNAE).
A primeira diz respeito às doações de pessoa física. Note-se
que o valor é substancialmente mais alto do que o encontrado
nas Tabelas 1 e 2. Isso se deve ao fato da identificação dos doa-
dores por CPF. Assim, o item pessoa física, agora, agrega tanto
os recursos próprios (autofinanciamento) quanto os recursos
de partido político e de outros candidatos/comitês que tenham
se originado de pessoas físicas, e foram repassados aos candi-
datos.
A segunda é que existem recursos de partido político e de
outros candidatos/comitês que advieram de pessoas jurídicas e,
portanto, foram classificados, na Tabela 3 segundo as seções
da CNAE. Em suma, doações de pessoas físicas e jurídicas feitas
a partidos e comitês, e repassadas para os candidatos, expli-
cam as diferenças entre as Tabelas 1 e 2 e a Tabela 3. Isso
mostra a importância da identificação da origem dos recursos
que chegaram, de forma indireta, aos caixas de campanha dos
candidatos.
Mas o que se depreende da Tabela 3 não é muito diferente.
Nela se pode observar que os recursos oriundos de pessoas jurí-
dicas continuam sendo mais relevantes nas eleições. Somando-se
todos os setores, as empresas foram responsáveis por 56,98%
das doações, o que significa um montante de R$ 80.534.671,71.
Já as pessoas físicas representam 42,94%, totalizando R$
60.692.915,03. Portanto, a verdadeira relevância desse procedi-
mento está em dois aspectos. O primeiro é identificar os setores,
o que não é possível com a classificação do TSE. O segundo é o
de revelar possíveis doadores ocultos. Aqueles que, por algum
motivo, preferem doar para partidos. Nesses casos, não há nada
que impeça que o doador fique oculto, usando a doação para
partidos, e garanta que o candidato de sua preferência receba os
recursos. Uma análise que não considerasse essa possibilidade,
78
NEPEL
certamente, seria enviesada, subestimando o estabelecimento das
relações entre financiadores e financiados.
Comprovada a relação entre o segmento empresarial e os can-
didatos, resta identificar o financiamento do setor de interesse, o

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


de mineração.

O financiamento da campanha do setor de


mineração

Para verificar o financiamento específico do setor, tanto dos


candidatos como um todo, quanto dos deputados ativos no
parlamento estadual durante a 18ª legislatura, consideramos as
doações originadas por empresas classificadas pela CNAE em
três seções: (i) Indústrias extrativas; (ii) Eletricidade e gás; e (iii)
Água, esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontami-
nação8.
Começando pela análise de todos os candidatos, vemos que o
setor realizou doações no valor total de R$ 8.029.991,00, o que
significa 9,9% de todo o financiamento oriundo de pessoa jurí-
dica. Isso quer dizer que o setor está entre os principais doadores
de campanha do estado, junto com o setor da construção, com
12,31%, o do comércio, com 10,72%, e o da indústria de trans-
formação, que é responsável por 10,08% do montante doado
por pessoa jurídica nas eleições de 2014.
o setor de mineração.

8 Reconhecemos algum grau de arbitrariedade nessa escolha. Afinal, empresas


classificadas na segunda e na terceira categorias podem não ser diretamente
ligadas ao setor de mineração. Desse modo, pode ser que estejamos superes-
timando o financiamento total do setor nas eleições. Por outro lado, sabe-se
que um setor com esse peso na economia do estado, trabalha com empresas
subsidiárias, formando grupos econômicos interligados por empresas de vá-
rios setores, constituindo assim, uma complexa rede de interesses mutuamen-
te compartilhados. Portanto, empresas doadoras podem não ser classificadas
pela CNAE no setor de industrias extrativas, mas estão intimamente a ele
relacionadas, o que subestimaria o financiamento total do setor apurado aqui.
Acreditamos que essa escolha pode minimizar essas imprecisões, e oferecer
uma boa estimativa. 79
NEPEL
Entre os deputados ativos na 18a legislatura, o valor foi de R$
3.601.935,30. Isso significa que o investimento do setor alcançou
seu objetivo, garantindo que nada menos que 64,3% dos parla-
mentares que compuseram a 18a legislatura tivessem parcela dos
seus recursos financiados pelo setor da mineração.

O financiamento no plenário e nas comissões


parlamentares

Como dito, o setor está devidamente representado no plená-


rio, tendo estabelecido relação com 64,3% dos seus membros, via
financiamento de campanha. Resta saber se esse financiamento
alcançou também as comissões de interesse do setor.
Foram selecionadas duas comissões para análise: a Comis-
são de Minas e Energia e a Comissão Extraordinária das Barra-
gens. A primeira é uma comissão permanente, a segunda uma
comissão extraordinária, que tem sua origem provocada pela
ocorrência da tragédia de Mariana, envolvendo diretamente o
setor de mineração9. Importante registar que o interesse do
setor vai além dessas duas comissões. Não é demais imaginar
que o setor tenha interesse, por exemplo, na Comissão de Meio
Ambiente e na Comissão de Desenvolvimento Econômico. Mas,
por razões de parcimônia, selecionamos para o estudo de caso
apenas aquelas nas quais o interesse é direto e inequívoco.
Com isso, evitamos um erro comum nos estudos sobre grupos
de interesse, que é o de selecionar casos nos quais muito seto-
res atuam, impedindo identificar de forma mais clara a atuação

9 A Comissão foi criada com a finalidade de realizar estudos, promover de-


bates e propor medidas de acompanhamento das consequências sociais,
ambientais e econômicas da atividade mineradora no estado, notadamen-
te no que tange ao rompimento das barragens ocorrido em Mariana, seus
desdobramentos e ações de recuperação dos danos causados, bem como
discutir a situação de outras barragens existentes no estado. A comissão
iniciou suas atividades em 12 de novembro 2015, e as concluiu em 07 de
80 julho 2016.
NEPEL
de cada um e, consequentemente, confundindo a influência
de cada setor.
A ideia é verificar se, nesses colegiados, responsáveis por
acompanhar, fiscalizar e legislar sobre matéria de interesse

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


direto do setor, persiste o viés do financiamento setorial. Em
outras palavras, queremos saber se os parlamentares membros
das comissões que exercem jurisdição sobre o setor também são
financiados por ele.
Para a nossa análise, usamos dois indicadores para verificar
a presença do financiamento nas comissões selecionadas. O pri-
meiro é o percentual de membros das comissões que receberam
financiamento do setor, sem considerar o volume de doações. O
segundo é o peso do financiamento setorial, em termos percentu-
ais, no total do financiamento de campanha do parlamentar. Dito
de forma mais simples, o primeiro indicador diz se o parlamentar
simplesmente recebeu doações do setor, ao passo que o segundo
diz do seu grau de dependência desse financiamento nas suas
finanças de campanha.
Começando pelo percentual de parlamentares financiados
pelo setor de mineração, o Gráfico 1 mostra que é marcante a
parcela de parlamentares membros da Comissão de Minas e Ener-
gia que receberam financiamento do setor. No primeiro biênio da
legislatura (2015/2016), 70% dos parlamentares membros dessa
comissão tinham recebido, na campanha de 2014, financiamento
o setor de mineração.

do setor. No biênio seguinte, esse número sobe para 90%. Ou


seja, parlamentares que foram financiados pelo setor constituem
a maioria nesses colegiados.

81
NEPEL
Gráfico 1 – Percentual de membros da Comissão de Minas e Energia com
financiamento do setor de mineração (2015/2018)

Fonte: TSE

Importante notar, também, que os percentuais dos dois


biênios são superiores ao percentual de parlamentares finan-
ciados pelo setor na ALMG como um todo (plenário). Isso
sugere que existe um viés na seleção de membros da Comis-
são de Minas e Energia. E esse viés é em favor do setor direta-
mente interessado nas decisões desse colegiado.
Analisando o segundo indicador, entretanto, vemos um
resultado diferente. Enquanto a média do percentual do
financiamento do setor entre os deputados ativos é de 7%
do financiamento total dos parlamentares, no primeiro biê-
nio, os membros da comissão apresentaram percentual de
3,9% e, no segundo, 5,3%. Nos dois biênios, portanto, não
se observa um viés pró-setor da mineração na Comissão de
Minas e Energia.

82
NEPEL
Gráfico 2 – Peso médio do financiamento do setor de mineração na
Comissão de Minas e Energia (2015/2018)

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Fonte: TSE

Os resultados apurados para a Comissão de Minas e Energia


são, em parte, contraditórios. Eles não permitem generalizar um
viés em favor do setor de mineração. Contudo, é possível afir-
mar que a maioria dos seus membros receberam dinheiro desse
setor, e que, embora o peso desse financiamento na comissão
não destoe muito do plenário, ele é significativo. Dessa forma,
os dados permitem que afirmemos que decisões tomadas nesse
colegiado são fortemente escrutinadas (se não influenciadas)
por parlamentares que têm relação muito próxima com o setor o setor de mineração.
sob sua jurisdição.
Passando para a Comissão Extraordinária das Barragens,
nota-se que o percentual de parlamentares financiados pelo
setor continua mais alto no órgão colegiado (68,2%) do que no
plenário (64,4%). Se comparada esta comissão com a de Minas
e Energia (Gráfico 1), esse percentual diminui, mas, ainda assim,
ele continua apresentando um viés pró-setor, dado que a maio-
ria dos parlamentares dessa comissão tem relação próxima com
as mineradoras.
83
NEPEL
Gráfico 3 – Percentual de membros da Comissão Extraordinária das
Barragens com financiamento do setor de mineração (2015/2018)

Fonte: TSE

Ao observamos o peso médio do financiamento do setor


nessa comissão, que foi de 5,6%, notamos que ele é inferior ao
do plenário, que, como já afirmamos, foi de 7%. No entanto,
a comparação da Comissão Extraordinária das Barragens com
a Comissão de Minas e Energia (Gráfico 2) nos mostra um
dado interessante. Enquanto na Comissão de Minas e Energia
esse percentual foi de 3,9% no primeiro biênio e de 5,3% no
segundo, na comissão extraordinária ele foi superior aos dois
biênios, apresentando o percentual de 5,6%10.

10 Importante registrar que essa comissão, por ser extraordinária, tem duração
limitada. Assim, por motivos óbvios, os dados do financiamento não podem
84 ser contabilizados por biênio.
NEPEL
Gráfico 4 – Peso médio do financiamento do setor de mineração na
Comissão Extraordinária das Barragens (2015/2018)

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Fonte: TSE

Tomando os resultados de forma agregada, a análise do


financiamento de campanha dos parlamentares membros dessas
comissões permite três conclusões importantes. A primeira delas
é que, nas duas comissões, tivemos maioria de parlamentares que
foram financiados pelo setor de mineração, já que os percentuais
foram superiores a 50%. E isso aconteceu em todo o período
da 18a legislatura na Comissão de Minas e Energia, e enquanto
durou a comissão extraordinária. É verdade que esse viés se veri-
fica no Plenário, mas os dados mostram que ele é ainda maior
nos órgãos colegiados responsáveis por regular e acompanhar as
o setor de mineração.

atividades do setor.
A segunda conclusão deriva das regras de composição das
comissões. Sabe-se que o critério da proporcionalidade deve
reger a composição das comissões. Assim, não é tão simples para
um parlamentar se autosselecionar para uma comissão de seu
interesse, ou do setor que o financiou. Essa indicação passa por
outros critérios. Mas, mesmo com essa regra mediadora, o viés se
verifica.

85
NEPEL
A comparação entre a comissão permanente e a extraordiná-
ria nos oferece elementos para a última conclusão, que reforça
as anteriores. Em comissões permanentes, de certa forma, é
compreensível uma certa autosseleção, pois é esperado que
parlamentares comprometidos com o setor façam um esforço
para participar de comissões de interesse dos seus apoiadores.
Ademais, em condições normais, o escrutínio da mídia e da
sociedade sobre esse aspecto é pouco verificado. Contudo, a
comissão extraordinária foi composta em condições atípicas,
como era de ser esperar, pelo seu caráter excepcional. Ela foi
instalada, e seus membros escolhidos, em um momento de altís-
sima evidência na mídia e, além disso, em um clima de profunda
consternação que toda a sociedade passava pelo ocorrido em
Mariana. Ainda assim, o viés pró-setor foi confirmado. De forma
atenuada, é verdade, como demonstramos, mas foi confirmado.
Os resultados aqui encontrados não são diferentes dos encon-
trados em outros estudos. Santos (2016), por exemplo, verificou
que a doação média de quatro setores econômicos (agropecuário,
financeiro, industrial e infraestrutura) para os membros das comis-
sões permanentes da Câmara dos Deputados que mais lhes inte-
ressam é superior à doação média desses mesmos setores para o
conjunto dos deputados por eles contemplados.
Concluída a análise do financiamento de campanha, passemos
à análise do segundo fator elencado pela literatura com potencial
influência sobre o processo decisório no legislativo, que diz res-
peito às atividades de lobbying.

4. Lobbying, advocacy e policy networks


nas comissões

Existe uma variedade imensa de atividades de lobbying que


os grupos de interesse costumam realizar para persuadir parla-
86
NEPEL
mentares em temas de seu interesse. Movimentos sociais tam-
bém utilizam, embora em menor escala, de táticas de advocacy
para fazer valer suas causas junto ao parlamento. As estraté-
gias para exercer influência vão desde o contato direto com os
parlamentares, até a formação de bancadas suprapartidárias,

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


passando pelo monitoramento das atividades legislativas e o
acompanhamento de reuniões das comissões, (SANTOS; BAIRD;
MANCUSO; RESENDE, 2017). Infelizmente, não se tem informa-
ção mais precisa sobre essas atividades, que poderiam ser úteis
para medir o grau de influência desses setores no parlamento.
No Brasil, a atividade de lobbying ainda não é regulamentada, e
isso dificulta a realização de estudos mais precisos.
Uma alternativa que vem sendo utilizada por pesquisadores
brasileiros é verificar a presença desses grupos em audiências
públicas, motivados pela facilidade de identificar os participan-
tes, o que permite que se verifiquem redes de relacionamento,
que aqui consideramos como policy networks que se formam
em torno das comissões (CESÁRIO, 2016; RESENDE, 2017,
2018; SANTOS et al., 2020 – no prelo). Lançamos mão desta
estratégia nesse estudo de caso, e a definição de policy network
que utilizamos é a que segue:

As redes de políticas são um conjunto de vínculos,


formais e informais, entre o governo e outros ato- o setor de mineração.
res, estruturados em torno de crenças e interesses
compartilhados, embora continuamente negocia-
dos, na formulação e implementação de políticas
públicas (RHODES, 2008, p. 426)11.

11 Embora existam diferentes definições de policy networks, adota-se aqui uma


definição minimalista, segundo a qual “Policy networks are sets of formal
institutional and informal linkages between governmental and other actors
structured around shared if endlessly negotiated beliefs and interests in public
policy making and implementation” (Rhodes, 2008, p. 426). 87
NEPEL
As audiências públicas são mecanismos de participação
política com previsão constitucional e regimental. Nelas, a
sociedade é chamada para acompanhar e participar ativa-
mente em defesa de suas causas e interesses. Elas podem ser
consideradas oportunidades tanto para os grupos de interesse
quanto para os parlamentares. De um lado, os grupos podem
se fazer ouvir, tentando influenciar os deputados; de outro,
elas interessam aos parlamentares também porque podem
representar uma fonte alternativa de informações em decisões
sobre políticas públicas, e isso pode alterar o curso do processo
decisório (ZAMPIERI, 2013). Participar de audiências públicas,
portanto, é relevante para a ação dos grupos de interesse e
dos movimentos sociais no parlamento, assim como para os
próprios parlamentares.
De fato, em recente estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), Santos, Baird, Mancuso e Resende
(2017) mostram que a participação em audiências públicas tem
bastante relevância para os profissionais que desenvolvem ativida-
des de lobbying no parlamento, e que essa é uma atividade que
realizam com frequência.
Nas audiências públicas, há um conjunto de atores pre-
sentes e atuantes, tornando-se possível estabelecer interações
com outros atores. Essa interação, ou relação, para ser fiel à
terminologia usada pela abordagem de redes, é aferida pela
presença conjunta dos atores na mesma audiência pública. Ou
seja, parte-se do princípio que, ao participarem de um mesmo
evento, dois ou mais atores estabelecem uma relação. Esse é do
dado relacional que utilizamos na nossa análise.
Note-se que essa relação pode ser de cooperação ou de
competição, mas pouco importa, pois o que queremos saber é a
centralidade, ou seja, a relevância dos atores. Dessa forma, como
parte do mesmo ambiente político, grupos de interesse possuem

88
NEPEL
relações de cooperação ou competição entre si, formando, assim,
uma ampla rede (CESÁRIO, 2016, p. 109).
A abordagem de redes sociais permite identificar quais são
os atores que se relacionam na rede, e quais os atores centrais.

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


A centralidade na rede é aqui entendida como um indicador de
acesso desses grupos ao colegiado, ou seja, uma proxy de opor-
tunidade de influência. Em outras palavras, associada à oportuni-
dade de participação no processo decisório, está a oportunidade
de trocar recursos, informações, constituir acordos e formar
coalizões com outros grupos, parlamentares e representantes de
órgãos do governo.
A análise de redes sociais gera pelo menos dois ganhos ana-
líticos. Primeiro, ela fornece grafos bastante intuitivos para a
representação das redes. Assim, a visualização da policy network
facilita a compreensão do ambiente geralmente populoso e com-
plexo das organizações. Segundo, ela oferece medidas objetivas
de centralidade dos atores, o que permite identificar os atores
mais centrais.
Para a nossa análise, foram selecionadas duas medidas de cen-
tralidade: centralidade de grau (degree) e centralidade de inter-
mediação (betweeness). A forma mais proveitosa de entender
essas medidas é dando-lhes sentido mais substantivo. O Quadro 1
resume as ideias relacionadas a cada uma delas. o setor de mineração.
Quadro 1 – Interpretação das medidas de centralidade

Medida/Descrição Interpretação substantiva


Atores que têm mais vínculos têm maio-
res oportunidades, porque têm escolhas.
Ou seja, podem escolher realizar trocas
Degree – Centralidade
entre muitos atores. Se um dos atores
de grau, calculada pelo
com o qual ele se relaciona se negar
número de laços, ou seja, é
a realizar trocas com ele, ele tem a
o tamanho da rede de um
opção de escolher outros atores. Essa
determinado ator.
autonomia os torna menos dependentes
de qualquer outro ator específico e,
portanto, mais poderosos.
89
NEPEL
Medida/Descrição Interpretação substantiva

É a capacidade de ficar entre dois outros


atores. O fato de um ator estar entre
pares de atores e de que nenhum outro
ator esteja entre ele e os demais é uma
Betweness – Centralidade vantagem. Se esse ator quiser entrar em
de intermediação, baseada contato com outro ator ele pode sim-
na ideia do controle que um plesmente fazê-lo. Por outro lado, essa
ator exerce sobre as intera- posição também dá ao ator a capacidade
ções entre dois outros atores. de intermediar contatos entre outros
atores. Assim, ele pode extrair “taxas de
serviço” ou isolar atores. Essa posição
estrutural na rede pode ser interpretada
como uma forma de poder.
Fonte: Santos et al (2020 – no prelo) elaborado com base em Lazega e
Higgins (2014) e Hanneman e Riddle (2005).

Esclarecida a estratégia analítica e as medidas utilizadas,


passa-se à análise propriamente dita das policy networks forma-
das em torno das duas comissões selecionadas.

Comissão de Minas e Energia

Durante a 18a legislatura, a Comissão de Minas e Energia rea-


lizou 34 audiências públicas, sendo 9 em conjunto com outras
comissões. Nesses eventos, foram registradas 332 participações,
que envolveram 162 organizações diferentes12.
A Figura 1 apresenta a policy network formada em torno dessa
comissão ao longo da legislatura, e nela se pode verificar que, nas
posições centrais da rede, encontram-se principalmente os órgãos
de estado.
Dos dez atores institucionais com maior centralidade, oito
representam o poder público. Da representação estatal, além da
Câmara dos Deputados, quatro dos atores são órgãos estaduais
(Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ministério

12 É comum que uma organização ou um órgão de estado participem em mais


90 de uma audiência pública na mesma legislatura.
NEPEL
Público, Secretaria de Meio Ambiente de Desenvolvimento Sus-
tentável e Fundação Rural Mineira13), dois são empresas públicas
(Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig e Companhia
de Saneamento de Minas Gerais – Copasa) e o outro é a Associa-
ção dos Municípios Mineradores de Minas Gerais. Duas entidades

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


representativas do setor empresarial completam o quadro das
dez representações mais centrais: a Federação das Indústrias do
Estado de Minas Gerais (Fiemg) e o Sindicato da Indústria Mineral
de Minas Gerais (SindicatoSindiextra).
Figura 1 – Policy network formada em torno da Comissão de Minas e
Energia na 18a legislatura

o setor de mineração.

Fonte: Elaboração própria com dados da ALMG.


Vermelho: estado; Azul: empresa; Verde: sociedade.
Siglas: Câmara dos Deputados: CD; Companhia Energética de Minas Gerais:
CEMIG; Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico: SEDE; Associação
dos Municípios Mineradores de Minas Gerais: AMIG; Companhia de Sanea-
mento de Minas Gerais: COPASA; Federação das Indústrias do Estado de Minas
Gerais: FIEMG; Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento

13 A Ruralminas foi extinta em 2016, na reforma administrativa do estado. Suas


atribuições ficaram a cargo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) e do Departamento Estadual de
Telecomunicações (Detel), segundo a Lei 22.293/2016. 91
NEPEL
Sustentável: SEMAD; Sindicato da Indústria Mineral do Estado de Minas Gerais:
SINDIEXTRASindicato; Ministério Público de Minas Gerais: MPMG; Fundação
Rural Mineira: RURALMINAS; Câmara Municipal de Carmo do Rio Claro:
CMCRC; Samarco Mineração: SAMARCO; Secretaria de Estado de Desenvol-
vimento Econômico do Espirito Santo: SEDES; Sindicato Intermunicipal dos
Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais: SindicatoINDIELETRO;
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis:
IBAM; Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais: FAEMG;
Prefeitura Municipal de Mariana: PMM; Furnas Centrais Elétricas: FURNAS;
Instituto Mineiro de Gestão das Águas: IGAM; Ministério de Minas e Energia:
MME; Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São Francisco e do Rio
Parnaíba: CODEVASF; Movimento dos Atingidos por Barragens: MAB; Agência
Nacional de Energia Elétrica: ANEEL; Associação Brasileira de Energia Solar
Fotovoltaica: ABSOLAR; Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene:
AMAMS.

A posição central dos órgãos de governo é esperada, visto


que eles são essenciais em qualquer decisão regulatória, de res-
ponsabilização ou que envolva mudanças em políticas públicas.
O que chama a atenção é que a representação empresarial, e
do setor de mineração, apareçam entre os atores mais influen-
tes, sem que identifiquemos nesse bloco a representação de
trabalhadores, de entidades da sociedade civil de defesa de
direitos e de organizações do terceiro setor em defesa do meio
ambiente.
A representação de rede já nos diz muito sobre os atores
mais atuantes nessa comissão; entretanto, a Tabela 4 traz a
informação mais completa e precisa. Nela podemos ver os vinte
e cinco atores mais relevantes, ranqueados pela centralidade de
grau (degree)14.
Note-se que desses 25 atores, apenas dois são entidades da
sociedade civil . O primeiro é Movimento dos Atingidos por Bar-
ragens (MAB), que ocupa a 22a posição no ranking e o outro é o
Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Ind. Energética de
MG, na 14a.

14 No anexo, o leitor interessado encontrará a tabela completa, contendo todos


92 os atores da rede.
NEPEL
Tabela 4 – Número de participações e medidas de centralidades dos atores
na Comissão de Minas e Energia

Organização/Instituição/Órgão Participações Degree Betweeness


Câmara dos Deputados 26 188 1.065,30
Companhia Energética de Minas Gerais 16 130 3.419,15

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Secretaria de Estado de Desenvolvimento
11 116 1.908,44
Econômico
Associação dos Munic. Mineradores de
9 89 139,50
Minas Gerais
Companhia de Saneamento de Minas
9 79 719,97
Gerais
Federação das Industrias do Estado de
7 71 3.453,42
Minas Gerais
Secretaria de Meio Ambiente e Des.
6 69 1.177,37
Sustentável
Sindicato da Indústria Mineral de Minas
7 63 898,34
Gerais*
Ministério Publico de Minas Gerais 7 56 763,21
Fundação Rural Mineira (Ruralminas) 5 54 157,87
Prefeitura Municipal Carmo do Rio Claro 9 45 0,00
Samarco Mineração 3 45 0,00
Secretaria de Des. Econômico do Espirito
3 45 0,00
Santo
Sindicato Interm. dos Trabalhadores na
5 43 115,78
Ind. Energética de MG
Instituto Brasileiro Meio Ambiente e
4 42 324,99
Recursos Naturais Renováveis
Federação da Agricultura e Pecuária do
4 41 396,53
Estado de MG
Prefeitura Municipal de Mariana 3 38 314,70 o setor de mineração.
Instituto Mineiro de Gestão das Águas 4 36 394,62
Furnas Centrais Elétricas 3 36 536,47
Ministério de Minas e Energia 3 36 505,13
Companhia de Des. dos Vales do Rio São
4 35 72,11
Francisco e Parnaíba
Movimentos dos Atingidos por Barragens* 3 32 2,00
Agência Nacional de Energia Elétrica 2 30 275,95
Associação Brasileira de Energia Solar
2 30 51,37
Fotovoltaica
Associação dos Munic. da Área Mineira
2 30 138,45
da Sudene
Fonte: Elaboração própria com dados da ALMG.
93
NEPEL
Focando mais detidamente no MAB, a tabela mostra que,
durante toda a legislatura, ele participou como convidado ape-
nas 3 vezes de audiências públicas, tendo sua potencial rede de
relações um tamanho de 32 atores (degree), e sua capacidade de
intermediação na rede (betweeness) igual a 2,00. Comparando
essas medidas com a entidade representativa dos empresários de
mineração, vemos a diferença. O Sindicato da Indústria Mineral
de Minas Gerais tem uma rede potencial de relacionamento com
63 outros atores (degree) e um poder potencial intermediador
(betweeness) igual a 898,34.
Traduzindo os números, isso significa que, se o MAB quiser for-
mar coalizões com outros atores ou atuar como intermediador de
relações entre atores da rede, ele terá muito mais dificuldades do
que os empresários. Pior ainda, do que a maioria dos atores mais
centrais dessa rede. Esse dado é agravado se verificarmos que,
no ambiente, identificamos apenas o Sindicato Intermunicipal dos
Trabalhadores na Indústria Energética de MG. Não se identificam
organizações da sociedade civil com potencial alinhamento de
agenda, o que torna a possibilidade formação de coalizões de
grupos afins muito precária.
Claro que sempre existe a possibilidade de encontrar, nessa
rede, potenciais aliados, como o Ministério Público, que tem
como papel institucional a defesa de interesses difusos. Outros
aliados potenciais podem também estar inseridos na rede, como
parlamentares e partidos sensíveis aos problemas que afetam a
esse grupo. Mas, ainda assim, a correlação de forças parece muito
assimétrica.
Em suma, a policy network formada em torno da Comis-
são de Minas e Energia na 18a legislatura foi um ambiente
mais favorável aos empresários para exercer influência sobre
os resultados legislativos, se comparados às entidades repre-
sentativas da sociedade civil. Embora isso não permita afirmar
categoricamente que a rede (ou a comissão) foi totalmente
94
NEPEL
capturada e dominada pelo empresariado. A presença de
órgãos públicos como atores centrais pode e deve ser vista
como um elemento moderador nessa assimetria de influência.
Concluída a análise da Comissão de Minas e Energia, passe-

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


mos à comissão Extraordinária das Barragens.

Comissão Extraordinária das Barragens

O relatório final da Comissão Extraordinária das Barragens


afirma que ela “foi criada com a finalidade de realizar estudos,
promover debates e propor medidas de acompanhamento das
consequências sociais, ambientais e econômicas da atividade
mineradora no Estado. Notadamente no que tange ao rompi-
mento das barragens ocorrido em Mariana, seus desdobramentos
e ações de recuperação dos danos causados, bem como discutir a
situação de outras barragens existentes no Estado”.
A comissão ficou em atividade de 12 de novembro de 2015
a 07 de julho de 2016. Nesse período, foram realizadas 16 audi-
ências públicas, sendo uma em conjunto com a Comissão Extra-
ordinária das Águas. Esses eventos totalizaram 146 participações,
envolvendo 52 organizações distintas.
A inspeção da Figura 2 permite encontrar três aspectos dis-
tintos, e marcantes, da análise da Comissão de Minas e Energia.
O primeiro diz respeito à presença de órgãos de estado como os
o setor de mineração.

atores centrais. Como já afirmamos, isso é esperado, e foi veri-


ficado na análise anterior, mas agora a configuração da rede é
diferente. Entre os dez atores mais centrais, três deles têm como
missão institucional a defesa de interesses difusos e dos cidadãos:
os Ministérios Públicos Federal e Estadual e a Defensoria Pública
de Minas Gerais. O segundo é que, entre os atores centrais, está
o MAB, aparecendo agora como ator relevante. O terceiro diz res-
peito à centralidade das empresas Samarco e Vale, responsáveis
diretas pelo fato gerador da comissão.
95
NEPEL
Figura 2 – Policy network formada em torno da Comissão Extraordinária
das Barragens

Fonte: Elaboração própria com dados da ALMG.


Vermelho: estado; Azul: empresa; Verde: sociedade.
Siglas: Ministério Público de Minas Gerais: MPMG; Câmara dos Deputados: CD;
Defensoria Pública de Minas Gerais: DPMG; Movimento dos Atingidos por Barra-
gens: MAB; Samarco Mineração: SAMARCO; Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento: MAPA; Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais: AGE;
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e desenvolvimento Sustentável: SEMAD;
Ministério Público Federal: MPF; Companhia de Saneamento de Minas Gerais:
COPASA; Vale: VALE; Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política
Urbana e Gestão Metropolitana: SEDRU; Arquidiocese de Mariana: ARQMAR;
Associação dos Magistrados Mineiros: AMAGIS; Associação Mineira de Defesa do
Ambiente: AMDA; Defesa Civil de Minas Gerais: DCMG; Federação dos Trabalha-
dores na Agricultura do Estado de Minas Gerais: FETAEMG; Rede Nacional dos
Advogados Populares: RENAP; SindicatoSindicato Metabase Inconfidentes: SMI;
Tribunal de Justiça de Minas Gerais: TJMG; Agencia Nacional de Águas: ANA;
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis: IBAMA;
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: ICMBIO; Associação
de Pescadores de Conselheiro Pena: ASPEC; Polícia Civil de Minas Gerais: PCMG.

A inspeção da Tabela 5 permite verificar o que a figura


indica. Ela mostra que, nas primeiras posições no ranking de
centralidade, estão apenas as empresas (Samarco e Vale) e o
MAB, acompanhadas dos órgãos públicos de defesa. A Copasa,
pelo impacto no abastecimento de água, e a Secretaria de Meio
Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, por causa do impacto
96 ambiental, compõem o quadro das entidades centrais da rede.
NEPEL
Tabela 5 – Número de participações e medidas de centralidades dos atores
na Comissão Extraordinária das Barragens

Organização/Instituição/Órgão Participações Degree Betweeness


Ministério Publico de Minas Gerais 17 127 194,35

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Câmara dos Deputados 7 102 15,46
Defensoria Publica de Minas Gerais 9 90 478,35
Movimento dos Atingidos por Barragens* 9 89 171,83
Samarco Mineração 7 54 5,5
Ministério da Agricultura Pecuária e
3 46 34,46
Abastecimento
Advocacia Geral do Estado de Minas
4 38 0
Gerais
Secretaria de Meio Ambiente e Desenvol-
5 37 17,25
vimento Sustentável
Ministério Publico Federal 6 36 45,63
Companhia de Saneamento de Minas
2 34 0
Gerais
Vale 3 32 5,5
Secretaria Des. Reg. Politica Urbana e
3 23 12,25
Gestão Metropolitana
Arquidiocese de Mariana 1 19 0
Associação dos Magistrados Mineiros 1 19 0
Associação Mineira de Defesa do
1 19 0
Ambiente*
Defesa Civil de Minas Gerais 1 19 0
Federação dos Trabalhadores na Agricul-
1 19 0
tura de MG*
Rede Nac. dos Advogados Populares* 1 19 0
o setor de mineração.

Sindicato Metabase Inconfidentes* 1 19 0


Trib. de Justiça de Minas Gerais 1 19 0
Ag. Nacional de Águas 1 18 0
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
1 18 0
Recursos Naturais Renováveis
Instituto Chico Mendes de Conservação
1 18 0
da Biodiversidade
Associação de Pescadores de Conselheiro
2 16 22,5
Pena*
Policia Civil de Minas Gerais 7 13 0,66
Fonte: Elaboração própria com dados da ALMG.
97
NEPEL
Se verificarmos os demais atores da rede, entre as posições 12
e 25, temos pelo menos cinco organizações da sociedade civil.
Entre elas, a Associação Mineira de Defesa do Ambiente, a Rede
Nacional dos Advogados Populares e a Associação de Pescado-
res de Conselheiro Pena. Entidades Sindicais de trabalhadores
também tiveram papel relevante nos debates, como é o caso da
Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais e do
Sindicato Metabase Inconfidentes, que representa trabalhadores
da indústria de extração de ferro e metais básicos de Congonhas,
Belo Vale, Ouro Preto e região.
Em suma, a configuração da policy network que se formou
na Comissão Extraordinária das Barragens é substancialmente
diferente daquela verificada na Comissão de Minas e Energia.
A primeira se mostrou bem mais permeável às organizações da
sociedade civil e, portanto, bem mais inclusiva que a segunda.

O que se pode aprender comparando as comissões?

Comparando as duas comissões analisadas neste estudo de


caso, tanto com relação à presença do lobbying empresarial e do
advocacy da sociedade civil, quanto com relação ao financiamento
de campanha, pode-se argumentar, com razão, que a diferença
entre elas está ligada à sua natureza. A Comissão Extraordinária
de Barragens foi dedicada a fato específico e, ademais, não divide
atribuições com outras áreas. Ao contrário da Comissão de Minas
e Energia, que também jurisdiciona o setor de energia. Mas essa
diferença não explica tudo. Outras conclusões são possíveis.

5. Sobre o lobbying

No que diz respeito ao lobbying, três outros aspectos devem


ser levados em consideração, porque ajudam a entender a assi-
metria de influência nas comissões do legislativo estadual. O
98
NEPEL
primeiro diz respeito ao caráter de excepcionalidade. A ausência
de entidades da sociedade civil na rede da Comissão de Minas e
Energia (permanente) e sua presença na Comissão Extraordinária
das Barragens (temporária), sugere que a primeira não mantém
um diálogo sistemático com setores que representam parcelas

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


importantes sociedade. Notadamente, as organizações da socie-
dade civil que representam interesses difusos. E, se mantém, o
faz de forma assimétrica. Como demonstrado, entidades ambien-
talistas e de trabalhadores, por exemplo, não figuram entre os
atores mais centrais nesse colegiado. Se considerarmos que a
mineração é um dos setores econômicos mais relevantes para o
estado, parece razoável esperar que a comissão responsável por
ele na ALMG inclua esses atores, não os excluindo e reservando
para eles a participação apenas em situações excepcionais.
O segundo ponto está relacionado a um dado que chama
a atenção, a saber: a ausência das entidades de representação
empresarial nos debates da comissão extraordinária. Se é verdade
que essa comissão, como diz o texto do relatório, além do fato
específico, também se propunha a “propor medidas de acompa-
nhamento das consequências sociais, ambientais e econômicas da
atividade mineradora no Estado” e “discutir a situação de outras
barragens existentes no Estado”, por que a ausência de entidades
empresariais do setor?
A explicação para isso pode ter fundamento em dois argumen-
o setor de mineração.

tos encontrados na literatura especializada no tema. O primeiro


é que entidades representativas empresariais devotam tempo e
dinheiro em atividades do lobbying não só para aprovar leis de
seu interesse (lobbying ofensivo), mas, principalmente, para bar-
rar iniciativas de legislação contrária (lobbying defensivo). Man-
cuso (2004) e Santos (2011) já documentaram esse fenômeno,
analisando o lobbying da indústria na Câmara dos Deputados,
mostrando que as comissões são os loci ideais para barrar maté-
rias contrárias aos seus interesses, impedindo seu seguimento no
processo legislativo. 99
NEPEL
O segundo é que, em questões com forte escrutínio da opinião
pública e com atuação de muitos interesses conflitantes, torna-
-se menos efetiva a influência de lobbies poderosos. Schlozman
e Tierney (1986), estudando o congresso norte-americano, con-
cluem que o lobbying é mais efetivo quando uma questão é “blin-
dada” (protegida da opinião pública ou do escrutínio da mídia), e
não desperta convicções sentimentais muito profundas, linhas de
clivagem severas ou demandas pluralísticas da constituency.
Sendo assim, nem o lobbying defensivo e nem a “blindagem”
estavam presentes na Comissão Extraordinária das Barragens. E
não é de se estranhar que os lobbies mais poderosos não estives-
sem, estrategicamente, lá presentes. Situação inversa, entretanto,
se observa na comissão permanente, que atua na normalidade
do processo legislativo ordinário, e muitas vezes não desperta a
atenção da sociedade em geral e dos grupos menos poderosos.

Sobre o financiamento de campanha

Quanto ao financiamento de campanha, as relações entre


financiadores e financiados já foram explicadas. O que não foi
dito ainda é que evidências mostram que, quando os grupos de
interesse têm suficiente suporte de membros do Legislativo em
eleições prévias, contando com muitos membros politicamente
ativos na legislatura, sua influência é potencializada. (Smith,
1993). Adicionalmente, contribuições de campanha garantem
demasiado acesso aos parlamentares pelos grupos de interesse,
principalmente quando o tema tem pouca visibilidade (NEUSTA-
DTL, 1990; CLAWSON, 1999).
Mostramos evidências de que o financiamento de campa-
nha está presente tanto no plenário quanto nas duas comissões
analisadas. Deixamos demonstrado também que a maioria dos
membros dessas comissões tinham recebido contribuições de
campanha do setor, embora tenhamos observados diferenças. Na
100
Comissão Extraordinária das Barragens, o número de membros
NEPEL
financiados foi menor do que na Comissão de Minas e Energia,
e isso, associado à visibilidade a ao escrutínio de grupos menos
poderosos nessa arena, tem muito a dizer sobre os resultados
aqui encontrados.

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


6. Conclusões

A pergunta abaixo foi transcrita do relatório final da Comissão


Extraordinária das Barragens (2016):

Por que, a despeito de todas as iniciativas legis-


lativas, fiscalizatórias, de responsabilização e
conscientização dos empreendedores, muitas
vezes motivadas por acidentes ocorridos, ainda
continuam acontecendo desastres que vitimam
pessoas, cidades, o meio ambiente e as pró-
prias empresas que permitem sua ocorrência?
(ALMG-CEB, 2016; 5).

Parte da resposta talvez esteja relacionada ao financiamento


de campanha pelo setor, associado à sua influência assimétrica
na comissão parlamentar que o jurisdiciona. É difícil estabelecer
uma relação direta entre o efeito do financiamento de campanha
e das atividades de lobbying sobre os resultados legislativos. Isso o setor de mineração.
envolveria pesquisa mais apurada, que cotejasse a presença des-
ses fatores com os resultados, o que não esteve no escopo desse
capítulo. Mas foram encontrados indícios fortes, que se interpre-
tados à luz da literatura especializada, nos ajudam a responder
esse questionamento.
A aprovação da Lei 23.291, de 2019, foi uma resposta impor-
tante do legislativo estadual ao problema. Mas ela aconteceu em
circunstâncias muito particulares, quais sejam: sob forte escrutí-
nio da mídia, num ambiente de grande indignação da opinião
101
NEPEL
pública e com a participação ativa de atores que geralmente não
são considerados no processo legislativo ordinário. Aplicando-se
aqui o raciocínio contrafactual, parece justo perguntar qual seria
o resultado em condições de normalidade?
É impossível saber com certeza a resposta a essa pergunta,
mas estudos afirmam que a combinação do financiamento de
campanha com lobbying dá resultados. Sabato (1985) e Evans
(1986), em suas pesquisas sobre o congresso norte-americano,
concluem que, quando o grupo de interesse, de forma combi-
nada, faz doações de campanha associada com lobbying, a sua
capacidade de influência é potencializada.
O mecanismo implica em reconhecer que o lobbying não é
apenas uma forma de persuasão, de convencimento, ou de troca
de suborno por apoio. Embora a relação entre grupos de interesse
e parlamentares possa, eventualmente, degenerar para a corrup-
ção, esse não é o único problema. O lobbying deve ser entendido
também como um mecanismo de reforço. É através do lobbying
permanente que esses grupos reafirmam, durante a legislatura,
os compromissos assumidos entre eles e os parlamentares no
momento da campanha, quando os apoiaram financeiramente.
Esse acompanhamento permanente pode se dar de várias formas,
mas a principal é que, através das atividades de lobbying, os gru-
pos fornecem informação qualificada aos seus membros ativos, e
essa fonte alternativa de informação lhes dá consideráveis vanta-
gens no processo legislativo15.
Como afirma Przeworski (2011), a força do dinheiro na política
não deve ser reduzida ao problema da corrupção. A assimetria de

15 Estudo de Santos, Baird, Mancuso e Resende (2017) mostra que entre as ati-
vidades consideradas mais eficientes pelos grupos de interesse no exercício da
influência na Câmara dos Deputados estão: fazer gestões junto ao relator da
matéria; entregar notas técnicas e relatórios técnicos aos membros da comissão
e a entrega de minutas de emendas legislativas aos parlamentares. Como se
vê, todas associadas à entrega de informação relevantes aos parlamentares.
O contato direto com os parlamentares, como a visitas aos gabinetes, aparece
102 apenas em quarto lugar.
NEPEL
influência pode se dar pela via legal, sem necessariamente passar
por condutas criminosas, e não considerar esse aspecto pode nos
induzir a subestimar a força do poder econômico sobre as deci-
sões politicas. Acabar com a corrupção é fundamental, mas isso
não extinguirá a desigualdade de acesso político.

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


Mais estudos podem ajudar a esclarecer esse fenômeno, mas,
enquanto isso, medidas para diminuir a assimetria de influência
entre grupos poderosos e os demais podem ser pensadas. A pri-
meira delas já se iniciou, que foi a proibição de doações de cam-
panha por pessoa jurídica. Contudo, a medida carece de revisão,
pois o autofinanciamento ainda é permitido. Seus efeitos ainda
não são conhecidos, mas o volume do autofinanciamento é vul-
toso, como ficou demostrado, e a origem desse dinheiro é pouco
conhecida.
Outra medida que pode atenuar essa assimetria é a regula-
mentação das atividades de lobbying. Mas não pela razão defen-
dida pelo senso comum, que deposita nessa medida a esperança
de redução da corrupção. Uma regulação que vise apenas esse
objetivo está fadada ao fracasso. Os promissores efeitos positivos
da regulação do lobbying estão relacionados também a outros
fatores. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) recomenda, para países que pretendem regu-
lar a atividade, que legislações de lobbying devem seguir dois
princípios: o primeiro é criar uma estrutura aberta, eficaz e justa
o setor de mineração.

para o acesso e participação política; o segundo é aumentar a


transparência.
A ALMG tem desenvolvido mecanismos muito relevantes para
a promoção desses objetivos ao longo dos anos. Em 2018, por
exemplo, o tema do Seminário Legislativo foi Minas de Minas.
Naquela ocasião, a Comissão de Representação do Seminário
Legislativo apresentou à Comissão de Minas e Energia propostas
que foram consideradas prioritárias, e elas foram recebidas pela
Comissão de Minas e Energia, que passou a apreciá-las.
103
NEPEL
O devido processo legislativo é essencial para a legitimidade
democrática, mas quanto mais ele for caracterizado por transpa-
rência nas relações entre os políticos eleitos e seus interlocutores,
permitindo maior acesso político e accountability, mais perto do
seu objetivo ele estará. Isso, contudo, exige aperfeiçoamento ins-
titucional constante.

7. Referências

ALMEIDA, Acir. Processo legislativo: mudanças recentes e desafios.


Boletim de Análise Político-Institucional, v. 7, p. 45-50, 2015.

ALMG. Comissão Extraordinária de Barragens - Relatório Final, 2016.

ARAGÃO, José Murilo. Grupos de pressão no Congresso Nacional:


como a sociedade pode defender licitamente seus direitos no Poder
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106
NEPEL
Anexos
Anexo 1 – Número de participações e medidas de centralidades de
todos os atores na Comissão de Minas e Energia

Organização/Instituição/Órgão Participações Degree

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


1. Câmara dos Deputados 26 188
2. Companhia Energética de Minas Gerais -
16 130
Cemig
3. Secretaria de Estado de Desenvolvimento
11 116
Econômico
4. Associação dos Municípios Mineradores de
9 89
Minas Gerais
5. Companhia de Saneamento de Minas Gerais 9 79
6. Federação das Indústrias do Estado de Minas
7 71
Gerais
7. Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvi-
6 69
mento Sustentável
8. Sindicato. da Indústria Mineral de Minas Gerais 7 63
9. Ministério Público de Minas Gerais 7 56
10. Fundação Rural Mineira - Ruralminas 5 54
11. Prefeitura Municipal Carmo do Rio Claro 9 45
12. Samarco Mineração 3 45
13. Secretaria de Des. Econômico do Espirito Santo 3 45
14. Sindicato. Interm. dos Trab. na Ind. Energética
5 43
de MG
15. Instituto Brasileiro Meio Ambiente e Recursos
4 42
Naturais Renováveis
16. Federação da Agricultura e Pecuária do Estado
4 41
de MG
17. Prefeitura Municipal de Mariana 3 38
18. Instituto Mineiro de Gestão das Aguas 4 36
19. Furnas Centrais Elétricas 3 36 o setor de mineração.
20. Ministério de Minas e Energia 3 36
21. Companhia de Desenvolvimento. dos Vales do
4 35
Rio São Francisco e do Parnaíba
22. Movimento. dos Atingidos por Barragens 3 32
23. Agência Nacional de Energia Elétrica 2 30
24. Associação Brasileiro de Energia Solar Fotovol-
2 30
taica
25. Associação dos Municípios. da Área Mineira da
2 30
Sudene
26. Banco do Nordeste 2 30
27. Companhia de Gás de Minas Gerais 5 29
28. Prefeitura Municipal de Itabira 2 29
29. Associação Comercial e Empresarial de Minas 4 28
107
NEPEL
Organização/Instituição/Órgão Participações Degree
30. Prefeitura Municipal de Santo Antônio do Grama 3 27
31. Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras
3 27
de Hidrelétricas
32. Operador Nacional do Sistema Elétrico 2 26
33. Vale 2 26
34. Assembleia Legislativa de Minas Gerais 5 25
35. Prefeitura Municipal de Itabirito 2 25
36. Associação Mineira de Municípios 2 23
37. Central Única dos Trabalhadores 2 23
38. Associação dos Irrigantes do Norte de Minas 2 22
39. Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio S.
2 21
Francisco
40. Anglo American Minério de Ferro 2 20
41. Instituto Federação de Educação Ciência e
2 20
Tecnologia de MG
42. Instituto Estadual de Florestas 2 19
43. Petrobras 3 18
44. Prefeitura Municipal de Congonhas 2 18
45. Assembleia Legislativa do Espirito Santo 1 17
46. Prefeitura Municipal de Anchieta 1 17
47. Companhia de Habitação de Minas Gerais 1 17
48. Movimento Justiça Sim Desemprego Não 1 17
49. Prefeitura Municipal de Ouro Preto 1 17
50. Programa de Desenvolvimento de Fornecedores
1 17
do Espírito Santo
51. Associação Brasileira das Distribuidoras de
1 16
Energia Elétrica
52. Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
1 16
mico e Social
53. Eletrobrás 1 16
54. Sindicato da Indústria de Fabricação do Álcool
1 16
de MG
55. Sociedade Mineira de Engenheiros 1 16
56. Prefeitura Municipal de Uberaba 2 15
57. Prefeitura Municipal de Conceição do Mato
1 15
Dentro
58. Prefeitura Municipal de Diamantina 1 15
59. Prefeitura Municipal de Pains 1 15
60. Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Rio
1 15
Abaixo
61. Associação dos Usuários do Projeto Pirapora 2 14
62. Agência de Desenvolvimento da Região Norte
1 14
de Minas
63. Associação Comercial e Industrial de Montes
1 14
Claros
108
NEPEL
Organização/Instituição/Órgão Participações Degree
64. Associação dos Municípios. da Bacia do Médio
1 14
São. Francisco
65. Prefeitura Municipal de Andrelândia 1 14
66. Prefeitura Municipal de Minduri 1 14

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


67. Prefeitura Municipal de Montes Claros 1 14
68. Prefeitura Municipal de São Vicente de Minas 1 14
69. Distrito de Irrigação de Jaiba - Dij 1 14
70. Ministério Publico Federal 1 14
71. Prefeitura Municipal de Barão de Cocais 1 14
72. Prefeitura Municipal de Bom Jardim de Minas 1 14
73. Prefeitura Municipal de Catas Altas 1 14
74. Prefeitura Municipal de Patis 1 14
75. Prefeitura Municipal de Pirapora 1 14
76. Prefeitura Municipal de Santa Barbara 1 14
77. Prefeitura Municipal de São Vicente de Minas 1 14
78. Universidade Estadual de Montes Claros 1 14
79. Xingu Rio Transmissora de Energia 1 14
80. Projeto Manuelzão 2 13
81. Polícia Militar 1 13
82. Prefeitura Municipal de Carmo do Rio Claro 1 13
83. Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais 1 12
84. Assembleia Legislativa do Para 1 12
85. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte 1 12
86. CTB Central dos Trabalhadores/as do Brasil 1 12
87. Federação Nacional dos Urbanitários 1 12
88. Prefeitura Municipal de Parauapebas 1 12
89. Sindicato dos Eletricitários do Sul de Minas 1 12
90. Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios Jequitai
2 11
e Pacui
91. Secretaria de Estado de Agricultura Pecuária e
2 11
Abastecimento o setor de mineração.
92. Agência. de Cooperação Alemã 1 11
93. Associação Brasileira das Empresas Geradoras
1 11
de Energia Elétrica
94. Associação Brasileira de Geração Distribuída 1 11
95. Conselho Regional de Biologia 1 11
96. Departamento InterSindicatoical de Estatística
1 11
e Estudos Socioeconômicos
97. Fundação CEFET Minas 1 11
98. Instituto Federação de Educação, Ciência e
1 11
Tecnologia do norte de MG
99. Instituto Federal de Educação, Ciência e
1 11
Tecnologia do Sul de MG
100. Ministério da Educação 1 11
101. Prefeitura Municipal de Rio Casca 1 11
109
NEPEL
Organização/Instituição/Órgão Participações Degree
102. Prefeitura Municipal de Santo Antônio do
1 11
Grama
103. Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e
1 11
Ensino Superior
104. Secretaria de Estado de Educação 1 11
105. Sindicato Único dos Trabalhadores em
1 11
Educação de MG
106. Sociedade dos Usuários de Tecnologia 1 11
107. Agência Reguladora de Saneamento e Energia
2 10
de São Paulo
108. Federação Nacional dos Trabalhadores na
1 10
Iindústria
109. Instituto Vidas Áridas 1 10
110. Prefeitura Municipal de Aracaju 1 10
111. Associação Brasileira dos Fabricantes de
1 8
Refrigerantes
112. Associação Central dos Fruticultores do Norte
1 8
de Minas
113. CDL Belo Horizonte 1 8
114. CDL Uberaba 1 8
115. Prefeitura Municipal de Brasília de Minas 1 8
116. Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto São
1 8
Francisco
117. Empresa de Assistência Técnica e Extensão
1 8
Rural de MG
118. Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas
1 8
de MG
119. Federação do Comércio de Bens Serviços e
1 8
Turismo de MG
120. Prefeitura Municipal de Ubaí 1 8
121. Sindicato das Indústrias de Produtos Farmacêu-
1 8
ticos e Químicos Industriais de MG
122. Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita
1 8
Estadual
123. Sindicato dos Produtores Rurais de Uberaba 1 8
124. Sindicato dos Servidores da Tributação,
1 8
Fiscalização e Arrecadação de MG
125. Souza Cruz 1 8
126. Agência Reguladora de Abastecimento de
1 7
Água e Esgotamento Sanitário de MG
127. Associação dos Municípios do Médio Jequiti-
1 7
nhonha
128. Associação Mineira de Defesa do Ambiente 1 7
129. Consórcio Intermunicipal Multifinalitário 1 7
130. Efficientia 1 7
131. Fundação Christiano Ottoni 1 7
110
NEPEL
Organização/Instituição/Órgão Participações Degree
132. NEM Engenharia 1 7
133. Prefeitura Municipal de Divinópolis 1 7
134. Prefeitura Municipal de Itaúna 1 7
135. Secretaria de Desenvolvimento e Integração do

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


1 7
Norte e Nordeste do Estado
136. Prefeitura Municipal de Santa Luzia 2 6
137. ACEE Consultoria 1 6
138. Associação dos Empregados de Furnas 1 6
139. Associação dos Municípios da Microrregião do
1 6
Médio Rio Grande
140. Associação dos Municípios do Lago de Furnas 1 6
141. Associação Nacional dos Municípios Sedes de
1 6
Usinas
142. Conselho Empresarial de Mineração e
1 6
Siderurgia
143. Fórum Nacional da Sociedade Civil nos
1 6
Comitês de Bacias Hidrográficas
144. Fundação Estadual do Meio Ambiente 1 6
145. Movimento pelas Serras e Águas de Minas 1 6
146. Sindicato de Engenheiros no Estado de Minas
1 6
Gerais
147. CDL Betim 1 5
148. Empresa Tecnologia e Controle Ambiental 1 5
149. Federação das Associação Comerciais de
1 5
Minas Gerais
150. Flyways Linhas Aéreas 1 5
151. Junta Comercial do Estado de Minas Gerais 1 5
152. Movimento das Donas de Casa e Consumido-
1 5
res de MG
153. Prefeitura Municipal de Betim 1 5
154. Secretaria de Estado de Transportes e Obras
1 5
Públicas o setor de mineração.
155. Associação de Bairros de Santa Luzia 1 4
156. Departamento Nacional de Produção Mineral 1 3
157. Secretaria de Estado de Desenvolvimento
1 3
Agrário
158. Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvi-
1 3
mento Social
159. Agrosmart Brasil Ltda 1 2

111
NEPEL
Anexo 2 – Número de participações e medidas de centralidades de todos
os atores na Comissão Extraordinária das Barragens

Organização/Instituição/Órgão Participações Degree


1. Ministério Publico de Minas Gerais 17 127
2. Câmara dos Deputados 7 102
3. Defensoria Publica de Minas Gerais 9 90
4. Mov. dos Atingidos por Barragens 9 89
5. Samarco Mineração 7 54
6. Ministério da Agricultura Pecuária e Abaste-
3 46
cimento
7. Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais 4 38
8. Secretaria de Meio Ambiente e Des.
5 37
Sustentável
9. Ministério Publico Federal 6 36
10. Companhia de Saneamento de Minas Gerais 2 34
11. Vale 3 32
12. Secretaria Des. Reg. Politica Urbana e Gestão
3 23
Metropolitana
13. Arquidiocese de Mariana 1 19
14. Associação dos Magistrados Mineiros 1 19
15. Associação Mineira de Defesa do Ambiente 1 19
16. Defesa Civil de Minas Gerais 1 19
17. Federação dos Trabalhadores na Agricultura
1 19
de MG
18. Rede Nac. dos Advogados Populares 1 19
19. Sindicato Metabase Inconfidentes 1 19
20. Trib. de Justiça de Minas Gerais 1 19
21. Ag. Nacional de Águas 1 18
22. Instituto Brasileiro do Meio ambiente e
1 18
Recursos Naturais Renováveis
23. Instituto Chico Mendes de Conservação da
1 18
Biodiversidade
24. Associação de Pescadores de Conselheiro
2 16
Pena
25. Policia Civil de Minas Gerais 7 13
26. Municipal de Governador Valadares 2 12
27. Cenibra 2 12
28. Dep. Nacional de Produção Mineral 3 12
29. Prefeitura Municipal de Barra Longa 1 12
30. Prefeitura Municipal de Belo Oriente 1 12
31. Prefeitura Municipal de Bugre 1 12
32. Prefeitura Municipal de Ipaba 1 12
33. Prefeitura Municipal de Itueta 1 12
34. Prefeitura Municipal de Naque 1 12
112
NEPEL
35. Prefeitura Municipal de Rio Casca 1 12
36. Prefeitura Municipal de São Domingos do
1 12
Prata
37. Prefeitura Municipal de São Jose do Goiabal 1 12
38. Prefeitura Municipal de sem peixe 1 12

2. Financiamento de campanha e lobbying na Assembleia Legislativa de MG: um estudo de caso sobre


39. Central Única dos Trabalhadores 1 9
40. Federação dos Pescadores e Aquicultores de
1 9
Minas Gerais
41. Instituto Nac. de Colonização e Reforma
1 9
Agraria
42. Prefeitura Municipal de Resplendor 1 7
43. Univ. Federação de Juiz de Fora 1 7
44. Cons. Reg. de Engenharia e Agronomia de
1 6
Minas Gerais
45. Policia Federal 1 5
46. Policia Militar de Minas Gerais 1 5
47. Prefeitura Municipal de Governador
1 5
Valadares
48. Fund. Estadual do Meio Ambiente 1 4
49. Prefeitura de Belo Horizonte 1 3
50. Associação dos Munic. Mineradores de
1 2
Minas Gerais
51. Cons. Interm. da Bacia Hidrográfica do Rio
1 1
Paraopeba
52. Prefeitura Municipal de Brumadinho 1 1

o setor de mineração.

113
NEPEL
3
PROCESSO
LEGISLATIVO
TRIBUTÁRIO
Bernardo Motta Moreira*

*Doutorando e Mestre em Direito pela UFMG. Professor de Direito Tributário do bacharelado


em Direito do IBMEC e do Centro Universitário UNA. Professor de cursos de pós-graduação em
Direito Tributário (ESA/Fumec, Milton Campos e Pró-labore). Consultor concursado da ALMG e
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo (Nepel).
1. INTRODUÇÃO

Desde o advento do Código Tributário Nacional – CTN –, na


década de 60, o Direito Tributário brasileiro apresentou notável
evolução. Relativamente ao Direito Tributário material, que se
ocupa do estudo do conceito e de espécies de tributo e dos limi-
tes ao poder de tributar, a doutrina nacional muito se dedicou
para promover a sua reelaboração no plano teórico, buscando
identificar os seus princípios e regras mais proeminentes. Mais
recentemente, os estudiosos passaram a se preocupar com o pro-
cedimento de constituição e cobrança do crédito tributário e o
controle do lançamento (Direito Tributário formal e processual),
sob a influência da visão de uma Administração Pública concer-
tada, da processualidade administrativa, e a consequente busca
de implementação de instâncias de participação direta do cidadão
na tomada da decisão estatal (ROCHA, 2009). Processo Legislativo Tributário
D’outra margem, no que diz respeito aos procedimentos
de formação do Direito Tributário, assim como se dá na produ-
ção legislativa em geral (BERNARDES JÚNIOR, 2009, p. 17-18),
costuma-se reduzi-los a meros ritos e formas, caracterizando-os,
assim, mais pelo tecnicismo do que por uma abordagem científica.
Assim, o estudo do processo legislativo que envolve a instituição
ou exoneração de tributos, as ampliações de responsabilidade e
de garantias e privilégios do crédito tributário, a previsão de san-
ções tributárias, etc., encontra-se abandonado, sendo examinado
apenas superficialmente.
117
NEPEL
A visão que predomina é meramente retrospectiva, pois parte
do direito positivado para verificar se, no curso do processo de
produção da lei tributária, foram desrespeitadas normas cons-
titucionais. Há pouca preocupação em analisar detidamente o
Processo Legislativo Tributário, o que não deixa de ser intrigante,
uma vez que o Direito Tributário é um dos ramos que mais se
preocupa com o princípio da legalidade, desde a máxima histórica
do no taxation without representation. A tramitação parlamentar
das leis tributárias não deve ser, de maneira alguma, algo irre-
levante, que desperte no cientista uma mera curiosidade fútil.
Ao contrário, seu mais perfeito entendimento dará uma imagem
precisa do verdadeiro propósito que inspira cada uma das normas
(ANTÔNIO, 1995, p. 120-121),1 o que é vital, considerando que o
tributo é um aspecto fundante de todo o modelo de Estado que
se almeja.
O ponto que vem à tona é o seguinte: é justificável um estudo
específico sobre a produção legislativa tributária,2 de forma autô-
noma em relação aos demais ramos do Direito ou do Direito Pro-
cessual Legislativo? Este ensaio defende a tese que sim, eis que
há características próprias desse ramo que impõem uma análise
científica. Como se demonstrará, o ordenamento constitucional e
legal brasileiro é construído pressupondo um tratamento distinto
para a legiferação tributária.

1 Para o titular de Direito Constitucional da Universidade Complutense de Ma-


dri, a importância do aspecto formal na tramitação das leis tem sido objeto de
destaque pela doutrina espanhola, que tem reservado um papel decisivo ao
processo de elaboração legislativa. Citando Eliseo Aja Fernández, catedrático
de Direito Constitucional da Universidade de Barcelona, o autor menciona
que o procedimento legislativo transcende as funções tradicionais que lhe são
atribuídas, sendo elemento decisivo na definição das leis, uma vez superada a
concepção material difundida pela escola alemã da Teoria Geral do Estado.
2 Diferentemente do processo legislativo tributário, o processo legislativo orça-
mentário é comumente tratado como uma espécie do gênero processo legis-
lativo, haja vista a existência de algumas particularidades e de princípios pró-
prios, que tornariam esse processo de natureza especial. No que diz respeito à
tributação, o tema praticamente ainda não foi objeto de um estudo detido e
apartado, havendo poucas menções na literatura. Ressalve-se a existência de
alguns artigos que o especificaram: PATRUS; MOREIRA, 2018; ROCHA, 2014;
118 e GARCIA, 2014.
NEPEL
2. A especificidade da arena
tributária, o paradoxo do debate e a
governamentalização da decisão

As questões tributárias são produzidas em uma arena deci-


sória bem específica. Alguns motivos já foram identificados pela
Ciência Política, a saber: (i) as políticas tributárias, em comparação
com as decisões relativas ao gasto público, possuem uma certa
invisibilidade para os atores sociais, de modo que os benefícios
que teriam grande visibilidade em uma autorização de gasto pas-
sam despercebidos na legislação tributária. Por isso, há um incen-
tivo para que os atores políticos e elites burocráticas escolham
os mecanismos tributários em lugar de instrumentos que produ-
zem maior conflito; (ii) diversamente de outras políticas públicas
sociais, as políticas tributárias raramente podem ser usadas na
arena eleitoral em benefício de seus idealizadores, porquanto os
seus benefícios são difusos e os ônus fiscais de seu financiamento
são concentrados. Assim, embora contem com o apoio de grupos
de interesse setoriais, os parlamentares que patrocinam alterações
da legislação tributária estão sujeitos ao constrangimento eleitoral
em uma arena política mais ampla; (iii) na arena tributária pre-
dominam decisões de grande complexidade, cujas tecnicalidades
Processo Legislativo Tributário
só são acessíveis por especialistas. Essa especificidade também se
relaciona com a sua relativa invisibilidade, uma vez que, na medida
em que a política tributária é percebida como extremamente téc-
nica pelos políticos e cidadãos, é mais fácil para os grupos de
interesse criarem benefícios mediante o sistema tributário do que
pelo gasto direto; (iv) há um predomínio de atores de natureza
burocrática ou institucional, tais como governadores, secretários
da Fazenda, associações e fóruns de base regional, estadual e
municipal (AZEVEDO; MELO, 1997).
O problema da complexidade e a opção por um sistema cada
vez mais obscuro e fomentador de uma tributação disfarçada está 119
NEPEL
ligado, ainda, àquilo que Saldanha Sanches (2010, p. 42) deno-
mina de “paradoxo do debate público”. A assimetria de informa-
ção entre os contribuintes e a existência de poderosos lobbies fis-
cais pode levar à consagração de soluções demagógicas, apenas
aparentemente justas.3 De fato, estando disseminado o discurso
“libertarista vulgar”4 e considerando que a política não é feita
por “reis-filósofos”, as propostas de alterações da lei tributária
tendem a se tornar ainda mais dissimuladas e encobertas, pois
assim são menos impopulares e mais fáceis de serem aprovadas
nessa arena tão diferenciada.

As leis tributárias estão sempre sujeitas a um processo de


discussão pública, já que devem ser aprovadas pelo Parlamento,
podendo a opinião pública facilmente reagir a movimentos per-
ceptíveis de maior oneração fiscal quando o Poder Executivo se
vê obrigado a aumentar a tributação. Por outro lado, a lei tri-
butária está sempre cheia de exceções, de regimes especiais, de
benefícios fiscais que, ainda que no seu cômputo final alterem
profundamente a distribuição da carga tributária, escapam quase
sempre à percepção da grande maioria dos contribuintes. E, a
despeito disso, são as normas excepcionais (“contranormas”),
que “estilhaçam a lógica interna do sistema e os princípios da

3 “A força e a debilidade da formação da lei fiscal como expressão de políticas


que deveriam procurar a justiça fiscal estão aí: o debate público das leis fiscais
é uma condição essencial para a obtenção de justiça, mas trata-se de um de-
bate viciado pelos interesses organizados que nele atuam”. (SANCHES, 2010,
p. 42-43).
4 O libertarismo vulgar é uma corrente que advoga um direito moral rigoroso
e absoluto à propriedade e de merecimento dos retornos de mercado, noção
esta que está incorporada no senso comum. Representa, assim, um pensa-
mento confuso do legítimo libertarianismo. Murphy e Nagel ilustram essa no-
ção com a discussão de justiça tributária que se centraria sobre a distribuição,
tomando como base a renda pré-tributária, pressupondo de forma irrefletida
que a distribuição pré-tributária do bem-estar material seja justa. Outro equí-
voco seria a ideia de merecimento: os retornos mais altos obtidos são mereci-
dos como recompensa, em razão do esforço da pessoa e da disposição em se
arriscar na economia capitalista, o que implicaria que o mercado existe como
120 fenômeno separado do governo. (MURPHY; NAGEL, 2005, p. 86-89).
NEPEL
oneração”, que transmitem a todos a noção de que as leis tribu-
tárias são injustas.5

A guerra fiscal e a deformação do modelo constitucional do


Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS –
demonstra claramente esse paradoxo. À medida que um Estado
concede mais exoneração, renunciando à tributação de certos
investimentos, reduz-se a arrecadação e, para compensar a perda,
são criadas estratégias técnicas para aumentar a carga incidente
sobre as mercadorias e serviços essenciais (energia elétrica, telefo-
nia, combustíveis), o que gera mais injustiça, na medida em que
os cidadãos de mais baixa renda é que sofrem, pois financiam
indiretamente a renúncia tributária (DERZI, 2014, p. 57-58).

O problema é que, no Direito Tributário, o linguajar exacer-


bada e propositadamente técnico acaba por criar empecilhos
aos processos de legitimação democrática de decisões políticas,
inviabilizando a ampliação do debate e o escrutínio público. Os
discursos especializados, que advêm do epicentro dos governos,
escondem, por detrás de um véu de neutralidade e cientificidade,
presunções normativas sobre o que é certo e errado, sobre o justo
e o injusto, ao passo que negam a presença de ideologias e rela-
ções assimétricas de poder e dominação. Deve-se, assim, ter muita
cautela quando se está inserido no campo da expertise, uma vez
Processo Legislativo Tributário
que uma escolha política não pode ser simplesmente regida pela
técnica, pois deve levar em conta as implicações políticas e sociais
(MAGALHÃES, 2020, p. 111-112).

A atual fase de “governamentalização” do poder de decisão


em matéria de tributação reduziu o papel do Parlamento na

5 Sanches recorre ao estudo de Michael Graetz (The Decline (and Fall?) of the
Income Tax. Nova Iorque: 1997), que demonstrou as sistemáticas criações de
nichos de privilégio mediante a ação de lobistas junto ao legislador, onde a
“enorme complexidade do tax code tem sido explicada por uma intensíssima
e permanente interação entre legisladores e interesses particulares. No en-
tanto, esta pressão e luta por rendas fiscais, que existem sempre com maior
ou menor intensidade, é um dado permanente que raramente está sujeito à
crítica do público” (SANCHES, 2010, p. 44). 121
NEPEL
elaboração das políticas tributárias,6 motivo pelo qual há uma
patente crise de legitimidade democrática, na medida em que a
decisão do legislador – para agravar ou exonerar tributos – não
tem se dado entre amplas balizas, sendo fortemente condicio-
nada, por um lado, pela força da opinião pública e, por outro,
por limites de ordem fática decorrentes da necessidade de esta-
bilidade orçamentária (BATISTA JÚNIOR, 2003, p. 420). Ocorre
que, sem a efetiva participação do Poder Legislativo, a liberdade
e a igualdade, valores básicos da democracia, ficam ameaçados
(FERREIRA FILHO, 2001, p. 269).
Diante de tal quadro caótico, não há saída senão “um processo
de incessante debate democrático” (SANCHES, 2010, p. 42), sob o
escrutínio e respaldo em um devido Processo Legislativo Tributário
– eis que é o Parlamento o locus precípuo para que isso ocorra –,
assegurando o contraditório de todos os interessados. O reforço das
instituições é fundamental e, no caso do Direito Tributário, como
ele é arquitetado pelos técnicos do Governo, o robustecimento do
Poder Legislativo torna-se ainda mais necessário.7
A Constituição Estadual de Minas Gerais, de modo inovador em
relação à Constituição da República – CRFB/88 –, oferece um exce-
lente exemplo de uma regra que visa assegurar o debate parlamentar
no processo legislativo de instituição ou majoração de tributos. O § 1º
do art. 152 impõe que projetos de lei que criem ou aumentem tribu-
tos sejam apresentados em até noventa dias antes do encerramento
da sessão legislativa (período anual dos trabalhos do Parlamento).
Trata-se de uma limitação constitucional ao poder de legislar
em matéria tributária, especificamente voltada ao Processo Legis-

6 Considerando inconstitucional a “desparlamentarização” da decisão tribu-


tária por violação ao princípio da publicidade material, confira-se: PATRUS;
MOREIRA, 2018.
7 “Uma tecnocracia sem raízes democráticas não teria nem o poder nem a
motivação para conferir peso suficiente às demandas do eleitorado por justiça
social, status de segurança, serviços públicos e bens coletivos, em caso de um
conflito com as demandas sistêmicas para a competitividade e o crescimento
122 econômico.” (HABERMAS, 2015, p. 343).
NEPEL
lativo Tributário, considerando que é comum, em todos os Gover-
nos, o envio de propostas de alteração da legislação tributária ao
final da sessão legislativa, época em que a população não está
tão mobilizada como no restante do ano e em que o Executivo
almeja incrementar suas receitas para o exercício seguinte. Por
isso, a Carta mineira garante um tempo hábil à discussão, pelos
parlamentares, dos projetos que instituem ou majorem tributos,
conferindo maior efetividade ao princípio da não surpresa, que
nada mais é do que um viés do sobreprincípio da segurança jurí-
dica, para garantir um devido processo legislativo.

3. A “desparlamentarização” do Direito
Tributário e o risco da tríplice função
estatal exercida pelo Poder Executivo

O direito comparado é rico em exemplos e comprova que a


governamentalização do poder de decisão em matéria tributária
não se dá apenas no Brasil. Na Alemanha (TIPKE, 2012, p. 78), em
Portugal (NABAIS, 2015, p. 328), no Uruguai (COSTA, 1992, p.
278) e na Argentina (CASÁS, 2005, p. 327) há críticas quanto ao
fato de as leis tributárias serem verdadeiramente preparadas pelos
Processo Legislativo Tributário
funcionários do Ministério da Fazenda.

O problema é que, além de dominar a produção legislativa, o


Poder Executivo é quem, ao fim e ao cabo, interpreta e aplica a lei
tributária em massa e detém o controle do processo administra-
tivo tributário, onde deságua boa parte do contencioso tributário.
As decisões prolatadas pela “jurisdição administrativa” represen-
tam relevante fonte do direito e geram expectativas normativas,
capazes, muitas vezes, de influenciar o Poder Judiciário.

Essa característica do Direito Tributário, que põe em relevo


o perigo da concentração das três funções no Poder Executivo 123
NEPEL
(HENSEL, 1972, p. 183),8 o distingue dos demais ramos do Direito,
e faz emergir mais um motivo para o estudo do processo legis-
lativo relacionado especificamente à matéria tributária. A relação
tributária sofre uma vicissitude que não encontra paralelo em
nenhum outro tipo de relação: o Estado-credor é a um só tempo
o criador da lei tributária (função legislativa), aplicador e destina-
tário desta mesma norma (função executiva e fiscalizatória) e, em
alguns momentos, julgador dos litígios gerados pela aplicação das
regras tributárias (COSTA, 1992, p. 276-279).
Fica evidente, portanto, a necessidade de se aprofundar os
estudos sobre o Processo Legislativo Tributário. Um bom exemplo
para demonstrar a necessidade desse tipo de estudo é o concer-
nente à iniciativa legislativa. Observe-se.

4. O processo legislativo tributário


e a sua diferença com o processo
legislativo orçamentário: a inexistência
de iniciativa privativa

A iniciativa reservada é um contrapeso da extensão da inicia-


tiva a vários titulares e a sua razão está na proteção da indepen-
dência de determinado Poder, bem como na redução das des-
pesas públicas. No caso da tributação e orçamento, há sempre
uma preocupação de que, às vésperas de eleições, parlamentares
poderiam dar início à geração artificial de oportunidades para
granjear votos, com o que os orçamentos não resistiriam (MAR-
TINS; BASTOS, 1991, p. 401).

8 Para Albert Hensel (1972, p. 183), “nenhum setor do Direito Administrativo


(deixando à parte o Direito Penal) tem tão múltiplas e variadas relações com
o Estado de Direito como o Direito Tributário, cujas intervenções na esfera da
propriedade (melhor dito, na esfera patrimonial) constituem pelo menos a
maioria, quantitativamente predominante, de todas as intervenções do Esta-
do”. Assim, ele conclui que a teoria da divisão dos poderes é uma questão de
124 grave importância na aplicação do Direito Tributário.
NEPEL
Apesar dessa diferença marcante entre as disciplinas financeira
e tributária – embora a segunda esteja contida na primeira –, a
autonomia do Direito Tributário foi sendo conquistada aos poucos,
sendo certo que, no que diz respeito à iniciativa de projetos de
lei, até o advento da CRFB/88, as ideias ainda se misturavam. Ao
comentar o texto da Constituição de 1967, Ferreira Filho (1974,
p. 54) aduziu que o alcance da expressão matéria financeira vinha
desde a Constituição de 1934 e que ela “quis abranger na expres-
são ‘matéria financeira’, não só as leis de receitas como as criadoras
de despesas, abrangendo o orçamento e as de contabilidade”. Sem
dúvida, no contexto da época, era forte a tese de que matérias
envolvendo a disciplina de tributos (matéria tributária) estaria den-
tro da iniciativa exclusiva do Presidente sobre matéria financeira.
A CRFB/88, com rigor terminológico, estabeleceu e distinguiu,
com clareza, as matérias financeira e tributária. As normas que regem
as iniciativas das leis relativamente aos temas deixam isso claro: (i) são
de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que dispo-
nham sobre organização administrativa e judiciária, matéria tributária
e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Ter-
ritórios (art. 61, § 1º, II, “b”); e (ii) leis de iniciativa do Poder Execu-
tivo estabelecerão o plano plurianual; as diretrizes orçamentárias; os
orçamentos anuais (art. 165, incisos I a III).
A reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo em matéria Processo Legislativo Tributário
tributária se dá tão somente no caso “dos Territórios”. A litera-
lidade da previsão constitucional não deixa dúvida de que, não
sendo caso de território federal, cabe ao Legislativo a iniciativa de
proposições em matéria tributária. Uma vez que a reserva de ini-
ciativa aplicável em matéria orçamentária não alcança as leis que
instituam ou revoguem tributos, pode-se, com segurança, afirmar
que não há restrição constitucional para que os parlamentares
iniciem, nas respectivas casas, projetos de lei alterando normas
tributárias.9

9 Para aprofundar no assunto, cf.: MOREIRA, 2017. 125


NEPEL
Tanto na doutrina quanto na Corte Maior esta questão é
tranquila.10 Não obstante, não é raro que várias proposições
legislativas sejam consideradas inconstitucionais, por vício de
iniciativa, por comissões de constituição e justiça nas diversas
casas legislativas do país. Na realidade, isso ocorre porque, na
maioria das vezes, os projetos de autoria parlamentar visam
a instituição de benefícios tributários, mas certas leis orgâni-
cas colocam tais matérias sob a iniciativa reservada do Poder
Executivo,11 embora de modo inconstitucional por ofensa ao
princípio da simetria.
O tema da iniciativa legislativa em matéria tributária pode
ser desdobrar em muitos outros. No direito comparado, por
exemplo, há grande discussão se haveria razão para confiar aos
eleitores os assuntos tributários, em face da realidade da maioria
da população e do debate técnico que a questão envolve. Klaus
Tipke (2012, p. 78) aduz que seria por esse motivo que quase
todas as Constituições que preveem o instituto do referendum
excluem dele a matéria tributária. Casalta Nabais (2015, p. 341)
observa que essas proibições do exercício da democracia direta
para a disciplina dos impostos se justificam, em geral, com “a
necessidade de assegurar a estabilidade das receitas fiscais,
subtraindo-as à previsível e fácil manipulação demagógica a que
o apelo a pontos de vista de natureza estritamente egoísta segu-
ramente conduziria”.
Na América Latina, também são comuns os ordenamentos
constitucionais que impedem a iniciativa popular em matéria

10 “Tributário. Processo legislativo. Iniciativa de lei. 2. Reserva de iniciativa em


matéria tributária. Inexistência. 3. Lei municipal que revoga tributo. Iniciativa
parlamentar. Constitucionalidade. 4. Iniciativa geral. Inexiste, no atual texto
constitucional, previsão de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo em ma-
téria tributária. 5. Repercussão geral reconhecida. 6. Recurso provido. Reafir-
mação de jurisprudência” (ARE 743.480, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tema 682,
p. 20/11/2013).
11 Veja-se, a título exemplificativo, o teor do art. 104 da Lei Orgânica do Muni-
cípio de Mariana, Minas Gerais: “Art. 104 - Somente ao Município cabe esta-
belecer isenção de impostos de sua competência, por meio de lei de iniciativa
126 do Poder Executivo, na forma desta Lei Orgânica.”
NEPEL
tributária.12 No Brasil, o aparecimento da iniciativa popular é
recente, pois apenas se deu no texto da CRFB/88 (art. 14, inciso
III). De qualquer forma, por força de uma interpretação sistemá-
tica das regras de iniciativa previstas na CRFB/88, sabe-se que
nem todas as matérias podem ser iniciadas pelo povo, mas, como
a matéria tributária não está entre aquelas reservadas ao chefe do
Poder Executivo, é plenamente possível que seja iniciada nas casas
legislativas pelo povo.
Apesar disso, há que se reconhecer a dificuldade prática do
uso do instituto para a seara da tributação. De um lado, dificil-
mente a população irá propor a majoração ou a criação de algum
tributo, pois mais justo que seja. De outro, a instituição de isen-
ções e benefícios, por serem geralmente para setores específicos,
não logrará mobilizar os inúmeros eleitores para dar início ao
processo legislativo. Some-se isso ao fato de que os projetos de
leis tributárias benéficas devem ser acompanhados de estimativas
de impacto (o que dificulta a iniciativa legislativa até mesmo por
um parlamentar). De tal modo, até hoje, não houve nenhum pro-
jeto de iniciativa popular no país tratando estritamente do tema
tributário.

5. A avaliação de impacto ex ante da lei Processo Legislativo Tributário


tributária

A Legística é a área de conhecimento que se ocupa do plane-


jamento, da concepção, da elaboração e da avaliação das leis, de
forma metódica e sistemática, valendo-se de premissas técnico-
científicas como coadjuvantes da decisão política de escolha da
oportunidade de legislar e das soluções regulativas; da função

12 A Constituição Uruguaia de 1997 proíbe a proposta popular em relação à


matéria tributária e aos temas de iniciativa privativa do Executivo (art. 79) e
a Constituição Argentina de 1994 prevê que “não serão objeto de iniciativa
popular os projetos referentes a [...] tributos” (art. 39). 127
NEPEL
redacional destinada à apropriação dos comandos definidos;
e das ações de controle dos impactos ou da efetividade da lei
(PIRES, 2009, p. 119 e ss.).
Não há dúvida que os ritos e formas que compõem o pro-
cedimento de elaboração legislativa não constituem meras for-
malidades, mas são condições de possibilidade para a gênese
democrática da lei (BERNARDES JÚNIOR, 2016). Deve-se superar
a visão equivocada de que o processo legislativo e a Legística
seriam meras técnicas, na medida em que são eles que garantem
a igualdade e a liberdade no momento de produção das normas
que vão reger a sociedade. Fato é que, mais do que a satisfa-
ção pessoal trazida por determinada regra, a confiabilidade no
processo pelo qual tal regra foi construída é capaz de promover
melhor a sua aceitação, em um sentido moral, pelo conjunto da
sociedade (SANTOS; SOARES, 2016).
A Legística material, que merece relevo nesse momento,
reforça a faticidade (ou realizabilidade) e a efetividade da legis-
lação, e seu escopo é atuar na decisão sobre o conteúdo e na
construção da nova legislação, bem como no processo de regu-
lação, que pode ser projetado através da avaliação do possível
impacto sobre o sistema jurídico. Em resumo, a Legística utiliza-
-se de ferramentas que possibilitam a realização de diagnósticos
e prognósticos (SOARES, 2007, p. 125).
Para aprimorar o Processo Legislativo Tributário, um instru-
mento fundamental que merece uma detida análise é a avaliação
de impacto legislativo, que tem por escopo antever as possíveis
consequências da lei (ex ante) e, também, verificar se, após a sua
aplicação, os resultados foram satisfatórios. No caso da avaliação
ex post, almeja-se definir se a lei tributária é efetiva, ou seja, se o
comportamento adotado pelos contribuintes está de acordo com
o esperado (por exemplo, se as isenções concedidas estimularam
as condutas como planejado); e eficiente, isto é, se os benefícios
128 oriundos da lei compensam os custos instituídos por ela, conside-
NEPEL
rando que as isenções são gastos sustentados por toda a socie-
dade (MENEGUIM, 2010).

Como é um procedimento oneroso, a avaliação legislativa


não deve ser utilizada indiscriminadamente, mas seletivamente.
Ela deve ser realizada nos diplomas que pela sua natureza ou
complexidade têm particular incidência na sociedade. (CAUPERS;
ALMEIDA; GUIBENTIF, 1995, p. 6). Por isso, como reconheceu
Ulrich Karpen (2003, p. 14), em relação aos temas tributários,
que têm repercussão geral e aplicação em massa, as propostas
demandam sempre um estudo de impacto.13

Todavia, diversamente do que ocorre em outros países, no Bra-


sil, o direito positivo ainda carece de normas específicas regulando
as avaliações de impacto legislativo. Na esfera federal, houve uma
considerável evolução da matéria com o advento do Decreto nº
9.191, de 2017, que regulamentou a Lei Complementar – LC –
nº 95, de 1998. O decreto vai além de meramente dispor sobre
técnica legislativa e estabelece “as normas e as diretrizes para
elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento
de propostas de atos normativos ao Presidente da República pelos
Ministros de Estado” (BRASIL, 2017).14
Processo Legislativo Tributário
13 Analisando o procedimento de avaliação na Alemanha, Karpen observa que
o custo de uma avaliação prospectiva estaria entre 25.000 e 255.000 euros,
o que inviabilizaria a realização do estudo em relação a todas as proposições,
mas o próprio autor reconhece que “determinados domínios da legislação
onde existem disposições legais excessivas, como é o caso da legislação tri-
butária, devem merecer mais processos de avaliação, na medida em que o
processo de desregulamentação pode se beneficiar muito das avaliações”.
14 É importante mencionar que a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº
13.848/2019), no seu art. 5º, estabeleceu que a alteração ou edição de atos
normativos federais deve vir precedida de Avaliação de Impacto Regulatório
(AIR), com informações e dados sobre os possíveis efeitos econômicos. A AIR
não será exigida nas propostas de edição de decretos ou atos normativos a
serem submetidos ao Congresso, motivo pelo qual não será objeto de análise
deste estudo. O Decreto nº 10.411, de 2020, que regulamentou a matéria,
dispõe no § 1º do art. 3º que, no âmbito da Receita Federal, a AIR só será exi-
gida nos atos normativos que instituam ou modifiquem obrigação acessória
(que não precisam de se submeter à reserva legal), o que acaba por limitar a
análise de normas que afetem a carga tributária. 129
NEPEL
O art. 32 do mencionado decreto estabelece que a proposta
encaminhada deve ser acompanhada, além da exposição de
motivos, de um parecer contendo diversas informações, desde
a análise do problema que o ato normativo visa solucionar e os
objetivos que se pretende alcançar; até mesmo a estratégia e o
prazo para implementação. Prevê, ainda, no caso de medidas tri-
butárias, que as propostas deverão conter os objetivos, as metas e
os indicadores para acompanhamento e avaliação dos resultados
alcançados; e a indicação do órgão responsável e do eventual cor-
responsável pela gestão da política.
Além disso, no check list constante do anexo do referido
decreto, especificamente em relação à proposição tributária, há
itens como:

12. Pretende-se instituir ou aumentar tributo?


Qual é o fundamento constitucional? 12.1. Está
sendo respeitado a estrita legalidade tributária de
que trata o art. 150, caput, inciso I, da Constitui-
ção? 12.2. Há definição clara de todos os elemen-
tos da obrigação tributária? Qual a hipótese de
incidência, a base de cálculo, o sujeito passivo e
as consequências no caso de não pagamento ou
de pagamento em atraso? 12.3. A lei afeta fatos
geradores ocorridos antes de sua vigência (lei
retroativa)? [...] 12.9. O tributo que se pretende
instituir tem caráter confiscatório? 12.10. No caso
de taxa, cuida-se de exação a ser cobrada em
razão do exercício de poder de polícia ou da pres-
tação de serviço público específico e divisível pres-
tados ou postos à disposição do contribuinte? Há
equivalência razoável entre o custo da atividade
estatal e a prestação cobrada? (BRASIL, 2017).

Constata-se que, se fossem observadas todas as previsões


130 regulamentares, ao menos no âmbito federal, seria possível uma
NEPEL
avaliação prospectiva (um bom prognóstico), viabilizando um
melhor controle prévio, tanto dos demais Poderes da República,
quando do próprio povo e dos seus representantes quando do
encaminhamento da proposição legislativa pelo Presidente da
República. Contudo, a falta de previsão de sanções e a posição
infralegal das regras acaba deixando o Poder Executivo livre para
decidir se cumprirá ou não estritamente os requisitos acima des-
critos.15
Ao se avaliar um projeto de lei antes mesmo de sua aprovação
(prospectivamente) poderão ser sopesados os efeitos que esta
provavelmente produzirá, bem como consequências inesperadas
pelo legislador, sendo possível corrigir possíveis falhas do projeto
e simular cenários alternativos àqueles considerados pelos par-
lamentares. A avaliação de impacto prévio, realizada de forma
imparcial e transparente pode fazer com que a decisão política
torne-se mais legítima, eis que fundamentada em dados reais.
No campo das políticas tributárias, se em uma eventualidade
(não tão rara) for necessária a apresentação de proposição com
o aumento da carga tributária, uma análise de impacto substan-
ciosa pode facilitar, ou ao menos deveria, a sua aprovação no
Poder Legislativo. Aumento de tributo é tema reconhecidamente
impopular, mas, se um trabalho imparcial e técnico demonstrar
que a proposta é viável e indispensável, ele pode contribuir para Processo Legislativo Tributário

15 Comentando o decreto anterior que regulamentava a LC nº 95/98, revogado


pelo Decreto nº 9.191/2017, assim se posicionou Fabiana de Menezes: “o
Decreto 4176/2002 densificou as regras e princípios da LC 95/98 ao introduzir
dentre outras questões de Legística Formal, um instrumento de avaliação de
impacto, uma check list bastante analítica (em comparação com outras como
a list blu alemã e do modelo canadense, por exemplo) cujo fim é realizar um
diagnóstico da situação-problema e um prognóstico em relação às variáveis
de impacto. Todavia, a eficácia desta parte do dispositivo é toda uma outra
história, ao lado do despreparo de quem for o responsável pela sua execução
por desconhecer até mesmo o termo Legística, quanto mais as suas metodo-
logias, a check list pode estar fadada a concretizar o oposto do almejado pela
Legística, ou seja uma conduta não internalizada na Administração Pública.
Trata-se de um instrumento detalhado e que então exigiria uma interação
entre profissionais diversos, com uma rotina e sistema de recolhimento de
informações, com prazos bem definidos para que a avaliação tivesse de fato
condições de ser realizada.” (SOARES, Fabiana de Menezes, 2007, p. 141). 131
NEPEL
legitimar a discussão e para a inserção da proposta na agenda do
Poder Legislativo. A avaliação de impacto da lei ex ante no caso
do Processo Legislativo Tributário mitiga a defasagem informa-
cional entre os sujeitos processuais e, ao reforçar o contraditório,
amplia o caráter democrático do procedimento, dominado pela
tecnoburocracia governamental.

5.1. As avaliações de impacto como pressuposto do


Processo Legislativo Tributário benéfico

O Processo Legislativo Tributário benéfico, que versa sobre a


instituição de desonerações tributárias, merece uma menção em
apartado, uma vez que há normas que impõem um mínimo de
planejamento legislativo e que haja a apresentação de um estudo
de impacto financeiro e orçamentário da medida. A LC nº 101,
de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) introduziu requisi-
tos rígidos para a concessão de incentivos tributários, de modo a
evitar a concessão de isenções de forma deturpada, oportunista
e desordenada, em prejuízo do equilíbrio das contas públicas.
Assim, o legislador não tem uma discricionariedade absoluta na
exoneração de tributos e deve cumprir regras que impactam dire-
tamente no Processo Legislativo Tributário.

De acordo com o art. 14 da LRF, constata-se que a concretiza-


ção da renúncia de receita tributária dependerá do atendimento
de pré-requisitos imperativos e alternativos. O primeiro dos
pressupostos – que é obrigatório e está no caput do artigo – é
a estimativa do impacto orçamentário-financeiro da renúncia no
exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes.
Essa estimativa deve ser formalizada quando do encaminhamento
da proposta de lei relativa à concessão e à ampliação da renúncia
de receita ao Poder Legislativo. A outra previsão obrigatória tam-
bém constante do caput é a compatibilização da medida com a
132 Lei de Diretrizes Orçamentárias.
NEPEL
Além dos pressupostos acima, a concessão ou ampliação de
incentivo ou benefício de natureza tributária deve observar, das
duas condições a seguir, pelo menos uma, a saber: (a) a demons-
tração, pelo proponente, de que a renúncia foi considerada na
estimativa da receita da lei orçamentária, e que não afetará as
metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da LDO
– impõe-se que a renúncia tenha previsão na LOA, em atendi-
mento ao princípio da universalidade, além do cumprimento dos
objetivos previstos no Anexo de Metas Fiscais da LDO, mediante
a demonstração de que estes não serão afetados pela renúncia
–; ou, alternativamente, (b) sejam apresentadas medidas de com-
pensação, tais como elevação de alíquotas, ampliação da base
de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. Evi-
dentemente, as medidas referidas são exemplificativas, podendo
o proponente adotar outras que alcancem a mesma finalidade,
como, até mesmo, a instituição de novos tributos.

Note-se que, adotada a segunda hipótese, isto é, caso o ato


de concessão do benefício decorra de medidas compensatórias, o
benefício somente poderá entrar em vigor após a implementação
delas. Com efeito, a lógica do § 2º do art. 14 é garantir que a
compensação seja simultânea, ou até mesmo anterior à renúncia
da receita, evitando o desequilíbrio das contas públicas com a Processo Legislativo Tributário
queda na arrecadação.

Especificamente em relação ao art. 14, inciso II, o Plenário do


STF, no julgamento da ADI nº 2.238, acompanhou, à unanimi-
dade, o Ministro Relator Alexandre de Moraes, ao considerar que
o dispositivo estabeleceria a necessidade de uma ação planejada
e exigiria responsabilidade e transparência para evitar o endivida-
mento voluntário. A regra se propõe a organizar uma estratégia,
dentro do Processo Legislativo Tributário, para que os impactos de
um projeto de concessão de benefícios sejam mais bem quantifi-
cados, avaliados e assimilados em termos orçamentários. 133
NEPEL
Na linha do que foi decidido, o mecanismo, ao promover
um diagnóstico mais preciso do montante de recursos de que
o Estado abre mão por atos de renúncia de receita, qualifica o
debate legislativo sobre gastos tributários. Além disso, a antecipa-
ção para o processo legislativo, da necessidade de compensação
fiscal de despesas obrigatórias continuadas surge como um apri-
moramento deliberativo da responsabilidade democrática, signifi-
cando verdadeiro e necessário amadurecimento fiscal do Estado.
Na realidade, em nenhum momento o legislador nacional obstou
a renúncia de receita pelos entes políticos, o que certamente con-
figuraria afronta ao princípio federativo; ao revés, a renúncia foi
expressamente admitida, desde que obedecidos alguns requisitos,
para viabilizar uma gestão financeira responsável.

Também limitando a liberdade de conformação do legislador


tributário, o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
sitórias – ADCT –, incluído pela EC nº 95/2016, passou a exigir
que a proposta legislativa que crie renúncia de receita deverá ser
acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e finan-
ceiro. Destarte, parte das exigências previstas na LRF, em especial
no art. 14, ganharam status constitucional. A mencionada regra
tem grande aplicabilidade no Processo Legislativo Tributário bené-
fico e é extensível para todos os níveis da Federação.

A título de exemplo, mencione-se que, no julgamento da


ADI nº 5.816, o STF considerou que houve desatendimento, no
Processo Legislativo Tributário estadual, do art. 113 do ADCT, o
qual deve ser prestigiado com máxima força. Referida ação foi
ajuizada pelo Governador de Rondônia contra a Lei estadual nº

134 4.012/2017, que dispôs sobre a vedação de incidência do ICMS


NEPEL
sobre contas de água, luz, telefone e gás titularizadas por templos
religiosos.16

Percebe-se que, embora, a rigor não haja uma imposição de


um estudo amplo de impacto legislativo ex ante, como preleciona
a Legística, exige-se que, ao menos, o impacto orçamentário e
financeiro seja considerado quando da concessão de incentivos
tributários.

Mencione-se que há determinadas situações em que a CRFB/88


impõe um processo legislativo mais rigoroso para a concessão de
benefícios tributários. O art. 155, § 2º, XII, “g” da CRFB/88, dis-
põe que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante
deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos
e benefícios fiscais relativos ao ICMS serão concedidos e revoga-
dos. A lei complementar relativa à disciplina da matéria é a LC nº
24, de 1975. Nela, está disposto que benefícios fiscais relativos
ao ICMS devem estar previstos em instrumento formalizado por
todas as unidades da Federação, no âmbito do Conselho Nacional
de Política Fazendária – Confaz.

O fundamento da exigência encontra-se no fato de que o ICMS


é um imposto que tem caráter nacional, o que supõe a edição de
regras uniformes para viabilizar a correta arrecadação e repartição
do imposto e, dessa maneira, proporcionar segurança jurídica aos Processo Legislativo Tributário
contribuintes e evitar conflitos entre os titulares da competência
tributária, decorrente, por exemplo, da concessão unilateral de

16 Ementa: “[...] 2. A norma estadual, ao pretender ampliar o alcance da imuni-


dade prevista na Constituição, veiculou benefício fiscal em matéria de ICMS,
providência que, embora não viole o art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF – à luz do
precedente da Corte que afastou a caracterização de guerra fiscal nessa hipó-
tese (ADI 3421, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 5/5/2010,
DJ de 58/5/2010) –, exige a apresentação da estimativa de impacto orçamen-
tário e financeiro no curso do processo legislativo para a sua aprovação. 3.
A Emenda Constitucional 95/2016, por meio da nova redação do art. 113
do ADCT, estabeleceu requisito adicional para a validade formal de leis que
criem despesa ou concedam benefícios fiscais, requisitos esse que, por expres-
sar medida indispensável para o equilíbrio da atividade financeira do Estado,
dirigi-se a todos os níveis federativos. [...]”. (ADI 5.816, Rel. Min. Alexandre
de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2019, DJe de 26/11/2019). 135
NEPEL
benefícios relativos ao ICMS como forma de competição entre as
unidades da Federação, a chamada guerra fiscal.

O Processo Legislativo Tributário relativo à concessão de bene-


fícios tributários de ICMS tem sido um ponto de grandes debates
doutrinários e jurisprudenciais. Discute-se, por exemplo, a consti-
tucionalidade do dispositivo que exige decisão unânime dos Esta-
dos-membros e do Distrito Federal para concessão de benefícios
relacionados ao ICMS. Como essa forma de deliberação acaba por
implicar a prevalência da vontade da minoria, dando o “poder de
veto” a um único Estado, parcela da comunidade jurídica passou
a arguir que tal procedimento não seria democrático.17 O tema foi
objeto de análise recente do STF, no julgamento da ADPF nº 198,
que, por apertada maioria, decidiu pela constitucionalidade desse
quórum, em decisão ainda não publicada (a ata foi publicada no
dia 1º/9/2020).

Finalmente, ainda no que diz respeito ao Processo Legislativo


Tributário benéfico, observe-se que a CRFB/88 dispõe, em seu art.
150, § 6º, que qualquer subsídio ou isenção, redução de base
de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão
de tributos só poderão ser concedidos mediante lei específica,
que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o
correspondente tributo.

A ideia da especificidade da lei é de extrema importância para


o processo legislativo da lei tributária instituidora de benefícios
tributários, porque limita a apresentação de desonerações tri-
butárias de forma obscura e velada, no interior de proposições
legislativas que tratam de outros temas, como, verdade seja dita,

136 17 Para aprofundar no tema, cf.: MOREIRA, 2018.


NEPEL
ainda ocorre em nosso país.18 O respeito ao art. 150, § 6º, da
CRFB/88, reforça o devido Processo Legislativo Tributário, motivo
pelo qual a interpretação da regra deveria ser de máxima eficá-
cia normativa. Entretanto, o STF tem flexibilizado a aplicação do
dispositivo,19 abrindo margem a uma discricionariedade judicial.20

A necessidade da pureza material das normas não é privativa


da lei tributária concessiva de benefícios ou da lei orçamentária
– casos em que há uma restrição constitucional expressa –, mas
incorpora o ideal da norma no ordenamento jurídico como um
todo, de modo que cada lei deve tratar o assunto que lhe é pecu-
liar, sob pena de se perpetuar o caos legislativo. Ela é reconhecida
na Legística formal (art. 7º, inciso II, da LC nº 95/1998), ciência
que se debruça sobre a técnica legislativa e, se descumprida,
deveria ensejar, sem pudor, na declaração de nulidade do ato

18 “A finalidade da regra do art. 150, § 6º, seria, portanto, semelhante à do art.


165, § 8º, da Constituição, que veda as chamadas ‘caudas orçamentárias’.
Uma e outra regra destinam-se a regular a técnica legislativa e a garantir
transparência fiscal [...]. Na prática, a regra do art. 150, § 6º, da Constitui-
ção de 1988 não costuma ser rigorosamente cumprida. Apesar da clareza
do dispositivo citado, o preceito é frequentemente desrespeitado no âmbito
do processo legislativo federal, e não são muitos os casos de leis declaradas
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal com base nesse fundamento.
[...] O exemplo da Lei n. 12.431, de 2011, serve para ilustrar o baixo grau de
eficácia do preceito do art. 150, § 6º, no nível federal. Como este são vários
os casos de leis que não atendem ao requisito da uniformidade temática e
incluem matérias flagrantemente desconexas em relação aos incentivos fiscais
Processo Legislativo Tributário
que concedem.” (CORREIA NETO, 2016, p. 223-224).
19 Cf. ADI nº 4.033, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe de 7/2/2011.
20 Essa é uma preocupação externada por Cattoni, Streck e Lima: “[...] é um
problema de democracia, de estado democrático de direito e não de ‘excessivo
apego’. Perguntamos: por que o judiciário acha que é ruim cumprir a literali-
dade da Constituição Federal? Qual seria a razão disso? Por que frases como
‘apesar da literalidade da Constituição apontar para...’? E, por favor, que não
se acuse ou epitete de positivistas aos que defendem a legalidade. [...] Mais
ainda, quando um órgão julgador decide que o Poder Constituinte quis dizer
o contrário do que está escrito, daquilo que disse, não se tem somente uma
operação interpretativa defeituosa, que se revolve no âmbito da normatividade
constitucional. Agora, a dimensão é de um desafio à estabilidade democrática
de um texto que foi produto de um processo democrático, e que não dispõe
de um ator político disposto a preservar esta democracia; mas sim de dilatar
a “sua democracia”, ainda que seja distante daquela do Poder Constituinte.
Reconhecer-se no limite deste Poder Constituinte consiste num gesto de matu-
ridade institucional e política, o que se configura num pré-requisito elementar
para a consolidação democrática. (CATTONI; STRECK; LIMA, 2018). 137
NEPEL
legal,21 prestigiando o devido processo legislativo, de modo a
evitar a deletéria prática legislativa de implante de penduricalhos
e caudas legislativas com vantagens fiscais em leis com os mais
diversos temas, que prejudicam o sistema tributário justo, con-
taminando-o com privilégios deturpados por aqueles que estão
mais próximos do poder.

6. A avaliação ex post da funcionalidade


do Sistema Tributário Nacional

Partindo do exemplo do modelo adotado desde a década de


70 pelo Conselho de Impostos francês, órgão vinculado ao Tri-
bunal de Contas da França, mas funcionalmente independente,
o constituinte derivado brasileiro almejou a criação de um “Con-
selho Tributário Nacional”. A Emenda Constitucional – EC – no
42/2003 introduziu o inciso XV, ao art. 52 da CRFB/88, inserindo,
dentro das atribuições do Senado Federal, a competência para
“avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário
Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho
das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito
Federal e dos Municípios” (BRASIL, 2003).
O então deputado federal Virgílio Guimarães, relator da
Comissão Especial destinada a proferir parecer à proposta que
originou a mencionada emenda, justificou que essa competência
nova implicaria a instituição de uma comissão ou órgão, que,
entre outras ocupações, poderia cuidar do acompanhamento
da evolução da carga tributária, recomendando o atendimento

21 “Na prática, entretanto, não são poucas as situações em que uma lei – dis-
pondo sobre determinado tema – acaba por inserir um ou mais artigos a tratar
de matéria completamente estranha ao objeto da lei. [...] Registramos nossa
crítica a essa modalidade de processo legislativo que, a depender da situação
em concreto, poderá ensejar inclusive a nulidade do ato legal, na medida em
que viola a forma estabelecida para sua elaboração, não atendendo aos prin-
cípios da produção do texto normativo, estabelecido na Lei Complementar n.
138 95/98.” (KFOURI JUNIOR, 2018).
NEPEL
a critérios de moderação e de distribuição equitativa. Para ele, tal
órgão estaria incumbido de avaliar, periodicamente, a funcionali-
dade do Sistema Tributário Nacional, bem como o desempenho
das administrações tributárias, não do ponto de vista burocrático
do uso correto do dinheiro público (que o Tribunal de Contas ou a
Comissão de Fiscalização Financeira já examinam), mas, de forma
mais ampla, analisando qualitativamente a atuação delas como
agentes do interesse público no aperfeiçoamento do sistema.

Portanto, por força da CRFB/88, impõe-se ao legislador nacio-


nal tributário, em especial por sua câmara alta, valer-se dos instru-
mentos avaliativos da lei tributária, prestando tanto um apoio na
fase de elaboração do texto legal (avaliação de impacto prospec-
tivo), mas, sobretudo, posteriormente à vigência da lei (avaliação
retrospectiva). Assim atuando, o Poder Legislativo cuidaria para
que as decisões legislativas sejam percebidas como sendo o resul-
tado de um processo legislativo bem informado e equitativo.

No entanto, demonstrando um certo descaso pela função


constitucional, o Senado Federal realizou poucas vezes o trabalho Processo Legislativo Tributário

que lhe incumbia. Mediante o Requerimento nº 1, de 2011, a


Comissão de Assuntos Econômicos22 – CAE –requereu a instalação
da Subcomissão Permanente de Avaliação do Sistema Tributário
Nacional, que chegou a realizar algumas reuniões.23 A instalação
formal, contudo, deu-se somente em setembro de 2015, após

22 A Resolução nº 1/2013 alterou o Regimento Interno do Senado Federal – RISF


– e encarregou à CAE a tarefa de realizar a nova competência constitucional,
conforme estabelece o art. 99-A.
23 BRASIL. Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/
comissao?0&codcol=1561. Acesso em: 22 jul. 2020. 139
NEPEL
alterações realizadas no regimento interno da casa legislativa,24 e,
realizadas algumas audiências públicas, a subcomissão encerrou
seus trabalhos sem a apresentação de qualquer relatório.

Posteriormente, foram aprovados os Requerimentos n.ºs


6/2017 e 11/2017 para a constituição de um grupo de trabalho
da CAE destinado à avaliação em questão. O colegiado de sena-
dores promoveu apenas uma audiência pública e apresentou um
relatório constatando as disfuncionalidades do sistema tributário,
sem, contudo, avançar em críticas mais aprofundadas ou apresen-
tar propostas substanciais.25

Apesar da timidez dos trabalhos do Senado Federal, cabe men-


cionar que, sob a liderança de Misabel Derzi, durante sua gestão
como Procuradora-Geral do Município de Belo Horizonte, foi ide-
alizado um órgão consultivo denominado Comissão Permanente
de Simplificação e Revisão da Legislação Tributária, instituída pelo
Decreto nº 11.943, de 2005, com o objetivo de

24 De acordo com o RISF, a avaliação será realizada anualmente por um gru-


po de senadores designados pelo presidente desta Comissão (art. 393-A). O
regimento também sugere prazos para a realização dos trabalhos, sujeitos a
modificação referendada pelos membros da CAE (art. 393-C). Para o desen-
volvimento dos trabalhos, será realizado um diagnóstico acerca da funciona-
lidade do Sistema Tributário Nacional levando-se em conta, dentre outros: a
complexidade e qualidade da legislação vigente, os custos de conformidade
à normatização tributária, a qualidade dos tributos, a carga tributária como
um todo, o equilíbrio federativo, as renúncias fiscais, a harmonização nor-
mativa, a redução das desigualdades regionais e a compatibilidade com a
legislação de outros países ou blocos econômicos (art. 393-D). Já o desem-
penho das administrações tributárias dos entes federados será avaliado com
base na relação entre o custo da administração e o montante arrecado, no
exercício efetivo das competências tributárias de cada ente, no desempenho
da fiscalização, na relação entre o pagamento espontâneo e coercitivo dos
tributos, no desempenho da cobrança judicial e extrajudicial da dívida ativa
tributária, na efetividade dos programas de recuperação fiscal, especialmente
quanto a parcelamento, anistia e remissão.
25 BRASIL. Senado Federal. Relatório do grupo de trabalho destinado a ava-
liar a funcionalidade do sistema tributário nacional. Relator Senador Ricardo
Ferraço. Brasília: outubro de 2017. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/
sdleg-getter/documento?dm=7229638&ts=1594036434450&disposition=inl
140 ine. Acesso em: 22 jul. 2020.
NEPEL
pesquisar e propor modificações a serem introdu-
zidas no ordenamento, considerando os efeitos
econômicos e sociais de sua aplicação, a justa dis-
tribuição da carga tributária, assim como a segu-
rança, a transparência e a praticidade na adminis-
tração dos tributos. (BELO HORIZONTE, 2005).

Na mesma senda e com o mesmo propósito, mais recente-


mente, o Decreto Estadual nº 46.722, de 2015, constituiu a
comissão do Estado de Minas Gerais, que contribuiu com dois
relatórios entregues ao Governador e com propostas legislativas
que se tornaram leis, para, entre outras questões, racionalizar
algumas penalidades tributárias da lei mineira.

As análises realizadas pelas comissões foram profundas e


muito críticas do sistema. Compostos por entidades da sociedade
civil e da academia, nacional e internacional, membros da tecno-
burocracia governamental, políticos de diversas esferas, além de
contar com regular produção intelectual de relatórios e de propo-
sições, os órgãos tornaram-se um espaço exemplar que viabilizou
a participação e o controle social, e que forneceu aos cidadãos
dados e informações sobre a política tributária.26 A atuação de um
órgão nesses moldes mitigou os efeitos do hiperpresidencialismo Processo Legislativo Tributário
no Processo Legislativo Tributário, amorteceu a distância entre
o Governo e o Parlamento, e facilitou o encaminhamento de
proposições para a apreciação do Poder Legislativo e da própria
sociedade, com respaldo de diversas entidades representativas de
categorias dos contribuintes.

26 “[A] figura do Tributo Participativo, combinando elementos de democracia


representativa e democracia participativa, permite aos cidadãos participa-
rem de um processo de negociação e deliberação sobre prioridades, quer
na distribuição dos bens públicos (Orçamento Participativo) quer na análise,
estudos e propostas para a elaboração de uma lei fiscal mais justa (Comissão
Permanente de Simplificação e Revisão da Legislação Tributária).” (RIBEIRO,
2015, p. 229). 141
NEPEL
7. O CTN e a exigência do processo de
consolidação das leis tributárias

Uma importante regra do CTN que tem sido simplesmente


ignorada pelos Poderes Executivos de todas as esferas é o
art. 212, que impõe às Administrações Tributárias o dever de
editar decretos anuais, até o dia 31 de janeiro de cada exercí-
cio, consolidando, em texto único, as leis respectivas de cada
tributo. Apesar da norma encontrar-se em plena vigência, são
raros os casos de cumprimento de tal dever. Apenas alguns
municípios27 – cuja legislação tributária é consideravelmente
menos complexa que as dos estados e da União – se atre-
veram a consolidar a legislação tributária vigente em sede
regulamentar.
Segundo Rubens Gomes de Sousa, relator-geral da comis-
são responsável pela elaboração do projeto do CTN, o objetivo
da regra era “facilitar o conhecimento da legislação tributária,
podendo mesmo concorrer para melhorar sua sistemática [...]”
(BRASIL, 1954, p. 261). Sempre foi uma preocupação dos estu-
diosos do Direito Tributário facilitar o conhecimento da legisla-
ção tributária para o cidadão, de modo que deve se esforçar o
Poder Público para torná-la clara e uniforme.
Da mesma forma como ocorre no Direito Penal, a ideia de
determinabilidade e precisão das leis é reforçada no Direito Tri-
butário. A “tipicidade tributária” implica a exigência constitucio-
nal imposta ao legislador tributário de uma determinação mais

27 É o caso do Município de São Paulo, que, mediante o Decreto nº 58.420, de 14


de setembro de 2018, aprovou a “Consolidação das Leis Tributárias do Município
de São Paulo”. Da leitura do anexo único do referido ato normativo, constata-se
que ele, efetivamente, consolida as regras tributárias constantes de várias leis
municipais, facilitando a aplicação e interpretação. O mencionado município tem
se preocupado em promover consolidações regulares, em que pese não estarem
142 sendo editadas, rigorosamente, anualmente e até 31 de janeiro.
NEPEL
apurada, com precisão e clareza normativa, evitando a utilização
de expressões abertas que dão poder ao intérprete.
Esse fato demonstra que o sistema constitucional deposita
mais confiança no elaborador da regra tributária em relação aos
aplicadores,28 o que comprova a necessidade de atenção máxima
ao Processo Legislativo Tributário. Além disso, existe uma clara
relação entre os procedimentos de consolidação e sistemati-
zação dos conjuntos normativos com a ideia de determinabili-
dade da lei, justamente porque o sistema tributário há que ser
transparente e inteligível por todos, verdadeiramente público,
e a legiferação em massa tende a tornar o sistema complexo e
pouco compreensível.
A profusão de normas em milhares de esferas federativas
tributantes e a forte governamentalização das decisões (há
um ultrapresidencialismo estadual e municipal) faz com que o
Direito Tributário seja um ramo em que se mostra ainda mais
fundamental o papel saneador dos instrumentos de consolida-
ção.29 Trata-se de uma seara jurídica que lida com uma confli-

28 Pela teoria de Scott Shapiro aplicada ao Direito Tributário – conforme foi de-
fendido por Sarah Cohen –, os atores do Poder Executivo e Judiciário não
poderiam desempenhar a tarefa de legislar. (COHEN, 2014, p. 207-208).

Processo Legislativo Tributário


29 Saldanha Sanches (2002, p. 77) considera que o Direito Tributário é um
dos setores onde mais se intensifica a variabilidade estrutural do orde-
namento jurídico e onde as alterações podem criar mais profundos pro-
blemas de adaptação para a atividade dos agentes econômicos. Trata-se
de uma zona em que, apesar da desejável estabilidade e permanência
das normas jurídicas, existem permanentes problemas de interrelaciona-
mento entre a realidade social e as normas vigentes. O autor ainda se
recorda das normas referentes a obrigações acessórias, além das prin-
cipais, para demonstrar a dificuldade de uma codificação tributária, in
verbis: “em ambos os casos as normas fiscais conduzem ao aparecimen-
to, como dado social permanente, de elevadas e permanentes pressões
veiculadas por grupos de interesses formados pontual e casuisticamente
ou institucionalizados de forma permanente, no sentido de serem obti-
das constantes modificações e ajustamento das normas fiscais. E é esta
situação que explica a escassa durabilidade das tentativas de codificação
fiscal, no sentido da construção de um sistema estabilizado, com solu-
ções duradouras e com a criação de regras do jogo estáveis: nos anos
seguintes à realização de uma reforma as alterações legislativas avulsas
que se seguem, ano após ano, vão ilustrando as sucessivas dificuldades
de funcionamento do sistema”. 143
NEPEL
tuosidade máxima, de modo que a necessidade de se prestigiar
a segurança jurídica é ainda maior. A criação das futuras nor-
mas tributárias não pode se dar de forma atabalhoada, aço-
dada, sendo indispensável o devido planejamento.30 E mais: o
estoque das normas já produzidas deve ser permanentemente
revisitado e melhorado, daí o importante papel do instituto da
consolidação, conforme determinado pela norma geral tribu-
tária, o CTN.
Sabe-se que o processo legislativo de consolidação neces-
sita de articulação entre as instâncias políticas. Nada obstante,
a legislação federal brasileira não deixa claro quem serão os
responsáveis pelo trabalho, isto é, tanto o § 1º do art. 59 da
CRFB/88 quanto a LC nº 95/1998 não indicam precisamente
quem deve proceder à organização legislativa, motivo pelo qual
os projetos eventualmente formulados com este objetivo ficam
à mercê das regras ordinárias de distribuição de competências
e limitações dos direitos de iniciativa legislativa. (RIZEK JÚNIOR,
2009, p. 172-173).31
A LC nº 95/98 dá apenas sinais sobre a necessidade de
implementação de uma parceria entre os Poderes Executivo e
Legislativo para promover a consolidação das leis. Da leitura

30 Comprovando de forma cabal a intenção do constituinte, nos termos do §


2º do art. 165 da CRFB/88, “a lei de diretrizes orçamentárias [...] disporá so-
bre as alterações na legislação tributária”. Ainda que se possa interpretar tal
dispositivo constitucional como não vinculativo, em respeito à literalidade
do texto, há que se dar um mínimo de eficácia à regra, razão pela qual seria
fundamental que o Poder Executivo, ao encaminhar a proposta de LDO,
apresentasse seu plano de alteração das leis tributárias, o que, infelizmente,
não ocorre na prática.
31 Segundo o autor, “uma das principais técnicas de organização legislativa
é a consolidação (ou compilação) dos diplomas legais. A consolidação não
cria, apenas reorganiza o Direito, dentro de critérios de racionalidade e
simplificação. Portanto, sobretudo nos países de tradição jurídica romano-
-germânica, em que o Direito é representado essencialmente por regras
escritas, o trabalho meramente sistematizador está sujeito apenas às se-
guintes decisões políticas: a) anterior, de realizá-lo ou não e b) posterior,
de aceitá-lo ou não. Não há, portanto, necessidade de decisões políticas
no ‘durante’, apenas decisões técnicas, de caráter executivo”. (RIZEK JÚ-
144 NIOR, 2009, p. 173)
NEPEL
do art. 14, verifica-se que a lei admite que qualquer um dos
Poderes proceda ao levantamento da legislação federal para
dar início ao processo, que poderá ser feito até mesmo por um
parlamentar.32
O Estado de Minas Gerais, ao regular o assunto, por seu
turno, optou, claramente, pela fundamental participação con-
junta dos Poderes na tarefa de consolidação. A LC estadual
nº 78, de 2004, que “dispõe sobre a elaboração, a alteração
e a consolidação das leis do Estado de Minas Gerais” (MINAS
GERAIS, 2004), regrando o tema de forma relativamente ino-
vadora em relação ao modelo federal, exige uma articulação
entre os Poderes para implementação da consolidação. A lei
mineira concebe a consolidação de leis como a sistematização
de textos esparsos tratando da mesma matéria e determina a
criação de um grupo político governamental para conduzir o
trabalho de elaboração, em etapas e por temas, de anteproje-
tos a serem submetidos ao trâmite parlamentar.
A ideia de uma cooperação mútua entre os Poderes é posi-
tivada no texto da Lei Complementar estadual, tornando-se
fundamental a constituição de um grupo de trabalho com a

Processo Legislativo Tributário

32 “Art. 14. Para a consolidação de que trata o art. 13 serão observados os


seguintes procedimentos: I – O Poder Executivo ou o Poder Legislativo
procederá ao levantamento da legislação federal em vigor e formulará
projeto de lei de consolidação de normas que tratem da mesma matéria
ou de assuntos a ela vinculados, com a indicação precisa dos diplomas
legais expressa ou implicitamente revogados; (Redação dada pela Lei Com-
plementar nº 107, de 26.4.2001) [...] § 2º A Mesa Diretora do Congresso
Nacional, de qualquer de suas Casas e qualquer membro ou Comissão da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional
poderá formular projeto de lei de consolidação.”. 145
NEPEL
participação de representantes de cada um.33 Dessa forma,
um parlamentar não poderá unilateralmente capitanear um
processo legislativo para a consolidação legislativa, sendo con-
dição necessária a criação de um grupo de trabalho especial-
mente voltado para a consolidação.
Ao impor a necessidade de um diálogo entre os Poderes e a
instituição de grupos de trabalho para a proposta de saneamento
do ordenamento jurídico estadual, mitiga-se a supremacia do
Poder Executivo e avança-se muito na concepção de um procedi-
mento mais legítimo e democrático na seara da tributação. Para
que haja um devido Processo Legislativo Tributário, é primordial
a aproximação entre os Poderes, com a contínua e permanente
troca de informações (de forma a minorar a defasagem informa-
cional inerente ao Poder Legislativo) e tornar o processo legisla-
tivo um verdadeiro procedimento em contraditório substancial,
fulcrado no trinômio “informação-reação-participação”.
Não obstante, infelizmente, ainda há poucas iniciativas no
intuito de efetivamente implementar essa racionalização, que se
daria em benefício do destinatário das normas, o contribuinte
mineiro.

33 “Art. 17 – Os Poderes Executivo e Legislativo promoverão, mediante cooperação


mútua, a consolidação das leis estaduais, com o objetivo de facilitar a sua consulta,
leitura e interpretação. [...] Art. 19 – As ações destinadas à sistematização das leis,
a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 17, ficarão a cargo de Grupo
Coordenador a ser constituído conjuntamente pelos Poderes Legislativo e Executivo
e integrado por um representante de cada um desses Poderes, e igual número de
suplentes, ao qual caberá: I – selecionar matérias a serem objeto de sistematiza-
ção; II – constituir, em função das matérias selecionadas, grupos de trabalho para
proceder a estudo técnico preliminar e, se for o caso, elaborar anteprojeto de lei
de sistematização ou de codificação. § 1º – Quando a matéria a ser consolidada
for da competência do Poder Judiciário, do Ministério Público ou do Tribunal de
Contas, os respectivos titulares indicarão representantes para participar dos grupos
de trabalho previstos no inciso II do “caput” deste artigo, assegurada a paridade
na representação. § 2º – O anteprojeto de lei de sistematização ou de codificação a
que se refere o inciso II do “caput” deste artigo será encaminhado, por intermédio
do Grupo Coordenador, ao Chefe do Poder que detenha a prerrogativa de iniciati-
va da matéria, ou, atendida a mesma condição, ao Procurador-Geral de Justiça ou
146 ao Presidente do Tribunal de Contas” (MINAS GERAIS, 2004).
NEPEL
8. Conclusões

Tem razão Canotilho (1987) ao criticar o desinteresse das


escolas de Direito acerca da produção legislativa e ao propor um
estudo da teoria da legislação. A maior preocupação com a for-
mação de aplicadores, em detrimento da atividade de preparação
das regras jurídicas,34 tem forte efeito no Direito Tributário, um
ramo em que o sistema outorga mais confiança ao elaborador das
normas em relação aos seus executores.
Num país em que o contencioso tributário é um dos maio-
res do mundo, a academia, naturalmente, acaba por focar na
demanda judicial, ignorando um ponto importante e fundamental
do aprendizado jurídico que é a produção do direito e o processo
legislativo. As atividades ligadas à produção normativa, em espe-
cial as concernentes à tributação, deveriam despertar o interesse
da comunidade jurídica e, em última análise, de todo cidadão.
Como advertiu Thomas Piketty (2013, eBook), “o imposto não
é uma questão apenas técnica, mas eminentemente política e filo-
sófica, e sem dúvida a mais importante de todas”. Efetivamente,
a tributação não é uma questão meramente técnica, que pode
ser decidida por especialistas em suas torres de marfim, isto é,
sem a necessidade de ouvir aqueles que serão ao fim afetados.
Processo Legislativo Tributário

34 “[É] facilmente constatável que, em geral, damos grande importância ao Di-


reito posto, positivado, mas negligenciamos o modo de produção do Direito.
De fato, os operadores jurídicos em geral conferem grande importância ao
Direito positivo, mas, paradoxalmente, não dispensam a mesma atenção e o
mesmo labor intelectual ao modo de produção do Direito, ao procedimento
de elaboração legislativa. Isto se dá tanto no âmbito acadêmico e doutrinário
quanto na esfera jurisprudencial. Com efeito, no plano acadêmico, impõe-se
repensar o ensino jurídico no País, o qual deve voltar-se mais para o momento
de criação da norma jurídica, e não quedar-se apenas na análise do Direito
posto e de sua aplicação, o que pressupõe naturalmente uma revisão das
grades curriculares das faculdades de Direito. No âmbito doutrinário, tem-se
verificado a prevalência de abordagens meramente empírico-descritivas do
processo legislativo, destituídas de uma análise mais aprofundada do tema
[...]. No plano jurisprudencial tem-se observado uma visão desjuridicizante
do processo de elaboração legislativa e ainda marcada por um dogmatismo
excessivo [...].” (BERNARDES JÚNIOR, 2016. p. 18-19). 147
NEPEL
Significa dizer que a validação de qualquer modelo, política ou
teoria deve se sujeitar ao escrutínio democrático e ter o respaldo
do Parlamento.
A partir do presente ensaio, evidenciou-se que a CRFB/88
impõe que o Direito Tributário seja construído de forma planejada,
para ser inserido em um ordenamento racional e sistematizado, e
que todas as instituições cuidem permanentemente da inteligibili-
dade sistema. A existência de um plano de abertura e pluralização
do debate republicano sobre Direito Tributário não tolera que a
tributação seja objeto de decisões tomadas no epicentro de um
governo disfarçado de técnico. Ao revés, em face da resistência
à parlamentarização do debate, o que acabou se revelando uma
tendência natural no Direito Tributário, é a aproximação entre os
Poderes, com a contínua e permanente troca de informações, que
possibilitará um contraditório substancial, com mais participação
nas decisões tomadas.
As leis tributárias são permanentemente submetidas à influên-
cia de pressões contraditórias e elas acabam sendo modificadas
para atender setores específicos, sem nenhuma coerência ou
consistência com o modelo previamente traçado. Por isso, parece
ser sempre urgente e necessária a realização de reformas, tendo
em vista que a lógica global do sistema tributário vai sendo des-
truída por alterações parciais e esparsas. Há um caráter conjuntu-
ral inerente a qualquer sistema tributário, daí se afirmar que lex
tributaria semper reformanda, isto é, as reformas tributárias são
permanentes. Por isso, o combate da inflação legislativa tributária
deve se dar tanto para o futuro, trazendo mais racionalidade à
produção das leis, quanto para o passado, usando técnicas de
saneamento do sistema.
Reconhecendo que o Processo Legislativo é uma categoria
conceitual da teoria geral do direito, que se sujeita à imantação
de princípios jurídicos que lhe são próprios (CARVALHO NETTO,
1992), e que há diversas controvérsias jurídicas específicas, é
148
NEPEL
possível vislumbrar a existência de um Processo Legislativo Tribu-
tário, ou seja, uma disciplina híbrida, nascida do encontro de três
vertentes disciplinares do Direito Público (Direito Constitucional,
Direito Processual e Direito Tributário), com uma autonomia didá-
tica, em que o estudioso deve manejar, com precisão, postulados
de fundo constitucional com as garantias individuais de ordem
tributária. Cabe, assim, dedicar mais atenção a essa especialidade,
de forma a contribuir, ao fim e ao cabo, para uma tributação
consentida e, por conseguinte, para a produção de um tributo
participativo e mais justo.

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154
NEPEL
4
A cobertura
midiática
do processo
legislativo
Rachel Barreto*

*Jornalista e analista legislativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Mestre em Comuni-


cação Social e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2018,
defendeu a tese “Tribuna ao vivo: discussão, representação e os avessos suscitados pela midiati-
zação do parlamento”. O trabalho recebeu o Prêmio UFMG de Tese e menção honrosa no Prêmio
Capes de Tese, ambos em 2019.
1. INTRODUÇÃO

A mídia não corrói intencionalmente a legitimi-


dade do Congresso, mas tampouco exerce ape-
nas o papel de um mediador isento de interesses
próprios – e, portanto, neutro ou imparcial – entre
o mundo da política e a sociedade civil. (NOLETO
FILHO, 2014, p. 15).

Este capítulo discute, de forma breve, alguns aspectos da


cobertura da imprensa comercial e institucional sobre o traba-

4. A cobertura midiática do processo legislativo


lho legislativo. Quando acompanhamos o noticiário político, fica
patente que a cobertura midiática muitas vezes destaca apenas as
fases finais da tramitação ou se concentra em projetos de alta visi-
bilidade. É comum, também, que a mídia se debruce mais sobre
polarização e disputas partidárias do que sobre o processo legis-
lativo propriamente dito (QUEIROZ, 2007, p. 84-85). As repre-
sentações midiáticas das atividades parlamentares muitas vezes
são distorcidas, enviesadas ou incompletas (CUMBERBATCH;
BROWN; SKELTON, 1992, p. 211; NOLETO FILHO, 2014, p. 316),
contribuindo para “uma visão reducionista do funcionamento do
Legislativo” e “para reforçar preconceitos já existentes” (NOLETO
FILHO, 2014, p. 132).
Não me proponho aqui a analisar profundamente a cobertura
midiática do parlamento, mas sim observar alguns fatores que
contribuem para que o processo legislativo em suas diversas eta-
157
NEPEL
pas e especificidades seja ou não midiatizado. Entre esses fatores
está o interesse do próprio parlamento (de forma institucional)
e de seus membros (individual e/ou coletivamente) de que os
trâmites sejam tornados públicos e monitorados. E, também, o
interesse da mídia e dos cidadãos por esse conteúdo.

O capítulo organiza-se em quatro momentos: na primeira


seção, contextualizo brevemente a discussão sobre a transparên-
cia no parlamento e os mecanismos institucionais criados para
sua consecução; em seguida, abordo a possibilidade de que, em
alguns casos, a tramitação se dê longe da cobertura midiática
(seja por vontade dos políticos para que os procedimentos sejam
mais reservados ou por desinteresse da imprensa pelos temas
em discussão); na terceira seção, discuto como prevalece hoje a
publicidade de todas as fases do processo legislativo e a forma
como a internet e as mídias legislativas contribuem para tal; na
quarta seção, abordo o uso estratégico da cobertura durante a
tramitação, como forma de mobilização da sociedade e pressão
sobre os parlamentares.

2. Contextualização: transparência e
comunicação

Hoje, quando pensamos em instituições públicas, a tendên-


cia é reivindicar a transparência como regra e admitir o segredo
como exceção. Além de pressões da sociedade, da imprensa e de
organizações diversas, as demandas por transparência encontram
também forte respaldo teórico e normativo. Cria-se, assim, um
ambiente em que o fechamento ou a opacidade precisam ser justi-
ficados, enquanto a ampliação da publicidade é vista quase como
um desenvolvimento “natural” ou “esperado” das instituições.

A transparência pode ser considerada um “princípio estrutu-


158 rante capaz de fortalecer a legitimidade e o bom funcionamento
NEPEL
das instituições nas democracias modernas” (SILVA, 2016,
p. 28). Como aponta Francisco Marques (2016, p. 4), “ao longo
da segunda metade do século XX, a transparência passou a fazer
parte da agenda dedicada a criar mecanismos capazes de aprofun-
dar a democracia”. Com o objetivo de tornar as instituições mais
abertas e accountable, o Estado constitucional moderno limitou a
invisibilidade do poder e criou uma série nova de oportunidades
e de constrangimentos para as elites (THOMPSON, 1995, p. 124).
As atividades de autoapresentação e de gerenciamento de sua
visibilidade tornaram-se parte crucial da atuação dos políticos,
que não podem agir apenas nos círculos relativamente fechados
de assembleias e cortes, invisíveis para a maioria dos governados.
O parlamento pode ser considerado “o mais transparente dos
poderes” (NOLETO FILHO, 2014, p. 203). A transparência é um
dos princípios fundamentais que regem a instituição (SCHMITT,
2000) e foi, ao longo da história, materializada em mecanis-
mos institucionais concretos. Enquanto os princípios se mantêm
constantes, tais mecanismos se alteraram com desenvolvimentos

4. A cobertura midiática do processo legislativo


históricos e tecnológicos (OPPD, 2010, p. 15). Tais mecanismos
visam não só atender às demandas (normativas e práticas) de
transparência, mas também possibilitam que as casas legislativas
participem do processo de coprodução das notícias.
A Declaração sobre Abertura Parlamentar (OPENINGPARLIAMENT.
ORG, 2012, p. 1-2) – endossada por organizações de 75 países
diferentes –, afirma que a abertura permite que cidadãos se
informem sobre o trabalho do parlamento, empoderem-se para
participar do processo legislativo, cobrem prestação de contas dos
parlamentares e demandem a representação de seus interesses.
A primeira e mais básica forma de abertura do parlamento
é através da possibilidade de acesso físico à sua sede, que
deve ser garantido a todos os cidadãos e também à imprensa
(OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012, p. 7; PARKINSON, 2013, p.
438). A presença do público e da mídia nas galerias contribuiria 159
NEPEL
para filtrar e eliminar do debate parlamentar os interesses pura-
mente privados, forçando os representantes a buscar e oferecer
razões públicas (HABERMAS, 1997, p. 72; PARKINSON, 2013, p.
440-441). Para o público, é uma oportunidade para o aprendizado
político, para demandar prestação de contas dos representantes
(MÜLLER; SIEBERER, 2014, p. 240), oferecer inputs ao processo
deliberativo (PARKINSON, 2013, p. 445-446) ou questionar e cri-
ticar a atuação dos representantes (GREEN, 2013, p. 428-429).
A imprensa, por sua vez, tem acesso em primeira mão aos con-
teúdos, que podem ser reformatados e distribuídos através dos
diferentes veículos noticiosos (PARKINSON, 2013, p. 443). “Com
a presença de jornalistas […], o Parlamento passa a se constituir
como espaço simbólica e fisicamente democrático, aberto ao
escrutínio da sociedade por intermédio da imprensa” (NOLETO
FILHO, 2014, p. 89).
O registro e a publicação das atividades parlamentares tam-
bém são importantes mecanismos para garantir transparência e
publicidade em todas as fases do processo legislativo. Hoje, reco-
menda-se que votos e discursos sejam registrados e publicados
em diferentes meios (notas taquigráficas, áudio, vídeo, publica-
ção na internet, webcasting em tempo real, etc.) e considera-se
que as informações parlamentares pertencem ao público, pois
possibilitam que os cidadãos verifiquem o que foi dito ou feito
em cada reunião e cobrem respostas dos seus representantes
(OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012, p. 2; OPPD, 2010, p. 14).
A Declaração sobre Abertura Parlamentar preconiza que a
informação deve ser oferecida de forma rápida e, de preferên-
cia, em tempo real (OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012, p. 4). De
maneira mais específica, recomenda que os parlamentos devem
contar com serviços de transmissão ao vivo e por demanda (atra-
vés de rádio, TV ou internet) (OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012,
p. 8). A instantaneidade amplia a sensação de participar dos
eventos enquanto eles acontecem e dá aos cidadãos chances de
160 se manifestar – através de contatos telefônicos, via internet ou
NEPEL
mesmo pelo deslocamento até a sede do parlamento – durante a
tramitação, antes que uma decisão tenha sido tomada.

A declaração reconhece que a era digital alterou fundamen-


talmente o contexto de uso público da informação parlamentar
e as expectativas dos cidadãos sobre o que é boa governança.
Em seu artigo 27, ela estabelece que o parlamento deve oferecer
múltiplos canais de acesso às informações, incluindo observação
in loco, mídia impressa, transmissões via rádio e TV, internet e tec-
nologias de telefonia móvel (OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012,
p. 6). O desenvolvimento da internet contribuiu para facilitar a
oferta de informações pelos órgãos públicos e o acesso a elas
por parte de cidadãos, da imprensa e de organizações de moni-
toramento. Os sites tornaram-se peça chave nas estratégias de
transparência e de comunicação das instituições – incluindo os
parlamentos – congregando diferentes tipos de dados. Os avan-
ços tecnológicos reduzem os obstáculos logísticos e os custos da
transparência (HEALD, 2006, p. 71), fomentando as “expectativas
de que as ferramentas de comunicação contemporâneas possam

4. A cobertura midiática do processo legislativo


colaborar no aperfeiçoamento da transparência” (MARQUES,
2016, p. 57).

No início deste século, outra mudança teve um impacto sig-


nificativo sobre a relação dos parlamentos com a transparência:
uma tendência global de avanço nas legislações sobre acesso à
informação. Como aponta Toby Mendel (2009), houve uma ver-
dadeira revolução no direito de acesso à informação mantida por
órgãos públicos. Dezenas de países de todas as regiões do mundo
adotaram leis nacionais de acesso à informação – entre eles o
Brasil, com a Lei 12.527/11 – e “hoje este direito é cada vez mais
considerado como um direito humano fundamental” (MENDEL,
2009, p. 3), reconhecido e protegido por organismos e tratados
internacionais e por cortes constitucionais. As informações devem
“estar acessíveis aos cidadãos e cidadãs na ausência de um inte-
resse público prevalente no sigilo” (MENDEL, 2009, p. 4). 161
NEPEL
Como se pode ver, “nas sociedades contemporâneas, a comu-
nicação política mediada tem um papel cada vez mais central no
processo de ‘governança’ e nas percepções que os cidadãos pro-
duzem acerca da sociedade e seus problemas” (MAIA, 2006, p.
154). As práticas tradicionais da política persistem, mas são cada
vez mais interpenetradas pelos meios de comunicação. A mídia “é
a principal instância para líderes políticos divulgarem informações
sobre suas atividades, buscarem adesão em campanhas eleitorais
ou conquistarem suporte público no jogo político mais geral”
(MAIA, 2006, p. 15).
A comunicação de massa passa a ter um papel crucial para a
formação das opiniões do público e, consequentemente, torna-se
uma ferramenta central para a conquista de legitimidade e de
autorização por parte dos políticos. “Não haveria, portanto, deci-
são nem ação possível no campo político sem a consideração da
opinião, para cuja fabricação as mídias intervêm” (CHARAUDEAU,
2013, p. 25).
Esse processo – já em grau avançado, mas ainda em curso – é
chamado por alguns de midiatização da política (BRAGA, 2015;
BRAGA, 2007; STRÖMBÄCK, 2008). A midiatização ajuda a criar
um parlamento aberto, onde os políticos executam grande parte
de seu trabalho em frente a diversas audiências formadas por
políticos e leigos, o que amplia a importância da dimensão perfor-
mática de suas atividades (MÁXIMO, 2013, p. 28; ILIE, 2006, p.
194; RAI, 2014, p. 15; HAJER, 2009, p. 7).
A midiatização não é um fenômeno que tem a política apenas
como objeto ou vítima, mas também como parceira e, em certos
casos, protagonista. A automidiatização (self-mediatization) é o
processo pelo qual os atores políticos internalizam e se adaptam
às regras da mídia, suas rotinas de produção e critérios de seleção
e tentam explorar esse conhecimento para alcançar seus próprios
objetivos estratégicos (STRÖMBÄCK; ESSER, 2014, p. 21), ampliar
162 seu poder de agendamento e conseguir coberturas favoráveis
NEPEL
(BLUMLER, 2014, p. 33-34). Essa adaptação pode ser um cami-
nho para ampliar a influência da política sobre a mídia, em um
processo reflexivo.
Nesse contexto apresentado, seria plausível imaginar uma
conexão direta e inequívoca entre o processo legislativo e sua
cobertura midiática. E isso acontece muitas vezes, sem dúvida.
Porém, em diversos momentos e por diferentes motivos, algumas
etapas da produção de leis “escapam” da cobertura midiática.
É o que exploro na seção a seguir.

3. Tramitação longe dos holofotes

O volume de trabalho nos parlamentos é intenso: são muitas


propostas em tramitação, inúmeras reuniões de comissões e de
plenário, ao longo de todo o ano. Todavia, a visibilidade midiática
do processo legislativo não é garantida nem distribuída igual-
mente; precisa de uma conjunção de fatores para se concretizar.

4. A cobertura midiática do processo legislativo


Chama a atenção o fato de que algumas propostas despertam
grande interesse em todas as etapas de tramitação – seja porque
afetam muitas pessoas, porque os atingidos são extremamente
mobilizados, porque o tema já está em destaque na mídia ou
por outros motivos –, enquanto outras passam pelas comissões e
pelo plenário quase despercebidas. Proponho agora discutir bre-
vemente as situações em que o processo legislativo se desenrola
longe dos holofotes, seja por vontade dos parlamentares envolvi-
dos em manter as ações mais reservadas ou por falta de interesse
de imprensa e do público por essa cobertura.

3.1) Por vontade dos políticos

Uma primeira possibilidade a considerar é que os projetos tra-


mitem com menos visibilidade porque os parlamentares assim o
desejam. À primeira vista, pode parecer uma sugestão de que haja 163
NEPEL
interesses privados ou escusos envolvidos, algo que tenha que ser
feito escondido, às pressas, com pouca discussão – e isso com
certeza acontece em alguns casos, em qualquer casa legislativa.
Alguns parlamentares podem ter relações próximas com grupos
de interesse, lobistas ou empresários, que os levem a defender
posições que divergem da vontade da população em geral. Os
envolvidos podem não querer que acordos feitos nos bastidores
sejam amplamente divulgados.
Todavia, as decisões de manter etapas do processo legislativo
protegidas do escrutínio público nem sempre são eticamente
questionáveis. Sivaldo Silva (2016, p. 36) aponta que pode haver
“exceções ou ressalvas quanto à preponderância da publicidade
sobre o segredo”. Tais exceções podem ter origem no reconheci-
mento de que os deveres e direitos relacionados à transparência
não são incondicionais ou absolutos, mas devem ser considerados
em relação a outros (DROR, 1999, p. 63).
A questão que se coloca, portanto, é até que ponto a exis-
tência de processos secretos é justificada e quando passa a ser
normativamente questionável. Simone Chambers (2004) defende
que a presunção a favor da publicidade não nega a necessidade
de segredo. A publicidade é vista como um antídoto contra inte-
resses privados, que não são compartilhados pelo público em
geral; no entanto, abre as portas para outro tipo de razão igual-
mente prejudicial para a democracia. A razão plebiscitária baseia-
-se em valores considerados públicos ou comuns para agradar o
maior número de pessoas possível, mas usa argumentos rasos,
fracamente fundamentados ou com conteúdo suspeito (CHAM-
BERS, 2004, p. 393). Logo, para Chambers (2004, p. 394), deci-
sões tomadas em segredo podem ser justificadas e benéficas para
combater a razão plebiscitária e fomentar o componente racional
das deliberações, ao permitir que os membros falem francamente,
mudem de posição e aceitem compromissos. Obviamente, não há
garantia de que as sessões fechadas atingirão tais objetivos, mas
164 estarão ausentes muitas das pressões para adotar razões plebisci-
NEPEL
tárias (entre elas, a preocupação exagerada com a reeleição e uma
possível influência perniciosa da opinião pública e da imprensa).

Patrick Charaudeau (2013, p. 317) também defende a neces-


sidade de segredo em alguns momentos da vida política. Ele
aponta que as instâncias cidadã e midiática clamam sempre por
mais transparência no exercício do poder, enquanto a política
joga “com a opacidade necessária a esse exercício”.

John Parkinson (2013) defende que a privacidade pode contri-


buir para a eficiência do trabalho e para a efetividade da delibera-
ção, especialmente quando há conflitos profundos e intratáveis.
Mas alerta que esta não pode ser a estratégia geral de atuação
e que a decisão para que as reuniões sejam fechadas deve ser
defensável em público. Além disso, deve-se receber contribuições
variadas antes da discussão fechada, os argumentos devem ser
testados em público em algum momento, a implementação deve
ser aberta a escrutínio (PARKINSON, 2013, p. 442) e deve haver
pluralismo no corpo que discute, para garantir que diversos pon-

4. A cobertura midiática do processo legislativo


tos de vista sejam representados e evitar que uma visão particu-
lar domine o debate (CHAMBERS, 2004, p. 408). Como coloca
Joseph Stiglitz (1999, p. 20-22), pode haver justificativas para
manter o segredo em circunstâncias específicas, mas eventual-
mente as posições, argumentos e decisões devem ser divulgados.

Para Wolfgang Müller e Ulrich Sieberer (2014, p. 240), certas


comissões trabalhando a portas fechadas têm mais chances de
alcançar consenso do que arenas expostas ao público; logo, os
parlamentares têm boas razões para manter isoladas algumas
atividades. É comum que o processo legislativo envolva reuniões
de colégios de líderes, discussões privadas entre os membros de
cada bloco ou partido, negociações com os grupos afetados –
tudo isso feito fora dos espaços cobertos costumeiramente pela
mídia. Nesses casos, os acordos podem ser apresentados apenas
a posteriori, depois de já costurados. 165
NEPEL
Em algumas casas legislativas, o colégio de líderes define a
pauta, organiza o andamento dos trabalhos e as próprias decisões,
que posteriormente são ratificadas pelo conjunto dos parlamen-
tares, de forma muitas vezes simbólica (LIMONGI; FIGUEIREDO,
2004, p. 51; PEREIRA, 2001, p. 271; NUNES, 2008, p. 122-123).
Os deputados mineiros reconhecem a importância do Colégio de
Líderes e dos bastidores para costurar acordos e construir uma
pauta sobre a qual haja razoável entendimento.

É lógico que, às vezes, a questão política tem


que ser tratada em Colégio de Líderes, não é? E
aí entram também outros componentes, que não
só os componentes técnicos […]. Então, o colégio
de líderes também tem essa capacidade de mediar
um pouco essas discussões, procurar consenso
nas matérias que são apresentadas (deputado
Agostinho Patrus/PV – informação verbal).1

Com certeza os grandes entendimentos que são


realizados para que sejam votados projetos na
Casa, que vão melhorar a vida de vários minei-
ros, são tratados entre cinco ou seis (no máximo)
parlamentares. Quer dizer, são aqueles que são
líderes, que foram escolhidos justamente para
representar as suas bancadas. […] A solução de
alguns desses problemas ocorre exatamente nes-
sas conversas mais reservadas (deputado Gustavo
Corrêa/DEM – informação verbal).

1 As entrevistas com os parlamentares mineiros foram feitas entre novembro


de 2014 e maio de 2016, para minha tese de doutorado (BARRETO, 2018).
Foram realizadas 28 entrevistas com deputados, todas semiestruturadas, indi-
viduais, conduzidas pessoalmente, gravadas e posteriormente transcritas. Os
participantes concordaram com a divulgação de seus nomes e dados junto às
respostas. Dados como filiação partidária, condição de deputado estadual no
exercício efetivo do mandato e outros referem-se à situação dos parlamenta-
166 res no momento das entrevistas.
NEPEL
Os acordos nunca se dão nem em comissão, nem
em plenário. Acordos são feitos sempre nos bas-
tidores (deputado Paulo Lamac/PT– informação
verbal).

É importante notar que, por um lado, essas atividades subs-


tituem o plenário e as comissões em algumas de suas funções
precípuas e, por outro, os alimentam com suas negociações,
argumentos, decisões. Há relações entre a participação oficial e
não oficial dos parlamentares nos diferentes espaços: acordos
propostos e discutidos privada ou informalmente em geral são
resumidos e explicados nas sessões formais e abertas, em que
podem ser ratificados ou rejeitados (HALL, 1996, p. 29). Isso fica
claro nas inúmeras referências a essas instâncias feitas pelos depu-
tados mineiros no Plenário da ALMG: eles historiam a tramitação
de projetos e a discussão de temas nas comissões, explicam acor-
dos feitos no Colégio de Líderes, defendem a posição de seus
partidos e chegam até mesmo a citar encontros de bastidores.
Dessa forma, as reuniões formais servem como indicador das par-

4. A cobertura midiática do processo legislativo


ticipações nos outros loci de discussão e decisão.
Mesmo durante reuniões com presença da imprensa e
transmissão ao vivo surgem momentos em que os parlamenta-
res precisam de discussões mais reservadas. A “suspensão para
entendimentos” deixa patente essa necessidade de negociar,
aparar arestas e definir os próximos passos. A transmissão ao vivo
é interrompida nesses momentos, e os acordos são selados “fora
da cena”:

A maioria dos consensos é tratada fora do Plená-


rio e fora das comissões, é no bastidor. É na hora
que a pauta está trancada, a pauta está emper-
rada, aí o presidente suspende as reuniões, para
que os líderes possam buscar o entendimento. E,
nessa busca do entendimento, líderes da base de
governo com líderes de oposição sentam à mesa 167
NEPEL
e discutem as matérias fora do Plenário, fora das
câmeras, fora da visualização pública (deputado
Sargento Rodrigues/PDT – informação verbal).

Cria-se, assim, um intervalo de privacidade dentro de reu-


niões públicas e midiatizadas e, quando as reuniões são reto-
madas, os deputados continuam com os pronunciamentos ou
votações. Ou seja, a construção do entendimento é feita longe
das câmeras, o que vemos é uma encenação ou publicização do
que foi decidido.
É importante notar que parece haver uma relação entre a
ampliação gradual a visibilidade dos procedimentos parlamenta-
res e a criação de novas zonas de segredo e opacidade. Grande
parte do “trabalho real” do parlamento acontece atrás de portas
fechadas, longe do alcance da cobertura televisiva (O’DONNELL,
1992, p. 267; BOCK, 2009, p. 263). Ou seja: mesmo a cobertura
televisiva integral das reuniões não nos informa sobre grande
parte da política de bastidores, negociações em espaços informais,
pressões de lobistas e agentes privados (BOCK, 2009, p. 271). É
claro que a cobertura midiática não criou as decisões de bastido-
res, mas é importante notar a maneira como reconfigura os limi-
tes entre visibilidade e invisibilidade, jogando luz sobre espaços e
eventos que eram menos públicos e, no processo, fazendo com
que novos espaços privados sejam criados ou ganhem relevância.
Se a necessidade do segredo não é vista como um problema
normativo para a teoria, ela continua gerando suspeitas e questio-
namentos, pois cria condições para que os políticos abusem dos
seus mandatos e privilegiem interesses ocultos. Portanto, devemos
estar atentos para a possibilidade de simulações de transparência
mais preocupadas com a construção de uma imagem positiva do
que com o efetivo acesso do público às atividades. Nesses casos,
as informações mais sensíveis podem ser ocultadas, e decisões e
ações relevantes podem ser mantidas em espaços privados e opa-
168 cos. Ou seja, há motivos – bons ou maus, egoístas ou altruístas,
NEPEL
válidos ou escusos – para que parlamentares prefiram conduzir de
forma reservada parte do processo legislativo. Mas pode aconte-
cer também que eles queiram publicizar e divulgar as diferentes
etapas de tramitação dos projetos e a imprensa não se interesse
por esses conteúdos, como discuto na próxima seção.

3.2. Por falta de holofotes

Algumas matérias despertam pouca atenção dos próprios


parlamentares e/ou da sociedade e acabam tramitando sem pro-
jeção na mídia. Isso acontece com projetos que são de interesse
de grupos pequenos e pouco mobilizados, com propostas pouco
relevantes ou expressivas, como aquelas que têm uma tramitação
que se arrasta por anos a fio, sem perspectiva de acordo para
que sejam efetivamente postas em votação. Mas pode acontecer
também com projetos importantes, relevantes, cujo impacto é
potencialmente alto. Por quê?
Em muitos casos, a grande quantidade de parlamentares,

4. A cobertura midiática do processo legislativo


comissões, reuniões, propostas em tramitação, regras e prazos
acaba contribuindo para dificultar a cobertura jornalística tradicio-
nal e reduzir o interesse e o entendimento dos cidadãos. Márcia
Jardim afirma:

É como se o Poder Legislativo estivesse submetido


a um duplo processo de invisibilidade; por um
lado, a natureza própria do seu funcionamento
intrincado e moroso, permeado por conflitos
políticos e desigualdades que definem a agenda
dos debates e, por outro, a ‘não cobertura’, ou a
cobertura com valência negativa da mídia comer-
cial. (JARDIM, 2008, p. 68)

Além disso, o processo legislativo é, por definição, marcado


por incertezas: as propostas mudam constantemente ao longo
da tramitação, recebem emendas, substitutivos, destaques, pare- 169
NEPEL
ceres, são votadas uma vez aqui, outra ali, vão ao plenário, retor-
nam para as comissões e assim por diante. Algumas propostas
são votadas de forma rápida, outras tramitam durante anos, são
engavetadas, anexadas, reapresentadas. Há propostas e narrati-
vas em disputa, em um jogo complexo.

A mídia comercial – que é aquela com maior alcance no


Brasil – tem muitas vezes “tendências reducionistas e não raro
sensacionalistas, além de limitações de espaço e restrições de
formato” (NOLETO FILHO, 2014, p. 93). Como ressalta Wilson
Gomes (2004, p. 311), o consumidor médio de comunicação de
massa busca as lógicas familiares de ruptura, diversão e drama,
recusando “a regularidade, o tédio, a profundidade, a lentidão”.
Ou seja: os valores que pautam a produção de grande parte da
imprensa e o consumo midiático parecem incompatíveis com
características intrínsecas do processo legislativo.

Em vez de se concentrar no processo legislativo e


no debate e deliberação de temas relativos à defi-
nição de políticas públicas, por exemplo, os repór-
teres políticos buscam abarcar as negociações de
bastidores, intrigas político-partidárias, especula-
ções diversas e também denúncias e escândalos
variados. (NOLETO FILHO, 2014, p. 170).

Mais importante na política não são só desfechos


dramáticos, […] mas a regularidade das discus-
sões e contraposições discursivas, […] o funciona-
mento regular da administração do Estado ou o
jogo cotidiano das negociações políticas […] Em
suma, a natureza da expressão política contém,
em um volume muito grande, aquilo que é inde-
sejável para o consumidor médio de comunicação
170 de massa e incompatível com a lógica expressiva
NEPEL
dos produtos que ele habitualmente se dispõe a
apreciar. (GOMES, 2004, p. 319).

Frente a esse cenário, muitos parlamentares se mostram


“críticos em relação ao papel da mídia”. Os deputados federais
entrevistados por Pedro Noleto Filho (2014, p. 175) afirmam que
“os meios de comunicação social tendem a generalizar e reforçar
os fatos negativos que ocorrem no Congresso”. Parlamentares
mineiros também fazem críticas à cobertura da mídia comercial:

[Em Minas Gerais,] a imprensa tem uma peculiari-


dade […] a pauta vem pronta […] e, se a resposta
não for adequada, é editado […] e de acordo com
quem paga a publicidade (deputado Pompílio
Canavez/PT – informação verbal).

A grande mídia […] distorce […] ou interpreta


de maneira diferente (deputado Lafayette de

4. A cobertura midiática do processo legislativo


Andrada/PSDB – informação verbal).

A censura em Minas é real: eu cheguei a ser proi-


bido nos veículos aqui da grande mídia de ser
citado. Isso, os jornalistas falam claramente (depu-
tado Rogério Correia/PT – informação verbal).

Além disso, a imprensa comercial, em geral, atua sob a ótica


economicista (SANT’ANNA, 2006, p. 20) e enfrenta restrições
orçamentárias e ciclos de notícias ininterruptos, que demandam
alimentação constante (SANT’ANNA, 2006, p. 6; ROWLE; KUR-
PIUS, 2005, p. 171; BALKIN, 1999, p. 399). Porém, diminuição
nos recursos e cortes nas equipes impactam a atenção dedicada
pela mídia tradicional à cobertura do parlamento (ROWLEY; KUR-
PIUS, 2005, p. 167). 171
NEPEL
Essa limitação parece ainda mais grave se consideramos que
são pouquíssimos os cidadãos que assistem aos debates in loco,
no parlamento. Grande parte da sociedade depende dos veículos
noticiosos para fazer esse monitoramento e destacar aconteci-
mentos dignos de nota (CRAIN; GOFF, 1998, p. 24). Os meios de
comunicação são

instrumento por excelência de conhecimento


sobre a política, critério inclusive para o exercício
da boa cidadania. Os jornalistas, especialmente,
são vistos como responsáveis pela transparência
da administração pública e pela denúncia e vigi-
lância do poder político. (ALDÉ, 2001, p. 130).

Em um cenário midiático como o brasileiro, marcado por con-


centração e oligopólio, essas funções podem não se concretizar
adequadamente. Os interesses dos grandes grupos de mídia mui-
tas vezes não coincidem com os da população em geral, e isso
vale para a cobertura do processo legislativo. Mas, como veremos
adiante, maior pluralidade nesse cenário pode levar a uma cober-
tura mais abrangente e diversificada das atividades legislativas
cotidianas.

4. Processo legislativo à vista de todos

Como já apontei, prevalece em nossa sociedade a visão de


que as ações das instituições e de seus dirigentes – incluindo o
processo legislativo – devem ser públicas, o que está inclusive
sedimentado em requisitos legais e constitucionais. O Regimento
Interno da Assembleia de Minas deixa claro, em seu artigo 40,
que só haverá reuniões secretas quando “a publicidade dos tra-
balhos [colocar] em risco: a segurança da sociedade e do Estado
172 [ou] a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e
NEPEL
da imagem das pessoas”. O mesmo nos mostra a leitura principio-
lógica feita por Guilherme Ribeiro:

Conexo com o dever de ser transparente e de


possibilitar à sociedade o pleno acesso aos deba-
tes, […] o princípio da publicidade permeia toda
a atividade da Casa Legislativa […]. [É] condição
para assegurar o direito de participação dos inte-
ressados no debate, possibilitando-lhes conhecer
as proposições em tramitação e os argumentos
que lhes são contrários ou favoráveis (RIBEIRO,
2004, p. 181-182).

A visibilidade e também a cobertura midiática do processo


legislativo são fundamentais para a prestação de contas da ins-
tituição e dos seus membros perante a sociedade. Quando os
cidadãos têm a possibilidade de acompanhar todo o processo
legislativo, podem compreender melhor o funcionamento e a
lógica do parlamento, inclusive a negociação e a composição de

4. A cobertura midiática do processo legislativo


interesses entre os diversos grupos envolvidos.
Porém, pesquisadores apontam que o próprio funcionamento
do parlamento se altera frente a sua visibilidade ampliada, que
inclui transmissão audiovisual da íntegra dos trabalhos, cober-
tura pela imprensa, destaque nas redes sociais e outras formas
de divulgação. Segundo Mark Crain e Brian Goff (1998, p. 5),
as evidências mostram que o processo legislativo se ajusta às
transmissões ao vivo de formas sistemáticas e previsíveis, com
impactos sobre o ritmo e o volume de trabalho. Luiz Carlos Freitas
(2004, p. 61-62) encoraja uma interpretação bastante positiva de
tais efeitos, indicando um “salto considerável de qualidade e de
quantidade na sua função constitucional de elaborar leis e fiscali-
zar o Poder Executivo” e “um ritmo mais dinâmico” da atividade
político-parlamentar. Tais mudanças decorreriam de uma preo-
cupação dos parlamentares em se mostrarem mais eficientes no
cumprimento do mandato eletivo. 173
NEPEL
Quando o processo legislativo é midiatizado, os deputados
podem utilizar as reuniões para se dirigir a diversos destinatários,
consecutiva ou simultaneamente:

O discurso parlamentar é voltado para uma mul-


tiplicidade de públicos. Ele é, em primeiro lugar,
um momento do debate entre os pares, mas com
frequência está dirigido também – ou mesmo
precipuamente – para o público externo, seja
ele a ‘opinião pública’ em geral, seja um grupo
específico. É quando o pronunciamento visa ser
noticiado pela mídia comercial ou pela ‘Voz do
Brasil’; atingir os ouvintes e espectadores dos
órgãos da Casa, que transmitem as sessões ao
vivo; ou mesmo ser divulgado pelo próprio parla-
mentar, por meio de sua mala direta. Cabe a cada
deputada ou deputado definir qual é seu alvo (ou
quais são os alvos) ao discursar (MIGUEL; FEITOSA,
2009, p. 206-207).

Além dessa escolha dos alvos ou destinatários, os deputados


também precisam escolher qual o melhor palco para as suas mani-
festações. Dentro do parlamento, destacam-se as comissões e o
plenário, cada qual com suas idiossincrasias. A cobertura de todas
as fases do processo legislativo permite a jornalistas e cidadãos
compreender melhor as diferenças entre cada um desses fóruns e
seu papel na produção das leis.
O plenário é o palco central do Legislativo (MARTINS, 2016, p.
11; HALL, 1996, p. 213). Nas palavras do deputado Paulo Lamac
(PT): “ele é a cena pública, onde são feitos os posicionamentos,
onde se demarcam posicionamentos políticos ideológicos e onde
se manifestam os acordos que foram feitos” (informação verbal).
O plenário é a materialização do parlamento como “instituição
expressiva” (MAYHEW, 2004, p. 108) e o lugar ideal para a expres-
174 são de uma ampla gama de valores, visões e interesses (HALL,
NEPEL
1996, p. 175-176). Ali, os embates entre os partidos majoritários
ganham centralidade, reforçando a polarização e a política de
confronto entre base e oposição (BARRETO, 2018, p. 171-174).
No plenário se desenrola a fase final da tramitação de grande
parte das matérias, com votações que englobam a totalidade dos
membros do Legislativo. Alguns autores afirmam, contudo, que
o plenário teria se tornado local de homologação de decisões
tomadas em outros fóruns. Segundo Limongi e Figueiredo (2004,
p. 42), “pode-se dizer que o plenário delega o poder deliberativo,
permanecendo com o poder de intervir e afirmar sua prerrogativa
sempre que a maioria acreditar que sua vontade esteja sendo
contrariada”.
Nessa etapa final do processo legislativo, a maioria dos projetos
não passa efetivamente pela fase de discussão, pois já há acordo
para sua aprovação. Na própria tribuna, o deputado Duarte Bechir
(PSD) explicou essa prática:

Na apreciação dessas matérias, como é corri-

4. A cobertura midiática do processo legislativo


queiro, como é de costume e até como é, de certa
forma, combinado, os parlamentares da base de
governo não discutem, e as matérias são aprova-
das, são apreciadas – até mesmo pela agilidade
na aprovação e por conhecermos a matéria – sem
que as encaminhemos, nem [sic] tampouco as dis-
cutamos (Plenário da ALMG, 14/5/14).

Outros deputados mineiros entrevistados reiteram essa visão:

[O acordo] já chega mastigado no Plenário, então


cabe pouca discussão (deputado Anselmo José
Domingos/PTC – informação verbal).

O Plenário, na minha visão, é muito mais homo-


logatório daquilo que foi decidido nas comissões 175
NEPEL
(deputado Agostinho Patrus Filho/PV – informa-
ção verbal).

Quando chega no Plenário, […] já foi acertado.


Quando chega a ter um embate, um debate muito
grande, é porque isso não foi possível. Na maio-
ria das vezes, é tentado o acordo político, que é
próprio da democracia. Porque não dá para fazer
todas as discussões (deputado Pompílio Canavez/
PT – informação verbal).

Um dos principais motivos apontados para o esvaziamento


do plenário como espaço de discussão é a própria ampliação do
volume de trabalho do parlamento e sua consequente especiali-
zação, com mais destaque para a atuação das comissões (KREH-
BIEL, 1992, p. 109-110; SCHMITT, 2000, p. 49). As comissões
coletam informações sobre áreas temáticas específicas, delibe-
ram, decidem em caráter terminativo sobre parte das matérias,
aplicam conhecimento especializado e recomendam ação (KREH-
BIEL, 1992, p. 105; ARNOLD, 1990, p. 85; HALL, 1996, p. 183),
cabendo ao plenário a possibilidade de seguir ou não os caminhos
apontados por elas. Ou seja, o cidadão ou jornalista que deseje
se inteirar dos interesses e posições em jogo, das modificações
feitas às propostas, dos rumos que a legislação pode tomar, pre-
cisa acompanhar a passagem dos projetos pelas comissões, e não
apenas as discussões e votações em plenário.

A deliberação, em nosso processo legislativo, foi


deslocada para as comissões, onde se organizam
as sessões de escuta (as audiências públicas) e onde
se materializam as oportunidades de negociação,
a produção de pareceres e o emendamento das
176 matérias em tramitação (MARTINS, 2016, p. 86).
NEPEL
A visibilidade e a cobertura midiática permitem não só uma
melhor compreensão do processo legislativo, mas também a pos-
sibilidade de afetá-lo. Os interessados podem alterar o resultado
das leis através de sua mobilização, da sensibilização da opinião
pública e da pressão sobre os parlamentares. Como aponta Letícia
Renault:

O cidadão bem informado sobre o Parlamento e


sobre o exercício que os representantes imprimem
aos mandatos políticos será capaz de fazer uso
disso para aprimorar a representação popular, de
forma que ela funcione para contemplar verdadei-
ramente as demandas da sociedade. (RENAULT,
2004, p. 136).

Para que isso ocorra, é necessário que as informações sobre o


trabalho do parlamento sejam produzidas, disseminadas e con-
sumidas. Um ambiente midiático mais plural contribui para esse

4. A cobertura midiática do processo legislativo


processo, como discuto a seguir.

4.1. Rotas que prescindem da mídia comercial

Como dito, muitas vezes a divulgação e a cobertura midiáticas


do processo legislativo esbarram em obstáculos fora do controle
dos parlamentos e de seus membros, em especial o desinteresse
da mídia comercial e dos seus consumidores. Nas últimas décadas,
porém, o panorama midiático vem mudando expressivamente, se
tornando mais plural e menos dependente da grande imprensa. A
popularização da internet, a proliferação dos veículos legislativos
(nos mais diversos suportes, linguagens e plataformas) e, mais
recentemente, o advento das redes sociais trouxeram outras vozes
e propostas de cobertura, o que por vezes redunda em um acom-
panhamento cotidiano e mais próximo do trabalho parlamentar
nas suas diversas etapas e esferas. 177
NEPEL
Como aponta Alessandra Aldé (2001, p. 12), o amplo acesso
e a variedade da informação política são “condições importan-
tes para o funcionamento de uma democracia”. Um sistema
midiático massivo altamente diferenciado, que permita que sua
audiência participe de processos informados de formação da von-
tade, é uma das condições apontadas por Axel Honneth (2014, p.
291) como indispensáveis para uma esfera pública democrática.
A mídia é crucial para fazer com que os políticos respondam às
preocupações públicas e prestem contas de suas ações. Sob esse
ponto de vista, espera-se que os meios cumpram certas expecta-
tivas normativas a serviço do sistema democrático, como oferecer
informação transparente e confiável, análises iluminadas, escrutí-
nio crítico e cobertura pluralista que mobilize participação (ESSER;
STRÖMBÄCK, 2014, p. 226).

A ampliação da escolha – com a proliferação de fontes alter-


nativas de informação – liberta os indivíduos da dependência
de meios tradicionais de informação sobre política e sociedade
(SHEHATA; STROMBÄCK, 2014, p. 106). A transformação dos
ambientes midiáticos contemporâneos parece apontar para uma
crescente mistura entre informações advindas de meios de comu-
nicação de massa tradicionais e outras fontes, sejam elas organi-
zações ou indivíduos, por meios virtuais ou interpessoais.

As mídias legislativas encontram nesse contexto um terreno


fértil para prosperar. De forma geral, elas buscam oferecer aos
cidadãos produtos e conteúdos distintos daqueles da grande mídia
comercial. Em geral, a cobertura da mídia privada é parcial, frag-
mentada, seletiva, restrita a um tratamento episódico dos fatos
e responsável por reforçar uma imagem negativa do parlamento
178 (BARROS; BERNARDES; RODRIGUES, 2014, p. 16). As iniciativas
NEPEL
de comunicação institucional2 seriam uma forma de resgatar a
estima da instituição perante os cidadãos, criando conexões dire-
tas que prescindam da mediação da imprensa comercial. Há uma
“ideia de que mais informação à sociedade sobre as ações do
Poder Legislativo aumentaria a confiança do público e melhoraria
a sua imagem institucional, bem como contribuiria para o melhor
exercício dos mandatos” (NOLETO FILHO, 2014, p. 272). Como
afirma Freitas, o investimento dos parlamentares em instrumentos
comunicacionais próprios baseia-se em dois objetivos principais:

justificar a própria existência da atividade parla-


mentar como exercício legítimo da representação
política […]; e, ao mesmo tempo, buscar maior
visibilidade para as suas atuações, em função de
projetos político-eleitorais. (FREITAS, 2004, p. 43).

O grande diferencial das mídias legislativas é, justamente, a


atenção ao processo legislativo na sua inteireza, em suas diversas

4. A cobertura midiática do processo legislativo


fases e com todas as suas peculiaridades. Como aponta Dulce
Queiroz, referindo-se à criação da estrutura de comunicação insti-
tucional da Câmara dos Deputados:

Esses meios deveriam dar atenção especial aos


acontecimentos que eram ignorados pela maioria

2 Segundo John Keane (2013, p. 94), na era da democracia de monitoramento,


governos e instituições são incentivados a se submeter voluntariamente ao con-
trole público, a introduzir seus próprios mecanismos de escrutínio ou apoiar sua
criação. Nesse sentido, as instituições são compelidas a “se redesenharem como
um agente mais ativo nos processos de comunicação, sendo cotidianamente
pressionadas e demandadas neste sentido, seja por leis específicas ou por exi-
gência do público” (SILVA, 2016, p. 27-28). O fornecimento cada vez maior
de subsídios informacionais e a criação das mídias das fontes (SANT’ANNA,
2006) podem ser relacionados a esse fenômeno. Podemos considerá-los
como maneiras de os políticos se abrirem ao controle e à vigilância por parte
da sociedade civil e, concomitantemente, ganharem visibilidade e mais do-
mínio sobre as condições de sua exposição. Ao aceitar participar ativamente
desse jogo, as instituições políticas reconhecem e reforçam a legitimidade
das atividades de monitoramento, mas tentam também se colocar em uma
posição menos passiva e gerenciar sua publicidade. 179
NEPEL
da imprensa comercial – os debates nas comis-
sões […]; as várias fases de tramitação de uma
proposta e as discussões e votações em plenário.
Havia a necessidade de reverter a lógica imposta
pela imprensa tradicional, que cobria muito mais a
luta partidária, as divergências políticas, as intrigas
e as denúncias do que o processo de discussão e
votação das leis. Era preciso mostrar a riqueza de
debates realizados no parlamento; a rotina legisla-
tiva e não somente os acontecimentos espetacula-
res. (QUEIROZ, 2007, p. 84-85).

O investimento em estruturas internas de comunicação pode


cumprir diferentes objetivos simultâneos: dar uma resposta a
demandas por abertura e transparência, promover a discussão
de temas de interesse público, estreitar os laços com eleitores,
aprimorar a imagem da instituição, fomentar maior compreensão
das atividades políticas, divulgar as ações do parlamento como
um todo e de seus membros, fortalecer a imagem de partidos e
de políticos, entre outros.
As mídias legislativas oferecem aos eleitores mecanismos de
baixo custo para monitorar os oficiais eleitos (TYRONE; MIXON
JUNIOR; TREVIÑO; MINTO 2003, p. 347; FREITAS, 2004, p. 47).
Têm, ainda, objetivos pedagógicos, ao tornarem o processo legis-
lativo mais familiar, acessível e compreensível para os eleitores
(GRUNDY, 2000, p. 34; MATHIAS, 1992, p. 59; SCHATZ, 1992,
p. 245).
Alguns pesquisadores consideram que a cobertura das ativi-
dades feita pelas mídias legislativas efetivamente contribui para a
transparência, accountability e responsiveness dos parlamentos.

Quanto mais sofisticado e poroso for o ambiente


informacional das casas legislativas […], mais pos-
sibilidade a instituição terá de garantir transparên-
180 cia, ampliar as condições do acompanhamento de
NEPEL
suas decisões e políticas e melhorar a sua avalia-
ção aos olhos dos cidadãos. (Silva, 2012, p. 63).

“Toda essa transparência permitiria, ainda, uma maior fis-


calização do parlamento por parte da população” (ANSELMO,
2011, p. 36-37). Tais iniciativas “contribuem para a promoção
da democracia no Brasil, ao representarem uma oportunidade
de ampliação das relações de accountability, do momento das
eleições periódicas para o dia a dia da política” (SANTOS, 2008,
p. 20).

As mídias legislativas – e, em especial, as transmissões ao vivo


de sessões3 – mostram “o que é genuíno, natural e próprio” do
Legislativo (RENAULT, 2004, p. 49). Para o espectador acostumado
aos formatos e linguagens da mídia comercial, a diferença é mar-
cante. A mídia comercial tende a rejeitar os conteúdos da política
em seu formato tradicional, especialmente “aqueles relacionados
à disputa argumentativa em profundidade, às sutilezas e às com-
plexidades discursivas, à administração regular da coisa pública

4. A cobertura midiática do processo legislativo


e ao jogo político cotidiano, burocrático e previsível” (GOMES,
2004, p. 302). Já a lógica da comunicação legislativa é caudatária
da rotina e do processo legislativos, sem necessariamente fazer
concessões a gostos e preferências do público.

Mesmo que não se adequem aos valores da mídia comer-


cial, as mídias legislativas podem acabar por impactá-la. Alguns
estudos apontam que jornalistas da imprensa tradicional usam as
mídias das fontes dedicadas a assuntos públicos como subsídios
para ajudar a reforçar sua cobertura do Legislativo (por exemplo,

3 A TV Assembleia de Minas, por exemplo, tem 24 horas de programação diá-


ria, definida com base na agenda do processo legislativo. Por definição, todas
as reuniões ordinárias e extraordinárias de Plenário são transmitidas ao vivo.
Com relação às comissões, a coincidência de horários impede que todas se-
jam exibidas na TV Assembleia. De acordo com o Portal, “a definição de qual
reunião irá ao ar ao vivo é feita a partir de um revezamento em que se procura
manter o equilíbrio entre as comissões”. Além das transmissões pela TV, des-
de o dia 2/10/17, todas as reuniões de comissões passaram a ser exibidas ao
vivo e na íntegra por serviço de streaming no Portal da Assembleia. 181
NEPEL
ROWLEY; KURPIUS, 2005, p. 168; QUEIROZ, 2007, p. 81; SANTOS,
2008, p. 154; CRAIN; GOFF, 1998, p. 24; GONÇALVES, 2011, p. 6).
Outro fator crucial para as iniciativas de divulgação das infor-
mações públicas foi o desenvolvimento e popularização da inter-
net. Para o Escritório de Promoção da Democracia Parlamentar
(OPPD, 2010, p. 16), os sites e portais se tornaram o principal
meio pelo qual os parlamentos divulgam seu trabalho para a
sociedade civil e a mídia, apresentando funcionalidades novas
e integrando conteúdos que já eram costumeiramente produzi-
dos pelos Legislativos. Através de suas páginas, os parlamentos
podem facilitar a comunicação de mão dupla através do uso de
tecnologias interativas, que deem aos cidadãos oportunidade
de oferecer opiniões e participar do processo de elaboração da
legislação4 (OPENINGPARLIAMENT.ORG, 2012, p. 5; OPPD, 2010,
p. 14). Muitos portais parlamentares hoje trazem também funcio-
nalidades de webcasting, que permitem acompanhar a cobertura
audiovisual dos trabalhos em tempo real ou consultar os arquivos
posteriormente. O acesso aos vídeos por demanda permite que
os cidadãos assistam aos trabalhos legislativos no momento mais
conveniente para eles, amplificando sua audiência potencial (OPE-
NINGPARLIAMENT.ORG, 2012, p. 37).
Relatório da Hansard Society analisa como o parlamento deve
responder aos desenvolvimentos recentes na paisagem midiática.
Chama atenção a indicação de que os conteúdos devam ser pro-
ativamente disseminados e divulgados para atender às necessi-
dades e interesses de diferentes audiências (HANSARD SOCIETY,
2013, p. 41). Ou seja, o parlamento não deve depender exclusi-
vamente de seus próprios veículos e canais de divulgação, mas

4 O Portal da ALMG, por exemplo, oferece diversas oportunidades de interação:


permite que os cidadãos opinem sobre projetos em tramitação, participem
de consultas públicas para ajudar a aperfeiçoar projetos, enviem sugestão de
projeto de lei, respondam a enquetes sobre o Legislativo, falem com a institui-
ção através de diversos canais. Ricardo Mendonça e Eleonora Cunha (2012, p.
103) destacam o “esforço contemporâneo da Casa por empregar Tecnologias
da Informação e da Comunicação (TICs) de modo a permitir a intensificação
182 da interação ALMG-sociedade”.
NEPEL
também contar com meios externos – a imprensa, sites pessoais
dos parlamentares, redes sociais, entre outros – para atingir um
público mais amplo (HANSARD SOCIETY, 2013, p. 41).

Os parlamentares possuem diversas formas de fazer com que


os conteúdos cheguem a seus eleitores. Com cada vez mais pos-
sibilidades tecnológicas a seu dispor, suas equipes produzem con-
teúdo próprio ou reformatam materiais produzidos pelas mídias
legislativas e os fazem circular por WhatsApp, Facebook, Insta-
gram, sites pessoais, e-mail, junto a releases para a imprensa e por
quantas outras plataformas estiverem acessíveis a seus eleitores.
A difusão pelas redes sociais, a partir de listas de contatos compi-
ladas por cada gabinete, permite uma segmentação impossível na
mídia de massa. A grande maioria dos deputados entrevistados
relatou essa prática:

A função precípua do deputado [é] fazer pronun-


ciamentos, proferir ideias, votar projetos. Isso tem
como filmar e colocar nas redes sociais e colocar

4. A cobertura midiática do processo legislativo


na própria televisão, ao vivo. […] [Os eleitores]
comentam, assistem, esparramam pelo What-
sApp, pelo Facebook, pelo YouTube (deputado
Felipe Attiê/PP – informação verbal).

YouTube, Facebook... sempre uso, praticamente


em tempo real. […] [Tenho] muito retorno, sempre
positivo. A pessoa se sente prestigiada quando você
manda diretamente pelo WhatsApp. A pessoa que
votou em você, para que ela fosse representada,
que as suas ideias estivessem aqui, ela se sente
prestigiada, ela vê que o seu voto valeu a pena
(deputado Léo Portela/PR – informação verbal).

Os diversos meios de divulgação a que os deputados têm


acesso são importantes ferramentas também para mobilizar os 183
NEPEL
cidadãos em torno de causas, gerar pressões sobre atores polí-
ticos e influenciar a agenda e a tomada de decisões dentro do
Legislativo.

5. Uso estratégico da mídia no processo


legislativo

Uma das principais marcas do Legislativo é sua pluralidade:


os parlamentos contam com muitos membros, que representam
partidos, grupos sociais e interesses divergentes. É de se esperar,
portanto, que sejam objeto de disputa as decisões sobre como
e quando ampliar a cobertura midiática do processo legislativo
como um todo ou de alguma etapa específica. Enquanto alguns
parlamentares podem preferir que o processo legislativo não seja
midiatizado, outros vão buscar justamente o contrário: ampliar a
publicidade e a visibilidade das atividades.

A cobertura midiática pode ser utilizada estrategicamente


como ferramenta para modificar os resultados do processo
legislativo. Especialmente se considerarmos, como apontei na
seção anterior, que os políticos agora têm mais controle sobre a
difusão dos conteúdos (principalmente através de mídias legisla-
tivas, internet e redes sociais). Cada etapa do processo legislativo
pode ser amplificada e destacada, expandindo para o restante
da sociedade os conflitos que marcam a tramitação das matérias,
buscando o engajamento dos cidadãos, pressionando os pares
durante as negociações.

A cobertura do processo legislativo amplia sobremaneira a visi-


bilidade de atividades “simbólicas” – como publicidade, reivindi-
cação de crédito e tomada de posição (MAYHEW, 2004, p. 49-74).
O motivo pelo qual um corpo legislativo se dedica a atividades
simbólicas é que grande parte dos retornos eleitorais é baseada
184 na defesa de pontos de vista e não em conquistas efetivas em ter-
NEPEL
mos de políticas públicas (MAYHEW, 2004, p. 132; HALL, 1996,
p. 67). Além disso, atividades que parecem meramente simbólicas
(pois não estão relacionadas diretamente à pauta de votações ou
serão derrotadas no curto prazo) podem cumprir diversas funções
legislativas: demarcar uma posição de barganha em estágios sub-
sequentes do processo legislativo; acentuar diferenças partidárias
na competição eleitoral; aprimorar a accountability dos agentes;
propor uma agenda futura; estabelecer conexões com públicos
atentos (HALL, 1996, p. 26). Nesse sentido, os debates nas comis-
sões e em plenário funcionam como fórum para comunicação,
no qual os parlamentares explicam (para seus partidos, outros
partidos, seus pares, a mídia, eleitores, etc.) seus votos e posições
sobre políticas públicas (PROKSCH; SLAPIN, 2012, p. 521).

As atividades simbólicas e sua visibilidade midiática são cru-


ciais principalmente para os deputados oposicionistas, que têm
menos acesso aos recursos públicos e menor chance de aprovar
sua agenda nas votações legislativas: “A oposição cava espaço;

4. A cobertura midiática do processo legislativo


quando não tem, você corre atrás e arruma. […] você pega carona,
você pede apartes, você se inscreve para falar, você usa o artigo
70; tem uma comissão aberta, você corre para lá, entendeu?”
(deputado Paulo Guedes/PT – informação verbal).

A visibilidade midiática é crucial também para a “obstrução


persuasiva”, voltada para impressionar o público (MIXON JUNIOR,
2002; MIXON JUNIOR; GIBSON; UPADHYAYA, 2003). As opor-
tunidades de fala podem ser usadas para protelar a tramitação
e votação das matérias, sensibilizar a opinião pública, alterar
as condições de barganha e modificar estrategicamente o con-
texto decisório. Como aponta o deputado Rogério Correia (PT),
enquanto a situação busca “apressar as votações, especialmente
aquelas que advêm do governo”, “a oposição faz obstrução por
não concordar com projetos, utiliza[-se] do regimento e, nesse
sentido, fala mais na tribuna” (informação verbal). 185
NEPEL
Legisladores que se sentem beneficiados pela visibilidade da
transmissão têm interesse em ampliar o tempo que estão no ar
(CRAIN; GOFF, 1998, p. 47-48), alongando as reuniões (MIXON
JUNIOR; HOBSON; UPADHYAYA, 2001, p. 351). Não surpreende,
portanto, que os oposicionistas dediquem tempo e recursos às
manifestações em todas as etapas de tramitação. Mesmo quando
sabem que serão vencidos nas votações, é importante para eles
defender discursivamente suas posições contrárias, mostrar que
estão tentando fazer valer seus pontos de vista, que estão lutando
pelo que prometeram a seus eleitores.
A visibilidade midiática ampliada também permite à oposição
forçar o posicionamento público da base, quando as medidas
propostas pelo governo são potencialmente impopulares. É uma
forma de “modificar ou elevar os custos de aprovação da agenda
apoiada pela maioria” (INÁCIO, 2009, p. 359) ou de “instigar os
eleitores contra eles” (INÁCIO, 2009, p. 356). Os deputados que
defendem (ou se veem obrigados a apoiar) medidas impopulares
evitam fóruns públicos como as comissões e o plenário (HALL,
1996, p. 63) ou sentem-se compelidos a proferir discursos de jus-
tificação e esclarecimento, para explicar por que votaram contra
os interesses do eleitorado (MARTINS, 2016, p. 47). Nas palavras
dos deputados mineiros:

Às vezes, os assuntos são polêmicos e, normal-


mente, quem é da base pode até não concordar
com o projeto, mas vota. […] Eles acabam votando,
mas também não querem se expor publicamente
com os eleitores (deputada Ione Pinheiro/DEM –
informação verbal).

Defender uma proposta impopular, ao vivo, com


as galerias cheias, realmente é difícil. Alguns pre-
ferem se esconder e ir só votar (deputado Pompí-
lio Canavez/PT – informação verbal).
186
NEPEL
Através da mídia, o parlamentar também pode se mostrar cen-
tral no processo legislativo (GRIMMER, 2010, p. 46), apresentar
seu trabalho, dar um retorno para os eleitores:

É através do trabalho que você exerce aqui dentro


que você propaga a sua imagem para fora. […]
Então é muito importante que você dê um feed-
back positivo para as suas bases através do traba-
lho legislativo do dia a dia (deputado Léo Portela/
PR – informação verbal).

Os canais de transmissão ao vivo nos ajudam a


mostrar para as pessoas que você não está aqui
simplesmente gastando dinheiro público sem pro-
dutividade. Eu acho que é uma oportunidade para
os parlamentares apresentarem a sua produção
(deputado Paulo Lamac/PT – informação verbal).

Quando o público não está muito atento a um tema, o incen-

4. A cobertura midiática do processo legislativo


tivo para a mobilização diminui (MAYHEW, 2004, p. 116) e os
assuntos podem ter pouca projeção nas comissões, no plenário
e, consequentemente, também na mídia. Entretanto, há discus-
sões e votações que ganham grande saliência entre o público em
geral, com pressões de todos os lados, envolvimento do Execu-
tivo, atenção da imprensa – o que Mayhew (2004, p. 67) chama
de showdown vote:

Nesses casos em que há pressão popular, eu busco


mostrar minha opinião […] para a sociedade. ‘Eu
estou votando assim por essas razões, que acho
que são legítimas, que são corretas’. […] A política
é isso, é um conflito de ideias. Você está trazendo
munição para os que são favoráveis à sua ideia
e, ao mesmo tempo, se justificando para aqueles
que são contrários a ela (deputado Lafayette de
Andrada/PSDB – informação verbal). 187
NEPEL
Nesses momentos, os deputados podem sinalizar suas posi-
ções para a população e, simultaneamente, conclamar o apoio
dos cidadãos para pressionar os colegas e perseguir objetivos
internos ao Legislativo (modificação ou emendamento de propos-
tas, aprovação ou rejeição de matérias, etc.). A abertura dos par-
lamentos ao escrutínio público através da cobertura midiática dá
mais visibilidade à representação (FENNO, 1977, p. 917), amplifica
as deliberações legislativas (RENAULT, 2004, p. 133), externaliza
“os conflitos e os interesses” (SILVA, 2012, p. 53). E o fato de
ampliar a audiência de um tema em debate no parlamento pode,
por si só, alterar o resultado (MAYHEW, 2004, p. 177). “O uso
da palavra no plenário é estratégia de intervenção sobre a opi-
nião pública”, de “definição da agenda da sociedade civil” ou
de enquadramento favorável de tal agenda (MARTINS, 2016, p.
68). Para o deputado Fred Costa (PEN), a cobertura das atividades
legislativas funciona como “uma caixa de ressonância, que pode
se transformar em pressão” (informação verbal).
Quando os deputados se dirigem aos cidadãos, não estão,
portanto, falando apenas com eles. Aconteceria uma espécie de
efeito bumerangue, em que os parlamentares se dirigem para fora,
mas com a expectativa (e, quiçá, a certeza) de que os impactos
serão sentidos dentro do próprio Legislativo. Os pronunciamentos
nas comissões e em plenário, ao serem midiatizados, passam a ser
“um meio público de alcançar seus pares […] voltado mais para
dentro do campo” (MIGUEL; MÁXIMO, 2015, p. 13).
A “força mobilizadora” de um discurso depende, portanto,
não apenas de seus argumentos, mas também do “grau em que
ele é reconhecido por um grupo numeroso e poderoso” fora do
círculo de profissionais (BOURDIEU, 1989, p. 183). Os objetivos
internos e externos se misturam, às vezes tornando impossível
discernir onde começa um ou termina o outro.
O conceito de ampliação do conflito, proposto por Elmer Eric
Schattschneider, oferece uma forma de pensar como os discur-
188
NEPEL
sos direcionados ao público externo podem modificar o contexto
decisório interno. Para Schattschneider (1960, p. 8), o controle
da escala do conflito é o principal instrumento da estratégia polí-
tica: alguns querem restringir o escopo ou privatizar o conflito,
diminuindo sua visibilidade; enquanto outros buscam justamente
socializar o conflito, convidando a intervenção externa. Para ele,
os debates parlamentares são espetáculos dramáticos e excitantes
que, como toda disputa, consistem de duas partes: (1) os poucos
indivíduos ativamente engajados no centro; (2) a audiência que é
atraída pela cena (SCHATTSCHNEIDER, 1960, p. 2). A audiência é
parte integral da situação e pode determinar o resultado da disputa.
Isso porque é pouco provável que ambos os lados sejam reforçados
igualmente quando o conflito se expande, ou seja, aquele que con-
seguir engajar a audiência possivelmente será mais bem-sucedido.
As tentativas de mobilização são comuns quando se trata
de temas impopulares para o conjunto da população ou para
públicos atentos específicos, fortes e/ou mobilizados. Quando
esses temas dividem clara e ferrenhamente os parlamentares, o

4. A cobertura midiática do processo legislativo


grupo que está mais alinhado às preferências da população busca
externalizar o conflito, chamar a atenção da mídia e dos cidadãos
para o que está sendo debatido e decidido e, assim, modificar o
contexto decisório, reforçar as diferenças, projetar sua imagem de
forma favorável e “lançar os adversários e as suas propostas no
inferno do ódio das massas” (GOMES, 2004, p. 124).

As forças sociais […] fazem com que as posições,


tanto de oposição, quanto de governo, se mexam.
[…] Muitas vezes, a pressão social e o debate nas
comissões que esses setores fazem influenciam
[...] os projetos (deputado Rogério Correia/PT –
informação verbal).

Quando os esforços de publicização são bem-sucedidos, as


votações ganham grande saliência entre o público em geral, com
189
NEPEL
pressões de todos os lados, envolvimento do Executivo, atenção
da mídia. Contudo, a tentativa dos deputados de sensibilizar
a população não necessariamente é frutífera, pois os cidadãos
podem simplesmente não atender a seus chamados. Os interesses
e objetivos dos parlamentares, das mídias e dos cidadãos nem
sempre coincidem, seja para determinar o que terá visibilidade,
gerará mobilização ou se transformará em lei.

6. Considerações finais

Diversos fatores concomitantes contribuem para que o


processo legislativo seja mais aberto e visível: a valorização da
transparência na sociedade contemporânea, a disseminação das
práticas de monitoramento (inclusive com organizações dedicadas
especificamente a acompanhar o Legislativo), as pressões para
que as instituições se abram ao escrutínio público, a pluralização
do ambiente midiático, a criação das mídias legislativas, a expan-
são da internet e das redes sociais, entre outros.
Considero que a cobertura midiática cotidiana da tramitação
das propostas no parlamento é um passo importante para o ama-
durecimento da relação entre o Legislativo, nas várias esferas, e
os cidadãos. Muitas instituições reconhecem a necessidade dessa
conexão baseada em publicidade, accountability e responsive-
ness. No caso da ALMG, uma das três prioridades estabelecidas
pelo Direcionamento Estratégico para o biênio 2019-2021 é
justamente “a melhoria do relacionamento do Parlamento com
a sociedade, com ênfase na utilização de práticas e canais de
interação, comunicação e participação em meio digital” (MINAS
GERAIS, 2019, p. 6).
A participação de indivíduos e grupos nas diversas etapas do
processo legislativo – seja in loco ou a distância, acompanhando
as reuniões pela mídia, opinando em consultas virtuais ou con-
190
NEPEL
tatando os parlamentares, por exemplo – mostra que parcelas
da sociedade reconhecem os esforços para ampliar a conexão e
aproveitam essas oportunidades para tentar impactar as leis que
afetarão a vida de todos.
No Brasil de forma geral, porém, persiste a imagem negativa
do Legislativo. Um exemplo disso é o resultado da pesquisa de
opinião Latinobarômetro (2018), que mostra que a confiança do
brasileiro no Congresso Nacional é de apenas 12%. O resultado
está abaixo da média dos 18 países pesquisados (21%) e é um
dos piores índices da região, à frente apenas de El Salvador e Peru.
É fácil perceber que ainda falta muito a percorrer para o esta-
belecimento de uma relação próxima e calcada em confiança entre
o Legislativo e a população de forma geral. Acredito que um passo
importante para chegarmos lá seja a cobertura midiática constante,
minuciosa e plural – envolvendo abordagens objetivas, analíticas,
didáticas, críticas, institucionais, partidárias, etc. – de um trabalho
legislativo que seja sério, comprometido e consistente.

4. A cobertura midiática do processo legislativo


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4. A cobertura midiática do processo legislativo

199
NEPEL
5
AS PRERROGATIVAS
LEGISLATIVAS
DO CONGRESSO
NACIONAL E
AS MEDIDAS
PROVISÓRIAS
José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior*

*Mestre e Doutor em Direito Constitucional. Master of Law pela Harvard Law School. Professor
do Programa de Pós-graduação em Direito da PUCMinas. Advogado.
1. INTRODUÇÃO

A elaboração e promulgação da Constituição da República

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


Federativa do Brasil em 1988 teve dentre suas principais motiva-
ções a reformulação das relações entre Poder Executivo e Poder
Legislativo, propósito subjacente aos movimentos populares de
1984 e 1985 pela aprovação de proposta de emenda à consti-
tuição restauradora das eleições diretas para presidente da Repú-
blica, assim como da frustração coletiva advinda de sua rejeição.
As eleições do presidente Tancredo Neves e do vice-presidente
José Sarney logo a seguir, levaram-nos a abraçar o propósito de
restabelecer o regime democrático e, como corolário, as eleições
diretas para presidente.
O modo, podemos dizer, canônico para alcançar esses fins
seria a convocação de uma Constituinte, o que se efetivou origi-
nando a atual Constituição.
Instalada a Constituinte em 1º de janeiro de 1987, foram trava-
dos intensos debates sobre o resgate das prerrogativas legislativas
do Congresso Nacional, pavimentando significativa convergência
pela instauração do sistema parlamentarista de governo como
melhor modo de equilibrar as prerrogativas do Poder Executivo e
do Poder Legislativo.
Não obstante a derrubada da proposta parlamentarista nos
meses finais da Constituinte, traços das votações realizadas em
1987, quando o novo sistema de governo obteve vitórias impor-
203
NEPEL
tantes nas comissões de Organização dos Poderes e Sistema de
Governo e de Sistematização, permaneceram no texto, mere-
cendo destaque os artigos 50 e 62.

A medida provisória foi concebida como competência legisla-


tiva originária do presidente da República, porém, condicionada a
solicitação do primeiro ministro, este, naturalmente, subordinado
às prioridades legislativas.

A decisão pela permanência do sistema presidencialista pode-


ria ter resultado na supressão do instituto, o que, todavia, não
ocorreu. A medida provisória foi mantida, sem qualquer conexão,
ao menos na sua edição, com a vontade da maioria parlamentar.

Nessa configuração, a medida provisória tornou-se um dos


meios prioritários para criação de normas gerais e abstratas ins-
tituidoras de novos direitos e novas obrigações, sendo mesmo a
principal forma legislativa em momentos críticos do Congresso
Nacional, v.g. o período compreendido entre o afastamento do
presidente Fernando Collor de Mello e a posse de novo presi-
dente eleito, Fernando Henrique Cardoso, interregno no qual
o presidente Itamar Franco valeu-se ostensivamente da medida
provisória como principal instrumento de governo.

Este episódio pode ser analisado sob dois prismas. O pri-


meiro, o da fragilidade das prerrogativas conquistadas pelo
Congresso Nacional na Constituinte, posto a possibilidade de
exercício do governo a despeito das precárias condições fun-
cionais do Legislativo; o segundo, o prisma oposto, o instituto
medida provisória poderia ser enaltecido, haja vista ter permitido
o prosseguimento das instituições democráticas mesmo em con-
dições tão desfavoráveis.

Não obstante serem ambas perspectivas justificáveis, os pro-


pósitos de perenidade e solidez institucional subjacentes aos
204 conceitos de constituição e democracia exigiriam o pleno e eficaz
NEPEL
exercício da função legiferante pelo Congresso Nacional e consec-
tária emanação restrita de medidas provisórias.

O objetivo do presente artigo é analisar a medida provisória à


luz de hipotético panorama de integral desempenho das atribui-
ções do Congresso Nacional, afastando o peso de circunstâncias
desfavoráveis e concebendo ser desejável e possível limites mais
precisos entre os papéis do Poder Legislativo e do Poder Execu-
tivo.

Para esse fim, analisaremos distorções que mantêm a medida

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


provisória no centro da produção normativa nacional, reduzindo
a qualidade e amplitude das iniciativas legislativas do Congresso
Nacional e mantendo a hegemonia do presidente da República na
condução das ações da República Federativa do Brasil e da União.

Na consecução de nossos objetivos, estudaremos a longa his-


tória do Executivo legislador em nosso país até a consagração da
medida provisória. Em seguida, analisaremos a medida provisória
antes e depois da Emenda Constitucional nº 32/2001, as lacunas
e limites à sua edição e o caráter virtualmente corrosivo das com-
petências do Congresso Nacional.

1. A centenária história do Executivo


legislador no Brasil.

A Constituição monárquica não previu instituto de cunho


legislativo outorgado ao Poder Executivo. No entanto, o estabe-
lecimento do Poder Moderador consignou expressivas categorias
de subordinação do Poder Legislativo, sendo possível a suspensão
da Constituição ou de leis, incluídas normas que dispusessem
sobre direitos individuais e políticos, por ato do imperador. 205
NEPEL
O Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, revogou a Cons-
tituição de 1824, instituiu o Governo Provisório e prenunciou,
sem convocar, um Congresso Constituinte.
Até a promulgação da primeira Constituição Republicana em
1891, o Governo Provisório, com fundamento nos poderes auto-
conferidos pelo referido Decreto nº 1, exerceu funções executivas
e legislativas, editando decretos com força de lei, sem configura-
ção específica.
O advento da Constituição de 1891 encerrou o breve período
de legiferação por decretos, o que não significou o fim da sujeição
do Legislativo ao Executivo, este sucessivamente lançando mão
de medidas excepcionais a comprometerem os trabalhos do Con-
gresso, especialmente o estado de sítio.
A edição de atos normativos com força de lei pelo Poder Exe-
cutivo foi retomada em 1930 com nova instituição de Governo
Provisório, possibilitando ao presidente da República a edição de
decretos sobre qualquer matéria.
A Constituição de 1934 restabeleceu a separação de poderes,
conquanto tivesse imposto limites consideráveis ao Poder Judiciá-
rio, especialmente com o fim de preservar os atos praticados pelo
Governo Provisório.
A composição de instituto jurídico a conferir ao presidente
da República competência legislativa originária ocorreu com a
outorga da Constituição de 1937.
Os artigos 12 a 14 da Carta conferiram ao presidente com-
petência para expedir decretos-lei mediante ato autorizativo do
Congresso Nacional e nas condições e limites fixados pela auto-
rização, sendo esta dispensada, se o exigirem as necessidades do
Estado, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução
da Câmara dos Deputados, assim como para expedição de decre-
tos-lei sobre a organização da administração federal e o comando
206 supremo e a organização das Forças Armadas.
NEPEL
Há de ressaltar a possibilidade de dissolução da Câmara dos
Deputados na forma dos artigos 75 e 167, prerrogativa a reforçar
a subordinação do Congresso ao presidente.
A Lei Constitucional nº 15, de 26 de novembro de 1945, veio
restringir os atos normativos do presidente da República, emana-
dos através de decretos-lei. Como afirma Brasilino Santos:

A competência que era para fazê-lo em qual-


quer matéria, não se estabelecendo limitação
mesmo para matéria de natureza constitucional,

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


foi outorgada, além de transitoriamente, ape-
nas para a legislatura ordinária. E assim, além
de ficar encerrado o período dos decretos-leis
inaugurado com o Estado Novo, o que se fez,
pelo menos implicitamente, foi convalidar esta
espécie de legislação editada no regime da Carta
de 1937, vedando, porém, seu uso para o futuro.
(SANTOS, 1993, p. 248).

A Constituição de 1946 não consagrou qualquer instituto


consignatório ao presidente da República de competência para
edição de ato normativo com força de lei, vedando até mesmo
a delegação legislativa, em clara reação ao período autocrático
antecedente.
A promulgação da Emenda Constitucional nº 4, de 1961,
instaurou no Brasil o sistema parlamentarista de governo e, na
esteia deste, restabeleceu a possibilidade de legislação delegada,
o que perdurou até 1963, ano em que foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 6, a qual restaurou o sistema presidencialista e
revogou a possibilidade de delegação legislativa.
Os atos institucionais estabelecidos a partir de 1964 confe-
riram ao chefe do Poder Executivo diversas funções legislativas,
outorgando-lhe a edição de atos complementares, atos norma-
tivos superiores às leis ordinárias, leis delegadas e, novamente, 207
NEPEL
decretos-lei, estes, em comparação com a Constituição de 1937,
sofrendo limites quanto à matéria criminal, caso não fosse reco-
nhecida por ato institucional ou complementar.

Merece consideração particular o Ato Institucional nº 2, de 27


de outubro de 1965, fundamento para a edição do Ato Comple-
mentar nº 23, de 20 de outubro de 1966, sendo neste decretado
recesso do Congresso Nacional de 20 de outubro a 22 de novem-
bro de 1966, circunstância que tornou ilimitado o poder para
exarar decretos-lei, estando o presidente da República autorizado
a editá-los contendo qualquer matéria prevista na Constituição.
Destarte, o decreto-lei nessa época é a manifestação do próprio
processo de elaboração de leis, tendo natureza equivalente a ato
originário do Congresso Nacional, vale dizer, a um só tempo lei
material e formal, inclusive sobrepondo-se, em caso de antino-
mia, aos atos complementares e às leis complementares.

A Constituição de 1967, em seu artigo 58, determinou que,


em casos de urgência ou interesse público relevante, e desde que
não resultasse em aumento de despesa, poderia o presidente
da República expedir decretos com força de lei sobre segurança
nacional ou finanças públicas. Uma vez publicado, o texto teria
vigência imediata, dispondo o Congresso Nacional de sessenta
dias para 4prova-lo ou rejeitá-lo, vedada qualquer emenda, sendo
o ato aprovado quando não houvesse deliberação neste prazo.

Note-se que, ao contrário da Constituição de 1937, a de 1967


permitiu a edição de decreto-lei estando em pleno funcionamento
o Congresso Nacional. Outra particularidade significativa é notada
por Brasilino Santos (1993, p. 277) ao analisar os pressupostos
para edição do decreto-lei, ressaltando que relevância e urgência
eram requisitos alternativos, merecendo nota a indeterminação
da cláusula de urgência, objeto de supressão, por exemplo, na
Constituição portuguesa de 1976, a qual privilegiou outras restri-
208 ções, tais como os limites materiais.
NEPEL
Sobre o atendimento desses pressupostos constitucionais, o
Supremo Tribunal Federal – STF – considerou-os imunes à apre-
ciação do Poder Judiciário, posto que a aprovação pelo Congresso
Nacional importaria reconhecimento tácito de observância; sendo
o Congresso Nacional uma esfera política, apenas a ele, além de
ao presidente, caberia apreciar a conveniência e oportunidade na
edição de decretos-lei.
A corrosão do regime político implantado em 1964 produziu
alguns consensos na Constituinte de 1987/88; um deles foi a
extinção do instituto decreto-lei.

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


Sem embargo, a designação de competência legislativa origi-
nária ao Poder Executivo foi assumida pelas comissões desde os
trabalhos iniciais.
A delegação legislativa foi prevista sem referência a leis dele-
gadas, mas a decretos com força de lei autorizados pelo Con-
gresso Nacional.
Além dessa possibilidade, o constituinte buscou inspiração na
Constituição italiana de 1947 para a institucionalização de medi-
das provisórias, cuja primeira formulação entrelaçava-se com o
sistema parlamentarista de governo, sendo aprovada pela Comis-
são de Organização dos Poderes e Sistema de Governo a seguinte
redação:

§ 1º Em caso de relevância e urgência, o Presidente


da República, por solicitação do Primeiro -Ministro,
poderá adotar medidas provisórias, com força da
lei, devendo submetê-las, de imediato, ao Con-
gresso Nacional, para a conversão, o qual, estando
em recesso, será convocado extraordinariamente,
para se reunir no prazo de cinco dos dias.

A prevalência final do sistema presidencialista deveria, na opi-


nião de alguns autores, ter resultado na extirpação da medida 209
NEPEL
provisória do texto, ou, ao menos, na sua exclusão do rol de espé-
cies normativas submetidas ao processo legislativo. José Afonso
da Silva, com veemência, afirma:

As medidas provisórias não constavam da enumeração do art.


59, como objeto do processo legislativo, e não tinham mesmo
que constar, porque sua formação não se dá por processo legis-
lativo. São simplesmente editadas pelo Presidente da República.
A redação final da Constituição não as trazia nessa enumera-
ção. Um gênio qualquer, de mau gosto e ignorante, e abusado,
introduziu-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto final
(portanto depois do dia 22.9.88 e a promulgação-publicação da
Constituição no dia 5-10-88. (SILVA, 1990, p. 452).

Com efeito, a inserção das medidas provisórias como objeto


do processo legislativo é tema delicado, sem embargo de even-
tual leviandade. Cabendo a redação do texto da medida pro-
visória privativamente ao presidente da República, sem dúvida
não é ato que comporte um processo de elaboração no Poder
Legislativo. Não obstante, a conversão em lei da medida provi-
sória admite atos de natureza legislativa, como emendas par-
lamantares e sanção presidencial, o que, em tese, justifica sua
inserção no artigo 59.

O triunfo do presidencialismo, posteriormente confirmado


em plebiscito realizado na forma do art. 2º do Ato das Disposi-
ções Constitucionais Transitórias, referendou a medida provisória
como uma versão renovada do decreto-lei, dele diferenciando-se
pela conversão em lei a que está submetida, não ocorrendo ape-
nas a confirmação ou rejeição do texto advindo do presidente da
República como no instituto precedente.

Sob o ponto de vista das prerrogativas do Congresso Nacional,


as medidas provisórias, à primeira vista, poderiam ser consideradas
como um avanço, posto a elaboração do texto da lei resultante de
210 conversão ser responsabilidade do Poder Legislativo.
NEPEL
Em que pese essa relevante possibilidade, o transcorrer do
constitucionalismo brasileiro na década seguinte à da promulga-
ção da Constituição revelou nuances de cerceamento ao Poder
Legislativo, como veremos a seguir.

2. Limites e lacunas na edição de medidas


provisórias.

O esboço constituinte de limitação à autoridade legislativa do

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


Poder Executivo efetivou-se aquém do inicialmente almejado.

O texto promulgado dotou o presidente da República da ini-


ciativa legislativa, da sanção e do veto, competências, de todo
modo, inseridas no processo legislativo, mas também das prerro-
gativas de elaborar leis delegadas e medidas provisórias.

Como ressalta Joel de Menezes Niebuhr, medida provisória é,


antes de mais nada, exceção à regra da divisão de poderes:

A medida provisória, na qualidade de exceção,


deve ser interpretada como tal. Isto é, os pres-
supostos de relevância e urgência devem ser
interpretados de maneira mais restrita, limitando
ao máximo a discricionariedade do Presidente da
República para adotá-la. (NIEBUHR, 2001, p. 92).

A medida provisória consiste em ato normativo primário atri-


buído ao presidente da República, sem paralelo nas Constituições
de 1824, 1891, 1934 e 1946, havendo instituto análogo nas de
1937 e 1967, inclusive na Emenda nº 1, de 1969, como visto.

A principal distinção entre o decreto-lei e a medida provisória,


como também já apontamos, reside na conversão em lei no caso
do segundo instituto, havendo apenas aprovação ou rejeição no
caso do primeiro, vedada qualquer emenda. 211
NEPEL
A submissão da medida provisória a um processo de conversão
leva Clémerson Cléve a identificar traços democráticos na espécie:

[…] A medida provisória, incorporada em uma


Constituição democrática, cujos princípios apon-
tam para excepcionalidade da atuação normativa
de urgência do poder Executivo, ampliando as
possibilidades de controle do Poder Legislativo e
Judiciário e restabelecendo um verdadeiro sistema
de freios e contrapesos. (CLÉVE, 2011, p. 53).

Destaca também o autor a importância de uma interpretação


ao artigo 62 compatível com o regime democrático adotado,
resultando na possibilidade de manejo do instrumento em situa-
ções verdadeiramente extraordinárias, urgentes e imprevistas. Sua
natureza seria tecnicamente de uma lei, no sentido de produzir
força de lei, com aptidão para inovar na ordem jurídica.
Sob tal perspectiva, torna-se relevante a distinção entre a lei
em sentido formal, a elaborada pelos órgãos originariamente defi-
nidos pela Constituição, detentores da plena função legislativa – o
Congresso Nacional e suas duas casas, Câmara dos Deputados e
Senado Federal, as assembleias legislativas de cada estado e as
câmaras de vereadores de cada município –, e a lei em sentido
material, o ato normativo não proveniente das casas legislativas,
mas idôneo a produzir novidades no quadro de direitos e obriga-
ções estatuídos no ordenamento.
Tal caracterização, contudo, é insuficiente para a compreensão
da natureza das medidas provisórias, visto a ordem jurídica brasi-
leira também consagrar a delegação legislativa, a qual igualmente
não resulta em lei no sentido formal, visto ser a lei delegada um
ato elaborado pelo presidente da República após concedida a
delegação.
Assim como a medida provisória, a lei delegada tem aptidão
212 para inovar na ordem jurídica. Seu texto, entretanto, mesmo
NEPEL
quando submetido ao Congresso Nacional por determinação da
resolução delegatória, não está sujeito a emendas parlamentares.
Outra distinção relevante é a necessidade de prévia autorização
do Congresso Nacional, o que não ocorre quanto à medida pro-
visória por esta tratar-se, como já dito, de ato normativo primário
atribuído ao presidente.
Por derradeiro, da delegação legislativa está ausente a exi-
gência dos pressupostos ínsitos à medida provisória, quais sejam,
relevância e urgência, podendo a espécie normativa versar sobre
matérias rotineiras.

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


Em conclusão, podemos afirmar que a medida provisória é ato
bastante distinto da espécie delegação legislativa, revestindo-se
do excepcional caráter de ato legislativo de competência origi-
nária do presidente da República, justificando-se como tal para o
atendimento a circunstâncias relevantes e urgentes.

2.1. Relevância e urgência

Rogério do Nascimento sugere um liame entre as medidas


provisórias e as tutelas de urgência no Direito Processual. Nesse
sentido, o novo instituto encontraria esteio em dogmática mais
madura:

As medidas provisórias são medidas de urgência,


um fenômeno bastante conhecido da dogmá-
tica, no campo da aplicação do Direito e que,
no entanto, embora menos percebido, também
ocorre na produção das normas. O reconheci-
mento da necessidade de tutela da urgência, no
processo, ou seja, de que, em certas situações,
excepcionais, é preciso adotar medidas destina-
das a preservar a efetividade de um provimento
jurisdicional futuro, ameaçado diante dos efeitos
do curso do tempo, sobre as pessoas e sobre as 213
NEPEL
coisas, levou a que se admitissem decisões judi-
ciais dotadas de força executiva imediata. (NASCI-
MENTO, 2004, p. 203).

O cotejo proposto elucida alguns aspectos do instituto, obscu-


recendo outros.
A medida provisória não é ato normativo de aplicação, execu-
ção ou efetivação de direitos como o são as tutelas de urgência.
Se, como vasta doutrina, considerarmos a medida provisória
um ato de criação do Direito, o paralelo com as tutelas de urgên-
cia revelaria seus limites pelo componente político próprio ao juízo
de conveniência e oportunidade precedente à edição dessas, bem
como pelo objeto do ato normativo primário, podendo envolver
mesmo aspectos de soberania nacional. Mesmo se considerarmos
as decisões judiciais como atos políticos, seriam estes submetidos
a uma técnica particular, a qual imporia limites aos juízos discri-
cionários distintos dos que podemos identificar nas atribuições
próprias do presidente da República, tanto como chefe de Estado
quanto como chefe de Governo.
Em interessante levantamento sobre a matéria, Eduardo
Martins de Lima e Virgínia Silame Maranhão Lima apontam Marco
Aurélio Greco e Hugo de Brito Machado como autores que repu-
tam a medida provisória como ato administrativo em razão da não
participação do Poder Legislativo na sua criação.

Em especial, Marco Aurélio Greco entende que as


medidas provisórias possuem natureza jurídica de
lei apenas após sua conversão. Um dos argumen-
tos utilizados é no sentido de que a competência
em que o Executivo se apoia ao editar medidas
provisórias não é uma competência legislativa em
sentido técnico. Salienta, ainda, que a previsão do
art. 59 da CR/1988, que contempla o processo
214 legislativo, compreende apenas as medidas provi-
NEPEL
sórias que já foram convertidas em lei. (BARACHO
JÚNIOR; LIMA, 2013, p. 54).

A inovação no ordenamento jurídico através de medidas provi-


sórias é condicionada ao atendimento simultâneo dos pressupos-
tos formais e circunstanciais para sua edição, os quais, como diz
Cléve, “funcionam quer como fontes legitimadoras da atuação
normativa excepcional do presidente da República, quer como
mecanismos deflagradores de sua competência legislativa extra-
ordinária” (CLÉVE, 2011, p. 80).

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


Os pressupostos formais são a edição pelo próprio presidente
da República e a submissão imediata ao Congresso Nacional. Os
pressupostos materiais são a relevância e a urgência, devendo
esses últimos serem simultâneos e concomitantes.

É corrente na doutrina brasileira analisar a urgência sob a ótica


da morosidade legislativa, ou seja, “há de estar configurada uma
situação em que a demora na produção da norma possa acarretar
dano de difícil ou impossível reparação para o interesse público”.
(MENDES; BRANCO, 2013, p. 676-877).

Quanto à relevância, a doutrina pátria distingue a preponde-


rância do interesse público, “ Ou seja, deve prevalecer o interesse
da sociedade, não as prioridades do presidente da República.
Desse modo, “ […] a relevância de que trata a Constituição não
é, apenas, da matéria tratada, devendo qualificar, também, a situ-
ação ensejadora (estado de necessidade) da medida provisória.
(CLÉVE, 2011, p. 92).

São noções bastante vagas e abstratas, consequentemente, de


difícil aferição.

O controle dos pressupostos materiais relevância e urgência


pelo Congresso Nacional e pelo STF deve ser analisado em três
momentos, a dizer, na vigência da Constituição de 1967; após a
promulgação da Constituição de 1988, à luz da jurisprudência do 215
NEPEL
STF; e, por derradeiro, após a Emenda Constitucional nº 32, de
2001, que trouxe novos contornos para esse controle.

Conforme apontamos em trabalho anterior, a “tensão entre a


defesa dos direitos fundamentais e as chamadas ‘questões políti-
cas’ vai marcar a atuação do STF em momentos importantes, seja
na República Velha ou no Estado Novo, bem como durante os
governos militares”. (BARACHO JÚNIOR, 2003, p. 316).

A vedação de apreciação pelo Poder Judiciário de determina-


das matérias conferidas ao Poder Executivo, contudo, não é nota
peculiar a momentos de exceção, sendo igualmente objeto da
jurisprudência de tribunais supremos de outros países em perí-
odos de estabilidade institucional, sendo a Suprema Corte dos
Estados Unidos o exemplo mais notório.

Sem embargo, há de ser reconhecido no Brasil o peso das


chamadas “questões políticas” em períodos de exceção, oportu-
nidade em que o STF mais se empenhou em conferir os contornos
de seus fundamentos.

Em voto proferido sob a égide do decreto-lei no Recurso Extra-


ordinário nº 62.739, Aliomar Baleeiro ressaltou que relevância e
urgência advêm da avaliação do presidente da República, ressal-
vando a possibilidade de o Congresso Nacional chegar a juízo de
valor contrário. “Destarte, não pode haver revisão judicial desses
dois aspectos entregues ao discricionarismo do Executivo, que
sofrerá apenas correção pelo discricionarismo do Congresso.”.

Os riscos dessa abstenção judiciária para os direitos fundamen-


tais foram apontados pelo próprio ministro Aliomar Baleeiro em
voto posterior, proferido no Recurso Extraordinário nº 75.935,
quando expressou preocupação com “o discricionarismo, prati-
cado já no campo do absurdo, tocar o arbítrio.”

Tal apreensão pouco abalou a jurisprudência do Tribunal, a


216 qual permaneceu inflexível em asseverar que “os pressupostos de
NEPEL
urgência e relevante interesse público escapam ao controle do
Poder Judiciário” (RE 71.039).

O advento da Constituição de 1988 fez o STF repensar a perti-


nência da doutrina das questões políticas às novas normas.

Na Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionali-


dade nº 162-1, o Tribunal fez constar da ementa o entendi-
mento de que

os conceitos de relevância e urgência a que se

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


refere o art. 62 da Constituição, como pressupos-
tos para edição de medidas provisórias, decorrem,
em princípio, do juízo discricionário de oportuni-
dade e de valor do Presidente da República, mas
admitem o controle judiciário quanto ao excesso
do poder de legislar, o que, no caso, não se evi-
dencia de pronto.

Apesar do indeferimento da medida cautelar requerida, res-


tou apontada a doutrina do abuso de poder como contraponto à
doutrina das questões políticas antes hegemônica, o que resultou,
onze anos depois, na efetiva suspensão liminar de medida provi-
sória pelo descumprimento do pressuposto urgência:

Em síntese, neste primeiro passo, conclui-se,


diante da circunstância de não haver sido solici-
tado o regime de urgência pelo Chefe do Poder
Executivo Federal, que a matéria poderia vir a ser
disciplinada na vala comum, sendo de pressupor-
-se que não foi tida como indispensável a imediata
disciplina. [...] O tabu, o dogma sacrossanto de
que foi revestido o exame dos predicados de rele-
vância e urgência, previsto no art. 62, não mais
existe. (ADI n. 2.348-9/DF, relator ministro Marco
Aurélio, julgamento 7/12/2000). 217
NEPEL
No ano seguinte à prolação dessa decisão pioneira, foi pro-
mulgada a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de
2001, a qual, no parágrafo 5º acrescido ao artigo 62, determinou
a apreciação prévia de atendimento aos pressupostos constitu-
cionais por cada uma das casas do Congresso Nacional, antes da
deliberação sobre o mérito.
A prerrogativa do Congresso Nacional de contrapor-se ao
juízo de relevância e urgência do presidente da República sem-
pre foi reconhecida na doutrina e na jurisprudência. O dispositivo
inova quanto ao procedimento, haja vista a apreciação prévia dos
pressupostos separadamente em cada uma das casas.
De todo modo, a alteração promovida no artigo 62 não modi-
ficou a jurisprudência tornada dominante no STF, no sentido
da possibilidade de examinar o atendimento aos pressupostos
constitucionais, ainda que essa autoridade jurisdicional somente
possa ser exercida excepcionalmente: “Esta Suprema Corte
somente admite o exame jurisdicional do mérito dos requisitos
de relevância e urgência na edição de medida provisória em casos
excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos seja
evidente.” (Medida Cautelar na ADI 2.527, relatora ministra Ellen
Grace, julgamento 16/8/2007).
Isso posto, ao Congresso é atribuído o controle dos pressupos-
tos materiais da medida provisória, o que ocorre separadamente
em cada uma das casas do Congresso Nacional. Naturalmente,
também é da alçada legislativa a deliberação sobre o conteúdo
da medida provisória, o que o parágrafo 5º do artigo 62 designa
mérito das medidas provisórias, podendo haver completa altera-
ção do texto por meio de emendas parlamentares.
Ao Poder Judiciário cabe apreciar tais pressupostos materiais
de edição, verificando se, de fato, não é adequado aguardar o
trâmite do processo legislativo, sendo cabível o presidente, atra-
vés de função atípica, acautelar o processo legislativo por conta e
218 risco próprios.
NEPEL
2.2. Sobrestamento das demais deliberações
legislativas

Se a medida provisória não for votada em até quarenta e cinco


dias após sua publicação, nos termos do parágrafo 6º do artigo
62, entrará em regime de urgência, sobrestando todas as demais
deliberações legislativas da casa em que estiver tramitando até
que se ultime a votação do projeto de conversão.

Entre 1992, ano a partir do qual a rotina do Congresso Nacio-


nal sofreu profunda alteração em virtude do impeachment do

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


ex-presidente Fernando Collor de Mello, e 2009, ano em que foi
apresentada pelo deputado Régis de Oliveira a Questão de Ordem
nº 411/2009, a pauta de deliberações do Poder Legislativo nacio-
nal foi condicionada sobremaneira pelo Poder Executivo por meio
de sucessivas edições de medidas provisórias.

Após a Emenda Constitucional nº 32/2001, a restrição aos


trabalhos legislativos passou a ocorrer igualmente sob a forma do
trancamento de pauta, conforme o disposto no citado parágrafo
6º do artigo 62.

A resposta apresentada à questão de ordem mencionada trouxe


nova conformação à matéria, haja vista a decisão do presidente
da Câmara dos Deputados à época, deputado Michel Temer, no
sentido de que a medida provisória, sendo um instrumento que só
pode dispor sobre questões atinentes a leis ordinárias, sobrestaria
apenas projetos de lei ordinária, ainda assim, quando contiverem
matéria passível de edição por medida provisória.

Contra tal decisão foi impetrado mandado de segurança


pelos líderes do PSDB, DEM e PPS, que no STF recebeu o número
27.931-1/DF, da relatoria do ministro Celso de Mello.

Houve indeferimento da liminar requerida e ao final a segu-


rança foi negada, preservando a interpretação oferecida pelo
presidente da Câmara. 219
NEPEL
Essa decisão guarda desafios interpretativos relevantes, espe-
cialmente porque o texto da Constituição é muito claro quanto
ao sobrestamento de todas as demais deliberações legislativas.
A exegese do STF foi sem dúvida contra o enunciado normativo.
Todavia, seria contra a norma?

Sob a ótica da independência entre Poder Legislativo e Poder


Executivo, a decisão ressumbra consistente. A incessante edição
de medidas provisórias comprometeu a capacidade do Legislativo
em determinar sua agenda, sempre refém do regime de urgência
previsto no artigo 62.

Por outro lado, revela-se arrojada a decisão de evitar alterar


o enunciado normativo através de emenda à Constituição com
o fim de expurgar ambivalências, inevitáveis quando há oposição
tão evidente entre enunciado e interpretação. Uma hermenêutica
excessivamente elástica do texto jurídico adquire maleabilidade
potencialmente corrosiva, especialmente quando se pretende
levar o Direito a sério.

Admitindo como correto o postulado de que o enunciado não


encerra a norma, ressaltamos a importância de não subjugar por
inteiro o texto da Constituição e das leis, o que nos faria cair em
um pandemônio hermenêutico, no qual cada autoridade de qual-
quer dos Poderes da União arvorara-se em determinar o conteúdo
do Direito.

2.3. Limites materiais

O debate sobre limites materiais à edição de medidas provi-


sórias antecedeu a própria promulgação da Constituição, posto
causar apreensão entre juristas e políticos a atribuição de compe-
tência legislativa originária ao presidente após tanto combate ao
decreto-lei, bem como a exiguidade do texto original ao consagrar
220 o instituto, mais lacônico que o de Constituições autocráticas.
NEPEL
Doutrinadores apontaram o princípio da legalidade como o
principal escudo contra abusos, abarcando todas as matérias por
ele expressamente abrigadas na Constituição.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho destacou a legalidade em


matéria criminal:

Esse poder não é limitado a certas matérias, como


o era o decreto-lei, que só podia regular segu-
rança nacional e finanças públicas. Parece implí-
cito, porém, que há matérias que por sua natureza

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


não toleram uma normação provisória. É o caso
da definição de sanções punitivas, mormente de
crimes, e a consequente fixação de penalidades.
(FERREIRA FILHO, 2001, p. 236).

Houve ainda autores a defender a legalidade tributária como


limite material ao emprego de medida provisória, assim como
doutrinas mais confusas como a que sustentava a impossibilidade
de edição de medidas provisórias sobre temas irreversíveis, ideia
de significado por demais vago.

A jurisprudência do STF guarneceu nos primeiros anos, com


determinação, o direito penal e o direito processual penal como
matérias sujeitas ao princípio da legalidade em sentido estrito,
ou seja, a legalidade formal, objeto de deliberação do Congresso
Nacional. Afastou também a possibilidade de edição de medi-
das provisórias sobre matérias reservadas pela Constituição à lei
complementar, assim como a disposição sobre a organização do
Poder Judiciário e do Ministério Público.

As barreiras iniciais, não obstante, cederam pouco a pouco


aos assédios do Poder Executivo ao longo da década de 1990 de
maneira tal que até medida provisória sobre matéria reservada a
lei complementar obteve suporte no STF, fixada tão somente a
condição de maioria qualificada para conversão em lei. 221
NEPEL
Clémerson Cléve assim sobressaltou a inexistência de limites
materiais no texto primevo:

É verdade, porém, que a omissão constitucional


quanto as hipóteses de não cabimento de medida
provisória contribuiu para o abuso na utilização
desse instrumento normativo. Atendendo em
parte o clamor da sociedade, o Congresso Nacio-
nal promulgou a EC 32, de 11 de setembro de
2001. O poder constituinte reformador alterou
profundamente o regime jurídico das medidas
provisórias, inclusive estabelecendo expressa-
mente certos limites materiais à edição da legisla-
ção de urgência […]. (CLÉVE, 2011, p.104).

A Emenda Constitucional nº 32, ressalvadas as deficiências


técnico-redacionais evidentes nos parágrafos 3º, 6º, 7º e 8º, onde
encontramos redundâncias e ambiguidades prejudiciais à compre-
ensão escorreita do texto, trouxe avanços para a preservação das
prerrogativas constitucionais do Congresso Nacional, merecendo
destaque a fixação de limites materiais.

Arrolaram-se matérias vedadas a leis delegadas como insus-


cetíveis de medida provisória, somando-se a essas a proibição
quanto a matérias relativas a partidos políticos e a proibição de
detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qual-
quer outro ativo financeiro, interdição à conta das medidas provi-
sórias instituidoras do Plano Collor.

A Emenda Constitucional nº 32 estabeleceu ainda a proibição


de edição de medidas provisórias sobre matéria já disciplinada em
projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de
sanção ou veto do presidente da República. Igualmente, impediu
que matéria constante de medida provisória rejeitada seja reapre-
222 sentada na mesma sessão legislativa.
NEPEL
Não nos parece apropriado designar essas limitações como
materiais. São vedações da ordem do processo legislativo, por
isso, melhor denominadas como processuais; ou temporais, esta
como referência aos períodos restritivos, quais sejam, a quinzena
sancionatória ou a sessão legislativa anual.
Preocupações semânticas à parte, são normas relevantes à
preservação das prerrogativas legislativas do Congresso Nacional
tanto pelo respeito ao trabalho legiferante já realizado na hipó-
tese da pendência de sanção ou veto quanto pela preservação
do cronograma dos trabalhos legislativos no caso de restrição à

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


reedição na mesma sessão legislativa.
Contrariando diversos publicistas, a legalidade tributária não
foi preservada, sendo admitida medida provisória que institua ou
majore impostos, ressalvada a necessidade de conversão em lei
no mesmo exercício financeiro em que editada para surtir efeitos
no seguinte, assim como a restrição quanto aos que exijam lei
complementar ou que signifiquem instituição de impostos extra-
ordinários na forma do artigo 154, II.
Naturalmente, é possível a instituição de obrigação tributária
acessória por medida provisória, excetuando-se a cominação de
sanções pelo descumprimento.
No que concerne às leis orçamentárias, a atual redação do
artigo 62 permite à medida provisória tão somente a abertura
de crédito extraordinário para atender a despesas imprevisíveis e
urgentes, conforme preceitua o o parágrafo 3º do art. 167.
A previsão expressa de limites materiais foi recebida majorita-
riamente como positiva, entendida enquanto forma clara e con-
tundente de conter os excessos do Poder Executivo no manejo de
medidas provisórias.
O nó górdio original, entretanto, permanece. O tão comba-
tido decreto-lei sofria restrições mais acentuadas no que respeita
às matérias a serem tratadas. De mais a mais, a previsão textual 223
NEPEL
de limites materiais comportará sempre a suposição de que toda
matéria não vedada poderá ser veiculada.

É o caso atual das competências exclusivas do Congresso


Nacional e das privativas da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal. Essas matérias, constantes das interdições à delegação
legislativa, não constam do artigo 62 da Constituição, esforçando-
-se a doutrina em justificar sua inserção no rol de limites materiais:

Uma conclusão parcial pode, então, ser formu-


lada: persistem como limites materiais à medida
provisória aqueles estabelecidos para a legislação
delegada. Alguns desses limites foram explicitados
no art. 62 da Constituição, com o advento da EC
32/2001. Todavia, outras restrições permanecem
como limites implícitos, direitos individuais, e
matérias de competência exclusiva do Congresso
e privativa da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal. (CLÉVE, 2011, p.114).

2.4. Conversão em lei

O cotejo da medida provisória e do decreto-lei promove


resultados dubitativos sob a ótica da proteção às prerrogativas
do Congresso Nacional, particularmente quando examinamos as
limitações materiais nos dois institutos.

O mesmo não ocorre quanto à conversão em lei, procedi-


mento nitidamente favorável à medida provisória sob o ponto de
vista das atribuições do Poder Legislativo.

O decreto-lei submetia-se a procedimento similar ao da dele-


gação legislativa, vale dizer, era submetido ao Congresso Nacio-
nal a quem caberia aprovar ou rejeitar a norma, vedada qualquer
emenda. Agravando a supremacia do Poder Executivo sobre o
224 Poder Legislativo quando vigente o decreto-lei, havia a aprovação
NEPEL
por decurso de prazo, noventa dias, findos os quais o decreto-lei
era considerado aceito.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho tem a medida


provisória como um projeto de lei com eficácia
antecipada: “Não cabe, todavia, ao Congresso
Nacional aprovar ou desaprovar a medida provi-
sória. Deve ele tomá-la como um projeto de lei
a ser devidamente apreciado, o qual, obtendo
aprovação, se converte em lei.” (FERREIRA FILHO,
2011, p. 239)

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


A redação original do artigo 62 objetivava essa condição ao
estabelecer no parágrafo único a perda de eficácia desde a edição
caso não houvesse conversão em lei no prazo de trinta dias a
contar da publicação.

Sendo um projeto de lei, é decorrente a possibilidade de


emendas parlamentares, matéria tratada no Parecer nº SR- 92 do
então consultor-geral da República Saulo Ramos, afirmando que
“a função de emendar é inerente à atividade legislativa. Em con-
sequência, as limitações a esse poder hão de ser necessariamente
constitucionais. A faculdade de emendar proposições legislativas
é um consectário natural do poder de legislar”. (RAMOS, 1989,
p. 10182).

Joel de Menezes Niebuhr considera possível ao Congresso


Nacional suprimir dispositivos do projeto de conversão de medida
provisória em lei assim como glosar dispositivos com alterações
de pequena monta. Justifica esse ponto de vista afirmando que
mudanças substanciais devem ser objeto de projeto de lei autô-
nomo, «pois o procedimento sumaríssimo destinado a ela não
comporta discussões desse naipe». (NIEBUHR, 2001, p. 128).

É sempre delicado construir doutrinas à base de gradações,


haja vista possibilitar inferências particularizadas. O que seria 225
NEPEL
alteração de pequena ou grande monta há de sempre ocasionar
divergências.
Ressaltamos que a Constitituição vigente estabelece uma
única limitação ao poder de emendas parlamentares, qual seja, a
prevista no artigo 63.
Afora essa restrição, é ampla a prerrogativa do Congresso
Nacional em emendar toda sorte de projetos de lei, inclusive os de
conversão de medida provisória.
Parece-nos mais adequada a solução procedimental, por reco-
nhecer a prerrogativa do presidente da República em analisar o
excesso ou não de emendas parlamentares, a maior ou menor
monta das alterações propostas, sancionando ou vetando o pro-
jeto, total ou parcialmente, na forma dos artigos 62, parágrafo
12, e 66.
O processo minimiza dessa forma o confronto entre particula-
rismos sobre a extensão das alterações parlamentares e permite
à resultante processual do embate Legislativo-Executivo oferecer
a solução.
As alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 32
trouxeram ao Senado Federal maior destaque no procedimento
de conversão da medida provisória em lei.
Quando vigente o texto original, os trabalhos preparatórios
– discussões em comissões, pareceres e propostas de emendas
parlamentares – ficavam preponderantemente a cargo da Câmara
dos Deputados, atuando o Senado Federal nas deliberações finais
em plenário.
O reposicionamento do Senado Federal no processo de conver-
são fortaleceu a tramitação da proposta que resultou na Emenda
32, atuando a Casa de forma decidida pela sua aprovação.
Assim como em outros procedimentos legislativos, hoje, a
226 conversão da medida provisória em lei é decidida separadamente
NEPEL
pelas duas casas do Congresso Nacional, atuando como iniciadora
a Câmara e revisora o Senado, sendo os trabalhos preparatórios
desempenhados por comissão mista de deputados e senadores.

O atual prazo para conversão da medida provisória em lei é


de sessenta dias, renovando-se automaticamente por igual perí-
odo. Ressaltamos a possibilidade de extensão do prazo quando
interposto recesso do Congresso Nacional, o que suspende a
contagem do prazo, assim como quando aprovada emenda parla-
mentar, evento ensejador da prorrogação da vigência da medida
provisória até que o presidente da República decida sobre a san-

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


ção ou veto.

2.5. Rejeição e reedição

Conforme analisa Humberto Bergman Ávila, a omissão do


Congresso na conversão de medida provisória em lei revela juízo
de irrelevância ou não urgência da matéria. Alerta o autor que os
pressupostos constitucionais só transitoriamente se incumbem ao
Poder Executivo, sendo o Congresso Nacional a autoridade legiti-
mada pela Constituição para confirmar ou não seu atendimento.
Esse raciocínio o leva a concluir que “se relevância e urgência
não houve, segundo a manifestação ou omissão do Congresso
Nacional, não pode o Poder Executivo reeditar a mesma medida
provisória, caso não seja alterada a situação que a embasou”.
(ÁVILA, 1997, p. 91).

Apesar de doutrinas como essa serem fartas logo após a pro-


mulgação da Constituição, um dos mais graves problemas sur-
gidos quando da vigência do texto original do artigo 62 foi o
da reedição de medidas provisórias, prática que aviltou o Poder
Legislativo com infindáveis medidas.

O paradigma sobre a matéria adveio do Parecer nº SR – 92,


da lavra do então consultor-geral da República Saulo Ramos. Na
opinião então manifesta, a não conversão em lei de medida pro- 227
NEPEL
visória, seja por decurso de prazo, seja por rejeição parlamentar,
“não possui eficácia extintiva das razões de necessidade, urgên-
cia e relevância que justificaram a edição da medida provisória,
sendo, por isso mesmo, insuficiente para inibir, em face da pró-
pria Constituição, o exercício dessa extraordinária competência
presidencial”. (RAMOS, 1989, p. 1084).

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº


293/DF, a qual teve como relator o ministro Celso de Mello, foi
decidido que a rejeição parlamentar do projeto de conversão
em lei de medida provisória “além de desconstituir-lhe ex tunc
a eficácia jurídica, opera uma outra relevante consequência de
ordem político-institucional, que consiste na impossibilidade de
o Presidente da República renovar esse ato quase legislativo, de
natureza cautelar”.

Os fundamentos e a conclusão desta ação de inconstitucio-


nalidade, contudo, parcamente representaram o entendimento
majoritário do Tribunal, o que pode ser constatado nas decisões
proferidas nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 295/DF,
1.135/DF, 1.397/DF, 1.516/RO e 1.610/DF.

A reedição de medidas provisórias, tanto rejeitadas quanto


não apreciadas no prazo constitucional pelo Congresso Nacio-
nal, tornou-se modo usual de governar, corroendo as atividades
legislativas rotineiras e subjugando o Poder Legislativo às pautas
determinadas pelo presidente da República.

Tal condição fez a reedição um dos principais alvos da pro-


posta de emenda à constituição que resultou na Emenda Consti-
tucional nº 32. Esta ampliou o prazo de conversão e estabeleceu
uma prorrogação automática, atenuando os problemas derivados
das constantes reedições, sem, entretanto, oferecer-lhe solução
definitiva.

O parágrafo 10º do atual artigo 62 prevê limite temporal ao


228 vedar a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provi-
NEPEL
sória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia
por decurso de prazo.

Essa medida, por certo, restringe as reedições; não obstante,


a extensão da vigência de medidas provisórias encontrou novo
abrigo em condição francamente duvidosa perante o disposto
na Constituição. Trata-se da revogação de medida provisória
com prazo de conversão não expirado com igual regramento na
medida revogadora.

O STF enfrentou a matéria na Ação Direta de Inconstitucionali-

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


dade nº 2.984/MC, a qual teve como relatora a ministra Ellen Gra-
cie. Nela, restou decidida a possibilidade de revogação de medida
provisória por ato superveniente, sem, contudo, elidir o processo
de conversão em lei da medida revogada:

1. Porque possui força de lei e eficácia imediata a


partir de sua publicação, a Medida Provisória não
pode ser “retirada” pelo Presidente da República
à apreciação do Congresso Nacional. Precedentes.
2. Como qualquer outro ato legislativo, a Medida
Provisória é passível de ab-rogação mediante
diploma de igual ou superior hierarquia. Prece-
dentes. 3. A revogação da MP por outra MP ape-
nas suspende a eficácia da norma ab-rogada,
que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste
para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada
a MP ab-rogante. 4. Conseqüentemente, o ato
revocatório não subtrai ao Congresso Nacional
o exame da matéria contida na MP revogada. 5.
O sistema instituído pela EC nº 32 leva à impos-
sibilidade – sob pena de fraude à Constituição
– de reedição da MP revogada, cuja matéria
somente poderá voltar a ser tratada por meio de
projeto de lei. (Julgamento 04/09/2003, publica-
ção 14/05/2004). 229
NEPEL
O entendimento expresso nessa decisão inibe novel expediente
concebido para prolongar a normatização presidencial e reforça
o propósito de resguardar em maior extensão as prerrogativas do
Congresso nacional.

2.6. Efeitos da medida provisória sobre o direito


anterior e a perda de eficácia

A medida provisória é passível de conter norma contrária ao


direito precedente, o que torna necessário analisar seus efeitos
no tempo.

Conforme analisa Joel de Menezes Niebuhr:

As normas prescritas em medida provisória só


reúnem capacidade de revogar legislação anterior
quando vertidas em texto de lei através do pro-
cedimento de conversão. Ou seja, somente são
capazes de revogar lei quando deixam de estar
previstas em medida provisória e passam a fazer
parte doutra lei, dado que assim convertidas pelo
Congresso Nacional. (NIEBUHR, 2001, p. 153).

Por si, a medida provisória apenas suspende a eficácia do


direito anterior a ela contrário, estando a vigência deste condicio-
nada à efetiva conversão da medida provisória em lei ordinária.

Sobrevindo conversão, a revogação do direito anterior efeti-


var-se-á ex tunc, alcançando desde a data de edição da medida
provisória, definindo-se por esta as relações jurídicas surgidas
desde então.

Contudo, não havendo conversão da medida provisória em lei,


seja pela rejeição expressa ou pelo decurso de prazo, colocam-se
230 em questão as relações jurídicas que foram por ela determinadas.
NEPEL
A Emenda Constitucional nº 32 disciplinou a matéria ao acres-
centar os parágrafos 3º e 11 ao artigo 62, elegendo o decreto
legislativo como ato normativo apto a disciplinar as relações jurí-
dicas decorrentes de medida provisória não convertida em lei por
rejeição ou decurso de prazo.

A edição da norma é facultada ao Congresso Nacional, razão


pela qual é ambígua a redação do parágrafo 3º ao determinar a
perda de eficácia desde a edição na hipótese de não conversão
em lei.

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


O cotejo dos parágrafos 3º e 11 indica situação diversa, qual
seja, a edição de decreto legislativo é condição à perda de eficácia
da medida provisória desde sua edição, posto que, caso contrário,
serão mantidas as relações jurídicas estabelecidas pela medida
provisória.

Clémerson Cléve observa sobre o tema:

Cumpre lembrar que os decretos legislativos, no


sistema constitucional brasileiro, incidem, em
princípio, sobre o campo substantivo de com-
petência exclusiva do Congresso Nacional. Ora,
a rejeição de medida provisória não parece ser
capaz de transformar a natureza jurídica da maté-
ria regulada. O que ocorre, sim, é a exigência de
que o Congresso discipline os efeitos da medida
legislativa excepcional caduca ou censurada.
(CLÉVE, 2011, p. 160).

A normativa contemporânea, na verdade, conferiu poten-


cial definitivo ao disciplinado por medida provisória, posto que
inverteu a necessidade de decreto legislativo, imprescindível não
para preservação dos efeitos da medida provisória mas para
deconstituí-los. 231
NEPEL
Tal condição revela a autoridade legisladora do Poder Exe-
cutivo, problemática tanto quando analisamos a separação de
poderes como quando consideramos o princípio democrático e
seu consectário pluralismo.

3. Conclusões

A Constituinte instalada em 1° de janeiro de 1987 reuniu gran-


des expectativas na superação da hegemonia do Poder Executivo
como passo indispensável à expansão da experiência democrática
no Brasil.
Os trabalhos constituintes confirmavam vigorosamente esse
propósito, como demonstram as reiteradas vitórias do sistema
parlamentarista.
Sem embargo, nos momentos derradeiros, o peso da auto-
ridade executiva triunfou em diversos aspectos, sendo um dos
principais a atribuição ao presidente da República de competência
para editar medidas provisórias.
A década de 1990 revelou quão ampla poderia ser essa com-
petência, mormente devido ao laconismo do artigo 62 em sua
versão original.
Foram editadas medidas provisórias sobre diversas matérias,
inclusive algumas cujo cabimento era inicialmente duvidoso, v. g.,
matéria reservada a lei complementar, direito processual penal e
direito tributário.
Como se não bastasse, a reedição foi admitida de forma ampla
pelo STF, acolhendo em larga escala a doutrina oferecida pela
Consultoria Geral da República.
O quadro de depreciação das atividades do Congresso Nacio-
nal tornou-se insustentável, desaguando na aprovação da Emenda
Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001.
232
NEPEL
O novo texto, à parte suas ambiguidades e contradições,
tornou mais claros alguns aspectos, particularmente quanto aos
limites materiais e às restrições à reedição.
Entretanto, a preservação de normas como o regime de
urgência automático e a necessidade de decreto legislativo para
perda de eficácia desde a edição demonstram quão ambivalentes
foram as mudanças, revelando a timidez com a qual assumimos
os postulados do Estado Democrático de Direito.

Referências

5. As prerrogativas legislativas do Congresso Nacional e as medidas provisórias


ÁVILA, Humberto Bergmann. Medida provisória na Constituição de
1988. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.

BARACHO JÚNIOR, José A. O. A interpretação dos direitos fundamen-


tais na Suprema Corte dos Estados Unidos e no Supremo Tribunal
Federal. In: SAMPAIO, José A. L. Jurisdição constitucional e direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

BARACHO JÚNIOR, José A. O.; LIMA, Eduardo. Medidas provisórias no


Brasil: origem, evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

CLÉVE, Clémerson M. Medidas provisórias. São Paulo: Thomson Reu-


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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4. ed,


São Paulo: Saraiva, 2001.

MENDES, Gilmar F.; BRANCO, Paulo G. G. Curso de direito constitu-


cional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

NASCIMENTO, Rogério J. B. S. Abuso do poder de legislar. Rio de


Janeiro: Lumen Iuris, 2004.

NIEBUHR, Joel de Menezes. O novo regime constitucional da medida


provisória. São Paulo: Dialética, 2001.

RAMOS, José S. Medidas provisórias, Parecer SR-92. DOU 23/06/89.


IOB, n. 9, 1989.
233
NEPEL
SANTOS, Brasilino. As medidas provisórias no direito comparado e no
Brasil. São Paulo: LTr, 1993.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

234
NEPEL
6
Democracia
Digital e o
Processo de
Abertura dos
Parlamentos
Rafael Cardoso Sampaio*

Isabele Batista Mitozo**

* Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor do Departamento de


Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Programa de Pós-graduação
em Ciência Política (UFPR) e do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (UFPR).
** Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e Mestre em Comunicação
pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de Comunicação – Jornalismo da Univer-
sidade Federal do Maranhão (UFMA, campus Imperatriz), e dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação da UFMA e em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal
da Bahia.
1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, experimentamos as mais variadas e céle-


res mudanças proporcionadas pela utilização de mecanismos digi-
tais. Saltamos rapidamente de um ambiente midiático dominado
por relativamente poucas empresas – no qual o público assumia

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


uma posição essencialmente de espectador (mesmo que não pas-
sivo) das mensagens transmitidas – para uma ecologia midiática
complexa1, formada pelas organizações midiáticas tradicionais,
novas corporações baseadas em tecnologias digitais e um cidadão
hiperconectado, que usa as tecnologias de informação e comuni-
cação em praticamente todos os aspectos da sociabilidade.
De aspectos da vida individual, a exemplo de trabalho, finan-
ças pessoais, consumo, turismo, lazer, entretenimento, relações
fraternais e amorosas, a questões relacionadas à cidadania, como
o consumo de informações políticas, a demanda por políticas mais
transparentes e responsivas e a participação política em aspectos
digitais e presenciais da sociedade contemporânea, seja na forma
de manifestos ou passeatas nas ruas e nas redes sociais digitais,
todos os elementos da vida contemporânea parecem ser permea-
das pelas tecnologias digitais e online.
Naturalmente, toda essa transformação também tem efeito
sobre a nossa forma de se relacionar com o Estado e na maneira

1 Ver Chadwick (2013) para uma discussão sobre a história as revoluções tecno-
lógicas e sobre os sistemas midiáticos híbridos contemporâneos. 237
NEPEL
como ele se dispõe em relação aos cidadãos, pois estes indivíduos
passam a se utilizar de ferramentas digitais para demandar políti-
cas mais transparentes e responsivas, assim como pressionar por
maior influência sobre a tomada de decisão. A essas atitudes, as
instituições do Estado têm respondido com o desenvolvimento
de iniciativas para acolher essas demandas e se reconectarem aos
representados. Nesse sentido, o estudo do emprego de quaisquer
dispositivos, aplicações, ferramentas de tecnologia digital para
suplementar, reforçar ou corrigir aspectos e práticas políticas e
sociais do Estado e dos cidadãos, em prol do cultivo de valores
democráticos na comunidade política (GOMES, 2014) está no
âmbito do que se tem denominado como campo da Democracia
Digital (ou, e-Democracia).

Vale ressaltar, portanto, que se compreendem como práticas


de democracia digital aquelas que vão além da mera digitaliza-
ção de serviços públicos, tais como o pagamento de impostos,
chamadas práticas de governo eletrônico e que consistem na dis-
posição online de ações. Ações de e-Democracia contribuem para
o desenvolvimento de práticas democráticas melhores, como a
promoção de mais transparência das instituições, de engajamento
público junto à tomada de decisão, de accountability etc.

Os parlamentos, estando entre as instâncias mais importan-


tes em uma democracia, passam a desenvolver estratégias de
comunicação que incluem as plataformas digitais em suas rotinas.
Essas ferramentas, por ampliarem a visibilidade das atividades
legislativas, trazem à tona seu uso como uma possibilidade de
ligação entre o processo legislativo e os representados, a partir de
um maior engajamento dos indivíduos com o centro de decisão.
O desenvolvimento de iniciativas online pelos Legislativos tem
atraído as pesquisas na área de democracia digital, que abordam
desde questões envolvendo a expressão das funções dessas insti-
tuições ao provimento de mecanismos para abertura de sua pauta
238 para discussão por parte dos cidadãos.
NEPEL
O presente capítulo tem por objetivo apresentar uma visão
ampla acerca das relações entre democracia e tecnologia para
melhor compreensão das origens da discussão sobre democracia
digital, tendo como foco de aplicação a digitalização de ativida-
des dos parlamentos. Desse modo, discutem-se, primeiramente,
conceitos básicos dessa área de estudos e, em seguida, reflete-se
acerca da problemática que envolve a utilização da tecnologia
digital pelas instituições legislativas, especificamente, assim como
se apresentam exemplos desse desenvolvimento no Brasil e no
mundo. Tendo em vista o momento histórico vivido pela huma-
nidade pela pandemia de Covid-19, refletimos, ainda, sobre o
impacto que o uso das tecnologias digitais pelas casas de leis no
contexto de isolamento social poderá exercer no trabalho dessas
instituições daqui em diante.

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


2. Democracia Digital: histórico
das relações entre democracia e
tecnologia2

Nesta seção, busca-se, inicialmente, evidenciar que a ideia


de avanços democráticos pelo uso de tecnologias não se trata
de algo novo e nem absolutamente conectado a computadores
ou mesmo à internet. Posteriormente, apresentamos uma breve
visão do conceito de democracia digital institucional ligada à
oferta de iniciativas ou projetos concretos.
O discurso da e-democracia é basicamente composto por
uma ideia de “revolução” que será proporcionada ou mesmo
fomentada pelas tecnologias de comunicação e informação digi-

2 Esta seção se baseia em trabalhos anteriores do primeiro autor, nomeada-


mente na tese de doutorado “Orçamentos Participativos Digitais: um mapea-
mento mundial das experiências já realizadas e suas contribuições para e-par-
ticipação e e-democracia” (2014). E no artigo “Estado da arte da democracia
digital no Brasil: oferta e sobrevivência das iniciativas (1999-2016)” publicado
na Revista do Serviço Público, v. 70, 2019. 239
NEPEL
tais com destaque para a internet (COLEMAN, BRUMLER, 2009;
WRIGHT, 2012). Contudo, há um consenso geral de que cada
nova grande tecnologia de comunicação e informação traz con-
sigo esperanças de renovação democrática (CHADWICK, 2013).
Para Silva (2005), há quatro grandes momentos em que as
tecnologias levantaram um discurso sobre mudanças e revolu-
ções acerca da proximidade entre os indivíduos, das formas de
comunicação e, consequentemente, da democracia. Baseado
em Armand Mattelart e Juliet Musso, Silva identifica o primeiro
momento de entusiasmo como ligado a ferrovias e telégrafos.
Ambas as tecnologias eram vistas como elementos redentores
no século XIX, quando havia um sentimento de que as técnicas
teriam encurtado a distância e aumentado a troca de ideias e as
relações comerciais entre regiões longínquas, fomentando essa
possibilidade entre países. Em particular, o telégrafo foi visto
como uma nova forma de comunicação que envolveu grandes
predições políticas sobre sua capacidade de reunir todos os
homens em um “local” onde todos pudessem ver tudo que
estava sendo feito, ouvir tudo que era dito e mesmo julgar
aspectos das políticas. Para os mais otimistas, o telégrafo teria
em si potencial para trazer a paz mundial (ARTERTON, 1987;
GOMES, 2018; VAN DIJK, 2012).
Silva (2005) define o segundo momento de entusiasmo
como aquele relacionado à radiodifusão. Já no século XX, o
autor denota a popularização do rádio em torno da década de
20, que foi acompanhada de discursos sobre ampliação e inte-
gração das democracias de massa. O autor evidencia como as
retóricas acerca da internet também se aplicavam outrora em
grande medida ao rádio, como virtualidade, eliminação de fron-
teiras espaciais, comunicação sem mediadores e a possibilidade
de maior interatividade entre os cidadãos. Também se destaca
o papel do rádio amador que surgira nessa época como uma
ferramenta para comunicação interpessoal, que poderia fomen-
240 tar as relações entre cidadãos e mesmo permitir uma comunica-
NEPEL
ção direta com os governos. Uma melhor discussão acerca dos
potenciais e das falhas do rádio em termos democráticos pode
ser vista em outros trabalhos (ANTTIROIKO, 2003; ARTERTON,
1987; BUCHSTEIN, 1997; COLEMAN, 1999).
O terceiro momento, para Silva (2005), se centra na televisão
e, posteriormente, na TV a cabo. A televisão no geral e a TV a
cabo em especial também foram acompanhadas por discursos a
respeito de seus potenciais para a democracia. A TV, assim como
o rádio, foi vista como um meio que tornaria possível a troca de
extensos volumes de informação que permitiriam aos cidadãos
defenderem seus pontos de vista individualmente ou em grupos,
o que potenciaria sua capacidade de participar na formação da
agenda pública e na determinação de políticas públicas. Aqui,
em especial, os potenciais benéficos ou não da televisão para a

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


democracia eram centrados em sua capacidade de influenciar
o interesse por política (ou a apatia), as conversações acerca de
política, o engajamento cívico, o aumento do número de pon-
tos de vista e mesmo a integração social. Também, em especial,
com o surgimento e a importância da propaganda política na
TV (spots políticos) e dos debates entre candidatos, há bastante
atenção sobre os efeitos da TV sobre eleitores (BUCHSTEIN,
1997; COLEMAN, BLUMLER, 2009; STREET, 1997; VEDEL, 2006).
Por sua vez, a TV a cabo foi basicamente a base dos primeiros
projetos e iniciativas de democracia eletrônica, sendo somada a
outras tecnologias, como telefone, televisão e computadores,
para se pensar as primeiras tentativas de maior interatividade
e trocas entre cidadãos separados geograficamente e entre
cidadãos e governantes. Neste caso, foi a introdução da TV a
cabo no início dos anos 70 com as promessas de conteúdo mais
diverso, informação localizada e canais de retorno junto das pri-
meiras levas de computadores mais acessíveis ao público, que
acenderam as esperanças dos teledemocratas (HAGEN, 1997).
Essas novas tecnologias trouxeram novas visões e preocupa-
ções políticas que foram enquadradas após as diferentes crises 241
NEPEL
sociais experimentadas pelas democracias ao fim da década de
60 (ARTERTON, 1987; HAGEN, 1997; STREET, 1997; VAN DIJK,
2012; VEDEL, 2006).
O quarto momento para Silva (2005), nas hipérboles a res-
peito dos potenciais das “novas” tecnologias sobre processos
políticos e democráticos, é o atual em que vivemos com o
advento e rápida expansão da internet e dos computadores.
Buschtein (1997), Coleman (1999) e Street (1997) chegam a
denotar que mesmo outras tecnologias foram tomadas como
tais em seus momentos, como cartas, a prensa (possibilidade de
imprimir cartazes em grande quantidade) e a imprensa. Mas a
conclusão é, decerto, clara. Cada nova tecnologia foi envolta em
um discurso utópico e revolucionário, no qual o novo meio de
comunicação apresentaria “novos” potenciais para incrementar
processos políticos, empoderar os cidadãos, tornar governos
mais accountables e fortalecer as democracias representativas3.
Tudo que geralmente acredita-se, no senso comum, estar conec-
tado exclusivamente à internet.
Para Coleman e Blumler (COLEMAN, 1999; COLEMAN; BLU-
MLER, 2009) e Street (1997), essas defesas estariam, essencial-
mente, ligadas a visões determinísticas da tecnologia e sobre
uma suposição de que as democracias apresentariam problemas
que poderiam ser resolvidos através de soluções técnicas (tech-
nological fix). Ou seja, que a técnica molda completamente a
mensagem, ou, ainda, o comportamento dos indivíduos e que,
por si, teria impactos sociais de grandes proporções.
Aqui, optamos por uma visão sociotécnica. Entende-se que
as tecnologias não têm potencialidades autônomas. Portanto,
é pouco profícuo afirmar que a internet, ou qualquer outra
tecnologia, é inerentemente “participativa” ou mesmo “demo-
crática”. Não é a tecnologia per se que determina a política ou

3 Ver também os resgates históricos promovidos por Chadwick (2013), Gomes


242 (2018), Vedel (2016).
NEPEL
sequer a comunicação política, uma vez que as relações políticas
entre indivíduos e entre cidadãos e Estado estão envoltas em
complexos sistemas de valores culturais, econômicos, políticos
que moldam a estrutura da comunicação política e o modo
como utilizamos estas técnicas. Ademais, as ferramentas são
geralmente desenhadas para fins específicos com determina-
das expectativas em mente, porém não esquecendo que vários
atores ou interesses em competição podem agir durante o
desenvolvimento desses instrumentos. Ou seja, diversas forças
sociais agem nos processos de construção de tais ferramentas,
assim como também na forma como elas são compreendidas
e utilizadas.

Por outro lado, não se pode falar de um grau zero de impacto,

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


o que pode tender a levar para um determinismo social4. As
tecnologias não são neutras. Como veículos de comunicação,
as diferentes tecnologias apresentam características e especifici-
dades que determinam a maneira como são utilizadas, ou seja,
podem estruturar, guiar ou incentivar determinadas escolhas
e preferências. Logo, são fatores que podem determinar, em
maior ou menor medida, a forma da utilização (ou mesmo a não
utilização) de certos instrumentos. Ao satisfazer certas necessi-
dades, a existência de uma tecnologia pode mudar o comporta-
mento humano. Além disso, novas oportunidades podem surgir
em conjunto com novas técnicas de comunicação. Em resumo,
processos políticos moldam as tecnologias e as tecnologias mol-
dam a política (ARTERTON, 1987; COLEMAN; BLUMLER, 2009;
GRÖNLUND, 2003; STREET 1997; WRIGHT, 2012).

4 O determinismo social (ou socioeconômico) tende a minimizar a importância e


o impacto das tecnologias, enfatizando as questões sociológicas, a influência
econômica e/ou o peso das instituições. O determinismo socioeconômico fa-
lha em distinguir entre tecnologias e usos por diferentes seções da sociedade.
É inegável que interesses econômicos dominantes na sociedade e nos gover-
nos contribuam para determinar a direção da pesquisa e do desenvolvimento
tecnológicos, mas não é razoável afirmar que esta é a única influência no
desenvolvimento das tecnologias. 243
NEPEL
Tendo esse histórico em vista, rejeitamos a hipótese de
que a democracia digital está umbilicalmente ligada às visões
das últimas décadas sobre a crise da democracia e/ou crise da
democracia representativa e a visão do surgimento das tecno-
logias de comunicação e informação digitais como possíveis
soluções aos diversos déficits democráticos. Em vez disso,
apostamos em uma visão mais propositiva e pragmática da
democracia digital. Dessa maneira, de forma ampla, compre-
endemos que e-Democracia denota o emprego adequado de
tecnologias de informação e comunicação para suplementar,
reforçar ou incrementar valores democráticos, que sejam vis-
tos, em determinado momento histórico, como oportunos para
a ampliação da influência da esfera civil em regimes democrá-
ticos modernos.
Nesse sentido, conforme Gomes (2011), apostamos em uma
visão mais ampla da e-democracia, que valoriza diferentes valo-
res políticos que sejam importantes aos Estados democráticos,
dentre os quais: liberdade de expressão, opinião e participação,
accountability, transparência, incremento de pluralismo, da repre-
sentação das minorias e uma consolidação de direitos de grupos
ou indivíduos mais vulneráveis na sociedade (GOMES, 2011, p.
28). Ou seja, mais que enfatizar este ou aquele bem democrático
ou modelo de democracia, busca-se compreender a complexi-
dade das democracias e a necessidade de iniciativas e meios que
fortaleçam de maneira ampla a cidadania e, em consequência, a
soberania popular.
Assim, para serem democraticamente relevantes, Gomes
defende que as iniciativas de e-democracia devem promover, ao
menos, um dos três princípios abaixo: 1 – fortalecimento da capa-
cidade concorrencial da cidadania (aumentar e/ou consolidar quo-
tas relevantes do poder do cidadão em relação a outras instâncias
na disputa da produção de decisão política, sendo, geralmente,
promovido através da transparência ou participação política);
244 2 – consolidar e reforçar uma sociedade de direitos (assegurar
NEPEL
que minorias políticas e setores vulneráveis da sociedade tenham
acesso à justiça); 3 – promover o aumento da diversidade de
agentes e agendas na discussão pública e nas instâncias de deci-
são política, aumentando instrumentos, meios e oportunidades
para que essas minorias se representem ou sejam representadas
nas decisões políticas (GOMES, 2011, p. 29-30).

Não obstante tal definição ampliada, os estudos sobre demo-


cracia digital não podem se perder no aspecto exclusivamente
normativo. Afinal, da mesma maneira que o conceito ou mesmo
a ideia de e-democracia tem que se confrontar [...] com pro-
blemas relacionados ao design institucional que dá forma ao
Estado, também a noção de e-democracia precisa ser confron-
tada com questões relativas aos projetos que a materializam.

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


(GOMES, 2011, p. 2).

Logo, “iniciativas [de democracia digital] são projetos ou ideias


que articulam ferramentas, dispositivos e aplicativos para realizar
determinadas funções dedicadas a resolver problemas ou alcançar
propósitos específicos” (GOMES, 2011, p. 28).

Nessa lógica, uma iniciativa de democracia digital pode tanto


se materializar em ferramentas palpáveis, como aplicativos,
websites, blogs, fóruns, wikis e afins desenvolvidos especifi-
camente para os objetivos do promotor da democracia digital
quanto pode, de fato, consistir em projetos que busquem avan-
çar os valores democráticos através de instrumentos digitais já
existentes, como o uso de sites de redes sociais online para par-
ticipação política, por exemplo. Note-se que, propositadamente,
estamos olhando para uma parte específica da democracia digi-
tal, deixando assim, de fora, o que Gomes (2018) trata como
“sociedade online”, o que inclui movimentos sociais online e
formas de protesto e ações coletivas digitais (i.e., ciberativismo),
a exemplo das manifestações de junho de 2015. Portanto, nosso
foco está, especialmente, em iniciativas top-down de e-demo- 245
NEPEL
cracia (COLEMAN; BLUMLER, 2009), que tendem a ser criadas
ou fomentadas por atores estatais5.

Nas últimas duas décadas, os parlamentos se tornaram desen-


volvedores de iniciativas digitais, com o intuito de estabelecerem
um processo de abertura que inspirasse maior credibilidade e
confiança nessas instituições, constantemente abaladas, assim
como reforçarem, de certo modo, a legitimidade da represen-
tação praticada por elas. Desse modo, ações decorrentes do
aumento do ceticismo dos cidadãos em relação aos poderes
públicos têm conduzido a um investimento crescente na expres-
são de valores democráticos pelos legislativos, tais como trans-
parência e participação. Esses e outros pontos são discutidos na
seção seguinte.

3. O Parlamento na era digital

É notável o quanto os Legislativos têm tentado se estabelecer


enquanto instituições públicas no ambiente digital. No Brasil, por
exemplo, essa transformação se expressa na crescente formação
de equipes técnicas dentro dessas casas, que, por sua vez, têm
desenvolvido cada vez mais ferramentas. Todavia, ao passo que
se observam as mudanças que a digitalização tem trazido a essas
instituições representativas, deve-se perceber que desafios ainda
cerceiam um melhor aproveitamento democrático das platafor-
mas online para o trabalho parlamentar, a fim de que possam
dinamizar suas funções por meio dessas tecnologias (BRAGA;
MITOZO; TADRA, 2016).

Entre conceitos e práticas, desenvolveu-se numerosa literatura


em torno de como os parlamentos têm lançado mão de recur-

5 Neste capítulo, iremos nos focar em iniciativas de e-democracia oferecidas


pelos parlamentos. Para uma noção do estado da arte das iniciativas ofertadas
246 pelo estado brasileiro, ver Sampaio et al (2019).
NEPEL
sos online em suas atividades cotidianas. A primeira abordagem
mais sistemática dessas práticas acontece a partir do final dos
anos 1990, quando há o primeiro pico de publicações na área
de e-Parlamento. Nesse conjunto, deve-se destacar a volumosa
literatura britânica, com seu marco inicial no trabalho de Cole-
man, Taylor e Van de Donk (1999), que reflete de forma pio-
neira acerca de como os parlamentos poderiam se “modernizar”
a partir da adoção de recursos digitais para se reconectar com
os constituintes. A referida obra se inspira nos primeiros passos
dados pelo Parlamento Britânico nessa direção, com a formação
de uma Comissão de Modernização para o desenvolvimento de
recursos de comunicação, transparência e engajamento público
por meio de seu website.
Desse modo, os anos 2000 são inaugurados por um campo

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


de estudos em e-Parlamento em formação, que, naquele
momento, tem como abordagem principal as ferramentas mais
utilizadas à época pelos legislativos, os websites, tendo como
foco o tipo de informação disponibilizado por esses meios
(NORRIS, 2001; KIES; MENDEZ; SCHMITTER; TRECHSEL, 2004).
Devido, sobretudo, à escassez de iniciativas online provenien-
tes dos parlamentos, esse é um momento dedicado, essencial-
mente, a reflexões teóricas acerca das inovações que a internet
proporcionou a essas instituições (WARD; GIBSON; LUSOLI,
2005; LESTON-BANDEIRA, 2007).
Posteriormente, a partir da segunda década do século XXI,
outras reflexões e análises empíricas foram realizadas, à medida
que os parlamentos foram desenvolvendo mecanismos digitais.
Dentre elas, podem-se mencionar análises acerca do desenvol-
vimento de mecanismos para a promoção de transparência
(MALESKY; SCHULER; TRAN, 2012), iniciativas de engajamento
público, permitindo a construção colaborativa de propostas
(PERNA; BRAGA, 2011; FARIA, 2012; OPENING PARLIAMENT,
2012; MITOZO, 2013, 2018; AITAMURTO; CHEN, 2017; RAN-
CHORDÁS; VOERMANS, 2017), análises tendo por foco a função 247
NEPEL
educativa dos parlamentos a partir do uso do digital (ROMA-
NELLI, 2015; BRAGA; MITOZO; TADRA 2016), mecanismos para
e-Petições (MACINTOSH; ADAMS; WHYTE; JOHNSTON, 2008;
LESTON-BANDEIRA, 2019), entre outros tópicos. Percebe-se, por-
tanto, que os Legislativos têm seguido em suas práticas diversas
vertentes de iniciativas de democracia digital identificadas pela
literatura.
Nesse sentido, é curioso perceber que, embora iniciativas
online para parlamentos na América Latina tenham surgido
anteriormente àquelas de países desenvolvidos, a produção
sobre essas experiências esperou até meados dos anos 2000
para abordar essas transformações, o que ocorreu, sobretudo,
a partir do desenvolvimento de mecanismos online para e-Parti-
cipação, ou seja, a abertura de oportunidades para que os cida-
dãos participem de forma mais ativa no processo decisório par-
lamentar (MORENO; TRAVESSO, 2009; SUÁREZ ANTÓN; WELP,
2019). Esse, sem dúvida, é um dos valores democráticos que têm
recebido maior atenção por parte dos estudos e se concentrou
notavelmente no caso brasileiro (PERNA; BRAGA, 2011; FARIA,
2012; MITOZO, 2013, 2018; BERNARDES; LESTON-BANDEIRA,
2016).
Outros estudos têm se preocupado em abordar a expressão
por meio de ferramentas online, como os websites, das funções
desempenhadas pelos parlamentos. Leston-Bandeira (2009) apre-
senta quatro desses papéis. O primeiro deles, legislação, pode
ser caracterizado como a disposição de informações acerca de
projetos de lei em tramitação e aprovados, emendas, requerimen-
tos etc. Já a segunda função, legitimação, é compreendida pela
referida pesquisadora como todo conteúdo disposto a fim de ofe-
recer aos cidadãos um entendimento global do funcionamento
de um parlamento. A representação, terceiro papel apresentado
pela referida pesquisadora, consiste na disposição de informações
acerca dos próprios parlamentares. Por fim, a função de fisca-
248 lização é expressa pela existência de mecanismos para controle
NEPEL
do Executivo, como comissões de inquérito e demais dispositivos
para accountability horizontal.
Braga, Mitozo, Tadra (2016) acrescentam que, atualmente,
há mais duas funções a serem adicionadas à lista acima apre-
sentada: educação e participação. Elas abrangeriam, respectiva-
mente, iniciativas para participação política desenvolvidas pelos
parlamentos para se conectar aos cidadãos, e aquelas “destina-
das a dinamizar o papel educativo do parlamento, [...] por meio
de programas voltados para o corpo de funcionários e assesso-
res da casa ou para a população em geral” (BRAGA; MITOZO;
TADRA, 2016, p. 798).
A partir dos resultados dessas análises, pode-se perceber que
os valores mais destacados pelas instituições legislativas não se

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


constituem como unanimidade. Da mesma forma que diferentes
culturas políticas destacam alguns valores democráticos em detri-
mento de outros, observa-se que, enquanto os parlamentos euro-
peus se preocupam mais com a publicidade da vertente legislativa
de seu trabalho (ou seja, disposição de informações acerca do
processo de construção das leis), os brasileiros voltam maior aten-
ção a legitimação e representação (que compreendem, respecti-
vamente, apresentação do papel e da estrutura do parlamento, e
provimento de informações acerca dos próprios parlamentares).
Essa descoberta reforça, além da alta personalização da política, a
maior preocupação com a promoção de iniciativas de participação
política no caso do Brasil, por exemplo, o que leva Braga, Mitozo,
Tadra (2016) a tornar a participação uma nova função, conforme
apresentado acima, independente, enquanto Leston-Bandeira
(2009) a considerara como estratégia de reforço da função de
legitimidade.
Os benefícios das tecnologias digitais para o cotidiano dos
parlamentos enquanto instituições do Estado são inegáveis (LES-
TON-BANDEIRA, 2007; FARIA, 2012), especialmente no que se
refere às possibilidades de transparência política, sobre o que a 249
NEPEL
literatura tem apontado algumas particularidades importantes. A
primeira delas se refere ao aperfeiçoamento do desempenho dos
parlamentares, visto que tendem a ficar mais atentos ao olhar e
à avaliação dos cidadãos (MALESKY; SCHULER; TRAN, 2012). A
segunda é decorrente da primeira e está atrelada à contribuição
da transparência legislativa para o fortalecimento da legitimidade
democrática (LODGE, 1994). A terceira compreende um expressivo
aumento da confiança cidadã na elaboração de políticas públicas
(BALL, 2009) e a quarta, por sua vez, relaciona-se ao empodera-
mento dos cidadãos, “a fim de reforçar o controle democrático e
restabelecer a confiança dos constituintes” (PAPALOI; GOUSCOS,
2013, p. 174).
Além da promoção de maior transparência, a amplitude de
finalidades para as quais os parlamentos têm elaborado projetos
digitais acaba por suscitar um movimento denominado recen-
temente de Parlamento Aberto, conceito que engloba a maior
acessibilidade que essas instituições podem permitir a seus pro-
cessos, garantindo aos cidadãos acesso à informação pública,
transparência, possibilidade de engajamento com a pauta legis-
lativa, a fim de realizarem uma melhor accountability das ações
legislativas (FARIA; REHBEIN, 2016). Esse movimento segue a
linha dos governos, que, coordenados por ações de instituições
como a Open Government Partnership (OGP), passaram a investir
em ações mais completas a fim de garantir essa maior abertura
aos representados (DUTIL; HOWARD; LANGFORD; ROY, 2008).
Nesse contexto, surge a Opening Parliament, instituição não-
-governamental internacional que elaborou a Declaração de
Abertura dos Parlamentos. O documento apresenta, no sentido
de alcançarem a completude apontada por Faria e Rehbein (2016)
acima, quatro objetivos principais: 1) promover uma cultura de
abertura, pela disposição de informação; 2) tornar a informação
disponível transparente; 3) facilitar o acesso à informação; 4)
assegurar a comunicação eletrônica da informação parlamentar
250 (OPENING PARLIAMENT, 2012).
NEPEL
A partir do alcance desses objetivos pelas instituições
legislativas, seria possível desenvolver ações de engajamento
público, reforçando seu caráter representativo. Desse modo,
a participação política online promovida pelos parlamentos
seria a segunda etapa a ser cumprida por eles em busca de se
reconectarem aos representados. Podem-se identificar diver-
sas modalidades de abertura participativa atualmente, como
consultas públicas (como é o caso do Portal e-Cidadania6, do
Senado Federal), e-Petições (os sistemas do Parlamento Esco-
cês7 e do Parlamento britânico em parceria com o Governo8),
fóruns de discussão (conforme dispostos no Portal e-Democra-
cia, da Câmara dos Deputados) etc.
Nesse âmbito, o Brasil é um celeiro de projetos. O Portal
e-Democracia, citado acima, projeto da Câmara dos Deputados

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


há mais de 10 anos no ar, é uma plataforma que dispõe de
diversos canais a fim de proporcionar variadas formas aos cida-
dãos para se conectar com o processo de construção de leis.
Em 2013, houve uma inovação na Câmara Federal que parece
ser o maior avanço que uma casa legislativa já fez no sentido
de institucionalizar a inovação democrática por meio do digi-
tal: a criação de um órgão para desenvolvimento de tecnologia
dentro do próprio legislativo, LabHacker. Além de gerenciar o
Portal e-Democracia, esse laboratório de inovação é responsável
atualmente por vários projetos de desenvolvimento digital, para
acesso a informação, transparência, dados abertos e participa-
ção política.
O Senado Federal também possui, desde 2013, uma ferramenta
digital para engajamento público: o Portal e-Cidadania. A partir
desse portal, pode-se participar por meio de três canais: 1) Ideia
legislativa (que consiste na proposição de um tema para tornar-

6 https://www12.senado.leg.br/ecidadania/
7 https://www.parliament.scot/gettinginvolved/petitions/index.aspx
8 https://petition.parliament.uk/ 251
NEPEL
-se lei); 2) Evento interativo (audiências públicas, debates, sabati-
nas etc. abertos ao público); ou 3) Consultas Públicas (enquetes
acerca de projetos em tramitação na casa). Recentemente, essa
ferramenta tem atraído maior atenção, tendo em vista as disputas
travadas por meio de suas votações, especialmente no período
eleitoral de 2018 e nas querelas ideológicas entre conservadores
fundamentalistas e progressistas (CHAGAS et al., 2019).

Além do desenvolvimento do Legislativo brasileiro em nível


nacional, devem-se destacar, ainda, as iniciativas de algumas
Assembleias Legislativas. De acordo com o levantamento rea-
lizado em Braga, Mitozo, Tadra (2016), pode-se aferir que
algumas casas legislativas em âmbito estadual têm investido
em ferramentas para abertura participativa. Dentre elas, vale
ressaltar o caso da Assembleia Legislativa de Minas Gerais,
que, em 2016, superava o Senado Federal quanto à promoção
de mecanismos online para participação política. Por outro
lado, as Assembleias de Acre e Sergipe quase não apresen-
tavam canais em seus websites com a finalidade de engajar o
público.

O investimento nesse tipo de elaboração participativa de leis


tem sido nomeado pela literatura como crowdlaw (NOVECK,
2018; AITAMURTO; CHEN, 2017), uma aplicação específica
aos estudos legislativos do termo crowdsourcing, termo que é
uma adaptação da prática de mercado que consiste na “busca
eficiente pela solução de problemas coletivamente, por meio
de plataformas digitais” (MITOZO, 2018). De acordo com Aita-
murto e Chen (2017), a realização de crowdlaw contribui para a
criação de valores em três dimensões: democrática (garantindo
inclusão social no processo decisório); epistêmica (trazendo
maior educação acerca do processo legislativo aos cidadãos); e
econômica (reduzindo alguns custos procedimentais, uma vez
que os cidadãos seriam as melhores fontes de informação acerca
252 de sua própria condição social).
NEPEL
Desse modo, percebe-se que:

Os procedimentos legislativos pelo mundo pro-


varam se adaptar ao desenvolvimento de socie-
dades, negócios e tecnologias. A emergência de
tecnologias de participação, crowdsourcing e
novas formas de ‘ação conectada’ impõem, entre-
tanto, novos desafios aos processos legislativos
tradicionais. Além disso, tecnologias de participa-
ção deveriam lembrar aos legisladores que novos
procedimentos legislativos poderiam ser mais
inclusivos. (RANCHORDÁS; VOERMANS, 2017, p.
5, tradução nossa).

Com a promoção de maior acesso a informação pública, trans-

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


parência e participação política, abre-se, portanto, a possibilidade
de promover accountability, atividade facilitada pela utilização
do digital nesse processo. Ações de “prestação de contas” sobre
o trabalho legislativo, ou seja, a disposição de informações que
permitam aos cidadãos acessar dados sobre as casas de leis e
fiscalizá-las, completariam o ciclo de abertura dos parlamentos,
reforçando a credibilidade no trabalho dessas instituições repre-
sentativas.

A partir dessa breve discussão, pode-se concluir que um


parlamento que criou websites e digitalizou algumas de suas
informações não é necessariamente um parlamento aberto, ao
que voltamos ao nosso conceito inicial de Democracia Digital: o
desenvolvimento de ferramentas, aplicações, tecnologias para
reforçar valores democráticos e reconectar os representados ao
campo de representação.

Paralelamente a esse investimento institucional, todavia, há


um enorme receio por parte dos representantes em relação a uma
abertura das casas pelo meio digital, o que poderia suscitar ânsias
de uma democracia direta por parte do público e, consequente- 253
NEPEL
mente, a dispensabilidade de sua função enquanto mandatários
(PERNA; BRAGA, 2011; FARIA, 2012). Essa leitura defeituosa da
utilização do digital traz como consequência um distanciamento
dos parlamentos em relação ao real objetivo dessa abertura por
meio da Internet: o reforço de valores democráticos, e não a des-
truição das instituições e do modelo representativo de democracia,
conforme reforçam os estudos em democracia digital (COLEMAN;
BLUMLER, 2009; CHADWICK, 2013; GOMES, 2018; VAN DIJK,
2000; WRIGHT, 2012).
Nesse sentido, não se deve esquecer que os parlamentos são
corpos hierárquicos, o que significa dizer que sua multiplicidade
de atores interfere no modo e no tempo da tomada de decisão.
Logo, as dinâmicas internas são fatores importantes para o desen-
volvimento de ferramentas, assim como há um atraso normal
entre as decisões em prol do desenvolvimento de mais democra-
cia digital e o surgimento de novas tecnologias e estratégias nesse
processo de negociação sobre receios e riscos da adoção dessas
estratégias.
Uma das questões suscitadas recentemente nesse rol de novas
tecnologias e utilizações institucionais do digital é uma espécie de
robotização do trabalho legislativo, isto é, a utilização de robôs e
inteligência artificial pelos parlamentos a fim de ampliar a intera-
ção entre parlamentares e constituintes, tendo em vista a agenda
quase sempre indisponível daqueles primeiros agentes. De acordo
com Faria (2020), a utilização de chatbots para esse tipo de inte-
ração se torna atraente por reduzir custos de gestão da comuni-
cação parlamentar, tanto financeiro quanto de tempo dedicado a
gestões de crise ocasionadas pela gerência de posts e comentários
que deturpam falas e ações dos representantes (o que se tem
denominado como desinformação, fake news etc.). Por outro
lado, a implementação desse tipo de recurso digital exige amplo
trabalho prévio, pois não se baseia apenas em tecnologia, mas
deve considerar diferenças culturais, regionais, étnicas e linguísti-
254 cas, e requer, portanto, “cuidados relativos a vieses, preconceitos
NEPEL
e outras distorções que possam gerar problemas de comunicação
com certos grupos ou minorias” (FARIA, 2020, p.7), a fim de que
não se torne mais um problema à gestão da interação entre par-
lamentares e cidadãos.
Essa etapa de digitalização, no entanto, acabou um pouco
adormecida devido à emergência da pandemia de Covid-19,
dando espaço a outra agenda. Nesse contexto, parlamentos no
mundo inteiro passaram a implantar rapidamente medidas para
trabalho remoto, tanto dos consultores quanto dos legisladores,
de modo que muitos desenvolveram os chamados Sistemas de
Deliberação Remota (SDRs). O Congresso Nacional brasileiro foi
um dos primeiros parlamentos nacionais a adotar ferramentas
digitais para votação, a partir da aprovação de dispositivos legais
para legitimar o processo que passaria a ser conduzido no dia

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


seguinte à declaração de alerta nacional por conta da nova virose.
Esses sistemas acabaram por trazer os parlamentares à função de
operadores diretos dos sistemas, a fim de garantir a idoneidade
dos processos de votação.
O caso brasileiro chama atenção nesse momento, pois a
Câmara dos Deputados e o Senado Federal, embora tenham se
utilizado de mecanismos distintos, adotaram projetos já existen-
tes nas casas, adaptando-os aos novos moldes, de deliberação
remota (BRASIL, 2020; MITOZO, 2020b). A partir desses siste-
mas, aprovados por meio de resoluções de março de 20209 em
ambas as instâncias do Legislativo nacional, os parlamentares
passaram a manejar aplicativos que exigiam cadastro de dispo-
sitivos e criação de ID própria para o uso de login e senha para
acessar o chamado Plenário Virtual. As sessões seriam realizadas
por meio de versão corporativa do aplicativo Zoom Meetings

9 A Câmara dos Deputados instaurou o “Plenário Virtual” a partir da Resolução


nº 14/2020, regulamentada por meio do Ato da Mesa nº 123/2020, de 17
de março de 2020. O Senado Federal, por sua vez, aprovou a utilização do
“Sistema Deliberativo Remoto” por meio do Ato da Comissão Diretora nº
07/2020 e da Instrução Normativa da Secretaria-Geral da Mesa nº 13/2020,
ambos os documentos datados de 18 de março do referido ano. 255
NEPEL
para as duas casas. Para as votações, entretanto, a Câmara dos
Deputados utilizou o Infoleg – iniciativa própria existente desde
2013 para acesso à informação sobre a instituição – e o Senado,
uma extensão online do próprio sistema de votação da casa,
tecnologias que exigiam confirmação biométrica por meio de
foto do rosto do representante para registro do voto. Essa rápida
adaptação com alto teor de sofisticação é um ponto positivo
que mostra que a formação de equipes digitais qualificadas nas
duas instâncias desse parlamento nacional trouxe celeridade a
soluções em situações emergenciais.
Seguindo o exemplo do Congresso, todas as Assembleias
Legislativas estaduais desenvolveram estratégias de trabalho
remoto, mesmo que de forma heterogênea quanto a período
de utilização, modus operandi, tipos de mecanismos (próprios
– como em Bahia, Pará, Minas Gerais e Paraná –, replicados de
uma das casas nacionais – o caso da AL de Goiás –, ou até pelo
serviço WhatsApp – como aconteceu no Mato Grosso do Sul).
Quanto à celeridade de adoção de sistemas para deliberação à
distância, as Assembleias de Ceará e Amapá foram as duas pri-
meiras a adotar esse tipo de operação, na mesma semana que o
Congresso Nacional iniciou as sessões remotas. Por outro lado,
cinco casas adotaram esse tipo de procedimento apenas em abril:
Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do
Sul e Sergipe. Dentre os casos curiosos, deve-se mencionar, pri-
meiramente, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Essa casa
de leis adotou o trabalho parlamentar em modo remoto apenas
de 25 de março ao fim do mês de abril, quando retomou as ses-
sões plenárias presenciais (MITOZO, 2020a). O segundo deles é
a ALMG, que sempre apresentou bom desempenho quanto a
digitalização, conforme comentado mais acima, mas, apesar de
ter utilizado mecanismo digital robusto, não adotou de forma
plena as sessões remotas, tendo preferido a modalidade híbrida,
que também não foi sustentada durante todo o período crítico de
256 pandemia naquele estado.
NEPEL
Em âmbito internacional, esse processo de deliberação
remota foi igualmente variado, desde o uso de ferramentas
digitais, como aplicativos, até ferramentas analógicas, como
mensagem de texto offline (SMS) e ligação telefônica, como
foi o caso da Romênia e da República Democrática do Congo
(que também admitia votos pela ferramenta WhatsApp), para
garantir a continuidade do trabalho dos parlamentares, consi-
derando medidas de distanciamento social. Dos 57 parlamentos
nacionais que lançaram mão de alguma tecnologia para mediar
suas sessões plenárias em regime remoto ou híbrido e suas
respectivas votações10, devem-se destacar os sete países que
adotaram software ou aplicativo para o voto, mecanismos mais
digitalmente sofisticados e robustos quanto a segurança, trans-
parência e auditabilidade do processo: Brasil, Albânia, Argen-

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


tina, Bélgica, Letônia, Ucrânia e Venezuela. No entanto, apenas
dois desses países aprovaram dispositivos legais no sentido de
regular o uso desses sistemas – Brasil e Argentina –, juntamente
com países que aprovaram leis, mas se utilizaram parcialmente
ou de forma alguma de um Sistema de Deliberação Remota,
como foi o caso da Finlândia, que não permitiu votações remo-
tas (MITOZO, 2020b).

Em suma, percebe-se que os parlamentos têm se esforçado


para se utilizarem dos recursos digitais como um aliado de seu
trabalho cotidiano e também para se tornarem instituições mais
abertas aos representados. Passos fundamentais ainda precisam
ser dados, como maior conscientização do corpo político acerca
dos benefícios e instrução acerca dos cuidados com o ambiente
digital, deficiência que pode, em alguma medida, ser sanada a
partir das dinâmicas impostas a essas instituições pelos aconte-

10 Identificados e classificados por Mitozo (2020b), a partir do relatório par-


cial da Inter-Parliamentary Union, publicado em março de 2020 e atu-
alizado até junho do mesmo ano, disponível em: https://www.ipu.org/
country-compilation-parliamentary-responses-pandemic (Último acesso
em 20 junho de 2020). 257
NEPEL
cimentos decorrentes da crise mundial de 2020, conforme argu-
mentado acima.

4. Conclusões

Como já elucidado no segundo tópico, a discussão sobre o


potencial de tecnologias de informação e comunicação para a
democracia é antiga e não se esgota no momento atual. Cons-
tata-se que se construiu uma literatura extremamente otimista no
início dos anos 2000, a qual vivencia um momento mais pessi-
mista no final da década de 2020, algo que pode novamente se
inverter com os ventos de outras mudanças societais e tecnológi-
cas vindouras.

Reconhecido isso, é possível afirmar que o campo da demo-


cracia digital tem se expandido em termos acadêmicos e de
experiências no Brasil e pelo mundo (GOMES, 2018; SAMPAIO;
BRAGA; CARLOMAGNO; MARIOTO; ALISON; BORGES, 2019).
Em relação aos parlamentos, houve avanços significativos,
sobretudo no que concerne a transparência, de modo similar aos
governos, especialmente em países que aprovaram dispositivos
legais para garantir o acesso à informação pública, como foi o
caso do Brasil a partir da Lei de Acesso à Informação (INSTITUTO
NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM DEMOCRACIA DIGI-
TAL, 2019).

Todavia, o que se pensava que seria a próxima evolução das


casas legislativas em uma perspectiva digital, a robotização das
ferramentas (FARIA, 2020), foi frustrada por outros tipos de
avanços, provocados pela pandemia de Covid-19 e pelo distan-
ciamento social – 1) a utilização das ferramentas digitais pelos
próprios parlamentares – e o reforço de uma atividade já cres-
258 cente nos últimos anos – 2) o forte incremento da demanda pela
NEPEL
sociedade por dados transparentes de qualidade para a tomada
de decisão política.
O primeiro ponto é um passo especialmente importante, uma
vez que leva ao desenvolvimento de maior literacia dos represen-
tantes acerca da utilização das ferramentas (antes realizada quase
exclusivamente pelo corpo técnico das casas). Particularmente,
consideramos que essa transformação pode desenvolver entre os
legisladores um menor receio em relação à adoção de recursos
digitais em suas atividades e, consequentemente, contribuir para
que eles vejam essa digitalização das casas de leis como um meca-
nismo de reforço à própria representação que exercem e não uma
perda de poder, como usualmente ocorre.
O segundo ponto não é algo novo, conforme denotado ao

6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos


longo do texto. Todavia, em termos práticos, a pandemia de
Covid-19 parece ter acelerado significativamente o processo,
uma vez que a demanda por dados atualizados sobre a crise
sanitária foi algo visível na sociedade. Centros de inteligência
para o monitoramento e controle da doença passaram a ser
valorizados, assim como dados (preferencialmente abertos) atu-
alizados de maneira ágil e de fácil consumo por cidadãos ou por
entidades da sociedade civil, incluindo o jornalismo profissional.
Da mesma maneira, a ausência de plataformas digitais robustas
sobre a Covid-19 é motivo para governos serem taxados como
ultrapassados ou mesmo opacos. Enquanto a pandemia é evi-
dentemente um momento particular da história da humanidade,
não é impossível se supor que possa ter efeitos positivos nos
parlamentos em termos de oferta de ferramentas e iniciativas de
democracia digital tanto pelo corpo técnico quanto pelos legis-
ladores em si, ou mesmo quanto a maior abertura para aceitar
projetos da própria sociedade.
A capacidade de desenvolver ferramentas digitais não neces-
sariamente leva as instituições legislativas a passarem por uma
rápida transição para o estabelecimento de processos online 259
NEPEL
nessas casas. Devem-se considerar, antes de mais nada, as hie-
rarquias próprias dos parlamentos, que implicam um tempo
também particular para a tomada de decisão, sobretudo quando
ela impacta essas estruturas internas, uma vez que essas institui-
ções são espaços de decisão coletiva (LESTON-BANDEIRA, 2012).
Desse modo, os processos nessas casas não conseguem alcançar
a velocidade de desenvolvimento de novas tecnologias capazes de
agilizar seu trabalho.

Do mesmo modo, deve-se reconhecer que a adoção de recur-


sos digitais e o desenvolvimento de mecanismos nessas novas
plataformas não necessariamente vão levar a mudanças em
alguns processos básicos, ou a melhorias na relação de represen-
tação. Todavia, não se podem dirimir os benefícios que o uso das
tecnologias digitais pode trazer à referida relação: menor custo,
maior alcance e, principalmente, a oportunidade de educar os
cidadãos acerca das estruturas, funções e atividades legislativas.
Esses objetivos são peças fundamentais para o reforço daquilo
que as iniciativas ditas de democracia digital devem almejar: os
próprios valores desse regime político.

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6. Democracia Digital e o Processo de Abertura dos Parlamentos

265
NEPEL
7 Processo
legislativo
orçamentário
sob histórico
e recorrente
risco de
arbitrariedade
Élida Graziane Pinto*

*Professora de Finanças Públicas na EAESP-FGV. Procuradora do Ministério Público de Contas


do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administra-
tivo pela UFMG.
1. INTRODUÇÃO

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


O presente estudo explora algumas fragilidades do processo
legislativo orçamentário brasileiro que, ao lhe extremarem o
caráter formal-protocolar, abrem espaço considerável, durante a
execução do orçamento, para desvio de finalidade e apropriação
privada do interesse público.
Serão aqui objeto de rápida e perfunctória análise: (1) o baixo
nível de aderência das leis orçamentárias ao planejamento setorial
das políticas públicas; (2) a insuficiente avaliação de impacto nas
metas fiscais por ocasião das propostas legislativas e concessão,
ampliação ou prorrogação de renúncias fiscais e (3) a persistência
das falhas que ensejaram as recomendações corretivas arroladas
no relatório final1 da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
dos Anões do Orçamento, de 1994.
A hipótese que se busca testar ao longo do texto é a de que o
processo meramente protocolar na elaboração das leis de plano
plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual (doravante
PPA, LDO e LOA) é capturado como espaço de experimentação
voluntariosa de brechas e esvaziamento hermenêutico em padrão
vicioso de patrimonialismo decisório.

1 Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/84896 (acesso em


13/03/2020) 269
NEPEL
Assim, faltam ao ciclo orçamentário brasileiro maiores coerên-
cia e maturação decisória que David Stark e Laszlo Bruszt (1998)
chamam de “responsabilidade política estendida”.
O descumprimento dos deveres de estimar adequadamente
metas e impactos e de avaliar programas (por meio da men-
suração de resultados em face dos seus custos no contraste
entre planejado e realizado) explica porque soa como norma
programática o §10 acrescido ao art. 165 da Constituição pela
Emenda 100, de 26 de junho de 2019: “A administração tem
o dever de executar as programações orçamentárias, adotando
os meios e as medidas necessários, com o propósito de garan-
tir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.” (BRASIL,
1988).
Ao invés de equalizarem as fortes tensões entre vinculação e
discricionariedade, de um lado, e Legislativo e Executivo, de outro,
as leis do ciclo orçamentário convivem com considerável nível de
mitigação da sua força normativa.
A impositividade primordialmente das emendas parlamentares
individuais e de bancada revela a baixa intensidade do princípio da
legalidade em matéria orçamentária. Os comandos trazidos pela
Emenda Constitucional nº 86, de 2015, bem como pelas Emendas
nº 100, 102 e 105, essas de 2019, denotam esforço de retomada
de espaço decisório pelo Legislativo.
Todavia, tais nichos residuais de impositividade orçamentá-
ria parlamentar revelam, a contrário senso, que todo o restante
escapa, em maior ou menor grau, à capacidade legislativa de fixar
limites legais para a ação do Executivo, dada a baixa coesão entre
planejamento e orçamento. Desse modo, persistem consideráveis
abusos de finalidade, por exemplo, no manejo das próprias emen-
das parlamentares impositivas, dos créditos adicionais suplemen-
tares, transferências, transposições e remanejamentos, bem como
nos decretos de contingenciamento.

270
NEPEL
O caráter trágico (SANTOS, 1987) de tal constatação reside no
fato de que, a despeito de parecer simples a ideia de impositivi-
dade orçamentária aderente ao planejamento no campo abstrato,
complexo é operacionalizá-la no mundo da vida em sociedade,
ainda mais na realidade brasileira tão suscetível a capturas patri-
monialistas.

É importante, contudo, assumir essa premissa, até para que


não se perca de vista o esforço pedagógico de devolver ao gestor

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


a responsabilidade inadiável de planejar e executar bem o enfren-
tamento dos problemas sociais e econômicos sob sua alçada. Por
outro lado, também é preciso devolver para a sociedade o quanto
lhe cabe de compreensão do caráter limitado e contingente das
escolhas democráticas feitas e executadas em seu nome, já que
não é possível resolver tudo, de uma vez só, ao mesmo tempo e
para todos.

Para cumprir o desiderato exploratório que ampara o escopo


deste ensaio, é que ele foi dividido em cinco capítulos, incluídas
presentes linhas introdutórias que fixam as balizas conceituais e
metodológicas.

Nos três capítulos seguintes, serão analisados – de forma


panorâmica e um tanto precária (haja vista os limites deste texto)
– a baixa aderência das leis orçamentárias ao planejamento seto-
rial das políticas públicas, a insuficiente estimativa de impacto nas
metas fiscais em relação às renúncias fiscais (a despeito do art. 14
da Lei de Responsabilidade Fiscal) e a recorrência das falhas que
deram ensejo às recomendações conclusivas do relatório final da
CPI dos Anões do Orçamento.

Em sede de considerações finais, será retomada a complexa


tensão entre vinculação e discricionariedade de que se ressente
o processo legislativo orçamentário no Brasil. As elevadas insta-
bilidade normativa e suscetibilidade a arbitrariedades decisórias
revela um cenário de experimentalismo voluntarioso e com baixo 271
NEPEL
nível de “responsabilidade política estendida” (STARK; BRUSZT,
1998).

2. Desapreço ao planejamento
setorial das políticas públicas no
ciclo orçamentário, a pretexto de
desvinculação total

Uma constatação óbvia (de resolução complexa, contudo) é


a de que, em regra, planeja-se mal e, por isso, gasta-se mal na
Administração Pública brasileira. Daí decorre que as políticas
públicas não entregam resultados qualitativamente compatí-
veis com o custo que elas impõem, direta ou indiretamente, à
sociedade.

Nesse contexto, a recorrente tese de desvinculação total


do orçamento público (contida, por exemplo, na Proposta de
Emenda à Constituição nº 188/2019) não passa de quimera. Aliás,
se existissem soluções rápidas e simples para problemas antigos e
complexos, elas já teriam sido aviadas...

Sem pautar a fragilidade do planejamento governamen-


tal, a agenda em prol de uma suposta “PEC da Liberdade
Orçamentária”2 apenas tende a majorar os riscos de ineficiência
alocativa e retrocesso patrimonialista com a ilusória tese de que
bastaria uma desvinculação total do orçamento público para
melhorar a qualidade do gasto público.

Falar em desvinculação total do orçamento público é, no


plano fático, mera promessa retórica de quem busca discricio-
nariedade desatrelada de metas objetivamente comprometidas
com o planejamento intertemporal das políticas públicas. Há, no

2 Tal como noticiado em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2018/11/26/


272 novo-governo-desenha-pec-da-liberdade-orcamentaria.ghtml
NEPEL
ideário propagandístico em prol de uma “base zero” para o ciclo
orçamentário brasileiro, espécie de engodo jurídico que oculta a
impossibilidade factual de se comprimir– em absoluto – gastos
com servidores, encargos da dívida pública e despesas previden-
ciárias, por exemplo.
Se a desvinculação total, mais cedo ou mais tarde, há de se
revelar praticamente impossível, a busca por discricionariedade
majorada no orçamento público só faz sentido se implicitamente

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


pretender incidir sobre as repartições federativas obrigatórias,
sobre as autonomias orçamentário-financeiras que lastreiam fis-
calmente o sistema de freios e contrapesos, sobre os pisos de
custeio da saúde e educação, sobre os fundos e sobre as desti-
nações que justificam a existência de determinados tributos. No
ordenamento constitucional brasileiro, vinculações a fins consti-
tucionais podem ser aprimoradas, mas não podem ser esvaziadas
ou preteridas.
Em qualquer caso, contudo, é preciso retomar a consciência
histórica de que liberdade decisória sem finalidades claras que
lhe justifiquem a existência tende, mais cedo ou mais tarde, a se
corromper em arbitrariedade. O risco absolutamente consistente
é de que o país abandone as vinculações orçamentárias para abrir
espaço para o puro e simples fisiologismo fiscal.
Assim como a febre é apenas um sintoma da doença, cuja(s)
causa(s) merece(m) investigação específica e atenta, a metástase
das políticas públicas brasileiras não pode ser atribuída nuclear-
mente ao estágio atual de rigidez orçamentária.
A vinculação orçamentária não está na origem estrutural do
adoecimento que causa concomitantemente corrupção e inefici-
ência na gestão dos escassos recursos públicos. O problema de
base reside em não se saber o que é prioridade legítima da ação
governamental, tampouco ter clareza da ordenação das escolhas
alocativas do Estado. Se não é possível resolver a pluralidade de
problemas de uma vez só para atender a todos, deveria haver 273
NEPEL
clareza sobre o que pode ser feito a cada vez, em favor de quem
e dentro de qual equação de custo-efetividade.

Mas infelizmente tal horizonte de aderência entre planeja-


mento e orçamento soa quimera no Brasil. Não se sabe coletiva-
mente o que fazer, porque não são conhecidos consistentemente
os problemas e, por conseguinte, não são eleitos quais conflitos
serão enfrentados e em qual sequência temporal, nem se delimita
quais insumos ou meios são considerados faticamente necessários
para tentar resolvê-los.

Não há avaliação adequada dos gastos públicos em sua série


histórica, nem mesmo monitoramento dos resultados e das falhas
das políticas públicas verificados anteriormente, de modo que
quase sempre se aceita como normal a trágica repetição dos erros
ao longo dos anos e décadas.

Uma ignorância histórica de tal monta enclausura a sociedade


em cenário de capturas cumulativas – sofregamente vívidas no
curto prazo – que perpassam o capitalismo de compadrio, reve-
lado nas múltiplas e conflituosas demandas por renúncias fiscais,
créditos subsidiados, emendas parlamentares, contratos adminis-
trativos direcionados, subvenções, auxílios etc. É como se só fosse
possível a gestão patrimonialista, porque não há reflexão e cor-
reção dos erros, porque o controle não é pedagógico, tampouco
retroalimenta o planejamento no ciclo da política pública.

Se a gestão pública não se ocupa do básico esforço de diag-


nosticar seriamente o rol de problemas que demandam resolução
estatal, ela não é capaz de confrontar reciprocamente suas pre-
tensões de prioridade.

Assim tudo parece caótico, tudo reclama qualquer solução,


tudo pode ser alvo de consultorias ou promessas milagrosas de
cura pelo mercado ou pelo terceiro setor, diante de um Estado
inepto e capturado não só pela cadeia produtiva de fornecedores
274
NEPEL
e variados tipos de intermediários, mas até mesmo por seus agen-
tes públicos insulados burocraticamente.

Diante de tais fatos, ressoa a pressão fiscal por redução do


tamanho do Estado brasileiro apenas às funções de polícia e jus-
tiça, em resposta que retrocede ao século XIX e que só agrava a
injusta equação fiscal da seletiva e unívoca contenção de despesas
primárias no âmbito da Emenda nº 95, de 2016.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


Em face desse conjunto de indagações antigas e ainda pen-
dentes de resolução, alguns caminhos analíticos cobram mudança
de postura interpretativa, a começar do próprio faz-de-conta que
encerra o planejamento estatal. Nenhuma promessa de aprimora-
mento da qualidade do gasto público será implementada, de fato,
sem que haja a centralidade do diagnóstico – sempre temporal e
territorialmente circunstanciado – dos problemas, cuja resolução
se busca priorizar no ciclo orçamentário.

Obviamente não há como se pensar em soluções sem se


conhecer em profundidade os problemas. Infelizmente, porém,
a praxe da maioria dos municípios brasileiros reside na contrata-
ção de consultorias contábeis e jurídicas que oferecem modelos
padronizados e genéricos de planejamento setorial e/ou orça-
mentário.

A existência de haver quem venda e quem compre planeja-


mento genérico e padronizado para fins meramente protocolares
na Administração Pública brasileira reclama ser reconhecida como
uma das causas centrais da frágil correlação entre orçamento e
planejamento nas políticas públicas.

As consultorias contábeis e jurídicas que vendem sistemas


informatizados com modelos padronizados, por exemplo, de
PPA, LDO e LOA, precisam ser questionadas do mesmo modo que
médicos têm sido demandados em juízo por oferecerem cirurgias
sem prévio diagnóstico exaustivo das condições clínicas de cada
paciente e sem cumprirem o dever de informação especializado 275
NEPEL
para fins de consentimento específico sobre as soluções contra-
tuais propostas. Esse, por sinal, é o forte entendimento do Supe-
rior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.540.580-DF, cuja
ementa é a seguinte:

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO


CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. RESPONSABILI-
DADE CIVIL DO MÉDICO POR INADIMPLEMENTO
DO DEVER DE INFORMAÇÃO. NECESSIDADE DE
ESPECIALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DE CON-
SENTIMENTO ESPECÍFICO. OFENSA AO DIREITO
À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO
SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL
CONFIGURADO. INADIMPLEMENTO CONTRA-
TUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. ÔNUS DA PROVA DO
MÉDICO.

[...] 2. É uma prestação de serviços especial a


relação existente entre médico e paciente, cujo
objeto engloba deveres anexos, de suma relevân-
cia, para além da intervenção técnica dirigida ao
tratamento da enfermidade, entre os quais está o
dever de informação.

3. O dever de informação é a obrigação que pos-


sui o médico de esclarecer o paciente sobre os
riscos do tratamento, suas vantagens e desvanta-
gens, as possíveis técnicas a serem empregadas,
bem como a revelação quanto aos prognósticos
e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando
tal informação possa afetá-lo psicologicamente,
ocasião em que a comunicação será feita a seu
representante legal.

276
NEPEL
4. O princípio da autonomia da vontade, ou auto-
determinação, com base constitucional e previsão
em diversos documentos internacionais, é fonte
do dever de informação e do correlato direito ao
consentimento livre e informado do paciente e
preconiza a valorização do sujeito de direito por
trás do paciente, enfatizando a sua capacidade
de se autogovernar, de fazer opções e de agir
segundo suas próprias deliberações.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


5. Haverá efetivo cumprimento do dever de
informação quando os esclarecimentos se rela-
cionarem especificamente ao caso do paciente,
não se mostrando suficiente a informação gené-
rica. Da mesma forma, para validar a informação
prestada, não pode o consentimento do paciente
ser genérico (blanket consent), necessitando ser
claramente individualizado.

6. O dever de informar é dever de conduta


decorrente da boa-fé objetiva e sua simples
inobservância caracteriza inadimplemento con-
tratual, fonte de responsabilidade civil per se. A
indenização, nesses casos, é devida pela priva-
ção sofrida pelo paciente em sua autodetermi-
nação, por lhe ter sido retirada a oportunidade
de ponderar os riscos e vantagens de deter-
minado tratamento, que, ao final, lhe causou
danos, que poderiam não ter sido causados,
caso não fosse realizado o procedimento, por
opção do paciente.

7. O ônus da prova quanto ao cumprimento do


dever de informar e obter o consentimento infor-
mado do paciente é do médico ou do hospital,
277
NEPEL
orientado pelo princípio da colaboração proces-
sual, em que cada parte deve contribuir com os
elementos probatórios que mais facilmente lhe
possam ser exigidos.

[...] 9. Inexistente legislação específica para regu-


lamentar o dever de informação, é o Código de
Defesa do Consumidor o diploma que desem-
penha essa função, tornando bastante rigorosos
deveres de informar com clareza, lealdade e exati-
dão (art. 6º, III, art. 8º, art. 9º).

10. Recurso especial provido, para reconhecer o


dano extrapatrimonial causado pelo inadimple-
mento do dever de informação.

Modelos genéricos e padronizados de PPA-LDO-LOA são


como cirurgias realizadas em abstrato, porquanto sem suficiente
informação prévia individualizada do paciente (aqui equiparado,
no o caso, à coletividade afetada pela política pública proposta
sem prévio diagnóstico circunstanciado). A sociedade não pode
permitir que haja, em seu nome, tal horizonte de “consentimento
em branco” (blanket consent), tal como avisara o precedente do
STJ acima citado.

Tecnicamente, a responsabilidade estrutural da atividade de


planejamento sequer pode ser terceirizada para consultorias, vez
que só é cabível a execução indireta naquilo que implicar “serviços
auxiliares, instrumentais ou acessórios”. Esse é o teor do artigo 3º,
inciso I e § 1º do Decreto 9.507/2018, que regulamentou a exe-
cução indireta (terceirização) no âmbito da Administração Pública
278 federal:
NEPEL
Art. 3º Não serão objeto de execução indireta na
administração pública federal direta, autárquica e
fundacional, os serviços:

I – que envolvam a tomada de decisão ou posicio-


namento institucional nas áreas de planejamento,
coordenação, supervisão e controle;

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


[...]

§ 1º Os serviços auxiliares, instrumentais ou


acessórios de que tratam os incisos do caput
poderão ser executados de forma indireta,
vedada a transferência de responsabilidade para
a realização de atos administrativos ou a tomada
de decisão para o contratado[...]. (BRASIL, 2018).

Assim como o profissional médico não pode promover trata-


mento genérico para seus pacientes, as consultorias contábeis e
jurídicas não podem vender modelos padronizados de planeja-
mento setorial e orçamentário, sob pena de nulidade absoluta
dessa terceirização e de responsabilidade extracontratual de tais
prestadores de serviço.
As consequências da frágil concepção terceirizada e pasteuri-
zada do planejamento estatal vão desde a abertura excessiva de
créditos adicionais suplementares e especiais, até a própria inefici-
ência da gestão pública que realiza gastos fúteis diante de tantos
vazios assistenciais em outras áreas prioritárias.
O aprimoramento democrático da concepção sobre qual é o
papel do Estado brasileiro (o que pressupõe diagnóstico circuns-
tanciado na realidade em que se insere) e sobre quais são suas
prioridades na consecução de políticas públicas é um dos maiores
desafios para o processo legislativo orçamentário. O público pre- 279
NEPEL
cisa ser feito em público, até porque diagnóstico de problemas e
prognóstico de possíveis soluções na Administração Pública pres-
supõe inafastavelmente participação popular, tal como exigido
pelo artigo 48, §1º, inciso I da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Diferentemente da agenda governamental que suscita a ideia
de uma suposta “PEC da Liberdade Orçamentária” ou da alcunha
“DDD” relativa à desvinculação, à desobrigação e à desindexação
para a PEC 188/2019, talvez seja chegada a hora de exigir majo-
radamente a vinculação orçamentária do gestor ao planejamento
que ele formula em diálogo com a sociedade. Para tanto, é preciso
retomar a imprescindibilidade do dever de diagnóstico específico
que se impõe tanto ao gestor, quanto a todas as consultorias que
ele contrata a título de “serviços auxiliares, instrumentais ou aces-
sórios”.
É preciso diagnóstico circunstanciado e individualizado de
cada ente político da federação em cada política pública, para que
a população possa – durante o processo legislativo que fomenta o
debate das leis do planejamento setorial e orçamentário – exercer
seu direito ao consentimento informado específico sobre o que
ela reputa democrática e republicanamente ser prioridade da ação
governamental.
Sem esse esforço estrutural, a informação genérica (“con-
sentimento em branco”, verdadeiro cheque em branco fiscal)
continuará a ser permissiva de soluções ineptas ou abusivas nos
instrumentos legais de planejamento protocolar, de onde se origi-
nam a má qualidade do gasto público posteriormente executado,
a corrupção e a inércia preguiçosa do controle que quase sempre
se orienta tardiamente para a punição dos delitos e improbidades
consumados.
São necessárias maiores e melhores informações (diagnóstico
circunstanciado) para que a população possa realizar o direito de
consentimento informado sobre as propostas de escolhas que
280 ordenarão as prioridades da ação governamental.
NEPEL
3. Insuficiente avaliação de impacto nas
metas fiscais para fins de concessão de
renúncias fiscais

Não bastasse a falta de aderência entre planejamento e orça-


mento, dada a própria insuficiência de diagnóstico de base na
origem de tais instrumentos, cabe retomar aqui um exemplo des-

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


tacado de descumprimento dos preceitos mais sensíveis da Lei de
Responsabilidade Fiscal, qual seja: o fomento estatal à iniciativa
privada por meio de renúncias fiscais.
A esse respeito, a revisão dos benefícios e incentivos tributários
pretendida pela Proposta de Emenda à Constituição nº 188/2019,
na forma do inciso XIV e do §10 a serem acrescidos ao art. 167,
merece debate:

Art. 167 São vedados:

XIV – a criação, ampliação ou renovação de


benefício ou incentivo de natureza tributária pela
União, se o montante anual correspondente
aos benefícios ou incentivos de natureza
tributária superar 2 p.p. (dois pontos percen-
tuais) do Produto Interno Bruto no demons-
trativo a que se refere o § 6° do art. 165 da
Constituição Federal.

[...]

§ 10 Incentivos ou benefícios de natureza


tributária, creditícia e financeira serão reavalia-
dos, no máximo, a cada quatro anos, obser-
vadas seguintes diretrizes: 281
NEPEL
I – análise da efetividade, proporcionalidade e
focalização;

II – combate às desigualdades regionais; e

III – publicidade do resultado das análises. (BRASIL,


2019, grifos nossos).

A imposição de limite máximo de repercussão fiscal (teto indivi-


dualizado para as renúncias fiscais) e de marco temporal (quadrie-
nal) para reavaliação das condições de concessão dos benefícios
tributários são medidas emergenciais de resgate do escopo do
art. 14 da Lei Complementar nº 101/2000. Mas por que a norma
vintenária não tem sido cumprida e demandaria reforço de norma
constitucional a lhe repetir o sentido?

Para responder tal pergunta, é preciso explorar – em caráter


mais amplo – a própria fragilidade do regime jurídico das hipóte-
ses em que a LRF demandara avaliação de impacto fiscal.

Em busca de responsabilidade na formulação e consecução de


políticas públicas, a avaliação prévia de impacto dos atos estatais
tem sido demandada na seara fiscal e, mais recentemente, na Lei
nº 13.874/2019, como medida de controle intertemporal da sua
consistência.

O desafio, contudo, é tirar do papel o comando abstrato e


implementar, ainda que paulatinamente, os instrumentos de
controle quanto a prazo de vigência, impacto nas metas fiscais,
medidas compensatórias e eventuais contrapartidas que condi-
cionaram a concessão das aludidas renúncias fiscais. Trata-se de
instituto que tem sofrido manejo abusivo exatamente porque
não tem sido cumprido o regime jurídico inscrito na LRF. Para
reforçar sua eficácia e conter as burlas, a Emenda 95/2016, a PEC
282 188/2019 e as Leis de Diretrizes Orçamentárias da União, relativas
NEPEL
aos exercícios financeiros de 2019 e 2020, tentaram fixar melhor
suas as balizas, sobretudo na seara dos limites temporais e mesmo
na sua repercussão fiscal global.

Sem que se saiba para quais fins são concedidas renúncias de


receitas, não se pode avaliar seus os custos e resultados em face
das balizas já inscritas ou mesmo das que têm sido propostas –
de lege ferenda – no ordenamento brasileiro. Mensurar e avaliar
impacto, medida compensatória e contrapartida dos gastos tri-

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


butários requer, primordialmente, clareza do que se almeja com
eles alcançar. Eis a fragilidade inaugural que precisa vir à tona no
regime jurídico dos aludidos benefícios e incentivos fiscais.

Avaliar impactos é calcular e antecipar racionalmente possíveis


repercussões e consequências de uma decisão, em esforço de
verificação ex ante da sua viabilidade e consistência.

Assim, é preciso associar a demanda por avaliação de impacto


à construção de responsabilidade compartilhada ao longo do ciclo
decisório das políticas públicas. Tal horizonte reclama extensão
temporal e qualitativa de instâncias de diálogo e controle, para
fins de monitoramento e avaliação da política pública.

Trata-se, pois, de constrangimentos institucionais, que, ao


cobrarem mais coerência e responsabilidade ex ante do gestor nas
etapas de formulação e implementação, tendem a retroalimentar
o processo com informações e instigações que permitiriam corre-
ções de rumo a cada etapa.

Esse, aliás, é o alcance da noção de responsabilidade política


estendida defendida por David Stark e Laszlo Bruszt (1998), para
quem a existência de vigilância permanente em relação à gestão
pública lhe obriga a ser mais coesa e coerente ao longo do tempo:

Por responsabilidade política estendida nos refe-


rimos à imbricação dos centros de tomada de
decisões em redes de instituições políticas autô- 283
NEPEL
nomas que limitam a arbitraridade dos gover-
nantes no poder. [...] Expondo as políticas a
maior vigilância, a responsabilidade política
estendida reduz a possibilidade de os exe-
cutivos cometerem enormes erros de cálculo
em políticas extremas e sem consideração
para com outros atores.  A responsabilidade
política estendida se diferencia [...] da simples
responsabilidade eleitoral porque, ao contrário do
caráter episódico desta última, ela é estendida no
tempo. Estendendo a responsabilidade como
um processo contínuo, em curso, ela reduz
as possibilidades de que o executivo possa ape-
lar para a “crise” como tentativa de legitimar a
expansão de sua autoridade eleitoral “delegada”.

[...] A responsabilidade política estendida, por-


tanto, estendeu o horizonte temporal dos atores
estatais chave, corrigindo erros de cálculo de
antemão e os encorajando a pensar vários
passos à frente nos jogos estratégicos da
política de reformas. Como as deliberações
os forçaram a ser mais responsáveis ex ante,
as linhas de política pública resultantes já
estavam delineadas de forma coesa e coe-
rente, o que facilitou respostas rápidas e
adaptações responsáveis com a alteração
das circunstâncias. As deliberações estendidas
não tornaram as políticas mais “fracas”: elas
amenizaram as políticas, tornando-as mais durá-
veis por serem mais elásticas. A responsabilidade
política estendida não comprometeu os políticos:
tornou suas visões mais pragmáticas.

[...] A noção de responsabilidade estendida e seu


284 pragmatismo programático concomitante têm
NEPEL
implicações para a compreensão da coerência.
Na visão convencional, a coerência das políticas é
julgada pelas qualidades de consistência interna,
precisão e pelo caráter geral do desenho da
política. Quanto mais claro, preciso e implemen-
tado em sua totalidade é o projeto de reforma,
mais coerente será a linha de política resultante.
Alguns planejadores de políticas econômicas
começam a questionar esta visão, ao menos ao

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


atacar a noção de “sequência fixa”. No lugar da
metáfora arquitetônica de projeto, nestes casos
o desenho da reforma baseia-se em modelos da
cibernética, com loopings de retorno e auto-
correções construtivas. Como um programa
de computador sofisticado,  com uma série
de sub-rotinas “se... então” simultâneas, o
projetista monitora continuamente um vasto
conjunto de indicadores econômicos em um
processo de ajustamento contínuo dos prin-
cipais parâmetros do modelo. (STARK; BRUSZT,
1998, p. 14-19, grifos nossos).

Em tese, a avaliação de impacto internaliza a noção de “res-


ponsabilidade como um processo contínuo”, porque obriga o
gestor e, por vezes, até o legislador ao cálculo antecipado de
consequências, até para que haja controle sobre as repercussões
posteriormente verificadas na realidade.
Mas, no ordenamento brasileiro, tem havido uma falseada
aplicação desse instituto e, portanto, tem revelado baixa eficácia,
por exemplo, o dever de estimativa e/ou avaliação dos impactos
fiscais trazida pela Lei Complementar nº 101/2000, em seus arts.
7º, §2º, 9º, §5º, 14, 16, 30, §1º, II e 49, parágrafo único. Tais
dispositivos dizem respeito ao cálculo dos impactos orçamentários
e financeiros em passagens nucleares do regime de responsabili-
dade fiscal, a saber: (1) atuação do Banco Central, (2) renúncias
fiscais, (3) geração de despesas novas, (4) limites da dívida pública 285
NEPEL
e (5) a própria consolidação do balanço geral anual do Chefe do
Executivo. Seu inteiro teor pode ser lido a seguir:

Art. 7º [...]

§ 2o O impacto e o custo fiscal das operações


realizadas pelo Banco Central do Brasil serão
demonstrados trimestralmente, nos termos em
que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias da
União.

Art. 9º [...]

 § 5o No prazo de noventa dias após o encerramento


de cada semestre, o Banco Central do Brasil
apresentará, em reunião conjunta das comissões
temáticas pertinentes do Congresso Nacional,
avaliação do cumprimento dos objetivos e metas
das políticas monetária, creditícia e cambial,
evidenciando o impacto e o custo fiscal de suas
operações e os resultados demonstrados nos
balanços.

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou


benefício de natureza tributária da qual decorra
renúncia de receita deverá estar acompanhada
de estimativa do impacto orçamentário-
-financeiro no exercício em que deva iniciar
sua vigência e nos dois seguintes, atender ao
disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo
286 menos uma das seguintes condições: [...]
NEPEL
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento
de ação governamental que acarrete aumento da
despesa será acompanhado de:

I – estimativa do impacto orçamentário-


-financeiro no exercício em que deva entrar
em vigor e nos dois subsequentes;

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


Art. 30. No prazo de noventa dias após a publi-
cação desta Lei Complementar, o Presidente da
República submeterá ao:

I – Senado Federal: proposta de limites globais


para o montante da dívida consolidada da União,
Estados e Municípios, cumprindo o que estabelece
o inciso VI do art. 52 da Constituição, bem como
de limites e condições relativos aos incisos VII, VIII
e IX do mesmo artigo;

II – Congresso Nacional: projeto de lei que estabe-


leça limites para o montante da dívida mobiliária
federal a que se refere o inciso XIV do art. 48 da
Constituição, acompanhado da demonstração de
sua adequação aos limites fixados para a dívida
consolidada da União, atendido o disposto no
inciso I do § 1o deste artigo.

§ 1o As propostas referidas nos incisos I e II


do caput e suas alterações conterão:

I – demonstração de que os limites e condições


guardam coerência com as normas estabelecidas 287
NEPEL
nesta Lei Complementar e com os objetivos da
política fiscal;

II – estimativas do impacto da aplicação


dos limites a cada uma das três esferas de
governo;

III – razões de eventual proposição de limites dife-


renciados por esfera de governo;

IV – metodologia de apuração dos resultados pri-


mário e nominal.

[...]

Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do


Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo
o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no
órgão técnico responsável pela sua elaboração,
para consulta e apreciação pelos cidadãos e insti-
tuições da sociedade.

Parágrafo único. A prestação de contas da União


conterá demonstrativos do Tesouro Nacional e das
agências financeiras oficiais de fomento, incluído
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social, especificando os empréstimos e finan-
ciamentos concedidos com recursos oriundos dos
orçamentos fiscal e da seguridade social e, no
caso das agências financeiras, avaliação circuns-
tanciada do impacto fiscal de suas atividades
no exercício. (BRASIL, 2000, grifos nossos).
288
NEPEL
Em face das normas fiscais acima e mesmo à luz das regras
inseridas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(LINDB), pela Lei 13.655/2018, o maior desafio, pois, é o de
assegurar cumprimento ao dever de estimar impactos e avaliar
consequências das decisões estatais, haja vista a necessidade
de impor limites à discricionariedade administrativa por meio
do reforço da vinculação do gestor ao planejamento setorial
e orçamentário que orienta suas propostas de ação governa-

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


mental.
Falar em dever de estimar impactos fiscais e/ou regulatórios,
bem como falar em dever de avaliação de consequências, difi-
culdades reais e rotas alternativas é reconhecer, de saída, que
a escolha empreendida pelo gestor deve ser suficientemente
madura. Mas só se amadurece uma política pública se ela estiver
estruturada em indicadores e dados empíricos, que apontem
para um diagnóstico contextualizado do problema a ser resol-
vido e da própria solução aviada administrativamente.
Na seara fiscal, o cenário tem sido de falseamento para
fins, por exemplo, de concessão de renúncias fiscais ou gera-
ção de despesas novas em todos os entes da federação. Tal
irresponsabilidade fiscal repercute para a economia, de modo
que, na dimensão regulatória, o desafio ainda é maior diante
dos riscos envolvidos no planejamento de médio prazo para
quaisquer parcerias público-privadas ou mesmo quaisquer
estratégias de fomento, por meio de crédito subsidiado ou
renúncia fiscal.
Particularmente aqui a interface com o art. 5º da Lei da Liber-
dade Econômica (Lei 13.874/2019) revela-se deveras oportuna,
porque a repercussão da ação estatal sobre os agentes econômi-
cos tende a ser mal avaliada e, por vezes, puramente arbitrária,
com risco de severos prejuízos tanto para o mercado, quanto
para o erário e a sociedade, como um todo. O dispositivo em
comento prevê que:
289
NEPEL
Art. 5º As propostas de edição e de alteração de
atos normativos de interesse geral de agentes eco-
nômicos ou de usuários dos serviços prestados,
editadas por órgão ou entidade da administração
pública federal, incluídas autarquias e as funda-
ções públicas, serão precedidas da realização de
análise de impacto regulatório, que conterá
informações e dados sobre os possíveis efei-
tos do ato normativo para verificar a razoabi-
lidade do seu impacto econômico.

Parágrafo único.  Regulamento disporá sobre a


data de início da exigência de que trata o caput
deste artigo e sobre o conteúdo, a metodologia
da análise de impacto regulatório, os quesitos
mínimos a serem objeto de exame, as hipóte-
ses em que será obrigatória sua realização e
as hipóteses em que poderá ser dispensada.
(BRASIL, 2019, grifos nossos).

Certo é que a realidade fiscal brasileira desafia a LRF, uma


vez que os gestores formalmente declaram haver estimado
impactos, mas falta consistência às suas metodologias de
cálculo. A consequência prática de tal cenário é que a crise
econômica e orçamentário-financeira, desde 2015, tem se
agravado e trazido empobrecimento per capita para a popu-
lação brasileira.
Não é sem razão que a Emenda 95/2016 quis reforçar o sen-
tido e o alcance daqueles dispositivos da LC 101/2000, anterior-
mente citados, ao inserir no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias o seguinte art. 113:: “A proposição legislativa que
crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá
ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e
financeiro.” (BRASIL, 1988).

290
NEPEL
Descumprimentos reiterados à LRF não deixam de existir por-
que houve parcial constitucionalização das suas regras, a pretexto
de “Novo Regime Fiscal” inscrito no ADCT. Ora, o desafio é o de
superar soluções aparentemente fáceis e que, por isso mesmo,
geram perdas para o processo democrático ao infantilizar o ges-
tor, simplificar a dinâmica do controle e substituir o cidadão como
o principal agente de pressão por mudanças sociais em todas as
instâncias competentes.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


A necessidade de equalizar a tensão entre eficiência e segu-
rança jurídica é o mote que justifica as alterações à LINDB, mas
não se avança estruturalmente na noção de que é preciso majorar
a própria força normativa das leis que definem o fluxo decisório
das políticas públicas, impondo ao gestor maiores ônus argumen-
tativos em relação a mudanças de rota e ao não atingimento das
finalidades ali planejadas.
Mal se controlam impactos fiscais e/ou regulatórios, tampouco
se avaliam custos e resultados da ação governamental, na medida
em que ainda sobreleva a prevalência dos controles formais (basta
a declaração do ordenador de despesas?). O dilema é que a plu-
ralidade de controles de meios e formalidades tende, no médio
prazo, a conduzir o ciclo orçamentário a mais procedimentos for-
mais a serem controlados e mais instâncias de rechecagem. Por
outro lado, não se pode admitir que os fins justifiquem a adoção
de quaisquer meios, por mais legítimos que eles sejam.
Para além desse impasse, fato é que a indolência legiferante
leva o país à cômoda e ingênua crença de que bastam mais leis e
mais controles formais do seu cumprimento, igualmente formal,
para que tudo se resolva.
Desse modo e apenas para fins de paroxismo analítico, o cená-
rio pode ser reduzido à grosseira simplificação de que a gestão
pública brasileira atende aos controles formais – como se fora o
bastante – e oferta à sociedade um manejo de soluções fundadas
na metodologia primária da tentativa e erro.
291
NEPEL
É preciso adotar estratégias de comparação de indicadores
dentro e fora do país, atrair lições de sistemas bem-sucedidos para
replicá-las na medida do possível, bem como depurar práticas
de gestão reconhecidamente ineptas. Aprender corrigindo,
comparando; enfim, buscando melhor compreender para, só
então, propor soluções mais densas e, por óbvio, mais atentas à
realidade em que serão aplicadas.
Ora, tentar e errar sucessivas vezes, trafegando de um extremo
a outro no trato do interesse público e no manejo de recursos
sabidamente escassos não é uma questão que se possa acatar.
A coerência e a responsabilidade temporalmente estendida das
políticas públicas reclamam, ao menos, maior apreço pelo caráter
autovinculante do planejamento, pela execução aderente ao pla-
nejado e pelo controle reflexivo de como superar os erros, para
neles não se voltar a incorrer.
Vale lembrar que a opacidade que envolve o tema das renún-
cias de receitas no Brasil é problema que tem sido reiteradamente
diagnosticado como uma das causas da crise fiscal que assola o
país, no mínimo, desde 2014.
O que aparenta não ter limite é o que ainda não foi devida-
mente exposto a debate público e, portanto, ainda não foi sufi-
cientemente controlado. É preciso que a sociedade seja informada
exaustiva e abertamente sobre o fato de que renunciar receita
equivale a gastar, donde a justeza da locução “gasto tributário”3.
No ordenamento brasileiro, é um contundente dado de
realidade a falta de transparência e mesmo de controle acerca

3 O conceito de gasto tributário ou tax expenditure é relativamente recente.


Em 1967, Stanley S. Surrey, professor da Faculdade de Direito de Harvard e
então Secretário-Assistente do Departamento do Tesouro Americano, intro-
duziu tal concepção sobre a realização de gastos governamentais indireta-
mente pela via tributária. Desde então, o regime jurídico, a evidenciação nas
leis orçamentárias e o controle dos gastos tributários têm sido um desafio
contínuo para os EUA e os países membros da Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo a análise sobre suas balizas es-
292 truturais no Brasil ainda deveras incipiente.
NEPEL
das balizas mínimas de validade e dos resultados alcançados
com os diversos mecanismos de fomento ao mercado pela via
tributária. Indiscutivelmente, não se teria chegado a tamanho
impasse fiscal se as renúncias de receitas trafegassem por dentro
do orçamento público, ao invés de comporem meros demons-
trativos que são — formalmente — anexados às leis de diretrizes
orçamentárias e de orçamento anual, para fins de cumprimento
protocolar do artigo 165, §6º da Constituição e dos artigos 4º,

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


§2º, V e 5º, II da LRF.
Diante de tal escassez normativa e em busca de diretrizes estru-
turadas para o controle das renúncias de receitas, a Associação dos
Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) aprovou a
Resolução 6/20164. Eis um primeiro passo, mas ainda não se avan-
çou suficientemente em aspectos primários, como, por exemplo,
a pacificação de entendimento em torno de limites temporais de
vigência e a imposição de repercussão fiscal máxima para a conces-
são, majoração ou prorrogação dos incentivos fiscais.
Em editorial denominado “Sem fim, sem fins”5, o jornal Folha
de S. Paulo analisou a falta de balizas temporais, bem como reto-
mou6 pertinente auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União
(consolidada posteriormente no Acórdão 1270/2018-Plenário)
sobre a inexistência de monitoramento dos resultados alcançados
por mais da metade dos programas de subsídios e renúncias fis-
cais concedidos pelo governo federal.
A perpetuação e a falta de efetividade de tais instrumentos
tributários de fomento seletivo ao mercado merecem questiona-
mento não só para torná-los mais racionais, legítimos e transpa-

4 Disponível em: http://www.atricon.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Dire-


trizes-receita-e-ren%C3%BAncia-de-receita.pdf
5 Cujo endereço da sua divulgação eletrônica é http://www1.folha.uol.com.br/
opiniao/2018/01/1949004-sem-fim-sem-fins.shtml
6
Na seguinte notícia http://www1.folha.uol.com.br/
mercado/2018/01/1948680-governo-nao-controla-efetividade-53-
-dos-subsidios-de-renuncia-de-impostos.shtml 293
NEPEL
rentes, mas, sobretudo, porque é necessário e possível — em uma
interpretação sistêmica do ordenamento pátrio — extrair, desde
já, limites constitucionais e legais vigentes a serem respeitados.
No nível da União, por sinal, é extremamente oportuno situar
o inadiável debate sobre os limites temporais e fiscais às renúncias
de receitas no contexto da Emenda 95/2016. Apenas no âmbito
federal, tratamentos tributários discriminatórios (vez que é nuclear
ao conceito de renúncia de receita seu caráter não geral) alcança-
ram algo como 4% do PIB.
Uma cifra tão expressiva somente tem sido perenizada em
tempos de tamanho conflito distributivo no orçamento geral da
União porque, a seu favor, usualmente se invoca a tese de que
tais benefícios poderiam ser juridicamente mantidos indefinida-
mente por inércia, aguardando lei específica que os revogasse ou
que seria legítima a sua concessão por décadas a fio.
Obviamente esse entendimento surgiu há mais de três déca-
das, mas, desde 2000, tornou-se incompatível com as balizas
fixadas na Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso porque renúncias
de receitas só podem ser concedidas ou ampliadas por prazo
determinado e mediante o atendimento de condições absolu-
tamente objetivas quanto à comprovação de não afetação das
metas fiscais ou à suficiente adoção de medidas compensatórias
legalmente admitidas.
A regra geral do art. 14 da LRF determina que o prazo máximo
de vigência da renúncia de receita corresponde a três anos (exercí-
cio em que entrar em vigor e dois seguintes), conforme o próprio
prazo de vigência das metas fiscais sobre as quais houve avaliação
de impacto ou correspondente compensação. Quaisquer previ-
sões temporais mais largas de vigência, aditamentos de prazo ou
majorações de escopo da renúncia fiscal devem ser submetidos,
individualmente, à reavaliação e à renovação das condições legais
iniciais de validade que lhe autorizaram a existência.

294
NEPEL
Aqui vale reiterar, para que não haja dúvidas: trienalmente
deveriam ser exigidos teste de conformidade com as metas fiscais
e correspondente compensação do quanto essas foram afetadas
pelo gasto tributário.
Contudo, há imensa fragilidade na comprovação e/ou com-
pensação em comento, o que decorre do caráter meramente
protocolar que a maioria dos gestores públicos adota, em suas
metodologias de cálculo, para cumprir os ditames da LRF. São

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


engodos fiscais que sustentam o volume vertiginoso das renún-
cias de receitas, muito embora o processo legislativo orçamentário
deva anualmente aferir o regime jurídico do gasto tributário e seu
impacto nas metas fiscais, tanto por meio de anexo específico
da lei orçamentária, quanto em demonstrativo próprio da lei de
diretrizes orçamentárias.
A existência de renúncias fiscais concedidas por prazo inde-
terminado ou renovadas por décadas deve ser contrastada com
a vedação legal para que o Estado assuma despesas oriundas
de contratos administrativos por prazo indeterminado (a teor do
artigo 57, §3º da Lei 8.666/1993) ou que superem o teto fiscal
trazido pela Emenda 95/2016.
Para superar tamanha opacidade interpretativa, urge resgatar,
no próprio alcance prospectivo do “Novo Regime Fiscal”, a baliza
decorrente da vedação prevista no art. 109, §2º, inciso II do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias. Ora, se o desajuste
nas contas públicas resultar tão severo a ponto de já não se cum-
prir o limite global para a expansão das despesas primárias – inclu-
ídas ali as despesas obrigatórias e os pisos de custeio da saúde e
educação –, ficará vedada também “a concessão ou a ampliação
de incentivo ou benefício de natureza tributária”.
Mas não basta, no presente momento, esperar que o teto
global de despesas primárias da União seja ultrapassado para que
a restrição às renúncias de receitas se imponha desde já. Como
bem destacado no artigo 14 da LRF, caso se comprove terem sido
295
NEPEL
afetadas metas fiscais, a consequência imediata é a apresentação
válida e condicionante de medida compensatória, vez que apenas
durante sua vigência podem vigorar as renúncias concedidas.
Do ponto de vista prospectivo, diante do déficit primário con-
sistentemente registrado desde 2014 e previsto no projeto de lei
de diretrizes orçamentárias da União para o exercício financeiro
de 2021 para se repetir, no mínimo, até 2023, deveriam ser redo-
brados cuidados com a demonstração de não afetação das metas
fiscais ou mesmo deveria ser reforçado o rigor na avaliação das
medidas compensatórias apresentadas pela União para instituir,
majorar ou prorrogar renúncias fiscais.
No contexto em que as contas federais se encontram (o que se
estende à maioria dos Estados e Municípios), cabe indagar como
pode a União prosseguir aceleradamente com a instituição, majo-
ração e renovação de incentivos fiscais? No intuito de conter tal
expansão, a PEC 188/2019 pretende inserir o inciso XIV e o §10
no art. 167 da CR/1988, para fixar balizas de controle equivalentes
às demandadas pelas LDO’s de 2019 (arts. 21, 114 e 139 da Lei
13.707/2018) e 2020 (arts. 116, 117 e 138 da Lei 13.898/2019):

LDO/2019

Art. 21. O Projeto de Lei Orçamentária de 2019 e a


respectiva Lei poderão conter, em órgão orçamen-
tário específico, receitas de operações de crédito
e programações de despesas correntes primárias,
condicionadas à aprovação de projeto de lei de
créditos suplementares ou especiais por maioria
absoluta do Congresso Nacional, de acordo com
o inciso III do art. 167 da Constituição .

[...]

296
NEPEL
§ 3º O Chefe do Poder Executivo encaminhará ao
Congresso Nacional plano de revisão de des-
pesas e receitas, inclusive de incentivos ou
benefícios de natureza financeira, tributária
ou creditícia, para o período de 2019 a 2022,
acompanhado das correspondentes proposições
legislativas e das estimativas dos respectivos
impactos financeiros anuais.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


§ 4º O plano de que trata o § 3º e as correspondentes
proposições legislativas:

I – (VETADO);

II – (VETADO); e

III – no que tange às receitas:

a) priorizarão medidas voltadas à redução de


renúncia e ao aumento de receita, ao combate à
sonegação, à progressividade tributária e à recu-
peração de créditos tributários; e

b) estabelecerão, em relação aos benefícios


tributários:

1. prazo de vigência para cada benefício; e

2. cronograma de redução de cada benefício,


de modo que a renúncia total da receita, no

297
NEPEL
prazo de 10 (dez) anos, não ultrapasse 2%
(dois por cento) do produto interno bruto.

§ 5º (VETADO).

Art. 114. As proposições legislativas e as suas


emendas, conforme o art. 59 da Constituição,
que, direta ou indiretamente, importem ou
autorizem diminuição de receita ou aumento de
despesa da União, deverão estar acompanhadas
de estimativas desses efeitos no exercício em
que entrarem em vigor e nos dois exercícios
subsequentes, detalhando a memória de cálculo
respectiva e correspondente compensação para
efeito de adequação orçamentária e financeira, e
compatibilidade com as disposições constitucio-
nais e legais que regem a matéria.

§ 1º Os órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo


e Judiciário, o Ministério Público da União e a
Defensoria Pública da União encaminharão,
quando solicitados por Presidente de órgão
colegiado do Poder Legislativo, dispensada
deliberação expressa do colegiado, no prazo
máximo de sessenta dias, o impacto orçamentá-
rio e financeiro relativo à proposição legisla-
tiva, na forma de estimativa da diminuição de
receita ou do aumento de despesa, ou oferecerão
os subsídios técnicos para realizá-la.

[...]

298
NEPEL
§ 7º As disposições desta Lei aplicam-se inclusive
às proposições legislativas mencionadas no caput
em tramitação no Congresso Nacional.

§ 14. As proposições de autoria do Poder Exe-


cutivo que concedam ou ampliem benefícios
tributários deverão estar acompanhadas de
avaliação do Ministério da Fazenda quanto

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


ao mérito e objetivos pretendidos, bem como
da estimativa do impacto orçamentário e
financeiro, e de sua compensação, de acordo
com as condições previstas no  art. 14 da Lei
de Responsabilidade Fiscal.

§ 15. Considera-se atendida a compensação a que


se refere o caput nas seguintes situações:

I – demonstração pelo proponente de que a


renúncia foi considerada na estimativa de receita
da Lei Orçamentária de 2019, na forma do art. 12
da Lei de Responsabilidade Fiscal, e de que não
afetará as metas de resultados fiscais previstas
no Anexo IV ; ou

II – estar acompanhada de medidas de compensa-


ção, no período mencionado no caput, por meio
do aumento de receita, proveniente da elevação
de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majo-
ração ou criação de tributo ou contribuição.

§ 16. O impacto conjunto das proposições aprova-


das com base no § 12 não poderá ultrapassar um
centésimo por cento da receita corrente líquida
299
NEPEL
implícita na Lei Orçamentária do exercício em que
ocorreu a aprovação.

[...]

Art. 139. O Poder Executivo adotará providências


com vistas a:

I – elaborar metodologia de acompanha-


mento e avaliação dos benefícios tributários,
incluindo o cronograma e a periodicidade das
avaliações, com base em indicadores de efici-
ência, eficácia e efetividade; e

II – designar os órgãos responsáveis pela


supervisão, pelo acompanhamento e pela
avaliação dos resultados alcançados pelos
benefícios tributários. (BRASIL, 2018, grifos
nossos)

LDO/2020

Art. 116.  Somente será aprovado o projeto de


lei ou editada a medida provisória que institua ou
altere receita pública quando acompanhado da
correspondente demonstração da estimativa do
impacto na arrecadação, devidamente justificada.

§ 1º  As proposições de autoria do Poder


Executivo federal que concedam ou ampliem
benefícios tributários deverão estar acom-
panhadas de avaliação do Ministério da
300
NEPEL
Economia quanto ao mérito e aos objetivos
pretendidos, bem como da estimativa do
impacto orçamentário e financeiro, e de sua
compensação, de acordo com as condições
previstas no art. 14 da Lei Complementar nº
101, de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.

§ 2º  Deverão conter cláusula de vigência de,

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


no máximo, cinco anos, os projetos de lei
aprovados ou as medidas provisórias que:

I – vinculem receitas; ou

II – concedam, ampliem ou renovem benefí-


cios de natureza tributária.

§ 3º  A criação ou a alteração de tributos


de natureza vinculada será acompanhada
de demonstração, devidamente justificada,
de sua necessidade para oferecimento dos
serviços públicos ao contribuinte ou para
exercício de poder de polícia sobre a atividade
do sujeito passivo.

Art. 117.  O Presidente da República encaminhará


ao Congresso Nacional, em 2020, plano de revi-
são de benefícios tributários com previsão de
redução anual equivalente a cinco décimos
por cento do Produto Interno Bruto – PIB até
2022.

Art. 138.  O Poder Executivo federal adotará pro-


vidências com vistas a: 301
NEPEL
I – elaborar metodologia de acompanhamento
e avaliação dos benefícios tributários, finan-
ceiros e creditícios, com o cronograma e a
periodicidade das avaliações, com base em
indicadores de eficiência, eficácia e efetivi-
dade; e

II – designar os órgãos responsáveis pela


supervisão, pelo acompanhamento e
pela avaliação dos resultados alcançados
pelos benefícios tributários, financeiros e
creditícios. (BRASIL, 2019, grifos nossos).

O maior risco presente às contas públicas federais reside na


seletiva opção de conter apenas despesas primárias, enquanto se
mantém o fluxo histórico desordenado de expansão das renún-
cias de receitas. Cabe aqui, pois, fixar leitura integrada do citado
artigo 109, §2º, II do ADCT, com as balizas dadas pelo artigo 14
da LRF ao instituto.
A perenização das renúncias fiscais, de forma alheia ao
impacto intertemporal nas metas fiscais, sem medidas compen-
satórias e sem teste de efetividade sobre seus fins, talvez seja a
maior agenda de debates para a equidade do ajuste fiscal. Não há
como falar apenas em corte de despesas primárias, sem a revisão
da forma como se interpreta o regime jurídico das renúncias de
receitas.
Ou a Emenda 95/2016 baliza o risco iminente e prospectivo de
descumprimento do teto fiscal para conter essas renúncias fiscais
concedidas por décadas a fio, tal como já assinalado no art. 109,
§§2º e 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –
ADCT, ou simplesmente a sociedade deixará de pautar uma das
principais fontes de conflito distributivo no orçamento público
federal.

302
NEPEL
Oportuno retomar, de acordo com Wolfgang Streeck, que a
crise da dívida pública (em curso desde a década de 1970 em
diversos países de Welfare State) guarda correlação com a fuga
à tributação:

A que se deve, então, o crescimento da dívida


pública, quando este não tem correlação com um
aumento da mobilização democráticas das mas-

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


sas, mas, pelo contrário, com a viragem neoliberal
e com o retrocesso simultâneo da participação
política? Penso que a atual crise financeira dos
Estados constitui a concretização, nesta época,
de um problema de funcionamento do Estado
moderno, diagnosticado já no início do século
XX, e que reside no fato de a sua capacidade de
extrair de uma sociedade de proprietários privados
meios de que necessita para o cumprimento das
suas — crescentes — tarefas tender a ficar aquém
do necessário. Nesta perspectiva, o endivida-
mento público não se deve a despesas demasiado
elevadas, mas sim a receitas demasiado baixas,
resultantes do fato de a economia e a sociedade,
organizadas segundo o princípio individualista da
propriedade privada, restringirem a sua tributabili-
dade, ao mesmo tempo que exigem cada vez mais
ao Estado. (STREECK, 2013, p. 106).

Desvendar esse conflito distributivo no ciclo orçamentário


é evidenciar, cada vez mais, a fragilidade jurídica das metodo-
logias de cálculo que acompanham as regras que instituíram e
ampliaram as renúncias de receitas. Cabe agora à sociedade e aos
órgãos de controle mitigar tamanha frouxidão interpretativa com
a constatação de que a instituição de quaisquer gastos tributários,
por prazo indeterminado ou longínquo, fere as balizas normativas
da LRF e da própria Emenda 95, assim como perpetua ilegal e
inconstitucionalmente privilégio fiscal no orçamento público.
303
NEPEL
O desafio é o da equidade no ajuste fiscal e isso passa, por
óbvio, por exigir obediência aos já vigentes limites às renúncias
de receitas. O cenário foi duramente sintetizado pelo então rela-
tor do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2019 (PLN
2/2018), Senador Dalírio Beber, no Parecer 8/2018 da Comissão
Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO)7:

A dívida pública está sendo alimentada com gas-


tos que meramente se exaurem em si mesmos,
sem agregar valor, seja na forma de bens, seja na
de conhecimento. Estamos nos endividando para
pagar pessoal, benefícios e juros e manter isen-
ções tributárias. (BRASIL, 2018).

O relator do PLDO 2019 chegara a assumir a necessidade


de apresentar um “antídoto” à hipótese de ruptura da regra de
ouro, tal como proposta no seu artigo 21. A solução concebida
foi a de um plano de revisão das receitas e despesas, onde se
inseriria o escopo de redução das renúncias fiscais. Aqui se revela
extremamente oportuna a leitura do seguinte excerto do parecer
da CMO, com a devida vênia por sua extensão:

Estávamos diante de uma efetiva escolha de Sofia,


mas optamos pela menos traumática, no nosso
modo de ver. Como a pretensão do Governo
apenas prevê que vai demonstrar a insuficiência
financeira no projeto do orçamento, sendo que
os gastos correspondentes, que constarão como
condicionados, somente poderão ser executados
após o cumprimento do art. 167, inciso III, CF,
com a aprovação do crédito adicional específico
pelo Congresso Nacional, foi esse o caminho que
decidimos acolher.

7 Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegr
304 a?codteor=1676406&filename=PAR+1+CMO+%3D%3E+PLN+2/2018+CN
NEPEL
[...] Porém, e aqui é a demonstração de preo-
cupação com a questão e de oferecimento do
antídoto necessário, estamos adotando todas as
cautelas, para que, se ocorrer, seus efeitos sejam
os menos deletérios ao Erário e, por conseguinte,
à sociedade. Nessa linha, junto às regras objetivas
de redução de gastos contidas no Substitutivo,
estamos propondo que o Governo resultante das
urnas envie ao Congresso Nacional, até 31 março

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


de 2019 ou até a data do encaminhamento do
projeto de crédito adicional sobre a regra de
ouro, um plano de revisão de despesas e receitas,
incluindo todas renúncias e benefícios tributários,
a fim de que seja reavaliada sua necessidade, per-
tinência e eficácia, considerando-se os fins que
almejam alcançar.

Essa diretriz é motivada pelos extraordinários valo-


res que as renúncias fiscais alcançaram nos últi-
mos anos. Segundo informações divulgadas pela
Secretaria da Receita Federal do Brasil, constantes
inclusive deste PLDO, o montante atual, somente
na União, gira em torno de R$ 300 bilhões anuais,
o que representa algo como 20% da arrecadação
federal, ou 4% do o PIB. Tais percentuais seriam o
dobro da média mundial, o que constitui inequí-
voca distorção do sistema tributário.

A preservação das receitas públicas é princípio e


requisito da gestão fiscal responsável que ganha
maior relevância e importância em um contexto
de elevado déficit e descumprimento da regra de
ouro. Sabemos que a falta de rigorosa observância
do que dispõe a Lei de Responsabilidade Fiscal fez
com que o montante de benefícios tributários e
financeiros aumentasse muito nos últimos anos. 305
NEPEL
Não é factível, no entanto, imaginar que tal distor-
ção poderá ser eliminada de um golpe só, ou em
um passe de mágica. Tais problemas não foram
gerados em um único ano, e não serão todos
resolvidos no curto prazo. Mas é possível, e neces-
sário, começar o longo caminho para resolvê-los.
Por isso mesmo, o Substitutivo contempla que
o referido plano deva conduzir, em dez anos, à
redução pela metade das atuais renúncias fiscais,
como proporção do PIB.

Além disso, nenhuma nova renúncia poderá ser


criada em 2019, e as que expirarem só poderão
ser prorrogadas sob condição de redução dos
respectivos montantes. Assim, esta é uma orien-
tação no sentido de que não é apenas o cidadão
e alguns setores econômicos que devem contri-
buir com a sustentabilidade do País e suportar o
enorme peso de sua árdua recuperação. Essa é
uma responsabilidade de todos nós. A medida ora
construída tende a aumentar a arrecadação e, con-
sequentemente, em conjunto com o controle mais
rígido do gasto, reduzir ou zerar a necessidade de
contratação de novas dívidas. No médio e longo
prazos, as providências que estamos propondo
no Substitutivo, conjugadas com o aumento da
arrecadação em função do aumento do PIB, por
certo levam à redução, até a total eliminação, da
necessidade de realização de operações de crédito
para financiar gastos correntes.

[...] Pelo texto, o atual governo deverá enviar ao


Congresso, no segundo semestre, um plano de
redução de 10% dos incentivos fiscais em 2019.
A meta é diminuir esses benefícios para 2% do
306
NEPEL
PIB. Hoje eles somam 4% do PIB, algo próximo a
R$ 300 bilhões por ano. (BRASIL, 2018).

Eis o quadro que levou o Congresso a pautar a necessidade de


vedação de novas renúncias fiscais, admitida tão somente a pror-
rogação de incentivos tributários já existentes por, no máximo,
cinco anos, mesmo assim mediante redução paulatina para con-
tenção ao limite máximo global de 2% do PIB (art. 21 da LDO
2019).

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


A necessidade de rever o regime jurídico das renúncias de
receitas foi objeto de intenso e absolutamente relevante debate
no exame das contas anuais da Presidência da República de 2017
pelo Tribunal de Contas da União8. Persiste, contudo, desde a LRF,
a omissão quanto à indicação de limites temporais de vigência
(renúncia concedida por prazo indeterminado), limites globais de
repercussão fiscal e de avaliação qualitativa quanto aos seus resul-
tados e contrapartidas.
Falta até mesmo comprovar, como demandado no §3º do
art. 116 da LDO/2020, que o gasto tributário é efetivamente
necessário para o “oferecimento dos serviços públicos ao
contribuinte ou para exercício de poder de polícia sobre a
atividade do sujeito passivo”. (BRASIL, 2019).
Certamente aqui há um árduo e complexo caminho para que
seja cumprida a meta de redução do estoque de gastos tributários

8 O parecer prévio consta do Acórdão TCU 1322/2018–Plenário e encontra-


-se disponível em http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fil
eId=8A81881F6364D8370163FF80EB4645E1, o qual foi noticiado em http://
portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-aprova-com-ressalvas-as-contas-do-
-presidente-da-republica-relativas-a-2017.htm. As reflexões sobre o volume
das renúncias fiscais foram registradas em https://www12.senado.leg.br/
noticias/audios/2018/06/relatorio-do-tcu-traz-alertas-sobre-teto-de-gastos-
-e-renuncias-fiscais e http://www.valor.com.br/brasil/5594169/tcu-critica-
-elevacao-da-renuncia-fiscal-nas-contas-de-2017. Interessante notar abuso
detectado até pelo próprio secretário da Receita Federal Jorge Rachid, em
sua entrevista publicada na Folha de S.Paulo: https://www1.folha.uol.com.
br/mercado/2018/06/estado-brasileiro-esta-dando-beneficio-fiscal-ate-para-
-salmao-e-file-mignon.shtml. 307
NEPEL
de 4% para 2% do PIB nos próximos anos (tal como suscitado
tanto na LDO 2019, quanto na PEC 188/2019). Em igual medida,
são imperativas propostas de vedar novas renúncias e de fixar
prazo máximo de vigência.
É preciso, pois, atenção para acompanhar a execução desse
conjunto de regras reiteradas nas LDO’s 2019 e 2020, bem como
na PEC 188/2019 que visam à fixação de um regime jurídico mais
consistente para as renúncias de receitas, sobretudo para verificar
se tais normas sairão do campo das diretrizes vagas para a reali-
dade equitativa do ajuste fiscal vivido e percebido pela sociedade.
Infelizmente a LRF e a Emenda 95/2016 – por si sós – não conse-
guiram cumprir tal missão delimitadora.

4. Erros recorrentes, no mínimo, desde a


CPI dos Anões do Orçamento

A aprendizagem com os erros do passado é compromisso


necessário para quem pretende melhores condições de vida no
futuro. O cenário fiscal brasileiro, contudo, indica haver uma deli-
berada tendência à repetição dos erros, como se não houvesse
memória do passado, tampouco esperança de melhoria no futuro.
Apenas paira no ar o temor sempre presente de espoliação do
erário para fins de curto prazo eleitoral e fisiologismo fiscal.
Tragicamente a sociedade brasileira é contumaz prisioneira da
armadilha patrimonialista que acata discricionariedade orçamen-
tária quase no limite da arbitrariedade, tamanhos o desapreço
ao médio prazo inscrito no planejamento e o trato pessoal (quiçá
feudal) das transferências voluntárias e das emendas parlamen-
tares.
As Emendas Constitucionais 86/2015, 100/2019, 102/2019 e
105/2019 prometeram avanço na relação do Legislativo com o
308
NEPEL
Executivo ao longo das várias etapas do ciclo orçamentário, bem
como visaram aproximar os parlamentares com suas bases elei-
torais nos municípios e estados. Mas os riscos envolvidos supe-
ram largamente os supostos benefícios alardeados, sobretudo na
figura da “transferência especial” inscrita no art. 166-A, para fins
de repasse flexibilizado das emendas parlamentares impositivas.
O caráter supostamente livre da transferência especial decorre
da ausência de qualquer plano de trabalho a lhe condicionar o

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


alcance de fins previamente pactuados ou planejados. Somem-se
a isso os fatos de que os recursos não oneram o cômputo da receita
corrente líquida que serve de base de cálculo para os limites de
despesa de pessoal e de endividamento do ente beneficiário, bem
como devem ser primordialmente executados com despesas de
capital (no mínimo, 70% do total dessa espécie). Nada foi dito ou
previsto sobre o estoque de obras paradas, a despeito do art. 45
da LRF, tampouco sobre a necessidade de coerência e aderência
ao planejamento setorial das políticas públicas.
Diante do estreito calendário político que já estava em jogo ao
longo de 2019 (quando foram aprovadas as últimas três emendas
que trataram da impositividade orçamentária), as transferências
especiais devem impactar forte e imediatamente as eleições muni-
cipais de 2020, com risco até mesmo de abuso de poder político.
Como se já antevisse tal risco cronológico em face da vedação
inscrita no art. 73, VI, alínea “a” da Lei 9504/1997, o art. 2º da
Emenda 105/2019 determinou que fosse assegurado, ainda no
primeiro semestre de 2020, o efetivo repasse financeiro de 60%
do total das transferências especiais.
Não se trata apenas de questionar a pessoalidade e o curto
fôlego do repasse, haja vista o seu desiderato implícito de impactar
a dinâmica eleitoral municipal. Aqui interessa especialmente a natu-
reza constitutiva do fenômeno: cada deputado e senador pode vir a
se comportar como ordenador arbitrário de despesas até o limite da
sua emenda pessoal, pois cada mandato parlamentar tende a ser
309
NEPEL
tratado como uma unidade orçamentária autônoma que passa ao
largo do planejamento orçamentário e setorial.
Em uma analogia com a Teoria do Órgão, de Otto Gierke, cada
parlamentar seria o órgão responsável não só pela elaboração, mas
também assumiria a responsabilidade, ainda que indiretamente,
pela execução, como uma espécie privilegiada de ordenador de
despesa da transferência especial da sua emenda impositiva, até
porque seu próprio mandato corresponderia a uma heterodoxa
unidade orçamentária.
Tal risco de “loteamento” merece ser lido junto com a agenda
de ampliação do Fundo Eleitoral que trafegou no PLOA 2020, em
detrimento de áreas sensíveis como saúde e educação no âmbito
da PEC 188/2019. Aludida hipótese – tal como aventada – por si
só indica o risco de desconstrução das vinculações orçamentárias
que amparam direitos sociais. Foi uma demonstração do quanto
se pode veloz e vorazmente esvaziar a ordenação legítima de prio-
ridades inscritas no planejamento orçamentário para atender ao
curto prazo eleitoral e gerar maior fisiologismo fiscal.
A bem da verdade, desvincular, desobrigar e desindexar
(DDD), como pretende o Ministério da Economia, só aceleraria o
ciclo vicioso de corrupção e reprodução do coronelismo pautado
pela distribuição errática de recursos públicos, registrado histori-
camente por Victor Nunes Leal:

A maior cota de miséria tem tocado aos municí-


pios. Sem recursos para ocorrer às despesas que
lhes são próprias, não podia deixar de ser precária
sua autonomia política. O auxílio financeiro é,
sabidamente, o veículo natural da interferência
da autoridade superior no governo autônomo das
unidades políticas menores. (LEAL, 2012, p. 178).

Invocando falseadamente a ideia de orçamento impositivo, o


que mais o Congresso fez foi tentar pautar a centralidade da sua
310
NEPEL
influência nas eleições municipais, quer diretamente na majoração
do financiamento público das candidaturas, quer indiretamente
na forma das transferências de emendas impositivas flexibilizadas.
Ao invés de efetivamente aprimorar o pacto federativo, o
trato patrimonialista e coronelista da execução orçamentária,
sobretudo no nível municipal, tem sido disputado pelo Executivo
e agora, mais recentemente, pelo Legislativo. Eis um movimento
pendular que efetivamente desloca o peso do presidencialismo de

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


coalizão brasileiro.
É preciso que a sociedade esteja consciente do risco de que
as transferências especiais, na prática, personifiquem dotações
orçamentárias como se fossem obras do parlamentar “X” ou “Y”.
Em última instância, estão postas na mesa todas as condições para
que se reproduza não só o histórico coronelismo, como também
que se volte a presenciar capturas equivalentes ao escândalo dos
“Anões do Orçamento”.
Vale lembrar que, em 1994, a Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito do Orçamento analisou irregularidades na elabo-
ração e execução orçamentária da União. Seu relatório final
diagnosticou que:

a estrutura de poder não institucional que se con-


vencionou chamar de “esquema do orçamento”
compunha-se de elementos pertencentes ao Poder
Executivo e ao Poder Legislativo. As investigações
levadas a efeito por esta CPMI nos autorizam a
confirmar a denúncia que a gerou: existiam dois
esquemas paralelos destinados a lesar o erário em
prol de interesses particulares: o esquema das
empreiteiras e o esquema das subvenções.
(BRASIL, 1994, p. V.III-2).

Ambos os esquemas (das empreiteiras e das subvenções)


envolviam deliberada captura do ciclo orçamentário por uma
311
NEPEL
cadeia de agentes públicos e privados que atuava em rota de enri-
quecimento ilícito e dano ao erário. O assustador é que, embora
tenham sido publicadas em 1994, as conclusões da CPMI dos
“Anões do Orçamento” ainda são extremamente atuais.
No caso das obras, a relação indireta de drenagem dos recur-
sos públicos no trato com empreiteiras foi descrita como uma cap-
tura que ia desde a própria sugestão dos projetos aos prefeitos e
governadores até toda sorte de lobbies e intermediações ao longo
da execução orçamentária. Isso ocorria sem que fosse sequer
resguardado financiamento para as obras que já estivessem em
andamento. Importante era vender a ideia obras novas, com suas
respectivas cotas de rateio:

Há fortes indícios de que em todos esses níveis –


elaboração de projetos, empréstimos, inclusão no
Orçamento, aprovação de emendas e liberação de
recursos – o esquema das empreiteiras distribuía
“participações”, que não são nada menos que
propinas, o salário da corrupção. . (BRASIL, 1994,
p. V.III-6).

Em relação às entidades do terceiro setor beneficiárias de


repasses a título de subvenções, o relatório final é enfático em
apontar sua instrumentalização para o desvio direto em prol dos
parlamentares que fraudavam o instituto:

1ª. O Parlamentar criava ou patrocinava a criação


de entidades que eram inscritas no Conselho
Nacional de Serviço Social.

2ª. Essas entidades formavam “holdings”, contro-


lando diversas outras, que também se credencia-
vam a receber dinheiro da União.

312
NEPEL
3ª. As entidades eram controladas por pessoas
intimamente ligadas aos Parlamentares, seus
familiares, empregados ou prepostos.

4ª. O Parlamentar integrante do esquema, não


raro, alienava todo seu patrimônio em favor da
“holding”, para alegar, em caso de eventual
necessidade, que não possuía fortuna pessoal.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


5ª. As entidades cometiam toda sorte de fraudes,
a maioria já constatadas pelo TCU, consistentes,
principalmente, em desvio de recursos, utilização
de notas fiscais falsas, emprego de “fantasmas”
para transferir numerário para os membros do
esquema, inexistência dos serviços sociais que
declaravam realizar. (BRASIL, 1994, p. V.III-7).

A CPMI do Orçamento chegou a propor algumas recomenda-


ções para correção de rumos de tamanhas irregularidades. Toda-
via, pouco se avançou desde 1994, como se pode depreender
do seguinte rol exemplificativo de recomendações solenemente
ignoradas:

1. Definição de percentual mínimo9 de aplicação


de recursos em continuidade de obras

2. Limitação do poder de emendar a lei orçamen-


tária – proposta de restrição de emendas a “unica-
mente emendas de autoria de comissão, bancada

9 Como explicitado no seguinte excerto do relatório final da CPI dos Anões do


Orçamento: “É necessário que se estabeleça um limite mínimo de aplicação
de recursos de investimentos para continuidade de obras em curso. Consi-
deramos que apenas 2/3 deles devam ser para tal fim apropriados, para que
obras em andamento não tenham sua finalização postergada por falta de
verbas, ao se conferir prioridade a novas realizações e passem a cumprir sua
função em razoável espaço de tempo” (BRASIL, 1994, p. V.III-13-14) 313
NEPEL
e partido político, fixados seus valores através de
critérios de proporcionalidade” (p. V.III-14)

3. Fortalecimento dos Sistemas de Controle


Interno e Externo

4. Extinção das subvenções sociais

5. Limitação10 das transferências federais voluntárias

6. Mudança na legislação referente aos créditos


suplementares – vedação no 1º trimestre e limite
máximo de 30% da receita prevista

7. Abolição do sigilo fiscal e bancário para manda-


tários políticos – no período entre a diplomação e
o término do respectivo mandato

8. [Limitação do risco de abuso da] Imunidade Par-


lamentar. . (BRASIL, 1994, p.V.III-14-22).

Falhas recalcitrantes e recomendações não acatadas afastam


a tese de que a descentralização decisória do ciclo orçamentário

10 Proposta da CPI que foi justificada no seguinte sentido, “Nas últimas décadas, a
União assumiu, paulatinamente, maior controle sobre os Estados, enfraquecen-
do-os mais e mais, mercê de crescente centralização, chegando-se quase a im-
plantar, na prática, situação semelhante à verificada no Estado Novo. A fim de
manter fidelidade política que lhes garantisse maioria parlamentar, os governos
de feição castrense restituíam, mediante as “transferências voluntárias”, parce-
la dos tributos arrecadados aos Estados, realizando obras ou subvencionando
as chamadas ações sociais. Tal sistema facilitou a ação de poderosos agentes
econômicos junto àqueles que decidiam, entre quatro paredes, a distribuição
dos recursos. [...] Exceções devem ser unicamente as transferências destinadas
a casos de calamidade pública, execução de planos nacionais ou regionais e em
314 caso de guerra externa ou comoção intestina.” (BRASIL, 1994, p. V.III-17)
NEPEL
federal, na forma de emendas parlamentares impositivas (individu-
ais ou de bancada), seria meio ontologicamente capaz de demo-
cratizar sua destinação. Muito antes pelo contrário, o risco que
se antevê aqui é o de apropriação privada do interesse público,
porque sequer foi fortalecido suficientemente o planejamento
que ordena prioridades legítimas, tampouco foram estruturadas
qualitativamente as instituições de controle que atestariam o
alcance efetivo dos resultados planejados a custos razoáveis.

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


O levantamento de todos esses riscos implica esforço de
aprendizagem com os erros do passado para que se possa avançar
normativa e coletivamente. A sociedade brasileira precisa superar
o trato ainda um tanto coronelista do orçamento. Não é fácil,
mas é preciso conferir à cidadania clareza de que democracia e
orçamento são faces da mesma moeda.

5. Algumas parcas considerações finais

As fragilidades levantadas nos capítulos anteriores, em cará-


ter exploratório e sem pretensão de exaustividade, evidenciam o
complexo e dinâmico tensionamento entre discricionariedade e
vinculação no processo legislativo orçamentário brasileiro.
O risco comum que perpassa aludidas falhas aparentemente
desconexas é o de captura patrimonialista do interesse público,
por trás da roupagem formalista e protocolar de que se reveste a
legislação orçamentária.
Em caráter exemplificativo e um tanto panorâmico, foi feito
o contraste entre (1) a falta de aderência substantiva entre pla-
nejamento e orçamento, (2) a insuficiente estimativa de impacto
nas metas fiscais para concessão de renúncias fiscais (a maioria
delas concedida por prazo indeterminado) e (3) a persistência de
riscos de apropriação privada do interesse público, a exemplo das

315
NEPEL
falhas arroladas na CPI dos Anões do Orçamento que tendem a se
repetir nas emendas parlamentares impositivas.
A confluência dessas três dimensões, muito embora não se
preste a exaurir o debate sobre as deficiências do ciclo orçamen-
tário pátrio, revela impasses profundamente sistêmicos e histori-
camente recorrentes. O trato voluntarioso e instável do erário em
cada qual das dimensões exploradas não só explica parcialmente
a evolução das contas públicas brasileiras, como também revela o
paradoxo em que as regras fiscais se encontram.
A pretexto de aumentar a impositividade orçamentária,
majoram-se os espaços de maior risco de captura patrimonia-
lista. Por outro lado, enquanto são impostos limites gravosos
às despesas primárias – com risco de descontinuidade para os
programas de duração continuada inscritos no planejamento
orçamentário e setorial –, as renúncias fiscais seguem relati-
vamente incontidas e alheias às balizas do art. 14 da LRF. Em
meio a ambos os polos conflituosos, resta, pragmaticamente,
preterido o planejamento como meio operacional de eleição
legítima de prioridades.
Tal levantamento de mazelas, por assim dizer, corrobora a
avaliação de que o Brasil vive, na construção de políticas sociais
justas, um estágio de “indigência analítica”, como diria Santos
(1987).
Reconhecer a complexa correlação de problemas, nesse con-
texto, é apenas um ponto de partida para pensar rotas de aper-
feiçoamento do processo legislativo orçamentário. Por óbvio,
não há respostas rápidas e fáceis para o desafio de conter o
desapreço ao planejamento, a irresponsabilidade fiscal na seara
das renúncias fiscais e os riscos de captura patrimonialista das
emendas parlamentares impositivas, das transferências voluntá-
rias, dos redesenhos unilateralmente feitos pelo Executivo, entre
outros impasses.

316
NEPEL
O que se pode demandar (e, mais do que nunca, é preciso que
seja demandado) é a extensão do horizonte de controle sobre
o cumprimento dos programas de trabalho inscritos na lei anual
de orçamento à luz dos seus impactos fiscais e regulatórios, das
metas e estratégias do planejamento setorial e sobre as motiva-
ções apresentadas para eventuais distanciamentos entre o orçado
e o executado.
Tal controle estendido deve ser exercido durante o curso da

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


execução orçamentária e não apenas pelos órgãos que detêm
formalmente a competência de controle externo – uma vez que a
integração entre controle interno (art. 74 da CR/1988) e externo
(art. 71 da Constituição) já é princípio que ordena as finanças
públicas no Brasil –; mas também deve estar ao alcance da cida-
dania que, no exercício do seu direito de representação (arts. 5º,
XXXIV, “a”, e 74, §2º da CR/1988), poderia garantir discursiva-
mente – em sua condição difusa, efervescente e plural – o caráter
democrático da execução das peças orçamentárias em todos os
níveis da federação.
Ora, a fixação das políticas públicas e sua consecução indireta
por meio de renúncias de receitas deveriam ser agendas republi-
canas construídas democraticamente, com evidentes repercussões
sobre os agentes econômicos. Eis a razão pela qual tais opções não
são aferíveis racionalmente sem suas estimativas de impacto fiscal
e/ou regulatório, sem sua imersão no espaço de sua aplicação,
tampouco são controláveis fora do embate político-constitucional
do que sejam as atividades-fim do Estado.
O ciclo da política pública reclama maior vinculação ao pla-
nejamento, para que se tenha uma execução orçamentária, de
fato, mais motivada e aderente ao prognóstico positivado em lei
como obrigação de fazer. Daí é que decorre a legitimidade do
percurso adotado pelo gestor como capaz de resolver os proble-
mas diagnosticados junto à sociedade como prioridades de ação
governamental.
317
NEPEL
Alocar emendas parlamentares impositivas e abrir mão da
arrecadação não podem ser atos voluntariosos dos agentes polí-
ticos, porque prejudicam – direta ou indiretamente – a capaci-
dade estatal de execução de diversas políticas públicas. É preciso,
portanto, efetivamente monitorar os impactos, as medidas com-
pensatórias, as contrapartidas e, sobretudo, a real necessidade de
se conceder, manter ou ampliar tais rotas excepcionais de gastos
públicos (renúncias fiscais precisam ser compreendidas como tal,
até porque são gastos tributários).
Nesse escopo reflexivo, o controle difuso e plural assumiria
o seu primordial papel (pedagógico) de retroalimentar o plane-
jamento e as leis orçamentárias, aprimorando o exame não só
dos problemas sociais, mas também das propostas de atuação
integrada com o mercado e com o terceiro setor e das possíveis
soluções eleitas democraticamente como prioridades de ação
governamental para o próximo ciclo da política pública.
Para tanto, impõe-se o próprio diálogo anterior sobre qual é
conjunto de prioridades estatais e como executar os projetos e
atividades que lhes concernem em termos de serviços públicos,
donde a essencialidade do planejamento a nortear o processo
legislativo orçamentário.
Talvez essa seja uma sensível razão ensejadora da irresponsa-
bilidade política temporalmente estendida na seara orçamentária:
não se sabe claramente como as leis orçamentárias promovem
– ou não – a “efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”
brasileira (STARK; BRUSZT, 1998), tal como pugna o §10 do art.
165 da Constituição de 1988.
Regras fiscais se superpõem, enquanto a distância entre a rea-
lidade e o ordenamento vigente parece desafiar a tese ilusória
de que basta alterar sucessivas vezes a Constituição, para que
o patrimonialismo fiscal persistente apenas mude de nome ou
formato jurídico.

318
NEPEL
O processo legislativo orçamentário brasileiro reclama mirada
substantiva, sob pena de – na esteira da PEC 188/2019 e de outras
agendas reformistas – incorrer, mais uma vez, na frágil repetição
de regras que tendem a prosseguir arbitrária e irresponsavelmente
descumpridas.

Referências

7. PProcesso legislativo orçamentário sob histórico e recorrente risco de arbitrariedade


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18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de
1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-
Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4,
de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro
de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de
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321
NEPEL
8 A INTERNACIONALI-
ZAÇÃO DO DIREITO,
O PODER LEGISLATIVO
E O PROBLEMA
DEMOCRÁTICO:
SOBERANIA,
CONSTITUIÇÃO E
PLURALISMO NA
ERA PÓS-NACIONAL
Rafael Dilly Patrus*

*Mestre e doutorando em Direito pela UFMG. Consultor Legislativo na ALMG. Advogado.


8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição
1. INTRODUÇÃO

Vivemos um tempo de superação dos limites político-institu-


cionais do Estado Nacional?
A pergunta nos leva por caminhos interessantes se pensarmos
que esses limites se assentam sobre os fundamentos do constitu-
cionalismo moderno: o Estado de Direito, a separação dos pode-
res, a proteção dos direitos fundamentais alinhada à afirmação
da soberania popular. Toda a gramática constitucional pensada e
reproduzida nos últimos duzentos anos está fortemente ligada às
amarras do aparato estatal. A percepção de que esse aparato se
vê hoje deslocado de seu eixo originário, embora empiricamente
acertada, dá conta de apenas uma pequena fração do problema.
Para raciocinarmos o Estado frente à aproximação entre direito

e pluralismo na era pós-nacional


interno e direito internacional, precisamos revisitar conceitos há
muito sedimentados na dinâmica da democracia liberal, tais como
poder constituinte, soberania popular e representação política.1

1 No presente trabalho, os termos “internacional”, “supranacional” e “transnacio-


nal”, quando empregados, seguem a terminologia adotada por Marcelo Neves
(2012, p. 115-234). Segundo tal esquema conceitual, o direito internacional tem
acepção ampla, compreendendo qualquer dimensão jurídica que envolva, direta ou
indiretamente, um plano de relação entre dois ou mais Estados. Já o conceito de
supranacionalidade é restrito à “organização fundada em um tratado que atribui,
para os seus próprios órgãos, competências de natureza legislativa, administrativa e
jurisdicional abrangente no âmbito pessoal, material, territorial e temporal de valida-
de, com força vinculante direta para os cidadãos e órgãos dos Estados-membros”
(NEVES, 2012, p. 152). Nessa delimitação, a União Europeia seria, a rigor, a única
experiência jurídica supranacional. Por fim, consideram-se ordens transnacionais
aquelas “constituídas primariamente não por Estados ou a partir de Estados, mas
sim por atores ou organizações privados ou quase públicos” (NEVES, 2012, p. 187).
Trata-se de nomenclatura também utilizada por Günther Teubner (2012). 325
NEPEL
Outrossim, o lugar ocupado pelas instituições democráticas
tradicionais é profundamente remodelado. Decisões de enorme
relevância são construídas em espaços internacionais que, ape-
sar de tipo legislativo, não representam de modo adequado a
pluralidade dos Estados membros; órgãos internacionais de tipo
judicial reconhecem a existência de obrigações cogentes a toda a
comunidade global, a despeito de qualquer consentimento por
parte dos Estados destinatários. Essas realidades revelam um novo
modo de produzir normas – aparentemente desligado da antiga
exigência de legitimação da escolha coletiva pela representação
da soberania do povo.
O presente trabalho propõe uma releitura desse problema.
Inicialmente, lança luzes sobre o fenômeno da internaciona-
lização do direito, identificando as dificuldades relativas ao
equacionamento da legitimidade democrática das normas inter-
nacionais. Em seguida, examina os conceitos de constituição e
soberania face às mudanças vividas na era pós-nacional, resga-
tando o debate entre Jürgen Habermas, defensor de um patrio-
tismo constitucional de âmbito mundial, e Jacques Derrida, cuja
perspectiva crítica, a partir do reconhecimento da intransponibi-
lidade da diferença entre o “eu” e o “outro”, realça a violência
do projeto habermasiano de inclusão. Tendo os argumentos
que permeiam essa discussão como pano de fundo, o trabalho
filia-se, com Martin Loughlin, a uma compreensão relacional do
poder constituinte, bem como à perspectiva, com Michel Rosen-
feld e, ao mesmo tempo, com e contra Habermas e Derrida,
de um pluralismo constitucional abrangente e plurilateral. Esses
prismas servem ao propósito de ressignificar a internacionaliza-
ção do direito, em especial do direito constitucional, exatamente
à luz dos postulados do constitucionalismo moderno – os tais
princípios básicos que, embora antigos, são ainda a via mais
atual de promoção da autonomia e de legitimação do poder e
do direito.

326
Afinal, hoje, mais do que nunca, é tempo de reconstruir.
NEPEL
2. A internacionalização do direito,
o Poder Legislativo e o problema
democrático

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


Convencionou-se denominar de “internacionalização do
direito” o fenômeno político-institucional de positivação e proce-
dimentalização de direitos e obrigações em âmbito internacional.
A descrição tem como foco principal o direito internacional dos
direitos humanos, mas não se restringe a ele. Apesar de remontar
a movimentos e iniciativas muito distantes, a tendência assume
uma posição de destaque sobretudo em seguida à Segunda
Guerra Mundial, adquirindo contornos inéditos com a consolida-
ção da União Europeia e a institucionalização dos sistemas regio-
nais de proteção dos direitos humanos, em especial, o europeu e
o interamericano.
Amplamente marcada por esse fenômeno, a era pós-nacional
traduz uma conjuntura em que a esfera nacional, embora rete-
nha um espaço de importância atuarial, não mais corresponde
ao centro exclusivo de realização do projeto do constituciona-
lismo. Em referência à elaboração original de Habermas (1998), a
nomenclatura é utilizada por Nico Krisch, para quem “a distinção

e pluralismo na era pós-nacional


clássica entre as esferas doméstica e internacional (...) é crescen-
temente enfraquecida”, e assim “o direito se torna ‘pós-nacional’
– a esfera nacional retém importância, mas deixa de ser a âncora
paradigmática de toda a ordem jurídica” (KRISCH, 2010, p. 4,
tradução nossa).2
A imagem de uma era pós-nacional pressupõe um ambiente
de forte interação entre os inúmeros sistemas sociais, em níveis e

2 No original: “The classical distinction between the domestic and the interna-
tional spheres that had sustained them is increasingly blurred, with a multitu-
de of formal and informal connections taking the place of what once were re-
latively clear rules and categories. In this sense, law has become ‘postnational’
– the national sphere retains importance, but it is no longer the paradigmatic
anchor of the whole order”. 327
NEPEL
graus variados. A globalização força uma aproximação comuni-
cativa entre diversos regimes jurídicos. Um dos principais reflexos
dessa aproximação é a reestruturação da constelação política
mundial. O Estado Nacional deixa de ocupar uma posição central,
passando a figurar como elemento de um universo maior e mais
complexo, dentro do qual convivem organizações internacionais,
sistemas transnacionais e agentes particulares multinacionais.
Nesse quadro, são muitas as indagações que emergem no tocante
à justificação do direito. De um lado, são institucionalizadas
exigências, no âmbito do direito tradicionalmente doméstico,
concernentes tanto à inserção no plano internacional quanto à
observância de parâmetros definidos para além da esfera estatal.
Paralelamente, o direito internacional clássico passa por um con-
texto de crise: a base da aquiescência dos Estados, antes alçada
ao patamar de fonte primária e suficiente de legitimidade das nor-
mas internacionais, torna-se precária e insatisfatória (HABERMAS,
1998, p. 69-74).
Em sua formatação original, o direito internacional se legi-
tima pelo consentimento dos Estados individualmente consi-
derados. Essa legitimação se diferencia daquela aplicável ao
direito nacional, que é tradicionalmente dependente de exi-
gências muito mais densas de representatividade política, inde-
pendentemente do regime adotado internamente. Cada nível
se perpetua seguindo uma lógica diversa de justiça política. Os
âmbitos até podem se intercruzar, mas, no desenho antigo,
somente mediante a aquiescência estatal. Nesse sentido, não
costumam aparecer grandes dificuldades na administração
(que se dá sobretudo a nível nacional) da relação entre um
direito concebido e aplicado no interior do Estado e um direito
que, embora produzido em um ambiente externo, é aplicado
internamente.
O problema surge com a aproximação entre as concepções
de direito nacional e direito internacional. A linha que separa as
328 dimensões gradualmente desaparece, e, a partir daí, todo um
NEPEL
conjunto de normas, postulados e fundamentos é posto em ques-
tão (KRISCH, 2010, p. 13).
Pensemos, por exemplo, na peculiaridade do Poder Legislativo

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


nacional.
Nos Estados que, de alguma maneira, praticam regimes
de índole democrático-liberal, o Parlamento faz as vezes de
um lugar institucional de representação primária do povo: sua
estrutura organizacional, usualmente baseada em um corpo
colegiado composto por um número maior de representantes
diretamente eleitos, facilita a tradução de um espectro mais
abrangente de interesses, temas, pretensões, reivindicações,
ideologias e preferências. Ademais, sua lógica funcional, comu-
mente lastreada na construção de decisões coletivas a partir de
um processo de deliberação política, possibilita, pelo menos
teoricamente, uma tematização mais completa dos argumen-
tos que permeiam as discussões na esfera pública (WALDRON,
1999a, 1999b).
A internacionalização do direito coloca tudo isso em xeque. Há
dois problemas centrais. Em primeiro lugar, passamos a permitir
a construção fora do âmbito estatal de decisões cujo conteúdo
era antes reservado à apreciação interna. Embora os processos

e pluralismo na era pós-nacional


decisórios ocorram no âmbito de órgãos para os quais os Estados
afetados manifestaram algum consentimento, a representati-
vidade da instituição que decide, quase inteiramente dominada
por agentes dos Poderes Executivos nacionais, é insuficiente. Boa
parte das decisões fica a cargo de agentes da administração esta-
tal, que articulam soluções e negociam encaminhamentos sem a
devida representação do pluralismo político que constitui a arena
nacional (GRIMM, 2010, p. 8).
Além disso, tornou-se assente a possibilidade de tribunais
internacionais reconhecerem a existência de normas de jus
cogens, que consistem em enunciados jurídicos hierarquica-
mente superiores no ordenamento internacional, sendo de 329
NEPEL
observância obrigatória por todos os Estados, independente-
mente de seu consentimento, das disposições de seu direito
interno ou dos demais acordos firmados em âmbito interna-
cional. Ao mesmo tempo que traduz um poderoso sintoma da
“constelação pós-nacional” de que nos fala Habermas, o jus
cogens põe em evidência o esvaziamento das posições antes
ocupadas pelas instituições do Estado Nacional no processo de
elaboração normativa (BOGDANDY; VENZKE, 2012, 2013).

O Poder Legislativo é talvez o mais atingido por essa nova con-


formação. Sem integrar o espectro de presentificação do Estado
perante a comunidade internacional, que fica sob a incumbência
do Poder Executivo, e sem tampouco participar ativamente do
processo de fertilização jurisprudencial cruzada que ocorre no
âmbito do Poder Judiciário (TRINDADE, 2019), próprio de um
transconstitucionalismo entre ordens jurídicas (NEVES, 2012,
p. 123-149), o Parlamento, antes concebido como o epicentro
da originação normativa no Estado Democrático de Direito, vê
sua autonomia decisória ser gradualmente alijada a um vácuo
deliberativo-institucional.

É tranquilo perceber que, da maneira como o expusemos,


esse novo quadro padece de um grave déficit democrático. Existe
alguma luz no fim desse túnel? É possível, sem romper com os
avanços da era pós-nacional, resgatar o lócus da soberania popular
no marco da democracia constitucional? Acreditamos que sim,
e a presente reflexão é uma tentativa de traduzir o arcabouço
teórico que, na nossa visão, melhor equaciona a tensão entre o
particular e o universal, entre as diferenças que singularizam os
Estados e a identidade que possibilita a existência da comunidade
internacional.

330
NEPEL
3. Soberania e Constituição para além
do Estado Nacional: entre identidade e
diferença3

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


Como vimos, a aproximação conceitual entre o direito nacio-
nal e o direito internacional força a uma revisitação de todo um
conjunto de fundamentos normativos clássicos. Em um pano de
fundo mais abrangente, o problema põe em evidência a pro-
fundidade e a relevância das modificações sofridas pelo consti-
tucionalismo entre o fim do século XX e o início do século XXI.
Originariamente conectado às “transformações estruturais que
engendraram as bases para o surgimento da sociedade moderna”
(NEVES, 2012, p. 23), o constitucionalismo é submetido hoje a um
redimensionamento pós-nacional e para além do aparato estatal
(TEUBNER, 2012, p. 1-14; NEVES, 2012, p. 83-113).
No contexto de então, o aumento da complexidade social
importou na intensificação das pretensões de autonomização
sistêmica das esferas de comunicação, levando a uma sociedade
“multicêntrica” ou “policontextual” na qual passaram a con-
viver variados campos orientados comunicativamente por códi-
gos-diferença distintos (LUHMANN, 1987, p. 188-204). Todavia,

e pluralismo na era pós-nacional


embora a sociedade moderna tenha despontado como “socie-
dade mundial”, e a despeito de a política não consubstanciar,
para a teoria dos sistemas, um “lugar privilegiado da sociedade,
mas um sistema em concorrência com outros” (NEVES, 2012, p.
25), a concepção primária do constitucionalismo, no contexto
das revoluções do século XVIII, está arrimada na formulação de
uma “semântica político-jurídica que reflete a pressão estrutural
por diferenciação entre política e direito no âmbito da emer-

3 A partir deste ponto, o texto reproduz o conteúdo de excertos da dissertação


de mestrado defendida pelo autor, em 2015, perante o Programa de Pós-Gra-
duação em Direito da UFMG, nomeadamente os capítulos 4 e 5. O trabalho
foi posteriormente publicado como livro sob o título Articulação constitucio-
nal e justiça de transição (2016). 331
NEPEL
gente sociedade multicêntrica da modernidade” (NEVES, 2012,
p. 53), resultando, dessa forma, no “acoplamento estrutural”
responsável simultaneamente pelo estímulo e pela seleção das
influências e irritações recíprocas entre os sistemas político e
jurídico, com assento no Estado Nacional (que se manifesta, a
partir de então, como Estado Constitucional) (LUHMANN, 1993,
p. 26-29).4
Com o advento da globalização, surgem novas ordens jurídicas
marcadas pela pretensão de se estabelecerem além ou até mesmo
em face do núcleo estatal. Nessa perspectiva, a “Constituição
transversal” do Estado constitucional é alocada em um entrecru-
zamento no qual “é posta, inicialmente, no segundo plano, mas,
em outro momento, entrelaça-se novamente com as constelações
internacionais, transnacionais e supranacionais” (NEVES, 2012,
p. 83). Com isso, emerge uma “nova questão constitucional”. A
problemática constitucional dos séculos XVIII e XIX estava ligada a
uma inquietação muito distinta, voltada à necessidade de “liberar
as energias do poder político nos Estados nacionais e concomitan-
temente limitá-las de maneira eficiente”; nos dias de hoje, a pre-
ocupação que orienta e dá sentido à dinâmica constitucional é de
“liberar energias sociais bem diferentes [...] e conter eficazmente
seus efeitos destrutivos”. O que marca a internacionalização do
direito – e, com ela, a emergência da “nova questão constitu-
cional” – é o fato de essas energias sociais, sejam produtivas ou

4 Para uma análise da realização da Constituição no “nível estrutural”, a partir


das revoluções do século XVIII, cf. Grimm, 2004, p. 145-167; Luhmann, 1993,
p. 470; Neves, 2012, p. 53-62. No tocante à noção de “Constituição transver-
sal do Estado constitucional”, Marcelo Neves sustenta que, além do conceito
de “acoplamento estrutural”, a Constituição deve ser compreendida como
“instância da relação recíproca e duradoura de aprendizado e intercâmbio
de experiências com as racionalidades particulares já processadas, respectiva-
mente, na política e no direito. Isso envolve entrelaçamentos como ‘pontes de
transição’ entre ambos os sistemas, de tal maneira que pode desenvolver-se
332 uma racionalidade transversal específica” (2012, p. 62).
NEPEL
destrutivas, tomarem constantemente forma “em esferas além do
Estado Nacional” (TEUBNER, 2012, p. 1, tradução nossa).5
A percepção dessa “nova questão” nas articulações da institu-

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


cionalidade constitucional contemporânea impõe primeiramente
a superação da relação entre os monismos e o dualismo na inte-
ração entre direito internacional e direito interno. Com a interna-
cionalização de uma série de questões tipicamente constitucionais
e o fortalecimento dos órgãos internacionais de realização da
democracia e dos direitos fundamentais, sobretudo no âmbito do
direito internacional dos direitos humanos, a dicotomia clássica
entre dualistas e monistas se torna “ociosa, supérflua, dispensá-
vel, e sem resultados práticos ao menos no tocante à operação
d[os] [...] tratados e instrumentos de proteção [dos direitos huma-
nos]” (TRINDADE, 2003, p. 539-540).
Essa constatação permeia o debate reinaugurado nas últimas
décadas do século XX. Nele, os estudiosos se dividem em dois
grupos. Um lado apregoa que a recuperação da essência e dos
avanços do constitucionalismo ocidental, lançado pelos movimen-
tos políticos dos séculos XVIII e XIX, depende do fortalecimento
das instituições estatais tradicionais, dentre elas o Poder Legisla-
tivo, mediante a renacionalização e a repolitização das questões
constitucionais. Isso porque não haveria, no âmbito pós-estatal

e pluralismo na era pós-nacional


(internacional, supranacional e transnacional), qualquer instituto
propriamente equivalente à Constituição do Estado Nacional
moderno, em vista da inexistência de condições socioestruturais
de possibilidade político-fundacional (GRIMM, 2010, p. 3-22;
LOUGHLIN, 2010, p. 47-72). O outro lado, a seu turno, embora

5 Excertos retirados do seguinte trecho no original: “Compared to the consti-


tutional questions of the 18th and 19th centuries, the problems of today are
different, but no less important. Then the concern was to release the energies
of political power in nation states and at the same time to limit that power
effectively. With the new constitutional question, the concern is to release
quite different social energies – particularly visible in the economy, but also
in science and technology, medicine and the new media – and to effectively
limit their destructive effects. Today, these energies – both productive and
destructive – are being unleashed in social spheres beyond the nation state”. 333
NEPEL
compartilhe da mesma constatação de crise, defende que a rea-
lização do novo constitucionalismo democrático exige a sua con-
solidação em nível mundial, mediante a constitucionalização do
direito internacional e a estruturação de uma esfera pública de
escala global (HABERMAS, 2002b, 2006; KUMM, 2010, 2013).

Em importante reflexão sobre o tema, Mattias Kumm separa


essas correntes nos seguintes termos: a posição da nostalgia
constitucional, em uma direção, e a posição do triunfalismo
constitucional, na direção contrária. A perspectiva nostálgica está
lastreada em um “estatismo democrático”, no qual se reconhece
um paradigma de constitucionalismo conectado às noções tra-
dicionais de Estado e soberania. Por assim dizer, o “estatismo
democrático” suscita uma certa nostalgia, porquanto supõe a
realização do projeto universal do Estado Democrático de Direito
apenas no contexto do Estado Nacional moderno. A postura
triunfalista, por outro lado, se arrima em uma “concepção prática
do constitucionalismo”, segundo a qual o Estado, embora rele-
vante, não traduz o único espaço dotado dos elementos práticos
necessários à realização do projeto universal (e universalizante) do
constitucionalismo moderno (KUMM, 2010, p. 201-219).

A despeito de a corrente triunfalista assumir, especialmente


em meio aos publicistas da nova geração, um espaço de prevalên-
cia, a formulação mais sofisticada desse direcionamento é, ainda
hoje, o aporte de Jürgen Habermas.

3.1) Habermas e o projeto de um patriotismo


constitucional global

Para Habermas, a dialética concernente à assimilação da


Constituição e da soberania do Estado precisa ser revista, tendo
334 em vista as modificações operadas pela globalização nas esferas
NEPEL
comunicativas da sociedade civil, da política e da economia.6 Essas
modificações importam em uma reestruturação tanto da sobera-
nia interna quanto da soberania externa do Estado Nacional, nas

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


acepções do século XVIII. “Soberania interna pressupõe a capaci-
dade de imposição da ordem jurídica estatal; soberania externa, a
capacidade de autoafirmação em meio à concorrência ‘anárquica’
pelo poder entre os Estados” (HABERMAS, 2002, p. 131).
No âmbito “interno”, a rapidez e a intensidade com que os
fluxos comunicativos atravessam hoje os espaços físicos da política
nacional acabam comprometendo o controle tradicionalmente
exercido pelo Estado no interior de suas “fronteiras territoriais e
sociais”. Em uma perspectiva “externa”, o colapso do “equilíbrio
das potências”, a “guerra total” e, posteriormente, o exauri-
mento da balança bipolar entre os mundos ocidental e soviético
ao mesmo tempo possibilitaram e forçaram, gradualmente ao
longo do século XX, que se criassem e fortalecessem instituições
de alcance internacional, a maioria delas voltada à garantia da
paz mundial e à proteção da dignidade humana. De um lado,
a mitigação da capacidade de ação do Estado Nacional implica
fortes restrições à soberania interna; de outro, os avanços vividos
pela comunidade internacional representam uma “superação” do
Estado Nacional, com o esvaziamento da sua soberania externa.

e pluralismo na era pós-nacional


Diante desse quadro, Habermas apresenta uma proposta traves-
tida em questionamento: sendo correto dizer que o Estado Nacio-
nal tem sido “suprassumido”, e não exatamente “extinguido”,
podemos cogitar que seu conteúdo normativo seja também
suprassumido? (HABERMAS, 2002, p. 151).
Não se ignora que o projeto iluminista, em sua conforma-
ção originária, está intimamente ligado à estrutura do Estado.
Embora a emancipação antropológica, a valorização racional

6 Com base em Anthony Giddens, Habermas (2002, p. 144) formula o seguinte


conceito de globalização: “o adensamento, em todo o mundo, de relações
que têm por consequência efeitos recíprocos desencadeados por aconteci-
mentos tanto locais quanto muito distantes”. 335
NEPEL
e a desconstrução das identidades feudais calcadas no arrimo
familiar e na religião traduzam perspectivas de vocação univer-
sal, exatamente por se basearam na liberdade e na igualdade
como categorias transcendentais da autonomia humana, é certo
que, em sua configuração primária, não se podia dissociar o
programa de realização de uma comunidade de homens livres e
iguais dos limites do Estado Nacional. Isso porque “a busca uni-
versal pela liberdade e pela igualdade exige o compartilhamento
de um princípio comum de identidade”. Para viabilizar a realiza-
ção de tais princípios “para além de meras abstrações”, fez-se
fundamental que essa identidade se desligasse das “identidades
familiares, tribais, religiosas e feudais, inteiramente incompatí-
veis com as concepções modernas de liberdade e igualdade”
e ao mesmo tempo se conectasse à estrutura territorialmente
limitada do Estado, “de forma a possibilitar que a liberdade e a
igualdade fossem realizadas” (ROSENFELD, 2007, p. 163, tradu-
ção nossa).7
Todavia, essa conjuntura está, como afirmamos, em pro-
funda crise. Como garantir, frente à nova onda internaciona-
lizante, a realização do projeto iluminista de racionalização do
poder e proteção da pessoa humana, sem, contudo, abrir mão
da exigência de processualização representativa da soberania
popular?
A tese do agir comunicativo leva à reconstrução do direito
positivo à luz de um paradigma jurídico escorado no proce-
dimento democrático. Nessa perspectiva, a legitimidade dos
comandos jurídicos encontra-se adstrita à sua aptidão de aten-
der critérios materiais universais, em especial, o respeito aos

7 Excertos extraídos do seguinte trecho no original: “The pursuit of liberty and


equality for all requires sharing a common bond of identity. And to be suffi-
ciently determinate to sustain plausible reciprocal relationships, such identity
could not extend too far, lest it become too thin and too tenuous. On the one
hand, the requisite identity had to be loosened from familial, tribal, religious,
and feudal identities inimical to modern conceptions of liberty and equality;
on the other hand, such identity had to be fastened to the nation-state for
336 liberty and equality to amount to more than mere abstractions”.
NEPEL
direitos humanos, no sentido de uma autonomia pública que se
realiza em equiprimordialidade à autonomia privada dos agentes
comunicativos. Trata-se de defesa, no entrecruzamento entre as

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


tradições liberal e republicana, que se vocaciona à solução dos
dois principais problemas relativos à assimilação da bagagem do
iluminismo: a instrumentalização da razão e o desencantamento
com o modernismo, patologias que Habermas reputa extrínse-
cas à proposta iluminista (HABERMAS, 1992, p. 202-261).
Com a intensificação da globalização em níveis múltiplos, o
projeto comunicativo de deliberação pública passa a se escorar
em preceitos normativos transnacionais, com base em uma soli-
dariedade para além do Estado Nacional. Nesse giro, a realiza-
ção do autogoverno comunicativo se assentaria em uma ordem
cosmopolita construída com lastro em uma esfera pública global
e a partir do engajamento por um patriotismo constitucional
capaz de suplantar os nacionalismos e seus efeitos (HABERMAS,
2008, p. 444-455). Em Habermas, esse patriotismo constitucio-
nal traduz a “construção, ao longo do tempo, de uma identi-
dade constitucional plural, advinda de um processo democrático
constituído internamente por princípios universalistas, cujas pre-
tensões de validade vão além de contextos socioculturais espe-
cíficos” (OLIVEIRA, 2013, p. 139, grifo nosso). Tratar-se-ia, em

e pluralismo na era pós-nacional


outras palavras, de um comprometimento universal, de essência
discursivo-procedimental, cuja validade independeria de quais-
quer diferenças culturais e identitárias; por isso mesmo, dele
se acabaria extraindo o alicerce da constelação pós-nacional,
o referencial com base no qual o equilíbrio entre os sistemas
comunicativos seria restaurado em âmbito global (HABERMAS,
1998, p. 28-34).
Em seu diálogo com Dieter Grimm, Habermas (2002, p. 183-
190, p. 153-182), à luz do contexto de consolidação da União
Europeia, aposta na viabilidade de uma governança interna-
cional que, embora sem lastro em uma unidade nacional, tem
aderência na concepção de uma esfera pública em escala global. 337
NEPEL
Daí que, segundo ele, “o próximo impulso no sentido da inte-
gração numa sociabilização pós-nacional não depende do subs-
trato de algum ‘povo europeu’”. Na verdade, o que estaria em
jogo é a institucionalização de “redes de comunicação de uma
opinião pública política de alcance europeu, enfronhada numa
cultura política comum, sustentada por uma sociedade civil com
associações de interesses, associações não-governamentais, ini-
ciativas e movimentos civis, [...]” (HABERMAS, 2002, p. 182).
A consolidação de canais comunicativos efetivos para além do
Estado Nacional possibilitaria a superação dos entraves econô-
micos e políticos decorrentes das crises vividas pela soberania
tradicional.
A propagação de uma identidade plural por meio da afir-
mação de um patriotismo constitucional de âmbito mundial
permitiria a inclusão do “outro”, o que resultaria na assimilação
das diferenças e na redução das desigualdades comunicativas.
A reinvenção do constitucionalismo moderno, em prol da pre-
servação e da plenipotencialização dos ideais de racionalização
do poder e valorização da pessoa humana, encontrar-se-ia na
expansão dos sistemas comunicativos a um estágio global aberto
e inclusivo.
Assim resumida, é inegável que a abordagem de Habermas
consegue isolar e mensurar, de modo consciente, o problema
que se propõe a enfrentar. Todavia, ela é largamente criticada
por ignorar as nuances de caráter social, político e institucional
que, mesmo para contextos similares de transformação da esfera
pública na modernidade, diferenciam as múltiplas realidades
nacionais. O principal defensor da necessidade de compreender
e proteger essas diferenças é Jacques Derrida. É sobre algumas
de suas reflexões que nos deteremos a seguir. Subjacente a
essas críticas está o problema da particularidade democrática: a
necessidade de a soberania popular se fazer representar o mais
direta e diversificadamente possível nos espaços de tomada de
338 decisão coletiva. Embora não se ocupe de soluções concretas ao
NEPEL
impasse, a teoria de Michel Rosenfeld – que apresentaremos no
fim deste trabalho – parece ser capaz de, em diálogo tanto com
quanto contra Habermas e Derrida, sinalizar um modo de pensar

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


a tensão entre o universal (a internacionalização do direito) e o
local (a afirmação da soberania popular).

3.2) Derrida e a intransponibilidade da diferença


entre o “eu” e o “outro”

Derrida é conhecido, nos espaços acadêmicos da segunda


metade do século XX, como o filósofo da desconstrução, uma
vez que propõe uma abordagem crítico-reflexiva calcada na
desmontagem das heranças filosóficas. Para o autor francês, é
preciso rastrear a essência do pensamento filosófico a partir de
um exercício aberto de reflexão, destituído das amarras sedi-
mentadas pelo fechamento científico das correntes teóricas. A
sua “gramatologia” (ou “ciência do rastro”) está comprometida
com o desmantelamento dos pilares não problematizados da
filosofia humana, engastados como “pedras estruturais” e pre-
servados em vista de uma economia conceitual. Por trás desse
empreendimento, está a assertiva de que toda teoria consiste

e pluralismo na era pós-nacional


em uma construção, realizada a partir de um plexo ficcional de
relações cognitivas fechadas, isto é, não abertas à problema-
tização. A desconstrução aparece, nesse contexto, como uma
ferramenta de dissecação da violência com que as linhas de
pensamento filosófico se enclausuram. Cuida-se de perspectiva
que tem como escopos iluminar e demolir os espaços escuros
com base nos quais as teorias ao mesmo tempo se fecham e,
nesse fechamento, estabelecem sua vocação à universalização e
à objetividade (DERRIDA, 2008, p. 33-71 e 129-162).

Em 1989, por ocasião do colóquio Deconstruction and the pos-


sibility of justice, organizado pela Benjamin N. Cardozo School of 339
NEPEL
Law, Derrida empreende uma “virada ética”.8 A principal questão
então merecedora de enfrentamento está sucintamente traduzida
no título do evento: há alguma possibilidade de alcance da justiça
pelo enfoque desconstrutivo? A resposta de Derrida se esteia na
tese de que a justiça traduz uma experiência necessária do impossí-
vel, ou, nas palavras do próprio autor, “a experiência de uma apo-
ria”. A constatação de que o problema da possibilidade da justiça
enseja uma infinidade de indagações e perplexidades está ligada a
duas premissas. A primeira é que, embora toda experiência importe
essencialmente em uma travessia do possível, em “algo transversal,
algo [...] que viaja em direção a um destino para o qual encontra
uma passagem apropriada”, a aporia expressa um destino “que
não comporta passagem”, como “um não-caminho”. Como a
diferença que separa o “eu” e o “outro” é, a rigor, intransponível,
toda relação intersubjetiva comportaria um vazio impreenchível, e
“a justiça seria uma experiência impossível de ser experimentada”.
A despeito disso, a justiça só efetivamente se realiza na experimen-
tação dessa aporia. Segundo Derrida, “uma vontade, um desejo,
uma demanda cuja estrutura não se arrima na experiência de uma
aporia não pode ser encarada como uma reivindicação por justiça”
(DERRIDA, 1992, p. 16, tradução nossa).9
Como o direito é uma construção lastreada em um sistema
conceitual ficcional, a sua implementação não guarda, a princí-
pio, uma relação ontológica com a experimentação da justiça.
Porém, o jurídico aspira ao alcance do justo, sendo, portanto,
dependente de uma busca pelo impossível. O fato de o direito

8 Na oportunidade, Derrida apresenta o texto Force of law: the ‘mystical foun-


dation of authority’.
9 Excertos extraídos do seguinte trecho no original: “As its name indicates, an
experience is a traversal, something that traverses and travels toward a desti-
nation for which it finds appropriate passage. The experience finds its way, it
passes, it is possible. And in this sense it is impossible to have a full experience
of aporia, that is, of something that does not allow passage. An aporia is a
non-road. From this point of view, justice would be the experience that we
are not able to experience. [...]. A will, a desire, a demand for justice whose
structure wouldn’t be an experience of aporia would have no chance to be
340 what it is, namely, a call for justice”.
NEPEL
ser desconstruível torna possível a desconstrução discursiva da
juridicidade e, consequentemente, da autoridade, da legitimi-
dade e da legitimação. Por outro lado, a indesconstruibilidade

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


da justiça, que se mantém impassível de captura completa,
também possibilita que a legitimidade e a legitimação, até
então concebidas como estruturas estanques de reprodução
comunicativa, sejam desconstruídas. Desse emaranhado exsurge
a desconstrução como fundamento de legitimação do poder,
apreensível no intervalo que separa a indesconstruibilidade da
justiça da desconstruibilidade do direito. Assim, a legitimação
é possível como experiência do impossível, de modo que, ao
assumirmos que a justiça não é possível (ou que não é possível
ainda, o que significa que jamais será possível), agimos de modo
justo (DERRIDA, 1992, p. 15-20).
A impossibilidade da justiça se deve à impossibilidade de o
“eu” se colocar inteiramente no lugar do “outro”, de modo a
“dirigir-se ao outro na língua do outro”, sem se apropriar dessa
língua e torná-la algo seu. Nesses termos, o uso da descons-
trução por Derrida, para o equacionamento da relação entre
direito, justiça e violência, está diretamente ligado à defesa da
imperatividade e da irredutibilidade da diferença entre o “eu” e
o “outro”. Cuida-se de perspectiva que remonta à máxima, em

e pluralismo na era pós-nacional


Aristóteles, de que a justiça exige que os iguais sejam tratados
igualitariamente e os desiguais, diferenciadamente (ROSENFELD,
2005, p. 819).
Em sua formulação dessa ideia, Derrida estabelece a neces-
sidade impossível de realização simultânea da regra geral e da
exceção. De um lado, a justiça reclama a realização da igualdade
entre o “eu” e o “outro”, mediante a efetivação dos preceitos
gerais de equidade e isonomia; lado outro, a diferença entre esse
“eu” e esse “outro” mostra-se intransponível, devendo ser pre-
servada e potencializada. Nessa tensão, o alcance do justo é ao
mesmo tempo necessário e impossível. No manuseio do direito,
a busca simultaneamente indispensável e irrealizável por justiça 341
NEPEL
culmina em duas situações: a inafastabilidade da injustiça e a ine-
vitabilidade da violência, já que a persecução do justo pelo direito
implica a coação do “outro” para agir em detrimento de sua iden-
tidade (DERRIDA, 1992, p. 51-53).

Não obstante a aproximação entre a postura desconstrutiva de


Derrida e a assumida pela Critical Legal Studies nos Estados Unidos,
especialmente no que concerne à perspectiva negativa com que
ambas encaram a dicotomia entre direito e justiça e a distinção,
arbitrária por natureza, entre a norma geral e suas exceções, há
duas importantes distinções que merecem ser destacadas. Em pri-
meiro lugar, a impossibilidade de alcance completo da justiça se
deve, na linha adotada pela Critical Legal Studies, à prevalência das
relações de poder (UNGER, 1983, p. 561-675), ao passo que, para
Derrida, a realização do justo é ontologicamente impossível, em
virtude da intransponibilidade e da insuperabilidade da diferença
entre o “eu” e o “outro”. Em acréscimo, as correntes se distanciam
especialmente em razão da dimensão ética da desconstrução. Isso
porque, a despeito de ambas conceberem a justiça como inalcan-
çável, em Derrida há o dever premente e indobrável de persegui-la
(DERRIDA, 1992, p. 62-64; ROSENFELD, 2005, p. 820-821).

Segundo Rosenfeld, a proposta derridiana se baseia na conflu-


ência de dois panoramas ético-filosóficos distintos: a necessidade de
estabelecimento de vínculos de identidade com o “outro”, à luz do
universalismo e do idealismo transcendental de Kant, e a exigência
de considerar, respeitar e plenipotencializar as diferenças que defi-
nem esse “outro”, com esteio no reconhecimento, com Nietzsche
e Heidegger, da diversidade, da complexidade e da vitalidade da

342 experiência humana como dimensões incapturáveis pela razão


NEPEL
(ROSENFELD, 2005, 2011).10 Quanto à relação entre direito e justiça,
projetada sobre a “ponte” ao mesmo tempo necessária e intrans-
ponível que se busca estabelecer entre os mencionados panoramas,

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


Rosenfeld pontua, em referência a Derrida, que as normas jurídicas
devem ser produzidas e aplicadas “com o intuito de alcançar a jus-
tiça, mas essas normas jamais lograrão esse êxito, já que é impossível
dar completa expressão ao mesmo tempo à regra geral relevante e
a todas as possíveis exceções individuais pertinentes” (ROSENFELD,
2005, p. 822, tradução nossa).11 A possibilidade e a impossibilidade
da justiça traduzem dimensões em constante articulação.

Ao lado da tensão entre direito e justiça, Derrida concebe as


tensões entre tolerância e hospitalidade, entre globalização e
cosmopolitismo e entre a democracia real, calcada na persecução
racional da vontade da maioria, e a democracia por vir, escorada no
tratamento igualitário (e impossível) da singularidade completa de
cada indivíduo em um âmbito deliberativo global (DERRIDA, 2008,
p. 88-97; BORRADORI, 2003, p. 137-172).

10 Segundo Rosenfeld, “em uma simplificação que captura o essencial, a des-


construção derridiana da justiça como necessária mas impossível combina o
universalismo kantiano e o imperativo categórico, de um lado, e a perspectiva
em Nietzsche/Heidegger de que a experiência humana, viva e em constante
evolução, por sua diversidade complexa e vitalidade infinita, não pode ser pre-
cisa nem completamente capturada tampouco dominada pela razão, do outro

e pluralismo na era pós-nacional


lado. Em outras palavras, quando Derrida, o filósofo da diferença, volta-se à
ética, ele se depara instantaneamente com um chamado normativo poderoso
por um vínculo comum de identidade entre o ‘eu’ e o ‘outro’ – vínculo que
Kant estabelece no nível do idealismo transcendental – e a obrigação de lidar
com a profusão de diferenças percebidas no ‘outro’, em sua irredutibilidade,
muito embora o ‘eu’ consiga enxergar apenas uma parcela dessa diversidade”
(2005, p. 821-822). No original: “To oversimplify while capturing the essential,
Derrida’s deconstruction of justice as necessary but impossible combines Kan-
tian universalism and the categorical imperative, on the one hand, with the
Nietzschean/Heideggeiran insight that the living constantly evolving experience
that confronts us in all its complex diversity and vitality can never be neatly
captured much less mastered by reason, on the other. In other words, when
Derrida the philosopher of difference turns to the ethical, he encounters at once
the strong normative call for a common bond of identity between self and other
– a bond that Kant establishes at the level of transcendental idealism – and the
obligation to account for the full panoply of differences of the irreducible other,
though the self can at best have a partial glance into the diversity at stake”.
11 No original: “one may craft laws with the intent of achieving justice, but the-
se laws are bound to fall short as it is impossible to give full expression at once
to the relevant general rule and to all its pertinent individualized exceptions”. 343
NEPEL
A tolerância traduz uma virtude de ascendência católica, orga-
nicamente baseada na aceitação do “outro” (ROSENFELD, 2005, p.
828). Segundo Derrida, não se cuida exatamente de uma postura
de consideração do “outro” como um interlocutor em pé de igual-
dade, mas de uma aceitabilidade condicionada dos desvios e erros
desse “outro”. Isso porque o “eu” que tolera o “outro” se arvora
em uma posição de domínio da verdade, usualmente ligada a um
arranjo de poder, a partir da qual admite, em concessão, a não ver-
dade do “outro”, que é subjugado politicamente. É precisamente
essa expressão que Derrida percebe na defesa habermasiana da
“inclusão do outro”, já que, ao incluir o “outro”, o “eu” simples-
mente o tolera, mantendo como exclusivamente seu o sistema no
qual o “outro” é admitido. Contra essa noção de tolerância, Derrida
apresenta a virtude da hospitalidade, que consiste em uma atitude
de acolhimento incondicionado e espontâneo do “outro” no seio
da casa, da comunidade e da esfera político-deliberativa do “eu”. A
tolerância pressupõe a redução do “outro” a um objeto de condes-
cendência, ao passo que, pela hospitalidade, o “eu” e o “outro” se
reconhecem e se recebem igualitariamente como autores e leitores
do mundo da vida. Nesse enquadramento, a hospitalidade plena
e incondicional, embora politicamente impossível, revela-se como
meta moralmente necessária (DERRIDA, 2000, 2008).
A globalização, por sua vez, constitui um empreendimento
essencialmente direcionado à derrubada das barreiras físicas e virtu-
ais entre as nações e os povos, sendo comumente concebida como
uma iniciativa de busca pela liberdade e pela igualdade universais.
Contudo, conforme pontua Derrida, a premissa assumida pelos
fluxos globalizantes é inteiramente distinta, porque subentende a
imposição social, econômica e política de uma visão de mundo e
de um modo de vida específicos sobre a suposta totalidade dos
espaços identitários em nível mundial. É inegável que o projeto da
globalização, no que se refere à integração da economia e à insti-
tucionalização de parâmetros internacionais para os direitos huma-
nos básicos e as políticas públicas, está umbilicalmente amarrado
344
NEPEL
a uma insurgência de negação da segregação, da discriminação e
da exclusão. Entretanto, a proliferação e o assentamento de uma
vertente unificada de práticas e pensamentos, fortalecidos pelo

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


manejo das novas tecnologias, importa na afirmação do poderio
econômico e geopolítico de determinados Estados e setores sociais.
Há, portanto, uma contradição que perpassa por todo o arcabouço
do empreendimento globalizante. Nessa tensão, a projeção feita
por Derrida contrasta a globalização com o cosmopolitismo, que
é um ideal de base kantiana – e, por isso mesmo, aspiração essen-
cialmente iluminista –, consubstanciado na efetivação de uma rede
pós-nacional autenticamente comprometida com a cidadania em
uma arena global (DERRIDA, 2008, p. 166-173).
Esse cosmopolitismo implica o comprometimento com a realiza-
ção da democracia em nível mundial. Apesar disso, essa democra-
cia real, ainda que disseminada pela reflexão cosmopolita, não se
confunde com a consolidação material da convivência plena entre
todas as pessoas do mundo, isto é, o ideal da plenitude da igualdade
entre os interlocutores discursivos, efetivamente incluídos no espaço
público, e, consequentemente, do reconhecimento recíproco das
diferenças que marcam as suas singularidades identitárias, abertas,
na arena igualitária, à emancipação e à plenipotencialização. Exata-
mente em virtude da impossibilidade de implementação completa

e pluralismo na era pós-nacional


desse ideal, Derrida o apresenta como a democracia por vir, que
é um empreendimento inalcançável, mas dotado de um potencial
que jamais se esgota (DERRIDA, 1992, p. 23-29).
Nesse marco, o exercício da soberania na Era Pós-Nacional, mar-
cada pela busca do cosmopolitismo, se situa no entrecruzamento
entre a aspiração globalizante de um poder comunicativo igualita-
riamente distribuído em uma esfera pública mundial e a realização
das exigências inerentes às diferenças que definem a comunidade
internacional, as quais ainda se veem materializadas no âmbito do
Estado Nacional.

345
NEPEL
Assim, a aposta em uma constelação pós-nacional amparada
em um patriotismo constitucional desligado das particularida-
des culturais se mostra inconsistente, na medida em que ignora
a irredutibilidade e a intransponibilidade das diferenças entre o
“eu” e o “outro”. É desse primeiro entrave que provêm as outras
dificuldades atinentes à assimilação atual da relação entre direito
interno e direito internacional, entre Estado Nacional e ordem pós-
-nacional, entre a democracia estatista e a política deliberativa na
esfera pública global. Em uma perspectiva para além da política dos
séculos XVIII e XIX, a pretensão efetiva de justificar a legitimidade
do direito, especialmente no tocante a normas e orientações com
relação às quais os Estados não manifestaram sua concordância
expressa, não pode resultar na perquirição de um pluralismo inclu-
sivo, no qual o “eu” tolera e admite o “outro” em seu sistema
fechado, mas de um pluralismo plurilateral e abrangente, erguido
a partir do encontro espontâneo e livre entre o “eu” e o “outro”.

4. Nós, o povo: o paradoxo do poder


constituinte e a transformação do
direito

Qual é então o significado da Constituição e do poder consti-


tuinte na era pós-nacional?
Como fenômeno relativamente recente na história política
das comunidades ocidentais, a constitucionalização do poder
não se confunde com a sua juridificação. Constitucionalizar
é muito mais que juridificar, uma vez que a estabilização do
acoplamento estrutural entre direito e política, decorrente da
complexificação social que marca o advento da modernidade,
importou inicialmente na estratificação e na consequente hie-
rarquização do sistema jurídico positivo. Isso implica dizer que a
Constituição moderna adquire o status de norma suprema, cuja
346 alteração reclama a observância de um procedimento legisla-
NEPEL
tivo fundamentalmente mais rigoroso que o estabelecido para a
elaboração e a modificação dos atos infraconstitucionais. Aban-
donando a divisão normativa pré-moderna entre direito divino e

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


direito secular, a nova configuração se escora na ideia de nação,
posteriormente metamorfoseada na figura do povo.
O desenho originário é do abade Emmanuel Joseph Sieyès,
para quem o encaminhamento da Constituição do Estado e da
sociedade cumpre exclusivamente à nação, já que só a nação não
pode estar, não deve estar e, por isso mesmo, “não está subme-
tida a uma Constituição”. Daí a conclusão de que, embora, em
regra, o poder só resulte em uma expressão propriamente real se
for constitucional, “a vontade nacional, ao contrário, só precisa de
sua realidade para ser sempre legal: ela é a origem de toda legali-
dade” (SIEYÈS, 2009, p. 56). Apesar da diferença de abordagem,
Alexander Hamilton assume a mesma ordem de ideias ao anotar,
no Federalista nº 78, que o Poder Judiciário deve desempenhar
a importante função de declarar a nulidade de todo e qualquer
ato contrário à Constituição.12 A premissa dessa defesa – que é,
diga-se de passagem, anterior à decisão da Suprema Corte dos

12 No desdobramento desse raciocínio, Hamilton escreve que não se pode pre-


sumir que “o corpo legislativo seja ele mesmo o juiz constitucional de seus

e pluralismo na era pós-nacional


próprios poderes”, já que “não se pode supor que a Constituição permita que
os representantes do povo aponham sua vontade no lugar da de seus consti-
tuintes”. Por esses motivos, considerando que “a interpretação das leis traduz
tarefa própria e peculiar dos tribunais” e que “a Constituição é, de fato, e deve
ser reputada pelos juízes como a lei fundamental”, “pertence aos magistrados
a função de definir seu significado, assim como o significado de qualquer ato
derivado do corpo legislativo” (1788, p. 225-226, tradução nossa). Os excertos
foram extraídos do seguinte trecho no original: “If it be said that the legislative
body are themselves the constitutional judges of their own powers, and that
the construction they put upon them is conclusive upon the other departments,
it may be answered, that this cannot be the natural presumption, where it
is not to be collected from any particular provisions in the Constitution. It is
not otherwise to be supposed, that the Constitution could intend to enable
the representatives of the people to substitute their will to that of their consti-
tuents. It is far more rational to suppose, that the courts were designed to be
an intermediate body between the people and the legislature, in order, among
other things, to keep the latter within the limits assigned to their authority. The
interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts. A
constitution is, in fact, and must be regarded by the judges, as a fundamental
law. It therefore belongs to them to ascertain its meaning, as well as the mea-
ning of any particular act proceeding from the legislative body”. 347
NEPEL
Estados Unidos no caso Marbury v. Madison – está na percepção
de que nenhum ato legislativo incompatível com a Constituição
pode ser válido. Segundo Hamilton, “negar essa premissa impor-
taria em afirmar que o vice é maior que o titular; que o servo
está acima de seu mestre; que os representantes do povo são
superiores ao próprio povo” (HAMILTON, 1788, p. 225, tradução
nossa).13 Assim, vê-se claramente que a supremacia constitucional
está atrelada à transformação moderna das noções de direito e
de poder.
O conceito de poder constituinte emerge dessa transformação.
Em virtude da impossibilidade de justificar a hierarquia normativa
à luz de princípios pré-modernos, o constitucionalismo adota a
soberania popular como base de legitimação do direito. Nesse
ínterim, a Constituição é primariamente concebida como criação
e expressão da vontade do próprio povo. É dessa construção que
provém a diferenciação funcional entre o ato normativo consti-
tucional, tradutor das pretensões do titular ele mesmo, e o ato
normativo infraconstitucional, que emana da atuação dos pode-
res constituídos, organizados pela lógica representativa. Bruce
Ackerman atualiza essa distinção tendo como pano de fundo
a história constitucional estadunidense.14 A tese da democracia
dualista, defendida pelo autor, parte do suposto de que a assimi-
lação da Constituição se dá a partir de duas dimensões decisórias
distintas: as decisões tomadas pelo povo e as decisões tomadas
pelo governo. “Decisões tomadas pelo povo ocorrem raramente,
em condições constitucionais especiais”, ao passo que “decisões
tomadas pelo governo acontecem diariamente, em condições

13 No original: “No legislative act, therefore, contrary to the Constitution, can


be valid. To deny this, would be to affirm, that the deputy is greater than his
principal; that the servant is above his master; that the representatives of the
people are superior to the people themselves”.
14 O empreendimento acadêmico de Ackerman é digno de nota, porquanto
revela um imenso esforço pelo mapeamento teórico da história constitucional
dos Estados Unidos, com enfoque na identificação de momentos-chave nos
quais a manifestação acentuada dos movimentos populares forçou a substi-
tuição ou ao menos a transformação do paradigma constitucional. Cf. Acker-
348 man, 1993; 1998; 2014.
NEPEL
também especiais”. Para Ackerman, a perspectiva dualista possi-
bilita equacionar adequadamente “a gama de movimentos polí-
ticos que, a partir da fundação, implicaram o engajamento em

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


atos de cidadania que, quando bem sucedidos, culminaram na
proclamação de um direito superior, em nome do povo” (ACKER-
MAN, 1993, p. 6-7, tradução nossa).15 Esse enfoque robustece a
separação entre os poderes constituídos e o poder constituinte.
Em resumo, as expressões políticas constituídas caracterizam-se
como frequentes, ordinárias, conduzidas por representantes do
povo e, nesse encaminhamento, balizadas pela Constituição;
as expressões políticas constituintes, por outro lado, são excep-
cionais, criteriosas, capitaneadas pelo próprio povo e, em assim
sendo, não balizadas pela Constituição, já que tradutoras da pró-
pria essência constitucional.
A globalização e o advento da era pós-nacional introduzem
novos questionamentos nesse quadro conceitual. Com o forta-
lecimento dos fluxos comunicacionais entre os sistemas sociais
para além do Estado Nacional, a dicotomia entre direito interno
e direito externo é reelaborada, de tal modo que “o sistema jurí-
dico perde sua âncora – o direito nacional e o constitucionalismo
estatal deixam de figurar no centro dos processos jurídicos [...]”
(KRISCH, 2010, p. 23, tradução nossa).16 Em outras palavras, “a

e pluralismo na era pós-nacional


ideia de uma ‘constelação pós-nacional’ projeta um mundo no
qual globalização, privatização e individualização transformaram
a configuração básica do universo político-jurídico” (KUMM,

15 Excertos retirados do seguinte trecho no original: “Decisions by the People


occur rarely, and under special constitutional conditions. [...]. Decisions made
by government occur daily, and also under special conditions. [...] the series
of political movements that have, from the Founding onward, called upon
their fellow Americans to engage in acts of citizenship that, when successful,
culminates in the proclamation of higher law in the name of We the People”.
16 No original: “In the age of postnational governance, the legal order has lost
its anchor – national law and domestic constitutionalism are no longer at the
centre of legal processes, and they do not present a promising option either”. 349
NEPEL
2010, p. 201, tradução nossa).17 No que se refere ao primado da
soberania popular e à lógica do poder constituinte, as transfor-
mações em questão implicam, à primeira vista, o esvaziamento
da figura do povo como fonte exclusiva de legitimação do poder
e do direito. Em outras palavras, a pretensão de implementação
interna de orientações externas, concebidas fora do ambiente
político-deliberativo do Estado Nacional, pressuporia a conjectura
de que o povo constitucional, revelado a partir da ocorrência de
um evento fundacional, não mais detém o monopólio sobre a
constitucionalização do espaço decisório.
Dieter Grimm percebe essa nuance ao analisar as implicações
que as novas experiências pós-nacionais podem trazer à demo-
cracia estatal, sobretudo no tocante aos ganhos acumulados
ao longo da trajetória histórica percorrida pelo constituciona-
lismo moderno. Segundo o autor, “sem a distinção [entre poder
constituinte e poderes constituídos] e a separação entre direito
constitucional e direito infraconstitucional, com a subordina-
ção deste àquele, o constitucionalismo não teria sido capaz de
cumprir a sua função” (GRIMM, 2010, p. 9, tradução nossa).18
O esvaziamento da força normativa do poder constituinte e da
capacidade decisória dos poderes internos – em especial, como
vimos, o Poder Legislativo – resultaria em negação da própria
gênese democrática.
O ponto é de fato tormentoso, pois a manifestação cons-
tituinte visa a traduzir uma ação fundamental de afirmação
política. Assim, quaisquer intervenções incompatíveis com essa
manifestação, inclusive (e sobretudo) as emanadas de órgãos
externos, deveriam ser encaradas como atentatórias contra a
independência e a capacidade de um povo para a autogestão e

17 No original: “The idea of a ‘postnational constellation’ conjures up a world


in which globalisation, privatisation, and individualisation have changed the
basic configuration of the legal and political world”.
18 No original: “Without this distinction and the ensuing distinction between
constitutional law and ordinary law and of the subordination of the latter to
350 the former, constitutionalism would have been unable to fulfill its function”.
NEPEL
a autolimitação. Nesse sentido, como podemos pensar o poder
constituinte e os poderes constituídos, a criação e a reforma
constitucionais, o ato legislativo e a ação política, frente à ideia

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


de um direito que nasce e se transforma fora do Estado Nacio-
nal? Não haveria aqui um déficit democrático insuperável, um
vício, portanto, que faria originariamente ruir a possibilidade de
uma internacionalização legítima?
A prevalência da soberania do povo perfaz, na moderni-
dade ocidental, um percurso tortuoso. Trata-se de caminho que
compreende inúmeros movimentos, remontando aos levantes
oitocentistas da América do Norte e da França revolucionárias.
Em sua complexa relação com a Constituição, o pressuposto da
soberania popular se materializa pelo canal do poder constituinte.
Por essa razão, o poder constituinte revela-se como um “conceito
de fronteira”, situando-se nos limites do conhecimento jurídico.
Contudo, como o próprio espaço de definição política das opções
constitucionais é fundamentalmente marcado por conflitos, o sig-
nificado desse conceito sempre constituiu objeto de constantes e
acirradas disputas.19
Essa conjuntura é explicada pelo fato de o poder constituinte
se originar de pretensões político-intelectuais de racionalização
da autoridade, que sempre se viram inevitavelmente mergulhadas

e pluralismo na era pós-nacional


em conflitos em torno da definição e da distribuição do poder.
Em sua conformação básica, o instituto se presta à decodificação
do fundamento último do poder estatal em uma linguagem do
direito. Em outras palavras, a conceituação busca realizar o fecha-

19 Loughlin afirma que o “poder constituinte não é apenas um conceito de


fronteira, mas sobretudo um conceito de combate, cujo significado se mos-
tra enraizado em profundas disputas acerca da natureza da ordem jurídica,
política e constitucional. É, portanto, muito difícil explicar o conceito sem se
enfronhar em contendas de cunho ideológico e semântico” (2014, p. 218,
tradução nossa). No original: “Constituent power is not only a Grenzbegriff
but also a Kampfbegriff whose meaning is rooted within deeper disputes over
the nature of legal, political and constitutional ordering. It is difficult, then, to
explain its nature without getting entangled in disputes of an ideological as
well as a conceptual nature”. 351
NEPEL
mento lógico-teórico da institucionalização jurídica do político.
Nos movimentos de racionalização e secularização dos séculos
XVIII e XIX, o poder constituinte permitiu a implementação de
dois importantes princípios condutores do projeto iluminista: as
ideias de que “todo poder emana do povo” e de que a Constitui-
ção, compreendida como entidade jurídico-normativa, é produto
criativo desse “povo”. Nessa proposta, a Constituição é conce-
bida como o engenho de um poder místico e transcendental,
assentado em um estado de espírito e legitimado por ele para
o estabelecimento das normas com base nas quais a sociedade
viverá. Cuida-se de visão fundamental na orientação primária do
empreendimento revolucionário.
Contudo, tal noção se encontra superada há algum tempo.
Quando se tem em mente o referencial procedimentalista haber-
masiano, a ideia de um direito que se legitima pela afirmação,
em equiprimordialidade, da autonomia pública e da autonomia
privada dos cidadãos não se concilia com a defesa de um ins-
tituto de poder ilimitado, incondicionado e que atua em um
marco zero político-jurídico-social. Essa constatação se faz bas-
tante evidente no diálogo entre Habermas e Frank Michelman
acerca do paradoxo da relação entre facticidade e validade no
ato fundacional. A crítica deduzida por Michelman se dirige à
reconstrução do momento constituinte, já que, para ele, a pers-
pectiva da coesão interna e necessária entre direito e democra-
cia não permitiria a concepção do ordenamento jurídico como
o produto de uma manifestação cronologicamente rastreável.
O paradoxo entre Estado de Direito e soberania popular nunca
se resolveria completamente, mantendo-se sempre passível de
reemergir toda vez que o processo de formação da opinião e da
vontade constituintes fosse colocado em questão. Isso porque o
questionamento sobre o caráter democrático do ato de funda-
ção da democracia levaria, assim, a um “regresso ao infinito”,
no sentido de uma “autoconstituição circular” (MICHELMAN,
1999, p. 3-62).
352
NEPEL
Em sua resposta, Habermas demonstra que a premissa assu-
mida por Michelman torna a sua provocação absolutamente
inconsistente. Segundo ele, o que há por trás da provocação é

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


uma impressão incompleta do processo de legitimação, a longo
prazo, do direito e do poder, ignorando que a Constituição
opera não apenas como o retrato de um fenômeno constituinte
que estabelece as opções políticas fundamentais, mas sobretudo
como baluarte de um espaço de vigência de direitos, os quais,
embora lançados como promessa, dependem de um compro-
misso das gerações futuras, às quais cumprirá sua atualização.
Isso significa que

a relação aparentemente paradoxal entre demo-


cracia e Estado de Direito se resolve na dimensão
do tempo histórico, compreendendo-se a Cons-
tituição como um projeto que transforma o ato
fundacional em um processo contínuo de cons-
titucionalização, que se desdobra ao longo de
gerações. (HABERMAS, 2001, p. 768, tradução
nossa).20

Em uma tradução desse direcionamento, Martin Loughlin


isola três vertentes teóricas que, segundo ele, se apropriam do

e pluralismo na era pós-nacional


conceito de poder constituinte: o normativismo, o decisionismo
e o relacionalismo. O normativismo preceitua que, em função da
autonomia do sistema jurídico, o poder constituinte consiste em
uma categoria redundante. O decisionismo, por sua vez, defende
que o direito emana de uma manifestação de vontade; em assim

20 No original: “the allegedly paradoxical relation between democracy and the


rule of law resolves itself in the dimension of historical time, provided one con-
ceives the constitution as a project that makes the founding act into an ongoing
process of constitution-making that continues across generations”. Sobre essa
discussão, Emílio Meyer escreve que “a amarração entre os princípios do Estado
Democrático de Direito se evidencia na prática comum de cidadãos que pro-
curam interpretar e atualizar uma Constituição. O sentido performativo dessa
prática, que visa criar uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, é
enunciado na Constituição, e apenas isto, dependendo de uma explicação coti-
diana, num processo que se corrige a si mesmo” (2008, p. 194). 353
NEPEL
sendo, o sistema jurídico não se mostra capaz de assegurar auto-
nomamente sua própria existência, devendo ajustar-se à decisão
soberana da qual se originou. Por fim, para os adeptos do relacio-
nalismo, na esteira da defesa habermasiana, o poder constituinte
expressa uma relação de direito, obtida como o resultado de uma
expressão jurídico-política aberta e, por isso mesmo, dinâmica e
provisória (LOUGHLIN, 2014, p. 218-237).
Dada a incompatibilidade aparente entre presença e represen-
tação, a superação da contradição que permeia o poder consti-
tuinte só é efetivamente equacionada a partir de uma abordagem
relacional. A natureza ambígua da fundação constituinte deriva
da percepção de que, embora o ato fundacional promova uma
presença a partir da qual é definida a representação, tal ato não
revela imediatamente o “povo” como uma identidade coletiva
inquestionável. O poder constituinte não só emana do “povo”,
mas também define quem é esse “povo”. Ou seja, “o poder cons-
tituinte não envolve um simples exercício de poder pelo povo: ele
simultaneamente constitui o povo. O poder constituinte expressa
o fato de uma unidade que é criada da desunião” (LOUGHLIN,
2014, p. 229, tradução nossa).21
O poder constituinte não é, portanto, apenas uma mani-
festação política fechada em um momento pré-constitucional.
Na verdade, para equilibrar a tensão que se estabelece entre o
“ser mesmo” (identidade como natureza) e o “ser projetado”
(identidade como qualidade construída), é preciso conceber a
manifestação constituinte como uma relação (de direito) entre o
“povo” e a forma constitucional por meio da qual ele se expressa.
Embora possua um início marcado no tempo, essa relação não se
exaure com a ocorrência de um ou outro ato; pelo contrário, ela
vivifica, na dialética entre democracia real e democracia por vir,
um potencial que jamais se esgota. “E somente assim se pode,

21 No original: “[...] constituent power not only involves the exercise of power
by a people: it simultaneously constitutes a people. Constituent power expres-
354 ses the fact that unity is created from disunity [...]”.
NEPEL
portanto, afirmar que as exigências normativas, que se colocam
a esse processo constituinte, ao invés de barreiras a ele, são, na
verdade, constitutivos dele” (OLIVEIRA, 2011, p. 31).

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


5. Pluralismo abrangente na era pós-
nacional

Mencionamos acima que o fenômeno da internacionalização


do direito tem colocado em xeque o papel tradicionalmente atri-
buído às instituições do Estado Nacional, especialmente em razão
de dois principais problemas: a construção em âmbito interna-
cional de decisões que antes ficavam reservadas ao espaço de
autodeterminação nacional; e o reconhecimento, especialmente
por órgãos internacionais de natureza judicial, da existência de
normas de observância cogente pelos Estados, não obstante seu
consentimento, as disposições de seu direito interno ou os demais
acordos firmados em âmbito internacional.
A dificuldade que naturalmente se coloca diz respeito à
necessidade de proteção da identidade constitucional do Estado.
Sem pretender renunciar aos ganhos civilizatórios advindos da
expansão e da complexificação da comunidade internacional,

e pluralismo na era pós-nacional


as sociedades nacionais têm enfrentado o dilema de garantir a
preservação de um lócus de afirmação das peculiaridades que são
constitutivas de sua soberania.
Vimos que a defesa do patriotismo constitucional implica a pro-
posta de construção de uma identidade voltada para a realização
da democracia constitucional em esfera global. A noção se escora
nos fundamentos de um sistema político-jurídico organizado a
partir de um processo deliberativo-democrático vocacionado aos
primados da transparência, da consideração pelo outro e do reco-
nhecimento mútuo. Todavia, como aponta a crítica aventada por
Derrida, a imposição de um modo uniformizado de procedimen-
355
NEPEL
talizar a democracia, ainda que com lastro em referenciais delibe-
rativos de aspiração universal, desconsidera a intransponibilidade
da diferença que separa o “eu” e o “outro”. Assim, a projeção
de uma arena deliberativa de âmbito mundial acaba resultando
na sobreposição de uma hegemonia nacional em detrimento de
outras, esvaziando a pluralidade político-jurídica que atravessa o
conjunto de atores partícipes do projeto emancipatório do consti-
tucionalismo na modernidade.
Simultaneamente com e contra Habermas e Derrida, Michel
Rosenfeld defende a assunção de um pluralismo plurilateral e
abrangente como forma de equilibrar a tensão entre o particular
e o universal. Trata-se, no nosso entender, da perspectiva teó-
rica que melhor equaciona o estiramento entre a pretensão de
universalização dos postulados da democracia constitucional e
a exigência de salvaguarda das diferenças que particularizam as
realidades nacionais.
A reflexão rosenfeldiana é no sentido de que, embora a linha
assumida por Habermas tenha o condão de projetar normativa-
mente um viés constitucional para além do espaço estatal, sobre-
tudo no que se refere à defesa da proteção dos direitos humanos,
não há um parâmetro convincente para a aferição de que a estru-
tura mundial projetada será densamente incorporada pelos atores
comunicativos em suas práticas sociais e institucionais. “O que
parece faltar no tocante às normas supranacionais relativas ao
procedimento democrático e aos direitos humanos é um modo
persuasivo de reconciliar o universal e o particular, o singular e o
plural” (ROSENFELD, 2010, p. 269, tradução nossa).22
Tentando superar esse obstáculo, o pluralismo abrangente
se baseia na institucionalização de uma pluralização normativa,
no sentido da proteção, da atualização e da plenipotencialização

22 No original: “What seems to be lacking with respect to these norms, there-


fore, is a cogent way to reconcile the universal and the particular, the singular
356 and the plural”.
NEPEL
do maior número possível de concepções de direito e de justiça,
nomeadamente em conjunturas nas quais vigoram concepções
múltiplas, divergentes e contrastantes. Ao mesmo tempo em

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


que se apresenta como uma concepção de justiça, o pluralismo
abrangente depende da entrada de outras concepções, já que se
alimenta de um contexto de efetiva pluralidade. Por isso mesmo,
trata-se de orientação assentada em um paradoxo aparente: con-
quanto recuse qualquer vindicação de neutralidade, em função
de se colocar como uma concepção superior às demais, a sua
viabilização exige a acomodação de quantas outras concepções
sejam possíveis. Nessa leitura, o pluralismo abrangente se revela
concomitantemente não monista e não relativista. É não monista
porque não isola a sua convicção como sendo a única para o
alcance da verdade e da justiça. E é não relativista uma vez que,
por estar amarrado a uma variedade autêntica de concepções,
não admite a justificação da intolerância ou da exclusão (ROSEN-
FELD, 2005, 2007, 2010).
A aparência paradoxal da teoria é superada pela compreensão
dinâmica e dialética de sua concepção de justiça, no sentido tanto
de uma negação relativista do monismo quanto de uma rejeição
monista do relativismo. “O pluralismo abrangente sustenta que o
respeito é superior ao desrespeito e que nenhuma concepção de

e pluralismo na era pós-nacional


bem além do pluralismo em si é precipuamente superior a qual-
quer outra” (ROSENFELD, 2007, p. 175, tradução nossa).23
Para a realização dessa compreensão, são necessárias duas
tarefas. A primeira compreende a nivelação negativa de todas as
hierarquias, preconcepções e preferências, de modo a situar as
diversas concepções de justiça como precipuamente dignas de
reconhecimento, consideração e proteção. A segunda tarefa, por
sua vez, é de caráter positivo, traduzindo a inserção e a acomoda-
ção do maior número possível de concepções de bem, em prol de

23 No original: “Comprehensive pluralism holds that tolerance is superior to in-


tolerance, and that no conception of the good beyond pluralism itself is prima
facie superior to any other”. 357
NEPEL
uma coexistência pacífica e, nessa perspectiva, sustentavelmente
plural. Nesse segundo momento, uma concepção estritamente
baseada na recusa ou mesmo na erradicação de outras concep-
ções será inevitavelmente excluída, já que claramente não alcança
um mínimo de compatibilidade com o princípio do pluralismo.
Quanto às concepções não integralmente abertas à assimilação
plurilateral das demais, mas contrárias à destruição violenta do
“outro”, a sua introjeção no espaço público dependerá de uma
recolocação de seus próprios termos. Isso significa que, preserva-
das as respectivas identidades, tais concepções serão reintrodu-
zidas, a partir da segunda tarefa, à luz das balizas constitutivas
do pluralismo abrangente, de maneira que suas manifestações e
iniciativas estejam restritas às esferas privadas, sem que tal restri-
ção implique, por outro lado, um esvaziamento de seu potencial
deliberativo e argumentativo na arena pública. Uma ética plura-
lista desse viés é capaz tanto de acomodar a diferença quanto de
negar o caráter absoluto da singularidade irredutível (ROSENFELD,
2005, 2011).
Em um mundo pós-nacional, a prevalência do pluralismo
abrangente parece atender às exigências de proteção dos direitos
humanos e garantia da democracia deliberativa, sem resultar em
um prejuízo ao valor da diferença na relação entre “eu” e “outro”.
As decisões gestadas no âmbito internacional serão encaradas
como pontos de partida do debate que necessariamente ocorrerá
em nível nacional; seus termos serão necessariamente ressigni-
ficados, cumprindo às instâncias internas – com destaque para
o Poder Legislativo, lugar primordial de tradução do pluralismo
político – assimilá-las de modo a garantir sua incorporação social
e institucional. Já as normas de jus cogens devem ser encaradas
como pivôs necessários à sustentação dessa proposta normativa,
na medida em que garantem, na sua substância, a pluralidade de
manifestações culturais, orientações religiosas e opiniões políticas.
Mas qual seria, nesse cenário, o papel a ser desempenhado
358
pelas instituições do Estado Nacional?
NEPEL
No contexto europeu, a assimilação do Tratado de Lisboa24
pelas cortes constitucionais dos Estados-membros da União cons-
titui uma experiência de importância para a apreensão da tensão

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


entre direito constitucional e direito internacional. No caso do Tri-
bunal Constitucional Federal alemão, por exemplo, a apreensão
dialética da integração europeia pela ordem constitucional interna
seguiu um rumo de resguardo da soberania nacional, muito
embora a perspectiva internacional tenha saído paradoxalmente
afirmada. Em um primeiro momento, o Tribunal entendera, tendo
em vista o Tratado de Maastricht, que à jurisdição constitucional
interna cumpriria avaliar se a decisão exarada pelas instituições
europeias havia sido construída no limite de suas competências:
o chamado “controle ultra-vires”. Com o advento do Tratado de
Lisboa, o Tribunal acrescentou um novo critério à revisão interna
dos pronunciamentos decisórios assumidos no âmbito da União:
o respeito à identidade constitucional da Alemanha. Contudo,
reconheceu a validade do novo arranjo transnacional, afirmando
que os propósitos que estruturam a integração regional europeia
são eles próprios elementos da identidade do sujeito constitucio-
nal alemão. Embora não passe imune de críticas, tal decisão busca
efetivamente reconciliar o projeto de universalização do ideal
emancipatório europeu à exigência de proteção da soberania
nacional (THYM, 2011, p. 31-43; FISCHER-LESCANO; JOERGES;
e pluralismo na era pós-nacional
WONKA, 2010, p. 111-120). Assim, sem abrir mão dos limites
inerentes às diferenças locais, ela fortalece as bases do consti-
tucionalismo, abrindo-as a um pluralismo cosmopolita multinível
(PERNICE, 2009, 2011).
O caso mencionado é interessante, apesar de suas particula-
ridades, pois ilustra como o aprofundamento da internacionali-
zação do direito depende, para se manter fiel às suas diretrizes

24 Assinado em 13 de dezembro de 2007 pelos Estados-membros da União


Europeia, o Tratado de Lisboa entrou em vigor no dia 1o de dezembro de
2009. Também conhecido como “tratado reformador”, cuida-se de emenda
ao Tratado de Maastricht, principalmente baseada na ampliação e no fortale-
cimento do espaço institucional-decisório no âmbito europeu. 359
NEPEL
básicas, de um robustecimento do papel deliberativo das institui-
ções nacionais. No fim das contas, a perspectiva que embasa a
constelação pós-nacional é exatamente a mesma à luz da qual o
Estado moderno se edifica. Os avanços e retrocessos dessa nova
configuração precisarão ser – sobretudo no espectro das possi-
bilidades discursivas que se entrecruzam no processo legislativo
– constantemente filtrados, problematizados e traduzidos.

6. Conclusão

Para concluir, retomamos a indagação que abre o presente


trabalho: vivemos um tempo de superação dos limites político-
-institucionais do Estado Nacional?
Parece-nos evidente que não. Embora passemos por um con-
texto de aproximação entre as concepções de direito interno e
direito internacional, a afirmação da democracia constitucional,
fortemente radicada no desempenho do Estado, continua sendo
a única maneira de garantir e plenipotencializar os avanços acu-
mulados nos últimos duzentos anos.
No presente trabalho, feito um diagnóstico do problema
democrático que emerge face ao fenômeno da internacionaliza-
ção do direito, procedeu-se a uma dissecação das contribuições
teóricas de Jürgen Habermas, Jacques Derrida e Michel Rosenfeld
a propósito do significado do constitucionalismo e da soberania
estatal no marco de uma era pós-nacional. Para Habermas, as cri-
ses de soberania vividas no seio do Estado Nacional seriam suplan-
tadas pela adoção de um patriotismo constitucional em escala
global, capaz de sedimentar uma cultura cidadã e plural, baseada
na afirmação do Estado de Direito e dos direitos fundamentais
como condições de possibilidade de institucionalização de uma
política deliberativa em âmbito mundial. Em contraposição crítica,
Derrida concebe a justiça como uma experiência do impossível,
360
NEPEL
ressaltando a intransponibilidade da diferença que define o
“outro”. Nessa ordem de ideias, a defesa da inclusão do “outro”,
no marco de uma constelação pós-nacional, é enfrentada como

8. A internacionalização do direito, o Poder Legislativo e o problema democrático: soberania, constituição


corolária de um prisma de tolerância, que implica uma postura de
sujeição do “outro” ao universo intangível do “eu”. Com arrimo
nessas duas reflexões, Rosenfeld formula a tese do pluralismo
abrangente, de forma a considerar os desafios pós-nacionais pela
perspectiva de um pluralismo amplo e plurilateral, dependente
do robustecimento da diversidade, mas contrário às identidades
baseadas na destruição do “outro”.
Abraçando essas três correntes, a reflexão buscou recuperar o
significado prático do poder constituinte, assumindo uma abor-
dagem relacional, bem como reconstruir o papel da Constituição
e das instituições democráticas encarregadas de densificá-la e
protegê-la. A transformação do direito e do poder, no marco de
uma era pós-nacional, não pode resultar em um esvaziamento
das conquistas decorrentes do constitucionalismo. Pelo contrário,
o que a internacionalização do direito precisa representar é um
projeto de expansão e aprofundamento dos postulados do Estado
de Direito, da separação dos poderes e da proteção dos direitos
fundamentais alinhado à afirmação da soberania popular. Frente
a isso, o espaço a ser ocupado pelo Poder Legislativo segue indis-

e pluralismo na era pós-nacional


putavelmente fundamental.

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365
NEPEL
9 CONTROLE
DE FATOS E
PROGNOSES
LEGISLATIVOS
PELO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL
José Adércio Leite Sampaio*

Christiane Costa Assis**

*Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha). Doutor e Mestre em


Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Pós-graduação Stricto Sensu
em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Escola Superior Dom Helder
Câmara. Procurador da República. E-mail: joseadercio.contato@gmail.com
** Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora da Universidade do Estado de
Minas Gerais. E-mail: assischris@gmail.com
1. INTRODUÇÃO

O controle de fatos e prognoses legislativas pelo Poder Judiciá-


rio é sensível às discussões sobre a separação de poderes. No con-

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


texto do controle abstrato de constitucionalidade, questionam-se
os limites e parâmetros da atuação do Tribunal Constitucional
em face de uma possível interferência de mérito. As construções
recentes sobre a segurança jurídica filtrada pela ideia de justiça
apontam que o papel da Corte Constitucional demanda leituras
que não sejam cegas aos efeitos práticos das decisões (ASSIS,
2016).
O presente artigo tem como objetivo analisar o controle de
fatos e prognoses legislativas pelo Tribunal Constitucional a partir
da ideia de Constituição como reserva de justiça institucionali-
zada. No trabalho adotou-se o método indutivo aliado à pesquisa
bibliográfica sobre o tema. Inicialmente serão apresentadas as
relações constitucionais entre a segurança jurídica e a justiça.
Após, apresentar-se-ão discussões sobre os parâmetros para o
controle de fatos e prognoses pela Corte Constitucional.

2. CONSTITUIÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E


JUSTIÇA

A justiça e a segurança jurídica já foram vistas como antino-


mias, sendo a primeira concebida como “[...] exigência de adapta-
369
NEPEL
ção do direito às necessidades da vida social” (PÉREZ LUÑO, 1997,
p. 220, tradução nossa)1 e a segunda como “[...] características
formais, permanentes e de cumprimento obrigatório que formam
o direito” (PÉREZ LUÑO, 1997, p. 220, tradução nossa)2.

Há que se considerar uma boa relação entre segurança jurí-


dica e justiça, uma vez que ambas contêm pressupostos e pro-
cedimentos necessários à garantia da boa ordem da sociedade
(PÉREZ LUÑO, 1997, p. 220). Entretanto, a primeira foi obrigada
a abandonar sua identificação com a simples noção de legalidade
ou positividade do Direito, passando a se conectar com os bens
juridicamente relevantes do ponto de vista social e político. Já a
segunda deixou a dimensão do ideal e abstrato para incorporar as
exigências igualitárias e democráticas impulsionadas pelo Estado
Social (PÉREZ LUÑO, 1997, p. 221). A expansão de ambos os con-
ceitos, ao longo da história, acabou por transformar a segurança
jurídica em um desdobramento da própria justiça (PÉREZ LUÑO,
1997, p. 220).

No Estado Democrático de Direito, o conceito de justiça pas-


sou a englobar a segurança jurídica e também outros atributos,
maximizando-se o campo de abrangência daquela. O desloca-
mento do eixo para a justiça provocou a releitura dos institutos
afetos à segurança jurídica, tais como o direito adquirido e a coisa
julgada, cuja manutenção passou a depender da filtragem pelo
conceito mais abrangente, qual seja: a justiça.

Na cultura jurídica moderna existem duas posições extremas:


a primeira acredita que a existência do Direito não apenas cria
segurança, mas também justiça; a segunda contrapõe a segu-
rança a uma justiça material identificável pela autoridade de seu
autor (MARTÍNEZ, 1990, p. 218). Demonstra-se mais adequada

1 No original: “[...] exigencia de adptación del derecho a las necesidades de la


vida social.”
2 No original: “[...] rasgos formales, permanentes y de obligado cumplimiento
370 que conforman al derecho.”
NEPEL
a compreensão de uma segurança social que implique a segu-
rança jurídica, por se estabelecer por meio da lei mesclada com
dimensões de justiça, liberdade e igualdades materiais. Essas
duas dimensões contribuem para a criação de condições sociais
de superação de necessidades ou de certeza diante da velhice,
enfermidade ou morte (MARTÍNEZ, 1990, p. 221). Assim sendo,
a segurança jurídica se integrou à noção de justiça material, que
é a ideia-chave para a compreensão do Direito (MARTÍNEZ, 1990,
p. 216). Na atualidade, por influência do pensamento democrá-
tico e socialista, busca-se a segurança no seio da sociedade como
expressão da relação do homem com as necessidades sociais e
sua satisfação (MARTÍNEZ, 1990, p. 221).

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


Existem duas condições indispensáveis para a segurança jurí-
dica que, consequentemente, são condições de justiça. A primeira
consiste na possibilidade de compreender o Direito como um
sistema. A aparição do Estado como forma política do mundo
moderno, na busca pela supressão da pluralidade de fontes do
Direito, permitiu que o Direito fosse compreendido como um
sistema, pois não há sistema que não produza, por sua simples
existência, certa segurança jurídica; e também não há segurança
jurídica que se possa conceber à margem do sistema (MARTÍNEZ,
1990, p. 219). A segunda condição indispensável é a progressiva
supressão de privilégios e normas especiais e ainda a aparição
de um destinatário genérico das normas jurídicas. Trata-se da
“igualdade como generalização”, que afeta o sujeito passivo, o
objeto e o conteúdo das normas (MARTÍNEZ, 1990, p. 219). Nesse
contexto, a segurança jurídica sempre ocorre por meio do Direito,
podendo-se identificar três dimensões suas: em relação ao poder,
em relação ao próprio Direito e em relação à sociedade. Em todas
elas é possível verificar a filtragem da justiça.
A segurança jurídica em relação ao poder se refere à origem
(estabelece as instituições, órgãos, funcionários e operadores
jurídicos habilitados pelo Direito a criar normas), exercício (esta-
belece os procedimentos prévios para a formação da vontade do 371
NEPEL
poder nos termos da Constituição e da lei) e limites (estabelece
as garantias processuais e penais) deste (MARTÍNEZ, 1990, p.
222-224). Essa dimensão do poder se expressa por meio das
instituições, princípios de organização ou de valores do Direito
Público, em especial Constitucional e Administrativo, que refle-
tem sobre direitos fundamentais, direitos públicos subjetivos ou
simples situações jurídicas de cidadãos ou grupos (MARTÍNEZ,
1990, p. 222).
A segurança jurídica em relação ao próprio Direito é uma
dimensão interna, que supõe a existência de mecanismos e
técnicas formuladas como princípios de organização e inter-
pretação ou como direitos subjetivos que funcionam no inte-
rior do ordenamento jurídico (MARTÍNEZ, 1990, p. 224). São
preceitos que tratam da criação e derrogação das normas, de
sua aplicação e interpretação e de sua preservação ou garan-
tia, utilizando-se de procedimentos previamente estabelecidos
(MARTÍNEZ, 1990, p. 225). Nessa dimensão, incluem-se as
regras acerca de irretroatividade das leis, respeito ao direito
adquirido e à coisa julgada.
A segurança jurídica em relação à sociedade se refere à
extensão da ação do Direito em setores tradicionalmente aban-
donados à autonomia da vontade e à livre ação dos particulares,
mas que, por influência democrática e socialista, incorporaram-
-se progressivamente às preocupações da cultura jurídica (MAR-
TÍNEZ, 1990, p. 227). Trata-se de uma dimensão rechaçada por
defensores do neoliberalismo, do Estado mínimo e da interpre-
tação econômica do Direito, sendo, entretanto, defendida por
aqueles que afirmam a necessidade de um Estado Social. Nesse
sentido, a preocupação com a criação de condições de igual-
dade na liberdade repercute na ideia de segurança jurídica que,
nesse caso, não seria apenas ausência de temor ou existência de
certeza, mas também tranquilidade de que os mais fracos não
sejam abandonados diante dos mais fortes (MARTÍNEZ, 1990,
372 p. 228). Essa dimensão se refere à necessidade da intervenção
NEPEL
estatal para a proteção de trabalhadores, consumidores e usuá-
rios, que não deve ocorrer apenas para garantir as necessidades
básicas (MARTÍNEZ, 1990, p. 228). Ressalte-se, entretanto, que
existem posicionamentos doutrinários contrários às intervenções
estatais dessa natureza.
É possível compreender a segurança jurídica como um adjetivo
em relação à justiça (VIGO, 1998, p. 516), definindo aquela como
um fator modernamente decisivo para estabelecer o melhor ou
o pior direito (VIGO, 1998, p. 501) e, para tanto, uma série de
requisitos envolvendo a justiça se impõem. A segurança jurídica
requer a existência de regras gerais que permitam aos diferentes
operadores jurídicos medir os distintos problemas, possibilitando

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


um tratamento igualitário dos casos iguais e também criando um
marco para o cálculo jurídico futuro (VIGO, 1998, p. 502).
Lado outro, a existência de tais regras também assegura a pos-
sibilidade de que os destinatários conheçam os direitos e deveres
que as normas lhes atribuem. Entretanto, convém ressaltar que
não se trata de uma exigência de conhecimento, pois o desco-
nhecimento da lei não pode justificar seu descumprimento (VIGO,
1998, p. 503). A intenção é apontar a necessidade de criação de
mecanismos que facilitem o conhecimento e a compreensão das
leis pelos cidadãos (VIGO, 1998, p. 503-504), pois o acesso fácil e
permanente às regras jurídicas consiste em requisito da segurança
jurídica.
Outro requisito consiste na estabilidade das disposições jurí-
dicas, pois as mudanças constantes dos direitos e deveres não
favorecem o cumprimento das normas por não possibilitar a
difusão, na sociedade, de condutas jurídicas desejáveis. A ausên-
cia de estabilidade exige dos destinatários uma permanente
atenção às mudanças legislativas (VIGO, 1998, p. 504), o que
nem sempre ocorre.
A segurança jurídica exige o cumprimento possível e fácil das
normas, devendo-se evitar que as condutas jurídicas prescritas 373
NEPEL
sejam complicadas, trabalhosas ou onerosas, pois tais prescrições
desestimulam o seu cumprimento. Assim sendo, as normas deve-
riam se preocupar menos com a sanção reparadora de um infrator
e mais com a premiação ou estímulo daqueles que as cumprem
(VIGO, 1998, p. 505).
A resolução dos conflitos jurídicos por terceiros imparciais é
outro requisito da segurança jurídica, pois a ausência de uma ins-
tância resolutória imparcial deixaria a superação dos entraves jurí-
dicos a cargo da força, astúcia ou azar. Nessas situações, nenhum
indivíduo estaria seguro de seus direitos e deveres (VIGO, 1998, p.
506). A resolução deve ainda ocorrer em tempo oportuno, pois um
Direito que prolonga por um longo período ou indefinidamente a
solução do conflito compromete inevitavelmente a pretensão de
conhecimento dos direitos e deveres (VIGO, 1998, p. 507).
O acesso fácil aos juízes também é exigência da segurança
jurídica, pois obstáculos de acesso (distância territorial, honorários
profissionais elevados, alto rigor formal, entre outros) podem ali-
mentar a manutenção do conflito ou a realização da justiça por
mão própria (VIGO, 1998, p. 506).
É necessário haver a possibilidade de defender pretensões
perante os juízes, pois todas as partes devem ter oportunidades
de argumentar a favor de sua respectiva pretensão e ainda
apresentar as provas pertinentes, uma vez que a resolução justa
e eficaz do conflito depende da totalidade de informações e
argumentos (VIGO, 1998, p. 507).
A segurança jurídica exige a justificação das normas jurídicas,
pois, no contexto do Direito moderno, a legitimidade e eficácia
das decisões jurídicas dependem de sua justificação formal e
material (VIGO, 1998, p. 507). Não se trata de apontar meras
razões explicativas que se identifiquem com os motivos, mas sim
de apontar as razões justificadoras e objetivas que sirvam para
compreender a decisão, valorá-la e aceitá-la como correta ou boa
374 (VIGO, 1998, p. 508).
NEPEL
Deve haver previsão de meios para a elaboração e derrogação
de normas; caso contrário, não se saberá quem detém a capaci-
dade jurídica para elaborar ou expulsar normas do mundo jurí-
dico, qual o tempo de vida dessas normas e quais as condições
para sua expulsão (VIGO, 1998, p. 508).
Exige-se a eficácia das normas jurídicas, uma vez que essas
constituem uma espécie de modelo de condutas. É necessária
uma congruência entre as condutas prescritas pelas normas e as
condutas particulares e de autoridades (VIGO, 1998, p. 509). Há
ainda a necessidade de um poder coercitivo no Direito, o qual
garanta o cumprimento das normas jurídicas, pois, ao depender
exclusivamente da boa vontade de seus destinatários, o Direito se

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


torna frágil (VIGO, 1998, p. 509).
Também é necessária a existência de um poder político legi-
timado democraticamente, ou seja, um poder que tenha apoio
das maiorias. Um poder político resistido, isolado da cidadania
ou totalitário muito provavelmente não favorecerá a segurança
jurídica, pois suas decisões jurídicas serão frágeis, instáveis, não
confiáveis ou ineficazes, devido à sua baixa ou inexistente aceita-
ção (VIGO, 1998, p. 510).
Exige-se também um tratamento jurídico igualitário, no qual
a igualdade de situação corresponda à igualdade dos direitos e
deveres, salvo quando houver razões de justiça material que justi-
fiquem o afastamento de tal exigência (VIGO, 1998, p. 511). Deve
haver ainda uma capacidade suficiente de resposta do Direito
vigente, o que exige um maior esforço do operador na busca pela
resposta ao problema que o convoca. Não se deve compreen-
der o Direito como um mero sistema de regras legais, que deva
ser explicado de forma dogmática ou exegética e, sim, como um
conjunto de princípios e normas que devem ser explicadas critica-
mente (VIGO, 1998, p. 511).
A visão sistemática do Direito também consiste em requisito
da segurança jurídica, pois é necessário que o operador do Direito 375
NEPEL
reconstrua ou reformule sistematicamente o conjunto de normas
e princípios que constituem o Direito vigente para que este seja
coerente, hierárquico, econômico e suficientemente pleno, no
intuito de se evitarem contradições (VIGO, 1998, p. 512).

Também é necessária uma disposição cidadã para o cumpri-


mento de seus deveres, pois, a existência de uma sólida consciên-
cia ética e social na sociedade melhora o cumprimento voluntário
do Direito. Segundo Vigo, as sanções sociais e morais incremen-
tam a segurança jurídica (VIGO, 1998, p. 513).

Por fim, exige-se a existência de uma moeda estável, uma vez


que essa cumpre um papel juridicamente relevante. A correspon-
dência entre o valor nominal e o valor corrente de uma moeda
evita a formação de campo fértil para abusos, especulações, vio-
lações, entre outros (VIGO, 1998, p. 513).

Embora seja possível apontar diversos requisitos para a segu-


rança jurídica não se descarta a previsibilidade jurídica, pois a con-
cebe como dimensão subjetiva da segurança jurídica atrelada aos
interesses, desejos e personalidade de cada um dos destinatários
jurídicos (VIGO, 1998, p. 513/514). Entretanto, a segurança jurí-
dica ultrapassa a mera previsibilidade, uma vez que se apresenta
como desdobramento da ideia de justiça, ainda que com contor-
nos próprios (VIGO, 1998, p. 516).

A segurança jurídica é um valor estritamente ligado ao Estado


de Direito, a qual se concretiza em exigências objetivas de cor-
reção estrutural (formulação adequada das normas do ordena-
mento jurídico) e correção funcional (cumprimento do Direito por
seus destinatários e, especialmente, pelos órgãos encarregados de
sua aplicação) (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 28). Trata-se da dimensão
objetiva da segurança jurídica, que detém ainda uma dimensão
subjetiva, definida como a certeza do Direito – ou seja, a prote-
ção, nas situações pessoais, de garantias estruturais e funcionais
376 da segurança objetiva (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 29).
NEPEL
A certeza do Direito supõe a dimensão subjetiva da segurança
jurídica, pois se apresenta como a proteção, nas situações pes-
soais, da segurança objetiva. Seu requisito é a possibilidade de
conhecimento do Direito por seus destinatários, pois um sujeito
de determinado ordenamento jurídico deve poder saber previa-
mente e com clareza o que é obrigatório, permitido ou proibido.
Em função desse conhecimento do Direito pelos destinatários, é
possível organizar as condutas presentes e programar a atuação
jurídica futura (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 29). Entretanto, o sentido
da ignorância do Direito na sociedade democrática não é outro
senão o de garantir os princípios de validade e eficácia, pois o
conhecimento do Direito por todos é um dever materialmente

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


impossível (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 30).

Há relação entre segurança jurídica e coisa julgada, sendo


esta genericamente compreendida como decisões em sentença
irrecorrível (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 31). A coisa julgada possui um
sentido formal, entendido como o caráter irrevogável da sentença
que não é suscetível de recursos, seja em função do esgotamento
das instâncias de apelação, do término do prazo para interposi-
ção de recursos ou da desistência de sua interposição. Já a coisa
julgada, em sentido material, consiste na impossibilidade de novo
exame e/ou nova decisão sobre um processo, em relação àqueles
que foram partes dele (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 31).

A coisa julgada se relaciona com duas expectativas de segu-


rança jurídica, que ultrapassam a mera previsibilidade e se relacio-
nam com a ideia de justiça: a confiança dos sujeitos, que exige a
certeza de durabilidade da decisão; e a exigência da comunidade
jurídica de que se encerre, a partir de determinado momento, a
dúvida ou a luta pelo Direito no caso concreto, por motivos de paz
jurídica (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 31).

Os direitos adquiridos – aqueles direitos “[...] validamente


constituídos e consolidados ao amparo de uma determinada 377
NEPEL
legislação” (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 32, tradução nossa)3 –pro-
vocam discussões acerca da confiança dos cidadãos e da estabi-
lidade do Direito. Frequentemente, a teoria dos direitos adqui-
ridos é invocada como exemplo da tensão entre a justiça e a
segurança jurídica, uma vez que a intangibilidade desses direitos
pode ser incompatível com os imperativos da justiça e do bem
comum (PÉREZ LUÑO, 2000, p. 33). No Estado de Direito, o
problema dos direitos adquiridos não é somente uma questão
de legalidade, mas também de legitimidade. Assim sendo, o
reconhecimento dos direitos adquiridos não passa unicamente
por condições formais de validade das legislações nas quais se
ampararam, mas também pelas condições de justiça, tais como
a exigência de boa-fé e a ausência de dolo, que são, justamente,
a origem de tais direitos e a causa de sua manutenção (PÉREZ
LUÑO, 2000, p. 33).
A absorção da segurança jurídica pela justiça não é ponto
absolutamente pacífico na doutrina, pois há quem defenda a
primazia daquela, ainda que a norma não passe pelo filtro da
justiça. Há quem defenda que a legitimidade formal do Direito
adquire força em tempos de relativismo axiológico, desconfiança
acerca do bom funcionamento dos mecanismos de representação
política e de alto grau de complexidade do Direito, de modo a
dificultar a percepção de seu grau de justiça. Nesse contexto, a
crença na legitimidade do Direito é importante, por gerar segu-
rança em seus destinatários, ainda que as normas jurídicas sejam
injustas ou antidemocráticas, pois há uma obrigação prima facie
de obediência ao Direito ou, apenas, uma razão para a obediência
(MANRIQUE, 2003, p. 481-482).
Por ser um direito constitucionalmente garantido, é necessário
considerar a segurança jurídica como um norte a ser respeitado
por todos os poderes, uma vez que a Constituição é fonte pri-

3 No original: “[...] válidamente constituidos y consolidados al amparo de una


378 determinada legislación.”
NEPEL
mária de todas as normas e possui força normativa. Não se trata,
apenas, de aspecto da justiça, em geral, ou de ideia abstrata e
pressuposta no próprio conceito de Constituição, mas de ele-
mento da justiça institucional ou concreta, incorporado pelo texto
constitucional, como reserva contra variações políticas e momen-
tos de crise (ASSIS, 2016).

3. FATOS E PROGNOSES LEGISLATIVOS NO


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


A supremacia da Constituição, em face de todas as normas
associadas a seu caráter central na construção e validez do
ordenamento, obriga a interpretação deste em conformidade
com os princípios e regras constitucionais, gerais ou específicos
(GARCIA DE ENTERRÍA, 1983, p. 95). Assim sendo, uma lei não
deve ser declarada nula se puder ser interpretada conforme a
Constituição, até mesmo por gozar de presunção de constitucio-
nalidade (GARCIA DE ENTERRÍA, 1983, p. 96)4. Entretanto, caso
tal interpretação não seja possível, é necessário realizar controle
de constitucionalidade para retirar a norma violadora do orde-
namento jurídico.

A garantia da ordem constitucional tem como antecedente a


ideia de defesa do Estado, que pode ser definida

4 Garcia de Enterría explica que não se trata de simples afirmação formal de


que qualquer lei é válida até que seja declarada inconstitucional, pois existem
outros fatores materiais que devem ser considerados: primeiramente, há uma
confiança outorgada ao Poder Legislativo na observância e na interpretação
correta dos princípios constitucionais; segundo, uma lei somente pode ser de-
clarada inconstitucional se houver dúvida razoável sobre sua contradição com
a Constituição; terceiro, quando uma lei é elaborada em termos amplos que
permitem uma interpretação inconstitucional é necessário se presumir – caso
seja razoavelmente possível – que o legislador subentendeu que a interpre-
tação a ser aplicada será precisamente aquela que se mantenha dentro dos
limites constitucionais (GARCIA DE ENTERRÍA, 1983, p. 96). 379
NEPEL
[...] como o complexo de institutos, garantias e
medidas destinadas a defender e proteger, interna
e externamente, a existência jurídica e fática do
Estado (defesa do território, defesa da indepen-
dência, defesa das instituições). (CANOTILHO,
2003, p. 887).

Com o advento do Estado constitucional, a defesa do Estado


se tornou a defesa ou garantia da Constituição, pois o que se
protege é a forma de Estado “[...] tal como ela é normativa e
constitucionalmente conformada – o Estado constitucional demo-
crático” (CANOTILHO, 2003, p. 887). Nesse contexto,

[...] a defesa da constituição pressupõe a existên-


cia de garantias da constituição, isto é, meios e
institutos destinados a assegurar a observância,
aplicação, estabilidade e conservação da lei fun-
damental” [...]. As garantias da constituição não
devem confundir-se com as garantias constitucio-
nais. Estas [...] têm um alcance substancialmente
subjetivo, pois reconduzem-se ao direito de os
cidadãos exigirem dos poderes públicos a prote-
ção dos seus direitos e o reconhecimento e con-
sagração dos meios processuais adequados a essa
finalidade. (CANOTILHO, 2003, p. 887-888).

A supremacia da Constituição demanda tarefas de concretiza-


ção e desenvolvimento do Direito Constitucional, em decorrência
da força normativa das regras e princípios constitucionais que
vinculam todos os poderes públicos (CANOTILHO, 2003, p. 891).
Ainda em razão da supremacia, as demais normas do ordena-
mento jurídico devem observar seus limites, podendo sofrer con-
trole de constitucionalidade. Assim sendo, a garantia da suprema-
cia constitucional consiste em fundamento e objetivo do controle
380 de constitucionalidade.
NEPEL
A ideia de Constituição como reserva de justiça ganhou força
com a necessidade de afirmação das normas constitucionais
como garantidoras de direitos emergenciais para solucionar,
justamente, os problemas de uma sociedade carente de inclusão
(CANOTILHO, 2003, p. 1358/1359). Dessa forma, ocorreu a posi-
tivação dos direitos fundamentais “[...] por meio da consagração
dos direitos nos textos jurídicos, antes projetados apenas no plano
da filosofia política” (SAMPAIO, 2010, p. 191).
Para além da segurança jurídica, a Constituição resguarda
a justiça, que deve ser analisada em cada caso concreto. Não
se trata de violação ao código binário do direito por admitir
“razões de conveniência oportunidade” (CRUZ, 2004, p. 255),

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


mas de aplicar o direito constitucionalmente previsto, tendo em
vista a proteção constitucional da segurança jurídica e de seus
desdobramentos.
Ao proferir uma decisão, o Tribunal Constitucional deve
observar as consequências em face da segurança jurídica cons-
titucionalmente garantida. A “verificação de fatos e prognoses
legislativas” (MARTINS; MENDES, 2001, p. 170) é parte essen-
cial do controle de constitucionalidade, sendo indissociável da
própria competência do Tribunal (MARTINS; MENDES, 2001, p.
172-173). Nesse sentido, é necessário que o modelo procedi-
mental dê condições ao Tribunal para proceder a tal verificação
(MARTINS; MENDES, 2001, p. 181). Esse modelo deve propor-
cionar ao Tribunal a possibilidade de se valer de todos os ele-
mentos técnicos disponíveis para a apreciação da legitimidade
do ato questionado e também um amplo direito de participação
(MARTINS; MENDES, 2001, p. 181), estabelecendo a sociedade
aberta de intérpretes proposta por Peter Häberle (1997). Entre-
tanto, o processo de apreciação dos fatos e prognoses legis-
lativas deve ser racional, para não ensejar decisões lastreadas
apenas em bases intuitivas, exigindo-se do Tribunal uma atuação
consciente e integradora no sistema constitucional (MARTINS;
MENDES, 2001, p. 181). 381
NEPEL
O conceito de fatos legislativos não é preciso, mas pode ser
entendido como todo e qualquer fato real e relevante para apli-
cação de uma norma (MENDES, 2001, p. 14). Os fatos legisla-
tivos podem ser de três espécies: “fatos legislativos históricos”,
que deram ensejo a determinadas decisões; “fatos legislativos
atuais”, que envolvem o objetivo de determinadas organizações,
a verificação e o tratamento equiparatório ou desequiparató-
rio, o exame de possível desigualdade eleitoral e outros temas
pertinentes ao caso em análise, para os quais o Tribunal utiliza
documentos históricos, literatura especializada, dados estatísti-
cos, análises de peritos, entre outras investigações empíricas; e
“eventos futuros”, que irão determinar a legitimidade ou ilegiti-
midade de uma dada lei, caso se confirme o prognóstico fixado
pelo legislador (MENDES, 2001, p. 14-15).
Baseando-se na experiência da Corte Constitucional da
Alemanha, os procedimentos racionais para a realização de
prognósticos podem ser utilizados de forma isolada ou combi-
nada (MENDES, 2001, p. 16). São eles: o “processo-modelo”,
que consiste em procedimento das ciências sociais, destinado
a antever desenvolvimentos futuros a partir de análise causal-
-analítica de diversos fatores estáveis ou variáveis; a “análise de
tendências”, pela qual se analisam determinadas tendências de
desenvolvimento em função do tempo; o “processo de teste”,
que proporciona a generalização de resultados de experiências
ou testes para o futuro; e o “processo de indagação”, pelo qual
se indaga sobre a intenção das partes envolvidas (MENDES,
2001, p. 15).
A falha de prognósticos pode ser de início ou pode ser um
erro constatável após uma continuada aplicação da lei (MENDES,
2001, p. 20). No primeiro caso (a priori), o déficit de prognose
enseja a nulidade da lei; porém, na segunda hipótese (a poste-
riori), o Tribunal Constitucional considera o erro cometido irre-
levante do ponto de vista constitucional, desde que seja parte
382 integrante de uma decisão tomada de forma regular ou obri-
NEPEL
gatória (MENDES, 2001, p. 20). Nesse caso, o legislador deverá
empreender os esforços necessários para superar o estado de
inconstitucionalidade com a presteza necessária (MENDES,
2001, p. 21).
A aferição dos fatos e prognoses legislativos pela Corte
Constitucional é controle não de processo, mas de resultado
(MENDES, 2001, p. 15), ao menos de forma geral, pois, se con-
siderado puramente de resultado, pode-se abrir espaço para a
responsabilidade civil do Estado em caso de prognose errônea.
Por isso, o teste de eficiência da lei ou ato normativo deve ser
cuidadoso, sob pena de invadir a esfera da atuação legislativa
pois, se não for possível apontar um desvio de finalidade, é pre-

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


ciso considerar que as razões concretas ou a psicologia legislativa
– ou seja, intenção oculta de atingir determinado indivíduo ou
grupo, ao elaborar a lei que não será descoberta porque houve
obediência aos procedimentos formais legislativos – não ferem,
por si, a validade de uma lei.
Embora não seja possível realizar controle judicial dos moti-
vos, pode-se controlar a coerência ou a razoabilidade da lei – sua
adequação aos fins, sua justiça interna e externa afirmada por
um conteúdo que não importe em arbitrariedade ou discrimi-
nação injustificada – ou mesmo dos propósitos legislativos, se
ficar evidenciado, de forma flagrante, o atentado aos direitos
garantidos (SAMPAIO, 2002, p. 169).
O caráter abstrato da lei nem sempre é verdadeiro, mas isso
não a macula, necessariamente, de inconstitucionalidade. Nos
Estados Unidos, ao aplicar o princípio da igualdade, a Suprema
Corte verifica se a adoção de políticas legislativas, de medidas
administrativas ou de decisões judiciais que importem trata-
mentos diferenciados se pautou em critérios objetivos (SAM-
PAIO, 2002, p. 817). Busca-se um nexo de adequação entre a
discriminação perpetrada e os fins perseguidos, não se admi-
tindo impacto sensível apenas sobre um determinado grupo 383
NEPEL
ou raça (SAMPAIO, 2002, p. 817). Referida doutrina inspira
o exame de cada situação com suas particularidades; porém,
em algumas ocasiões, ela é superada pela impossibilidade de o
Judiciário examinar os reais motivos que levaram à adoção de
certa política ou medida (SAMPAIO, 2002, p. 817)5. Em alguns
casos, a análise da Corte é menos formal, cuidando de exami-
nar os efeitos concretos do ato ou a forma de sua aplicação, no
intuito de revelar alguma discriminação reprovável (SAMPAIO,
2002, p. 817).
Há um peso abstrato dos interesses afetados pela intervenção
legislativa, os quais constituem um critério adicional (LÁZARO,
2007, p.10) a ser considerado no controle de constitucionalidade,
pois a intervenção legislativa é fundamentada prima face em fins
constitucionais legítimos (LÁZARO, 2007, p. 07). Sem a existência
de um erro grosseiro de análise de dados, objetiva e material-
mente equivocados, não pode o juiz examinar os pressupostos
fáticos (conjuntura econômica, avaliação dos indicadores, etc.)
para apontar um erro de apreciação a priori (exame ou avaliação
errados, projeções equivocadas, etc.) e, em substituição à tese
adotada pelo legislador, declarar a inconstitucionalidade de uma
lei que normatiza a prognose feita, sob pena de subverter a repar-
tição de competências.
Caso a prognose se revele equivocada, é possível defender
a responsabilidade civil do Estado por ato ilícito. Entretanto, ao
considerar a boa-fé do legislador e as razões de possibilidade e
contingência do contexto da decisão, neutraliza-se a ilicitude e o
ato de legislar se torna mais obrigação de meio do que, propria-
mente, de resultado.
Na jurisprudência brasileira, de forma tímida e limitada, há
aceitação da responsabilidade civil do Estado pelo desempenho

5 Segundo José Adércio Leite Sampaio, a motivação da adoção de políticas


administrativas e legislativas seria um dos espaços vazios de jurisdição nos
384 Estados Unidos (SAMPAIO, 2002, p. 267 e ss.).
NEPEL
inconstitucional da função de legislar, exigindo-se, entretanto,
prévia declaração judicial de inconstitucionalidade do ato legis-
lativo (ESTEVES, 2003, p. 203). De forma ainda mais escassa,
admite-se a existência do dever estatal de indenizar, pela edição
de norma constitucional, quando há o reconhecimento de conte-
údo expropriatório de determinadas medidas legislativas de efeito
concreto (ESTEVES, 2003, p. 203).
O dever de ressarcir, porém, não decorre do mero exercício
irregular da função legislativa; deve-se conjugar, necessaria-
mente, além da inconstitucionalidade, a ocorrência do dano
(ESTEVES, 2003, p. 219). As situações em que mais comumente
emerge o nexo de causalidade entre o vício de inconstituciona-

9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


lidade e a lesão individual são o desrespeito ao princípio cons-
titucional da igualdade (ESTEVES, 2003, p. 222), o desrespeito
do direito adquirido (ESTEVES, 2003, p. 224) e o desvio de
finalidade no exercício da função legislativa (ESTEVES, 2003,
p. 226).
As decisões do Tribunal Constitucional não são isoladas do
desenvolvimento da Constituição como realidade, pois a tarefa da
justiça constitucional não é a aplicação formal do direito ao caso
concreto com absoluta indiferença em face de suas consequên-
cias, mas é uma reconciliação da efetiva vida constitucional com
as regras da Constituição (ZAGREBELSKY, 1988, p. 60).
No âmbito da pesquisa sobre a regra “adequada ao caso”,
é necessário considerar as consequências das decisões abstra-
tamente possíveis na vida constitucional e no funcionamento
concreto do ordenamento jurídico (ZAGREBELSKY, 1988, p.
60). Somente uma visão absurdamente cega da realidade da
tarefa da justiça constitucional, em geral, poderia ignorar a
necessária consciência prognóstica dos efeitos da decisão
a ser tomada, em face do desenvolvimento regular da vida
constitucional no âmbito da Constituição (ZAGREBELSKY,
1988, p. 60). 385
NEPEL
4. CONCLUSÃO

A segurança jurídica ultrapassou a certeza e previsibilidade do


Direito para se tornar requisito da justiça, no contexto do Estado
Democrático de Direito, o que ampliou seus reflexos. Apesar das
diversas concepções de justiça e das dificuldades para delimitá-la,
a Constituição institucionalizou uma reserva que contém direitos
e garantias como requisitos, dentre os quais se encontra a segu-
rança jurídica em seus diversos desdobramentos. Em razão de
sua supremacia, a Constituição contém uma força normativa que
fundamenta o controle de constitucionalidade e, assim sendo, o
controle de fatos e prognoses legislativos deve considerar a justiça
constitucionalmente institucionalizada.

A rigidez dos procedimentos constitucionais deve ser obser-


vada; entretanto, existem outros preceitos da Constituição que
também devem ser obedecidos, em função de sua supremacia. A
Constituição não se resume ao aspecto formal dos procedimentos
e da organização estrutural do Estado e, sendo pluridimensional,
deve estar aberta às contextualizações que não podem ser ignora-
das pelo Tribunal Constitucional. Seu conteúdo não é dissociado
da realidade e suas normas têm pretensão de eficácia. Ignorar tais
características significaria ignorar a própria Constituição.

REFERÊNCIAS

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de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

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9. Controle de fatos e prognoses legislativos pelo Tribunal Constitucional


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NEPEL
ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia costituzionale. Nuova ed.
Bologna: Il Mulino, 1988.

388
NEPEL
10 Desenvolvimento
institucional,
participação
e o Regimento
Interno da ALMG
Guilherme Wagner Ribeiro*

*Graduado em Direito (UFMG), Mestre em Educação (UFMG), Doutor em Ciências Sociais


(PUC/Minas). Professor do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Consultor Legislativo da ALMG e Professor da Escola do Legislativo.
1. INTRODUÇÃO

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


Os processos decisórios no âmbito de uma democracia tendem
a gerar não apenas as decisões em si, mas também aprendizado e
amadurecimento institucionais decorrentes do procedimento pelo
qual as decisões são construídas. Sabe-se, por exemplo, que a
elaboração de uma norma jurídica mobiliza um conjunto de infor-
mações e de conhecimentos, insumos que, diferentemente dos
recursos econômicos e naturais, aumentam exatamente porque
são utilizados. Na edição de uma medida provisória, os técnicos
do Poder Executivo responsáveis pela elaboração da minuta a ser
subscrita pelo presidente se tornam profundos conhecedores da
matéria. Quando a norma decorre do processo legislativo, dife-
rentes atores e instituições têm a possibilidade de se apropriar
do conhecimento gerado durante a sua tramitação, inclusive o
Poder Legislativo, que pode se desenvolver, por exemplo, com
fortalecimento da comissão que promoveu os estudos e debates
sobre a matéria e a qualificação dos assessores que pesquisaram
a matéria.
É evidente que os processos decisórios podem ser disciplina-
dos em diferentes formatos, privilegiando alguns aspectos em
detrimento de outros. Por exemplo, pode-se adotar maior ou
menor permeabilidade à participação da sociedade em geral e dos
setores interessados, em particular, conferindo diferentes graus
de transparência ao processo de decisão. Quanto maior a aber-
tura do parlamento para a participação da sociedade, maiores
391
NEPEL
as possibilidades de os atores sociais se apropriarem dos ganhos
de aprendizagem decorrentes da tramitação das proposições. No
processo legislativo, essa tramitação é regulada pelo Regimento
Interno de cada Casa Legislativa, diploma legal que estabelece as
regras que possibilitam essa aprendizagem e o desenvolvimento
institucional. Não obstante, esse regimento é igualmente fruto
desse processo de amadurecimento da instituição, porque ele é
revisto e aperfeiçoado a partir da experimentação de suas regras.
Se os regimentos estabelecem os limites de atuação dos atores,
em especial, dos parlamentares, tais limites são sobretudo pos-
sibilidades das formas de exercer representação e a participação
social no processo legislativo.

É reconhecido pela literatura que a Assembleia Legislativa do


Estado de Minas Gerais – ALMG - passou por um desenvolvimento
institucional intenso decorrente do processo constituinte que
culminou com a promulgação da Constituição Estadual no final da
década de 80. Assim, houve um desenvolvimento nos mecanismos
de interlocução com a sociedade, bem como fortalecimento da
equipe técnica, incremento das comissões temáticas, além de
uma importante evolução na área de tecnologia da informação.
Este artigo pretende examinar os reflexos desse processo de
amadurecimento institucional no Regimento Interno da instituição,
por meio de análise dos Regimentos Internos que vigoraram nas
décadas de 70 e 80, da Constituinte Estadual e dos diplomas
normativos internos promulgados em 1990 e 1997. Nesse exame,
serão observadas, em especial, as regras de abertura da Casa
para a sociedade. Aqui, limitar-nos-emos aos textos normativos
constantes nos referidos regimentos, ainda que se saiba que a
adequada compreensão da norma envolve a investigação da sua
incidência sobre a realidade à qual se destina. Trata-se, pois de
uma pequena contribuição à história da ALMG, que se soma a
outros esforços importantes, como os constantes na bibliografia
392 deste texto.
NEPEL
2. Desenvolvimento institucional na
década de 80

O amadurecimento institucional de órgãos e entida-


des públicos em decorrência de processos decisórios não são
mecânicos nem automáticos. É possível que órgãos colegiados
tomem decisões constantemente, sem que se perceba uma
evolução institucional. Há, por certo, muito desperdício de
experiência, que se perde, entre outras causas, pela gestão ina-

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


dequada da informação e pela rotatividade excessiva de seus
membros ou dos servidores que lhe dão suporte. Assim, para
que um importante processo decisório reverta-se também em
aprendizado institucional do órgão responsável pela decisão,
é necessária a confluência de fatores de natureza administra-
tiva e política, tanto internos quanto externos. Por isso, antes
de nos debruçarmos sobre o objeto propriamente dito deste
artigo, a saber, os referidos regimentos internos, cabe apontar
alguns aspectos institucionais da ALMG na década que ante-
cede a elaboração da Constituição do Estado de Minas Gerais
em vigor. Quatro fatores se destacam, dois internos e de natu-
reza predominante administrativa, dois externos e oriundos do
ambiente político.

Um dos fatores externos reside no fato de que a década que


antecede a Constituinte é marcada pelo processo de reabertura
do sistema político, o que acena para a retomada da importân-
cia do Poder Legislativo, ao qual havia sido reservado, durante
os anos duros do regime militar, um lugar de pouco relevo no
palco da política institucional. Assim, no final da década de 70,
quando já ganhava grandes proporções na sociedade a pressão
pela abertura política, o governo dá sinais de que pretendia pro-
mover uma lenta, gradual e segura abertura do sistema político.
Não se tratava de um ato de benevolência, mas de uma estratégia
para lidar com o crescimento da resistência ao regime antidemo- 393
NEPEL
crático, capitaneada pelo movimento estudantil e também por
um conjunto de outros movimentos, como o novo sindicalismo,
as comunidades eclesiásticas de base e mesmo manifestações
vindas do empresariado. Assim, destaca-se, em 1979, a promul-
gação da Lei da Anistia, com o consequente retorno de muitos
militantes e políticos exilados ao país. Vale compartilhar aqui o
depoimento de um dos líderes da oposição, deputado Genésio
Bernardino, acerca do empenho dos deputados mineiros pela
anistia:

Fizemos a campanha pela anistia. Consegui tirar


muitos companheiros das prisões, muitos tortura-
dos, outros foragidos. escondidos nos mais longín-
quos recantos de Minas e desse País, fugindo da
expatriação, fugindo da tortura. Foi um negócio
muito, muito sério. Só quem não participou dessa
luta é que não sabe o que foi. (BERNARDINO apud
FARIA, 2005, p. 329).

Nada surpreende o fato de que os acontecimentos políticos,


como anistia, diretas já, a eleição de Tancredo e o seu faleci-
mento, repercutissem na tribuna da ALMG, uma vez que os
debates em Plenário comumente reverberam os fatos relevantes
do cenário nacional e estadual, apresentando pontos de vista
diversos segundo a posição política e ideológica de cada orador.
Não obstante, o Legislativo Mineiro não permaneceu apenas
como uma caixa de ressonância dos acontecimentos nacionais,
pois procurou assumir algum protagonismo no movimento de
redemocratização do Estado e da sociedade, que culminaria com
a promulgação da Constituição da República de 1988. Assim,
a Assembleia promoveu, em 1986, o Simpósio Minas Gerais e
a Constituinte, um evento de grande porte, com referências
nacionais em suas respectivas áreas, como o advogado Hélio
Bicudo para discutir sobre segurança e direitos humanos e Maria
394 da Conceição Tavares sobre economia. Mais relevante que a
NEPEL
qualidade dos expositores era o interesse da população, porque
o evento foi aberto ao público, que, não cabendo no Plenário
e nas galerias, acompanhava os debates em telões instalados
em outros espaços da instituição. Outra iniciativa relevante foi
a Miniconstituinte de Minas, que a Assembleia organizou em
outubro daquele ano com as Secretaria Estadual de Educação e
a Secretaria de Educação do Município de Belo Horizonte, envol-
vendo estudantes de colégios públicos e privados. Em 1988, a
Assembleia promoveu um concurso de redação com a participa-
ção de 80 mil estudantes, com o tema “a importância do Poder

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


Legislativo na democracia representativa”.
Se externamente a ALMG buscava certo protagonismo, duas
medidas administrativas certamente foram fundamentais, seja
para sustentar o processo constituinte estadual, seja para, tirando
proveito da experiência, promover avanços institucionais impor-
tantes no início da década seguinte. Uma dessas medidas, que
se refere à capacidade de gestão da informação, compreende
o esforço de informatização da Assembleia Legislativa de Minas
Gerais. Pode-se apontar como um marco importante desse pro-
cesso o acordo de parceria celebrado pela ALMG com o Centro
de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal –
Prodasen –, que já integrava a estrutura administrativa do Senado
Federal. A visita técnica a esse órgão, que foi uma decisão do
então presidente da ALMG, deputado Antônio Dias, viabilizou o
acordo entre o Prodasen e o Legislativo mineiro, com o objetivo
de disponibilizar a base de dados do Senado em um terminal a
ser instalado na sede da Assembleia. Para viabilizar o acesso à
aludida base de dados, foi fundamental o apoio técnico da Com-
panhia de Processamento de Dados de Minas Gerais – Prodemge
–, que disponibilizou terminais necessários para que os parlamen-
tares mineiros tivessem acesso aos dados organizados por aquele
órgão do Parlamento Nacional. A demanda da ALMG casou com
a intenção daquele órgão do Senado Federal, que pretendia faci-
litar o acesso às suas informações por órgãos regionais, de forma 395
NEPEL
que a Assembleia de Minas Gerais era a oportunidade de uma
experiência piloto. Em 1982, a parceria ganhou novos contornos
para dar suporte tecnológico ao banco de dados Normas Jurídicas
de Minas Gerais – NJMG.
Em paralelo a essas medidas, em 1979, a ALMG adquiriu
seu primeiro computador, denominado Cobra 300, para dar
suporte à área administrativa, em especial, o gerenciamento
da folha de pagamento. Contudo, havia uma clara percepção
de que o processo de informatização não deveria se restringir
a matérias de natureza administrativa, uma vez que o acesso
e o rápido tratamento da informação era fundamental para o
fortalecimento e a autonomia do Poder Legislativo, reduzindo
a assimetria informacional em relação ao Poder Executivo. Vale
trazer à luz o forte depoimento do presidente da ALMG na
abertura do I Seminário Nacional de Informatização do Poder
Legislativo em 1985:

Quando os membros do Executivo são convoca-


dos à Assembleia para depor, comparecem com
um instrumental técnico de informação muito
superior ao dos Deputados que devem interrogá-
-los. Consequentemente eles não temem sua
convocação perante as Comissões Técnicas da
Assembleia, uma vez que possuem instrumental
técnico e humano muito mais avançado do que
o do Legislativo. Ao invés de se explicarem, esses
membros do Executivo conseguem se promover
perante a opinião pública, deixando mal o Poder
Legis ativo que os convoca para fiscalizá-los.
(SEMINÁRIO..., 1985, p. 19).

Nesse contexto, a Assembleia confrontou-se com a encruzi-


lhada entre trilhar o caminho da autonomia, adquirindo equipa-
mento e formando sua própria equipe na área de informática, ou
396 terceirizar todo o serviço, notadamente por meio da Prodemge.
NEPEL
A decisão foi seguir a primeira opção e, em 1986, o mencionado
equipamento foi substituído por um IBM-PC, medida provavel-
mente impulsionada pela realização do I Seminário Nacional de
Informatização do Poder Legislativo, realizado na sede do Legisla-
tivo Mineiro no ano anterior. O trabalho constituinte contou com
o primeiro computador de grande porte adquirido pela ALMG,
conhecido como Bull DPS.
O segundo fator de natureza administrativa de relevo no
período em questão foi o investimento em recursos humanos,
combinado com a reestrutura administrativa para melhor apro-

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


veitá-lo. É preciso dizer que, embora reservadas ao Parlamento
funções técnicas e burocráticas durante o regime militar na
década de 70, o Legislativo Mineiro não se descuidou, realizando
concursos para a seleção de profissionais para o suporte às ati-
vidades administrativas. Lembre-se que, àquela época, a equipe
dos gabinetes era composta por servidores comissionados de
livre nomeação e por efetivos concursados. No início dos anos
80, ainda que a ALMG não estivesse de todo desprovida de pro-
fissionais de elevada competência técnica, dado o rigor de seus
concursos, havia a percepção de que a retomada de suas atribui-
ções passaria também pelo fortalecimento da equipe de apoio
capaz de sistematizar e produzir conhecimento técnico especiali-
zado. Assim, destaca-se o concurso realizado em 1982, por meio
da Fundação Mariana Resende Costa – FUMARC –, para técnicos
em pesquisa em diversas áreas temáticas, como história, econo-
mia, direito, administração, estudos sociais e biblioteconomia.
Com candidatos selecionados, foi fortalecido o Departamento
de Informática e Pesquisa, órgão central para dar continuidade
ao projeto de fortalecer as bases cognitivas e informacionais
necessárias para os trabalhos legislativos. Mencionem-se, ainda,
duas iniciativas que revelam o investimento nesse campo. A rea-
lização, em maio de 1984, do I Seminário de Recursos Humanos
da ALMG e a reestruturação administrativa da ALMG por meio
da aprovação da Resolução nº 3800, de 30 de novembro de 397
NEPEL
1985, que, inspirando-se na Câmara dos Deputados, adota um
modelo de dupla subordinação: no ápice da estrutura, encontra-
-se, desde então, de um lado, a Diretoria-Geral, estabelecendo
a subordinação de natureza administrativa; e, de outro, a Secre-
taria-Geral da Mesa, dando o direcionamento técnico aos órgão
de assessoramento às atividades legislativas (PIRES, 2018).

Além desses dois fatores administrativos e do contexto político


de retomada da democracia, cabe mencionar o outro fator polí-
tico que foi determinante para o amadurecimento institucional
da ALMG: a Constituinte Estadual, realizada no início da década
de 80. Nas eleições de 1986, houve uma renovação de 65% dos
parlamentares no Legislativo Mineiro. O elevado percentual foi
interpretado, à época, como um sinal da baixa credibilidade e
legitimidade que a Casa apresentava perante a sociedade, o que
exigia uma reformulação de suas estratégias de relacionamento
com a sociedade.

É com este quadro político e institucional que a ALMG orga-


niza e promove o processo constituinte estadual, cujos trabalhos
tiveram início no segundo semestre de 1987, quando, constituída
a comissão preparatória, ela formulou o anteprojeto de resolução
contendo o Regimento Interno da Constituinte.

3. A Assembleia Constituinte Estadual e


seu Regimento

Há vasto material acerca da Constituinte Mineira de 1989,


sobre o qual houve cuidadoso trabalho de organização da docu-
mentação e registro de depoimentos por ocasião da comemora-
ção dos vinte anos da promulgação da Constituição Estadual em
2009, estando todo o material disponível para o público. Desse
material, vamos extrair o que nos permite compreender melhor
398 o Regimento Interno da Constituinte, procurando identificar as
NEPEL
novidades que serviram de base aos diplomas que passaram
a disciplinar o trabalho da Assembleia Legislativa na década
seguinte. Para identificar tais novidades, é preciso examinar,
por evidente, a Resolução nº 996, de 19 de novembro de 1971,
que continha o Regimento Interno da ALMG e, portanto, serviu
de base para a tramitação do projeto de Regimento Interno da
Constituinte. O fato de a referida resolução definir as regras de
tramitação da proposição que culminaria no Regimento Interno
da Constituinte revela um encaixe normativo entre a Assembleia
Legislativa e a Assembleia Constituinte Estadual, instituições

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


juridicamente distintas, embora compostas pelos mesmos agen-
tes políticos, ambas sob a égide da Constituição da República
promulgada em 5 de outubro de 1988 e contando com a mesma
estrutura administrativa. Ademais, aplicar-se-ia o Regimento
Interno da ALMG nos casos omissos do Regimento da Consti-
tuinte Estadual (art. 55).
Da leitura do Regimento Interno que organizou os trabalhos
da ALMG nas décadas de 70 e 80, podem-se colher algumas
inferências. Por exemplo, percebe-se que o centro das ativida-
des era mesmo o Plenário, já que havia reuniões de segunda
a sexta-feira, como regra, a partir das 14 horas, sendo que
a primeira reunião da semana poderia acontecer à noite e a
última estava prevista para as 9 h da manhã da sexta-feira.
Essa disposição das reuniões durante a semana certamente
considerava o deslocamento dos deputados com residência no
interior, mas também refletia tanto a centralização dos traba-
lhos no Plenário, quanto certo desprestígio dos trabalhos par-
lamentares fora da sede no Parlamento, notadamente em suas
bases eleitorais. Certamente que esta é uma leitura com as
lentes da realidade atual da atividade parlamentar, que exige
intensa presença do parlamentar em suas bases eleitorais,
bem como em reuniões em diferentes órgãos, em especial, no
Poder Executivo. Registre-se, ainda, que não havia previsão da
competência conclusiva das comissões, quando se dispensa a 399
NEPEL
apreciação do Plenário, possibilidade inaugurada pelo art. 58,
§ 1º, inciso I da Constituição da República.
Não havia no referido regimento menção à audiência pública
e a interação com a sociedade era pautada por uma perspectiva
técnica. O Capítulo XIII do aludido diploma legal disciplinava a
Audiência Técnica Extraparlamentar, em que entidades legal-
mente constituídas podiam manifestar, em ofício, o interesse em
participar de reunião de comissão (art. 139), o que seria apre-
ciado por esse colegiado. A comissão também podia convidar
técnicos de notória competência ou representantes de entidades
para participar da reunião (art. 141). Refletindo as diminutas
atribuições do Parlamento no modelo autoritário de Estado ins-
tituído pelo regime militar, o regimento estava em descompasso
com a efervescência política vivenciada pela sociedade e, em
especial, pela Assembleia, nos anos que antecederam a consti-
tuinte estadual.
A minuta de Projeto de Resolução foi elaborada em 1987
pela Comissão preparatória dos trabalhos da IV Assembleia
Constituinte, que, em 27 de novembro daquele ano, apresen-
tou o resultado de seu trabalho ao Presidente da ALMG. A base
para a sua elaboração foi a pesquisa nos Regimentos Internos
das Constituintes Estaduais anteriores, buscando um equilíbrio
entre, por um lado, uma simplificação do processo constituinte
que assegurasse celeridade na apreciação da matéria e a garan-
tia de espaço para os parlamentares expressarem a defesa dos
interesses que representavam. O início de sua tramitação aguar-
dou a instalação da Assembleia Constituinte em 7 de outubro
do ano seguinte, cuja primeira missão seria efetivamente a apre-
ciação da mencionada proposição, que se tornou norma jurídica
com a promulgação da Resolução nº 4.585, de 20 de dezembro
daquele 1987.
O Regimento Interno da Assembleia Constituinte Estadual
400 não apresentava a complexidade do diploma normativo da
NEPEL
Assembleia Constituinte Nacional porque havia clara percep-
ção de que o desafio de elaborar a Constituição Estadual não
poderia ser equiparado ao exercício do poder constituinte
originário. Considere-se, ainda, que se atribuiu às opções
regimentais do constituinte nacional a demora na aprovação
do texto constitucional. Por isso, em determinados aspectos,
optou-se por caminho distinto do constituinte nacional, em
particular no que tange à inexistência na Assembleia Nacional
de uma Comissão Constitucional responsável pela elaboração

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


de um projeto de constituição, um texto básico a ser adotado
como ponto de partida. O Regimento Interno da Assembleia
Constituinte Estadual fez a previsão da referida comissão, o
que agilizaria os trabalhos. Não obstante, o Regimento Esta-
dual inspirou-se na regulamentação do processo constituinte
nacional ao instituir o Colégio de Líderes (art. 11), instância
de grande importância na coordenação de ambos os proces-
sos constituintes, guardadas as devidas proporções. Durante a
tramitação do projeto de resolução que culminaria no referido
documento normativo, foram apresentadas dezenas de emen-
das buscando o seu aperfeiçoamento, merecendo destaque a
aprovação da emenda de autoria da deputada Sandra Starling,
que resultou no art. 31 do Regimento Interno da IV Consti-
tuinte Estadual, com a seguinte redação:

Art. 31 – Fica assegurada, no prazo estabelecido


no § 1º do artigo 29, a apresentação de proposta
de emenda ao projeto de Constituição, subscrita,
por, no mínimo, cinco mil eleitores do Estado, em
listas organizadas por entidade associativa legal-
mente constituída, que se responsabilizará pela
idoneidade das assinaturas, obedecidas as seguin-
tes condições: 401
NEPEL
I – a assinatura de cada eleitor deverá ser acompa-
nhada de seu nome completo e legível, endereço
e dados identificadores de seu título eleitoral;

[...]

III – cada eleitor poderá subscrever, no máximo,


três propostas.

Não tiveram êxito, todavia, as emendas que pretendiam


permitir as manifestações nas galerias da ALMG, ainda que
conferindo ao presidente poder de dirigir os trabalhos e de
encerrar a reunião, se assim as circunstâncias o exigissem. Dessa
forma, permaneceu o art. 18, que, permitia “a qualquer pessoa,
decentemente trajada, assistir, das galerias, às reuniões, vedada
manifestação de aplauso ou de reprovação ao que se passar no
recinto do Plenário da Assembleia Constituinte ou da Comissão
Constitucional”.
Promulgado o Regimento Interno, a primeira providência foi
a eleição da mencionada Comissão Constitucional, composta por
21 deputados, respeitando a devida proporção entre os partidos
que compunham a Assembleia Constituinte. O regramento dos
trabalhos da comissão já previa a primeira abertura para a socie-
dade organizada e demais órgãos do Estado colaborarem com
a formatação do projeto de constituição já nos trabalhos dessa
comissão, conforme previsão do § 1º do art. 28 do mencionado
regimento:

Art. 28 – [...]

§ 1º - [...] ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo,


aos prefeitos e às Câmaras Municipais, bem
como às entidades representativas de segmentos
402 da sociedade, fica facultada a apresentação de
NEPEL
sugestões à Comissão, nos primeiros cinquenta
dias do prazo estabelecido no artigo.

[...]

§ 3º - O Presidente poderá designar quantas reu-


niões da Comissão forem necessárias para reali-
zação de audiências públicas destinadas à defesa
das sugestões apresentadas no decurso do prazo
previsto no §1º deste artigo.

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


Respaldados nesses dispositivos, a ALMG fez um grande
esforço de mobilização da sociedade, com um levantamento
amplo de entidades da sociedade civil de diferentes setores sociais
com potencial interesse em participar do processo constituinte
estadual, com o cuidado de estimular a participação de entida-
des com interesses divergentes, como sindicato de escolas e o de
professores. Nesse esforço, é possível reconhecer o embrião do
cadastro de entidades da sociedade civil da ALMG, que hoje conta
com os dados de aproximadamente 35 mil entidades. Naquela
fase da Constituinte, foram feitas diversas audiências no interior
do Estado e na sede na Assembleia, culminando na apresenta-
ção de aproximadamente 10 mil sugestões a serem examinadas
e eventualmente incorporadas ao projeto de constituição. Foi um
trabalho exaustivo o exame de todas as sugestões, agregando-as
por proximidade temática e extraindo delas comandos adequados
a se integrar a um texto de natureza constitucional. Certamente
que representa uma forma inovadora de participação, porque,
reitera-se, não apenas abriu, mas estimulou fortemente o envolvi-
mento da sociedade na fase de elaboração do projeto de consti-
tuição que iria tramitar.

Não obstante, é preciso distinguir, de um lado, as sugestões


apresentadas pelos deputados e pela sociedade na Comissão
Constitucional para a elaboração do anteprojeto de Constitui- 403
NEPEL
ção, e, de outro, as emendas de deputados e emendas populares
apresentadas durante a tramitação do projeto de constituição.
As sugestões apresentadas nos termos do art. 28 supracitado
foram examinadas e incorporadas na medida do possível, mas
não precisavam tramitar propriamente, ou seja, serem exami-
nadas pela comissão em votações, ou declaradas prejudicadas,
como acontece com as emendas. Diferentemente dessas, as
sugestões não tinham o status de proposição legislativa acessó-
ria. Qualquer parlamentar poderia apresentar emendas na refe-
rida comissão, que precisou apreciar as quase duas mil emendas
apresentadas pelos constituintes. Em maio, o projeto é apresen-
tado em Plenário.
Com os parâmetros estabelecidos pelo Regimento Interno da
Assembleia Legislativa, exigindo a assinatura de cinco mil eleitores,
foram apresentadas 22 emendas populares na fase de tramitação
do projeto de constituição do estado, que se somaram a centenas
de emendas protocoladas pelos deputados. Assim, mencione-se,
a título de exemplo, a emenda apresentada pelos servidores do
banco estadual Minas Caixa, subscrita por aproximadamente 30
mil assinaturas, requerendo a equiparação salarial com os funcio-
nários de carreira do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais
– BDMG. A Confederação Nacional dos Bispos/Regional Leste II
requeria a inclusão da disciplina de ensino religioso facultativo nas
escolas públicas. Ambos os pleitos foram incorporados ao texto
constitucional, ainda que com ajustes. Também teve êxito em
suas pretensões a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado de Minas Gerais – Fetaemg -, na emenda que pretendia o
reconhecimento da Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha como
patrimônio estadual, estratégia para diminuir os danos ambientais
decorrentes da mineração de diamantes no rio. (GOMES, 2009).
O Comitê Popular na Constituinte, composto de 70 entidades
da sociedade civil, apresentou sete emendas para a regulação
de diferentes políticas públicas, como educação, saúde e meio
404 ambiente.
NEPEL
Fica evidente o desafio de compatibilizar a natureza do texto
de uma Constituição Estadual, que não deve conter minúcias
e precisa se ater à competência legislativa do Estado, com as
reivindicações pontuais de diversos setores da sociedade. Essas
são, contudo, tensões inerentes ao jogo democrático, que deve
contar com a habilidade dos agentes políticos e o conhecimento
técnico das equipes especializadas para encontrar as alternativas
possíveis, de forma que as demandas setoriais se ajustem ao
interesse público e ao perfil da norma em elaboração. O projeto
é aprovado em primeiro turno ainda em julho de 1989; em julho,

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


é aprovado em 2º turno e, no mês seguinte, a redação final,
sendo a Constituição Estadual promulgada em 21 de setembro
de 1989.

4. O desenvolvimento institucional e
Regimento Interno da ALMG de 1990

A famosa frase atribuída a Albert Einsten segundo a qual


“uma mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu
tamanho original” serve para descrever o estágio da ALMG pós
Constituinte Estadual de 1988/1989. Depois de a Casa se abrir à
participação popular, não havia como retornar ao estágio anterior
à Constituinte. Com isso não se quer dizer que os avanços são
contínuos, imunes a recuos no aperfeiçoamento das instituições.
Não há nenhuma garantia de manutenção das conquistas sociais
e dos avanços institucionais, de forma que sempre existe o risco
de recuos no desenvolvimento das instituições públicas. Não obs-
tante, ainda que sujeito a retrocessos, não há como apagar as
marcas de experiências intensas em uma casa legislativa, como a
elaboração de uma constituição com participação da sociedade, a
realização de um impeachment ou alterações profundas na estru-
tura administrativa. 405
NEPEL
A Constituinte representa um momento de excepcionalidade
da vida de um povo, de um Estado federado e da casa legislativa
que a promove. Promulgada a Constituição Estadual, a ALMG
precisava se preparar para a normalidade da vida democrática.
Duas medidas se destacam. Uma delas foi a aprovação de um
Regimento Interno condizente com o aquele momento, uma vez
que o regimento em vigor fora promulgado em 1971, estando,
portanto, desatualizado e em desarmonia com os novos tempos.
A outra foi a criação do Comitê Deliberativo de Comunicação
Institucional, composto por servidores experientes e consultores
externos, que elaborou um Plano Estratégico de Comunicação
Institucional. Dessas diretrizes derivaram várias medidas, como
uma reestruturação administrativa, na qual foi criada, em 1990,
a Gerência de Projetos Institucionais, responsável pelo desenvol-
vimento de mecanismos de interlocução com a sociedade. Sob a
direção da servidora Myriam Costa de Oliveira, a referida gerência
passou a organizar eventos com o propósito de debater com a
sociedade os diferentes temas de interesse coletivo, em especial
as políticas públicas.

Examinemos, inicialmente, a Resolução nº 5.065, de 31 de


maio de 1990, que continha o Regimento Interno da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Destaca-se a incorporação da figura
do colégio de líderes, com deliberações tomadas pela maioria dos
votos. Manteve-se o número de reuniões do Plenário, de segunda
a sexta-feira, no mesmo horário já praticado, ou seja, às 14 horas,
salvo a primeira da semana, que poderia ser às 20 horas, e a última,
às 9 horas, mas se fez uma distinção: as reuniões ordinárias de
terça, quarta e quinta-feira eram deliberativas e e as de segunda
e sexta-feira, destinadas a debates, comunicações de lideranças
e de deputados e pronunciamentos. A tímida reorganização do
tempo do Plenário é acompanhada naquele Regimento de uma
valorização das competências informacionais das comissões, con-
406 forme o disposto em seu art. 101:
NEPEL
Art. 101 – Às comissões, em razão da matéria de
sua competência ou da finalidade de sua consti-
tuição, cabe:

I – discutir e votar proposições, dispensada a apre-


ciação do Plenário, nos termos do art. 104;

II – apreciar os assuntos ou proposições submeti-


dos ao seu exame e sobre eles emitir parecer;

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


[...]

V – realizar audiência pública com entidades da


sociedade civil;

VI – realizar audiência pública em regiões do


Estado, para subsidiar o processo legislativo,
observada a disponibilidade orçamentária;

VII – convocar Secretário de Estado, dirigente de


entidade da administração direta ou outra autori-
dade estadual para prestar, pessoalmente, infor-
mações sobre assunto previamente determinado,
sob pena de responsabilidade no caso de ausência
injustificada;

VIII – encaminhar, através da Mesa da Assembleia,


pedido escrito de informação a Secretário de
Estado, a dirigente de entidade da administração
indireta, ao Comandante-Geral da Polícia Militar e
a outras autoridades estaduais;

IX – receber petição, reclamação, representação


ou queixa de qualquer pessoa contra ato ou omis-
são de autoridade ou entidade públicas; 407
NEPEL
X – solicitar depoimento de qualquer autoridade
ou cidadão, na forma do inciso VI do § 2º do art.
60 da Constituição do Estado;

[...]

XVII – estudar qualquer assunto compreendido no


respectivo campo temático ou área de atividade,
podendo promover, em seu âmbito, conferên-
cias, exposições, seminários ou eventos con-
gêneres;

XVIII – realizar, de ofício ou a requerimento, audi-


ência com órgãos ou entidades da Administração
Pública direta ou indireta e da sociedade civil, para
elucidação de matéria sujeita a seu parecer ou
decisão, ou solicitar colaboração para a mesma
finalidade, [...].

Desse conjunto de atribuições conferido às comissões,


verifica-se no inciso I que já se atribui a esses órgãos colegia-
dos a competência conclusiva em determinadas matérias, dis-
pensando a apreciação do Plenário. Todavia, é no campo da
produção da informação e da interação com a sociedade que,
regimentalmente, destacam-se as novas atribuições conferidas
às comissões, as quais competia a realização de audiências
públicas na capital e no interior e o aprofundamento do exame
das matérias de interesse do Estado, podendo realizar conferên-
cias, seminários e eventos congêneres. Quanto à regra geral de
emissão de parecer pelas comissões, já prevista no regimento
de 1971, ampliou-se o prazo de 15 para 20 dias. A disciplina
das audiências públicas manteve-se a mesma do Regimento de
408 1971 (art. 151 e seguintes).
NEPEL
Paralelamente à revisão do Regimento Interno, a ALMG,
notadamente por meio da referida Gerência de Projetos Institu-
cionais, foi desenvolvendo estratégias para ampliar a participa-
ção da sociedade. Sedimentaram-se, gradativamente três tipos
de eventos. Um deles foi o ciclo de debate, sendo realizado o
primeiro em 1990, intitulado a Manifestação das Urnas e o Novo
Parlamento Mineiro, seguido de um sobre a Defesa do Consumi-
dor em 1991, ambos com o formato tradicional de exposição de
especialistas sobre determinado tema, seguido de uma discus-
são com a participação do público interessado. Ainda naquele

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


ano, a ALMG realizou dois outros eventos, estabelecendo-se
assim um padrão que se repetiu nas décadas seguintes. Primeiro,
em virtude da especificidade do tema – arqueologia –, optou-se
por adotar uma nomenclatura para eventos dirigidos a público
especializado, a saber, Fórum Técnico. Apesar da tecnicidade do
tema, ocorreram duas inovações importantes naquele evento,
as quais passaram a ser uma constante nos eventos organizados
pela referida gerência: a construção coletiva da programação e
a aprovação de um documento final com propostas e recomen-
dações para a área. Essas inovações representaram um movi-
mento no sentido de diferenciar um evento realizado pela Casa
Legislativa daqueles promovidos por instituições acadêmicas e
profissionais.
Ainda naquele ano, realizou-se um evento de grande porte,
cuja temática educação era de interesse de várias categorias
compostas por elevado número de profissionais, como professo-
res e auxiliares de escola. Esse evento, construído coletivamente
com as entidades da área, foi nomeado Seminário Legislativo
Educação – a hora da chamada. Nele, houve um movimento
de não se valorizar tanto a fala dos grandes especialistas,
abrindo espaço para as formulações daqueles que enfrenta-
vam os problemas no planejamento e no dia a dia da oferta
da educação. Pode-se aqui reconhecer o esforço para dar aos
eventos institucionais uma identidade própria, condizente com 409
NEPEL
uma casa legislativa. O formato dos seminários legislativos foi
regulamentado pela Deliberação nº 720, de 18 de dezembro
de 1991. Entre 1990 e 1997, ano em que se aprovou um novo
Regimento Interno, foram realizados 38 ciclos de debates, 14
fóruns técnicos e 6 seminários legislativos. Apesar do grande
número de eventos, não se pode, contudo, afirmar que havia o
envolvimento de parte significativa dos parlamentares, restrin-
gindo, como regra, a participação daqueles que demandavam
sua realização ou que mantinham ligação com a matéria que
estava sendo discutida no evento.
Merecem menção as audiências públicas regionais realizadas
a partir de 1993, regulamentadas pela Resolução nº 5.117, de 13
de junho de 1992, que tinham o propósito de colher sugestões
para a elaboração das leis orçamentárias. A proposta, implemen-
tada em 1993, consistia na realização de uma audiência pública
regional por macrorregião, com representantes de todas as
microrregiões. O marco regulatório que disciplinava a realização
das referidas audiência foi sendo aperfeiçoado, por exemplo,
por meio da Lei nº 11.745, de 16 de janeiro de 1995, e suas
alterações. Todavia, não se foi capaz de contornar o maior obs-
táculo da iniciativa: embora as demandas fossem incorporadas
no orçamento aprovado pela ALMG, grande parte das sugestões
aprovadas nas referidas audiências não era executada pelo Poder
Executivo, dado o caráter autorizativo das peças orçamentárias.
O descompasso entre o procedimento democrático e seus desdo-
bramentos efetivos na vida dos cidadãos envolvidos provocava,
inclusive, certa resistência a novas iniciativas da mesma natureza.
Dado esse descompasso e seus efeitos deletérios, a iniciativa foi
suspensa em 1999.
Esse processo de experimentação das formas de participação
não tinha, na primeira metade da década de 90, guarida no Regi-
mento Interno, que, diga-se de passagem, atribuía às comissões a
competência para realização de seminários e eventos congêneres.
410 Acrescente-se a isso o fato de que os primeiros anos de funcio-
NEPEL
namento da ALMG na incipiente vida democrática sob a égide
das Constituições Federal de 1988 e Estadual de 1989 permitiram
perceber a importância de um conjunto de ajustes na disciplina de
funcionamento da ALMG, o que demandaria a aprovação de um
novo regimento.. Nesse sentido, foi promulgada a Resolução nº
5.176, de 6 de novembro de 1997 A partir dessa data, concentra-
ram-se as reuniões ordinárias nas terças, quartas e quintas-feiras,
às 14h. As segundas e sextas-feiras destinaram-se às reuniões de
debate, que não mais existiam desde a revogação do inciso III
do art. 14, em 2005. O colégio de líderes sofreu duas alterações

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


significativas: o voto de líderes de bloco parlamentar passou a
ter peso correspondente ao número de representações partidá-
rias integrantes do bloco, bem como adotou-se a possibilidade
de acordo de líderes subscrito pela totalidade dos membros do
referido colegiado alterar procedimento específico na tramitação
de matérias.

No que tange à participação, foi introduzido o Título VIII – Da


Participação da Sociedade Civil, disciplinando o projeto de inicia-
tiva popular, as representações populares, as audiências públicas
e os eventos institucionais, organizados em parceria com entida-
des da sociedade civil e órgãos públicos. Esse é um diferencial
importante, porque a participação da sociedade civil potencializa
o alcance do evento, mas restringe a capacidade do parlamento e,
em especial, do deputado interessado em definir a pauta de dis-
cussão no evento. Na regulamentação dos eventos institucionais,
o mencionado regimento trouxe à época uma novidade impor-
tante: a responsabilidade de uma comissão de representação
de acompanhar eventuais desdobramentos das recomendações
e sugestões aprovadas no evento, notadamente na comissão
temática correspondente à matéria. É interessante observar que
as comissões permanentes não foram incorporadas aos proces-
sos participativos, apreciando à posteriori o que se deliberou nos
eventos institucionais. 411
NEPEL
É possível reconhecer um processo incremental em que cer-
tas experiências de participação são testadas, pela própria ALMG
Legislativa ou por outras entidades, e posteriormente incorpora-
das ao Regimento Interno, como é o caso da Comissão de Parti-
cipação Popular, inspirada na experiência da Câmara dos Deputa-
dos e introduzida no Regimento Interno da Assembleia de Minas
Gerais por meio da Resolução nº 5.212, de 9 de maio de 2003.
A criação da referida comissão estabelece um paradoxo, porque,
ao se instituir uma comissão de participação popular, sugere-se
que as demais não o são, que não é próprio das comissões per-
manentes permitir a participação dos interessados na apreciação
das matérias sob sua responsabilidade. Essa aparente contradição
foi reforçada pela referida alteração regimental que instituiu a
Comissão de Participação Popular como a única competente para
a realização de consulta pública, regra que se manteve até 2015,
quando nova revisão regimental estendeu a todas as comissões a
possibilidade de requerer à Mesa da ALMG a adoção desse meca-
nismo de participação popular.
Ao criar a Comissão de Participação Popular, instituiu-se uma
nova proposição legislativa denominada proposta de ação legis-
lativa, que permitia materializar a demanda popular a ser apre-
ciada pela Casa Legislativa. Apesar da mencionada contradição,
é inegável que a Comissão de Participação Popular representa
uma abertura para a sociedade participar de processos decisó-
rios, notadamente em matéria orçamentária, representando um
salto de qualidade no procedimento na medida em que passou
a contar a participação do Poder Executivo, que, de certa forma,
se compromete com o cumprimento das sugestões populares na
peça orçamentária.
Qualquer texto que pretenda examinar o desenvolvimento
institucional da ALMG e as práticas participativas não pode deixar
de fazer referência ao Direcionamento Estratégico, adotado em
2010, que definiu como compromisso “exercer a representação
412 com a participação da sociedade”, com o objetivo finalístico de
NEPEL
“ampliar e aprimorar a participação da sociedade nas atividades
legislativas”, que fundamentam um conjunto de projetos estra-
tégicos, promovendo um aperfeiçoamento constante dos meca-
nismos de participação. Para esse aperfeiçoamento, comumente
não são necessárias alterações regimentais, como a construção
de novos espaços para a realização de eventos e a adoção de
recursos virtuais que facilitem o monitoramento das ações legis-
lativas pelos cidadãos. Não obstante, as melhorias pontuais no
regimento aguardam janelas de oportunidade, momentos em
que os parlamentares, por meio da Mesa e dos Líderes, reco-

10. Desenvolvimento institucional, participação e o Regimento Interno da ALMG


nhecem a importância de atualizações pontuais no Regimento
Interno. Como regra, evitam-se alterações frequentes no texto do
regimento, uma vez que é sempre necessário um lapso de tempo
para testar e consolidar as últimas alterações e para constatar
a necessidade de novos ajustes. Alterações frequentes no texto
regimental dificultam a incorporação de suas normas na dinâmica
parlamentar da Casa Legislativa.

5. Conclusão

Ao revisitar a história da ALMG Legislativa de Minas Gerais,


com um olho no seu desenvolvimento institucional, notada-
mente no que tange à sua abertura para a participação da
sociedade, e o outro no processo de institucionalização dos
mecanismos de participação no Regimento Interno, verifica-se
que é um processo incremental, no qual os mecanismos são
experimentados pela própria ALMG ou por outras instituições e
têm sua regulamentação gradativamente aperfeiçoada à medida
que se percebe a necessidade de ajustar sua disciplina normativa.
A incorporação de regras de participação popular no texto do
Regimento Interno é sempre um avanço importante no processo
de institucionalização da participação, mas não corresponde a
uma garantia de efetivação do mencionado princípio finalístico 413
NEPEL
do Direcionamento de Estratégico de que a representação polí-
tica seja exercida com a participação da sociedade. É preciso que
parlamentares, movimentos sociais e cidadãos estejam dispostos
a reinventar a representação e a participação para que ambas
possam evoluir de forma integrada, dando efetividade às regras
regimentais que disciplinam a participação popular na ALMG
Legislativa de Minas Gerais.

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Semana de Recursos Humanos. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa
do Estado de Minas Gerais, 1985.

415
NEPEL
EM PERSPECTIVA CRÍTICA
A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA
A presente obra compõe-se de uma coletânea de artigos
que partem de uma premissa comum: a de que o processo
legislativo está a merecer um olhar mais atento e reflexivo dos
estudiosos, para além de abordagens meramente descritivas
do fenômeno procedimental. É preciso encarecer a relação
A elaboração
umbilical entre processo legislativo e democracia, tendo
presente que as muitas vicissitudes verificadas na gênese da
legislativa em
lei comprometem o aperfeiçoamento democrático do País.
Daí a relevância de se submeter o processo de elaboração perspectiva crítica
legislativa a uma análise crítica e reflexiva, a partir de
múltiplas perspectivas.

Bernardo Motta Moreira José Adércio Sampaio Bernardo Motta Moreira e

Escola do Legislativo – Núcleo de Estudos e Pesquisas


Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais
Christiane Costa Assis José Alcione Bernardes Júnior José Alcione Bernardes Júnior
Ciro Antônio da Silva Resende José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior Coordenação
Eduardo Moreira da Silva Manoel Leonardo Santos
Élida Graziane Rachel Barreto
Guilherme Wagner Ribeiro Rafael Cardoso Sampaio
Isabele Batista Mitozo Rafael Dilly Patrus

Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais


Escola do Legislativo
Núcleo de Estudos e Pesquisas

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