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Cartãozinho de Natal

Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Até que eu não sou de reclamar, puxa! Taí, se há alguém que não é de
reclamar, sou eu. Pago sempre e não bufo. Claro que procuro me defender
da melhor maneira possível, isto é, chateando o patrão, cobrando cada vez
mais, buscando o impossível — como diz Tia Zulmira —, ou seja,
equilíbrio orçamentário. Se o Banco do Brasil não tem equilíbrio
orçamentário, eu é que vou ter, é ou não é?

Mas a gente luta. Eu ganho cada vez mais e nem por isso deixo de terminar
sempre o mês que nem time de Zezé Moreira: 0 x 0. Segundo cálculos da
tia acima citada, que é bárbara para assuntos econômicos, eu sou um dos
homens mais ricos do Brasil, pois consigo chegar ao fim do mês sem dever.
Esta afirmativa não me agrada nada, mas dá uma pequena amostra de como
vai mal a organização administrativa do nosso querido Brasil.

Aliás, minto…o cronista pede desculpas, mas estava mentindo. Eu vou no


empate até dezembro, porque, quando chega o Natal, é fogo. Aí embaralha
tudo. Não há tatu que resista aos compromissos natalinos. São as Festas —
dizem.

O presente das crianças, a ganância do comerciante, as gentilezas


obrigatórias, os orçamentos inglórios, a luta do consumidor, a malandragem
do fornecedor e olhe nós todos envolvidos nesse bumba-meu-boi dos
presentinhos.

E que fossem só os presentinhos. A gente selecionava, largava uma


lembrancinha nas mãos dos amigos com o clássico letreiro: “Você não
repare, que é presente de pobre” e ia maneirando. Mas tem as listas, tem os
cartõezinhos.

O que me chateia são as listas e os cartõezinhos. A gente passa o mês todo


comprando coisas pros outros sem a menor esperança de que os outros
estejam comprando coisas pra gente. De repente, quando o retrato do
falecido Almirante Pedro Álvares Cabral, que, no caminho para as Índias,
ao evitar as calmarias, etc., etc. já é um raro no bolso dos coitados do que
deputado em Brasília, vem um de lista.

O de lista é sempre meio encabulado. Empurra a lista assim na nossa frente


e diz: — O pessoal todo assinou. Fica chato se você não assinar. Então a
gente dá uma olhada. A lista abre com uma quantia polpuda — quase
sempre fictícia — que é pra animar o sangrado. E tem a lista dos contínuos,
tem a lista dos porteiros, tem a lista dos faxineiros, tem a lista das
telefonistas, tem a lista do raio que te parta.

A gente assina a lista meio humilhado, porque, no máximo, pode contribuir


com duzentas pratas, onde está estampada a figura de Pedro I, que às
margens do Ipiranga, desembainhando a espada, etc., etc. e pensa que está
livre, embora outras listas estejam de tocaia, esperando a gente.

Então tá. Há um momento em que os presentinhos já estão todos


comprados, as listas já estão todas assinadas e você já está com mais ponto
perdido na tabela do que o time do Taubaté. Deve pra cachorro, mas vai
dever mais.

Vai dever mais porque faltam os cartõezinhos de apelação. A campainha


toca, você abre para saber quem está batendo e é o lixeiro. Ele não diz nada.
Entrega um envelopezinho, a gente abre e lá está o versinho: “Mil votos de
Boas Festas/ Seja feliz o ano inteiro/ É o que ora lhe deseja/ O vosso
humilde lixeiro.”

E o vosso humilde lixeiro espalma sorridente a estira que a gente larga na


mão dele. Meia hora depois a campainha toca. Desta vez — quem sabe? —
é uma cesta de Natal que um bacano teve a boa idéia de enviar. Mas qual. É
o carteiro, fardado e meio sem jeito, que passa outro cartãozinho de
apelação. A gente abre o envelope e lá está: “Trazendo a correspondência/
Faça frio ou calor/ Vosso carteiro modesto/ Prossegue no seu labor/ Mas a
cartinha que trás/ Nesta oportunidade/ É para desejar Boas Festas/ E muita
felicidade.”

Mas este ano eu aprendi, irmãos! Em 1963 vou comprar diversas folhas de
papel (tamanho ofício) e organizar várias listas para as criancinhas pobres
aqui da casa. Quando o cara vier com a dele, eu neutralizo a jogada com a
minha. O máximo que pode acontecer é ele assinar 500 na minha e eu
assinar 500 na dele… ficando a terceira da melhor de três para disputar
mais tarde.

Também vou mandar prensar uns cartõezinhos. Quando o vosso humilde


lixeiro ou o vosso carteiro modesto entregar o envelopinho, eu entrego
outro a ele, para que leia: “No Inferno das notícias/ Mas com expressão
seráfica/ Eu batuco o ano inteiro/ A máquina datilográfica/ Pro ano que vai
entrar/ Não me sinto otimista/ Mesmo assim, felicidades/ Lhe deseja este
cronista.”

Conforme diz Tia Zulmira: “— Malandro prevenido dorme de botina.”

O texto acima foi extraído do livro “Rosamundo e os Outros”, Editora Sabiá


- Rio de Janeiro, 1963, pág. 174.

P.S. - Acabo de receber o jornal. Vejam os dizeres do cartãozinho que veio


junto: “Ao dobrar do sino, a mais bela história da humanidade outra vez
será contada. Nós que trabalhamos com alegria, no sol, no frio e na chuva te
saudamos, querido(a) assinante”.

Vou mandar um que acabo de fazer para ele e para quem mais aparecer por
aqui: “Martelando o teclado, procurando por textos: loucura!, assim nasce
semanalmente o Projeto Releituras. E o ano no fim acaba, para alguns bem,
pra outros mal, e a todos eu desejo Boas Festas e Feliz Natal!”.
Conto de Natal
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Era um Papai-Noel mais subdesenvolvido do que - digamos - o Piauí. Uma


barba mixuruquíssima, rala, encardida, que ele acabou por puxar para
debaixo do queixo, na esperança de diminuir o calor.

Sim, porque fazia calor.

A calçada refletia por debaixo das calças dos transeuntes o seu bafo quente,
o que ocorria também por debaixo das saias das passantes, mas esta imagem
é mais refrescante e talvez não dê ao leitor a idéia do calor que fazia. A
turba ignara ia e vinha, carregada de embrulhos, vítima da desonestidade
dos comerciantes, mas, ávida de comprar presentinhos.

E o Papai Noel avacalhado ali na esquina, badalando. Era um sininho de


som fino, que ele badalava meio sem jeito, como se estivesse disfarçando
alguma coisa sem aquela dignidade de badalar de sino dos verdadeiros
Papais-Noeis.

Também a roupa era mixa! A blusa não tinha aquela vermelhidão dos
Papais-Noeis de capa de revistas. Nunquinha Madalena. Era cor-de-rosa,
daquele cor-de-rosa das camisas que usam componentes de blocos de sujo,
no Carnaval carioca. Isto, inclusive, talvez fosse verdade: aquele Papai-
Noel era tão vagabundo que era bem possível que tivesse aproveitado o
uniforme do Carnaval anterior, para o Natal.

Tia Zulmira, protegida pela sombra de uma marquise, aguardava condução


e observava o Papai Noel. Observava, por exemplo, que o Papai-Noel usava
tênis (bossa nova natalina), observava que o Papai-Noel não fazia anúncio
de coisa nenhuma, ao contrário de seus coleguinhas de outras esquinas, que
traziam às costas grandes cartazes coloridos com os nomes das lojas da
cidade.

A velha, num lampejo, percebeu tudo. Viu logo que, naquele Papai-Noel,
tinha truque. E, apenas para confirmar a sua teoria, abriu a bolsa, retirou um
pedaço de papel e escreveu:

— 500 cruzeiros no grupo do gato — 1.675 pelos sete lados… NCr$ 200,00
— centena 463 (invertido) … NCr$ 150,00.

Enrolou o papelzinho no dinheiro correspondente e, saindo de debaixo da


marquise, passou disfarçadamente pelo Papai-Noel e espalmou na sua mão
a fezinha. Papai Noe1 apanhou tudo e disse baixinho:

— Obrigado, minha senhora. Um bom Natal para a senhora também.

Texto extraído do livro “Dez em Humor”, Editora Expressão e Cultura - Rio


de Janeiro, 1968, pág. 50.

Fábula dos Dois Leões


Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim Zoológico. Na hora da fuga
cada um tomou um rumo, para despistar os perseguidores. Um dos leões foi
para as matas da Tijuca e outro foi para o centro da cidade. Procuraram os
leões de todo jeito mas ninguém encontrou. Tinham sumido, que nem o
leite.

Vai daí, depois de uma semana, para surpresa geral, o leão que voltou foi
justamente o que fugira para as matas da Tijuca. Voltou magro, faminto e
alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do PTB que arranjasse vaga
para ele no Jardim Zoológico outra vez, porque ninguém via vantagem em
reintegrar um leão tão carcomido assim. E, como deputado do PTB arranja
sempre colocação para quem não interessa colocar, o leão foi reconduzido à
sua jaula.

Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrava do leão que fugira


para o centro da cidade quando, lá um dia, o bruto foi recapturado. Voltou
para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde. Apresentava aquele
ar próspero do Augusto Frederico Schmidt que, para certas coisas, também
é leão.

Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca
disse pro coleguinha: — Puxa, rapaz, como é que você conseguiu ficar na
cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde? Eu, que fugi para as
matas da Tijuca, tive que pedir arreglo, porque quase não encontrava o que
comer, como é então que você… vá, diz como foi.

O outro leão então explicou: — Eu meti os peitos e fui me esconder numa


repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por
falta dele.

— E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?


— Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu
cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de seção,
funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o
cara que servia o cafezinho… me apanharam.

Texto extraído do livro “Primo Altamirando e Elas”, Editora do Autor – Rio


de Janeiro, 1961, pág. 153.

Não Sei se Você se Lembra


Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de
comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de
uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-me bem — e não
sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu,
mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar,
sempre que se trata de comida ou de mulher.

Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde


se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar
num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do
delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de
pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter
necessidade premente de comer siris.

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o
campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do
apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do
Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da
tarde. Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores
siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em
que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas.

Ah… foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então,
nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho
estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade
ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do
pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos
glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar
boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos
perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço.

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos
siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o
jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã.

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges
tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então — não
sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse
que o siri já tinha acabado.

A crônica acima consta do livro “Garoto Linha Dura”, lançamento da


Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 163.

O Grande Mistério
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que


vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase
imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as
pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para
o jantar. Daí…

Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram
as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala
cheirava pior.

Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não
se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os
empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma
boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os
achados eram inodoros, o mistério persistiu.

Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não


podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira
caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e… nada. Vinte e
quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para
um cheiro mais ativo.

À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e,


vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a
Constituição na defesa de seus interesses.

— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e


ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala
de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou
saem os empregados.

Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram


apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A
sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o
cheiro era de morte.

Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho
não iria melhorar a situação?

— Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma


fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.

Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer


enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para
o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso
odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.

Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera —
como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso —
estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para
desespero geral de empregados e empregadores.

A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu


do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito
de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou
que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a
copeira:

— Madame apelou para a ignorância.

E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame


esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do
cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath,
Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.

Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro
enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de
visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível
ao outro, finalmente vencido.
Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se
cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira.
Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas
franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um
quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa,
despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para
perceberem o que se passava. Bastou respirar.

Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das


empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra,
orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.

Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na


inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.

Não fazer mais na jarra, é lógico.

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Marcos Rangel Porto – 1923/1968) nos


brinda com mais uma de suas histórias cheias de suspense e muito humor.
Esta, retirada do livro “Rosamundo e os outros”, publicado em 1963 (1a.
edição) pela Editora Sabiá Ltda., dá uma excelente idéia do poder de
criação do autor dos também consagrados “Tia Zulmira e eu”,” Primo
Altamirando e elas”, “Garoto Linha Dura” e os diversos e impagáveis
números do “Festival de Besteira que Assola o País”.

Por Vários Motivos Principais


Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Durante uma recepção elegante, a flor dos Ponte Pretas estava a mastigar o
excelente jantar, quando uma senhora que me fora apresentada pouco antes
disse que adorou meus livros e que está ávida de ler o próximo.

— Como vai se chamar?

Fiquei meio chateado de revelar o nome do próximo livro. Ela podia me


interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse:

— “Vaca Porém Honesta.” (*)

Madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era
muito engraçado, muito original. Depois — confessando-se sempre leitora
implacável, dessas que sabem até de cor o que a gente escreve —, madame
pediu para que não deixássemos de incluir aquela crônica do afogado.

— Qual? — perguntei.

— Aquela do camarada que ia se afogando, aí os carros foram parando na


praia de Botafogo para ver se salvavam o homem. Depois um carro bateu
no outro, houve confusão e até hoje ninguém sabe se o afogado morreu ou
salvou-se. Lembra-se? Aquela é uma de suas melhores crônicas.

Foi então que eu contei pra ela o caso do colecionador de partituras


famosas, que um dia foi a um editor de música procurando o original de
certa sonata que fora composta por Haydn e Schumann juntos. O editor
ficou olhando para ele e o colecionador esclareceu: - Sei que essa partitura é
raríssima, mas eu pagaria qualquer preço por ela.

— Vai ser um pouco difícil — disse o editor — conseguir uma partitura


composta por Haydn e Schumann juntos, por vários motivos. Primeiro:
quando Schumann nasceu, Haydn tinha morrido no ano anterior.

A leitora que se lembra de tudo que eu escrevi estranhou e perguntou:


— Por que me contou essa história?

— Porque lembra a história que estamos vivendo agora. A crônica sobre o


afogado que a senhora diz ser uma das minhas melhores crônicas… quem
escreveu foi Fernando Sabino.

Ela achou engraçadíssimo. Papai agrada em festa.

(*) O título, mais tarde, foi trocado, porque a vaca protestou.

Texto extraído do livro “O melhor da crônica brasileira”, José Olympio


Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 88.
Vamos Acabar Com Esta Folga
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados


nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses,
franceses, argelinos, alemães, o diabo.

De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que não via
homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela
provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e
perguntou:

— Isso é comigo?

— Pode ser com você também — respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura
que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali dentro
pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o
turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve
outra sorte. Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos
presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele
café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou
bem. E depois do inglês foi a vez de um francês, depois de um norueguês
etc. etc. Até que, lá do canto do café levantou-se um brasileiro magrinho,
cheio de picardia para perguntar, como os outros:

— Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso
cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou
perto, balançou o corpo e… pimba! O alemão deu-lhe uma porrada na
cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.
Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí,
madame. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar
macio e pensar que são mais malandros do que os outros.

Um texto curto, extraído do livro “O Melhor da Crônica Brasileira - 1”,


José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 71, nos faz recordar o
humor de Stanislaw (Sérgio Porto) e pensar na falta que ele nos faz.
A Charneca
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Então, na esperança vã de me livrar do tormento de amar-te, adormeci um


pouco. E se digo vã, amor, é porque logo fiquei a sonhar contigo, a te dizer
quanto vai em mim de amor, doce, terno, perdido amor às vezes; candente,
nervoso, incontido amor, tantas vezes.

Oh os sonhos de amor, querida! Nele eras tão outra, tão Julieta, tão Isolda,
tão Marília. E eu tão o Romeu do segundo ato, tão o Tristão da primeira
ária, tão o Dirceu de antes do desterro!

Vinhas lentamente para os meus braços ansiosos, terna e eterna, simples e


definitiva, como o barco que parte para o naufrágio. Tu, mulher que já
caminhavas para mim, antes mesmo do dia em que te conheci. Para mim,
que vivia na certeza de que de algum lugar virias, imponderável, como
soem ser os destinos do amor.

No sonho, sorríamos, no sonho éramos nós dois para sempre e um dia. Tu,
esquecida de tantas ingratidões, eras o mais puro dos pecados. Eu, vivendo
o momento em que o homem prova a si mesmo ter um pouco de eternidade,
olvidava antigos dissabores, as noites sofridas, as lágrimas caídas, a dor.

E tão glorioso fiquei, que em mim couberam todas as glórias, abateram-se


sobre minha cabeça todos os hinos, e se Beethoven eu fosse, passaria, num
átimo, da “Patética” à “Heróica”. Que incontida alegria! Desprendí-me de ti
e saí a correr pela charneca.

Na verdade eu nem sei o que é charneca, mas isto fica bacana pra burro, em
romance inglês.

Texto extraído do livro “Primo Altamirando e Elas”, Editora do Autor - Rio


de Janeiro, 1962, pág. 200.
Éramos Mais Unidos aos Domingos
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

As senhoras chegavam primeiro porque vinham diretas da missa para o café


da manhã. Assim era que, mal davam as 10, se tanto, vinham chegando de
conversa, abancando-se na grande mesa do caramanchão. Naquele tempo
pecava-se menos, mas nem por isso elas se descuidavam. Iam em jejum
para a missa, confessavam lá os seus pequeninos pecados, comungavam e
depois vinham para o café. Daí chegarem mais cedo.

Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam tanto. Ou


antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a praia, para o
banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só chegavam mesmo — e
invariavelmente atrasados na hora do almoço. Vinham ainda úmidos do mar
e passavam a correr pelo lado da casa, rumo ao grande banheiro dos fundos,
para lavar o sal, refrescarem-se no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só
começou a negar água do Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.

O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos, primas, tios,
tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na expectativa, aguardando aquela
que seria mais uma obra-mestra da lustrosa negra Eulália. Os homens
beliscavam pinga, as mulheres falando, contando casos, sempre com muito
assunto. Quem as ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo
anterior, nem imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As
moças, geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os
rapazes no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a
cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.

De repente aquilo que Vovô chamava de “ouviram do Ipiranga as margens


plácidas”. Era o grito de Eulália, que passava da copa para o caramanchão,
sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único aviso de que o almoço
estava servido. E então todos se misturavam para distribuição de lugares,
ocasião em que pais repreendiam filhos, primos obsequiavam primas e o
barulho crescia com o arrastar de cadeiras, só terminando com o início da
farta distribuição de calorias.
Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda e
simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele tempo
nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa, onde todos
comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto com cerveja e
guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia sempre um adulto que
preferia guaraná, havia sempre uma criança teimando em tomar cerveja.
Um olhar repreensivo do pai e aderia logo ao refresco, esquecido da
vontade. Mauricinho não conversava, mas em compensação comia mais do
que os outros.

Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia de não


chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e, tal como no
poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na escolha.

A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos domingos
de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo, entrava pela sala
onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um futebol mais disputado,
porque amador, irradiado por locutores menos frenéticos. Lá, nos fundos os
bem-aventurados dormiam em redes. Era grande a família e poucas as
redes, daí o revezamento tácito de todos os domingos, que ninguém ousava
infringir.

E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua namorada


no portão de casa e vinha chegando de volta, então começavam as
despedidas no jardim, com promessas de encontros durante a semana, coisa
que poucas vezes acontecia porque era nos domingos que nos reuníamos.

Depois, quando éramos só nós — os de casa — a negra Eulália entrava


mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café. Todos
fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não. Mauricinho
sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do almoço.

Sérgio Porto, a outra face de Stanislaw Ponte Preta, estaria completando 78


anos no último dia 11, caso não tivesse partido tão cedo de nosso convívio.
Com seu nome de batismo escreveu crônicas maravilhosas, ora líricas, ora
densamente dramáticas, retratando o ambiente carioca, onde deixa
transparecer sua fina sensibilidade sem conseguir esconder a nota de um
irresistível humor.
Texto extraído do livro “A Casa Demolida”, Editora do Autor – Rio de
Janeiro, 1963, pág. 23.

História de um Nome
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas.
Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é
um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis,
principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus
portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser
Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e
— vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes
inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o
caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em
que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de


nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho
amigo seu — o “Seu” Wagner — porque se casara com uma senhora
chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de
convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de
Wagem — “wag” de Wagner e “em” de Emília. É verdade que a vagem
comum, crua ou ensopada, será sempre com “v”, enquanto o filho de “Seu”
Wagner herdara o “w” do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a
consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador
de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha,
em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que
morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

“Seu” Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros,
embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua
mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação
com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo,
Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o
Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de “Seu” Veiga, todos excelentes rapazes,


principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e
papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca)
não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo.
Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do
pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de “Seu” Veiga, pai
extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor.
Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de
uma brincadeira. “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta, levando a
família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia,
toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante
muito tempo.

Dona Odete — por alcunha “A Estante” — mãe dos meninos, sofria o


desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina “para me fazer
companhia” - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era
castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos
garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de
chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos,


quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando
cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que
“Seu” Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um
herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para
denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga


promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom
católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber
somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da
paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.
Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de “Seu”
Veiga.

Texto extraído do livro “A Casa Demolida”, Editora do Autor - Rio de


Janeiro, 1963, pág. 175.

O Festival de Besteira Que Assola o País


Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Disse Stanislaw no FEBEAPA 2:

“É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira


começou a assolar o País. Pouco depois da “redentora”, cocorocas de
diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem
“otoridades”, sentindo a oportunidade de aparecer, já que a “redentora”,
entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-
durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o
próximo enfim, como corrupto ou subversivo — alguns apontavam dois
dedos duros, para ambas as coisas), iniciaram essa feia prática, advindo daí
cada besteira que eu vou te contar”.

Vamos a algumas amostras:

“O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros” (Deputado Índio do


Brasil, Assembléia do Rio).

O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era


preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido “um
símbolo nacional”, só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo
Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois desagravava o dito
símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia
com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.

Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o Brasil foram
colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de Turismo de São
Paulo — Deputado Orlando Zancaner — quando inaugurou a ala das
bandeiras, disse que “era para incrementar o turismo externo”.

Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um


Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado
Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas
tantas, a atriz deu um grito de “viva a Democracia”. O senhor Ernani Sátiro
na mesma hora retrucou: “Insulto eu não tolero”.

O Diário Oficial publica “Disposições de Seguros Privados” e mete lá: “O


Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve
(…), “Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de
suicídio — voluntário ou involuntário”.

Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de desquite


contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa não lhe dá a
menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é hora de programas de
Roberto Carlos na televisão. A professora vai aprender que mais vale um
Carlos Roberto ao vivo que um Roberto Carlos no vídeo.

Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:

“O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia da


Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação, bem
como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O conferencista foi
aplaudido de pé”. O distraído Rosamundo leu e, na sua proverbial vaguidão,
comentou: “Não seria mais distinto se aplaudissem com as mãos?”.

Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese alguma


permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários,
insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia no dia
1.º de abril depararia com o prédio da assembléia Legislativa totalmente
cercado por tropas da Polícia Militar. Na certa, a separação de poderes,
prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e
muita cacetada.

Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): “O Dr. Josias


Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito
Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi,
em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham
seguido. Houve diligencias pelas vizinhanças, parentes foram procurados e
outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o
despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT
(Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos “bicicleta”,
“pitombas” e “Loberi”, que “deviam ser de um código secreto”.

“Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a passeata, mas


antes também. Eles são incapazes de reconhecer o valor da polícia. Os
fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no
policial”. Essa declaração foi feita pelo Secretário de Segurança de Minas
Gerais, coronel Joaquim Gonçalves.

A peça “Liberdade, Liberdade” estreou em Belo Horizonte e a Censura


cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: “Mulher
de vida fácil”, o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil.
Ninguém mais tá levando vida fácil.

Segundo Tia Zulmira “o policial é sempre suspeito” e — por isso mesmo —


a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as
outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório
sobre um crime político, com estas palavras: “A vítima foi encontrada às
margens do riu sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros
separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a
uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de
suicídio”.

Em Campos (RJ) ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da


cidade organizou um júri simbólico de Adolph Hitler, sob o patrocínio do
Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento
Hitler foi absolvido.

A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o


Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos), declarava aos
jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca
parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital
mineira “para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e
saias curtas”. E acrescentava furioso: “A tradição de moral e pudor dos
mineiros será preservada sempre”. Toda essa cocorocada iria influenciar um
deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso
na Câmara sobre o tema “Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira”.
Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira,
que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ramos — figurinha que
ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar
“Reitor” — nomeava um professor para a cadeira de Direito Penal. O ilustre
lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: “A ciência
do Direito é aquela que estuda o Direito”.

A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos Bispos do


Brasil, sobre recentes publicações pretensamente científicas, “que abordam
problemas relacionados ao sexo com evidente abuso”. O documento não
explicou se o abuso era do problema ou se o abuso era do sexo. Em
compensação, nessa mesma conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de
Fortaleza, dava entrevista à Agência Meridional sobre pílulas
anticoncepcionais, uma pílula formidável para fazer efeito no Festival de
Besteira. Como se disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus
Deus!!! Dom Delgado, por exemplo, dizia: “A protelação do casamento é a
única conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o
controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro: o da
continência na vida conjugal”. Como vêem, o piedoso sacerdote era um
bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda mais, falando
em sexo e em continência na vida conjugal, deixou muito cocoroca achando
que, dali por diante, era preciso bater continência para o sexo também.

Textos extraídos dos livros “O Festival de Besteira que Assola o País”,


Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1966, “2.º Festival de Besteira que
Assola o País”, Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, e “Na Terra do
Crioulo (A máquina de fazer) Doido - FEBEAPA 3”, Editora Sabiá - Rio de
Janeiro, 1968, págs. diversas.
Pensamentos do Lalau
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

- No Brasil as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmentido,


deixaram de acontecer.

- Antes só do que muito acompanhado.

- Quando aquele cavalheiro nervoso entrou no hospital dizendo “eu sou


coronel, eu sou coronel”, o médico tirou o estetoscópio do ouvido e quis
saber: “Fora esse, qual o outro mal do qual o senhor se queixa?”

- Ser imbecil é mais fácil.

- Está dando mais do que cará no brejo.

- Nos trens suburbanos não livram a cara nem de padre, que dirá mulher de
minissaia.

- O mais perigoso é que já estão confundindo justa causa com calça justa.

- O Reino Unido não é tão unido assim como eles dizem, não.

- Desligou o telefone com uma violência de PM em serviço.

- Mais monótono do que itinerário de elevador.

- Macrobiótica é um regime alimentar para quem tem 77 anos e quer chegar


aos 78.

- Consciência é como vesícula, a gente só se preocupa com ela quando dói.

- Difícil dizer o que incomoda mais, se a inteligência ostensiva ou a burrice


extravasante.

- Sempre ouviu dizer que o homem totalmente realizado é aquele que tem
um filho, planta uma árvore e escreve um livro. Tinha um filho, plantou
uma árvore, o filho trepou na árvore, caiu e morreu. Só lhe restou escrever
um livro sobre isso.

- Quem não tem quiabo não oferece caruru.

- Mania de grandeza é a desses suplementos literários que têm um aviso


dizendo que é proibido vender separadamente.

- Pode-se dizer a maior besteira, mas se for dita em latim muitos


concordarão.

- Homem que desmunheca e mulher que pisa duro não enganam nem no
escuro.

- Todo homem previdente sorri sem falha no dente.

- Mulher expondo teoria sobre educação infantil é solteira na certa.

- Menino mijado, bode embarcado e chefe de Estado, nunca fica


despreocupado.

- Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!

- Esperanto é a língua universal que não se fala em lugar nenhum.

- Pra quem gosta de jiló, coruja é colibri.

- Era desses caras que cruzam cabra com periscópio pra ver se conseguem
um bode expiatório.

- O terceiro sexo já está quase em segundo.

- As coisas que mais contribuem para avacalhar a dignidade de um homem


são, pela ordem, bofetão de mulher e tombo de bunda no chão.

- Caetano Veloso confunde velocidade com trepidação.

- Hoje em dia ninguém é bonzinho de graça.


- A polícia prendendo bicheiros? Assim não é possível. Respeitemos ao
menos as instituições!

- O primeiro nome de Freud era Segismundo. Aliás, não só seu primeiro


nome como também seu primeiro complexo.

- Às vezes é melhor deixar em fogo lento do que mexer na panela.

- Mais inútil do que um vice-presidente.

- Mais mole que bochecha de velha.

- A polícia anda dizendo que prende um bandido de meia em meia hora,


então a gente fica desconfiado que eles assaltam de 15 em 15 minutos.

- Ninguém se conforma de já ter sido.

- Quem desdenha quer comprar, quem disfarça está escondendo, mas quem
desdenha e disfarça, não sabe o que está querendo.

- Mulher enigmática, às vezes é pouca gramática.

- Quando um amigo morre, leva um pouco da gente.

- Nem todo rico tem carro, nem todo ronco é pigarro, nem toda tosse é
catarro, nem toda mulher eu agarro.

- Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol ou não
sabe o que é lógica.

- A diferença entre o religioso e o carola é que o primeiro ama a Deus, o


segundo, teme.

- Pediatra sempre capricha na pronúncia quando anuncia sua especialidade,


pra evitar mal-entendidos.

- Nem todo gordo é bom, muitos se fingem de bonzinhos porque sabem que
correm menos.
- Tinha tal pavor de avião que se sentia mal só de ver uma aeromoça.

- Mulher e livro, emprestou, volta estragado.

- O sol nasce para todos, a sombra pra quem é mais esperto.

E para terminar:

- Da minha janela vejo o pátio de um colégio e quando a campainha toca


para o intervalo das aulas eu paro de trabalhar e fico olhando, como se
estivesse no recreio também.

- O importante é não deixar nunca que o menino morra completamente


dentro da gente. Caso contrário, ficamos velhos mais depressa. Dizem que é
por isso que os chineses, de incontestável sabedoria, conservam o hábito de
soltar papagaio (ou pipa, se preferirem) mesmo depois de adultos. Não sei
se é verdade, nunca fui chinês.

Stanislaw Ponte Preta, nosso querido Sérgio Porto (1923/1968), teve sua
vida esmiuçada por Renato Sérgio no livro Dupla Exposição: Stanislaw
Sérgio Ponte Porto Preta, editado pela Ediouro Publicações S.A. - Rio de
Janeiro, 1998. Dali extraímos os frases acima (pág. 266 e seguintes), muitas
das quais refletem o clima em que vivia o autor face à “revolução redentora
de 1964”, como ele costumava dizer.


Prova Falsa
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Quem teve a idéia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe o


cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho. Ele
até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde que seja
obediente e com um mínimo de educação.

— Mas o cachorro era um chato — desabafou.

Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que comem


comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de
galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono da casa.

— Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava em


casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de
francesa.

Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da oposição, que
espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro ficam mais por
baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num corredor ou qualquer
outra dependência da casa, o desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a
patroa estava perto abanava o rabinho, fingindo-se seu amigo.

— Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico, minha


mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro fingido e eu é
que implicava com o “pobrezinho”.

Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito meias suas,
roeu a manga de um paletó de casimira inglesa, rasgara diversos livros, não
podia ver um pé de sapato que arrastava para locais incríveis. A vida lá em
sua casa estava se tornando insuportável. Estava vendo a hora em que se
desquitava por causa daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas
vinte vezes e era uma choradeira das crianças e uma espinafração da
mulher.
— Você é um desalmado — disse ela, uma vez.

Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do adversário. O


cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias vezes exemplado,
prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete da sala. Fez duas na
boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes fez nos brinquedos da caçula.
E tudo culminou com o pipi que fez em cima do vestido novo de sua
mulher.

— Aí mandaram o cachorro embora? — perguntei.

— Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo que


adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova residência.

— Ué… mas você não o detestava? Como é que arranjou essa sopa pra ele?

— Problema da consciência — explicou: — O pipi não era dele.

E suspirou cheio de remorso.

Texto extraído do livro “Garoto Linha Dura”, Editora do Autor - Rio de


Janeiro, 1964, pág. 51.

Certas Esperanças
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

É preciso — é mais do que preciso, é forçoso — dar boas festas, trocar


embrulhinhos, querer mais intensamente, oferecer com mais prodigalidade,
manter o sorriso e, acima de tudo, esquecer tristezas e saudades.

Façamos um supremo esforço para lembrar e sermos lembrados, porque


assim manda a tradição e é difícil esquecer à tradição. Enviemos cartões e
telegramas de felicitações àqueles que amamos e também àqueles que —
sabemos perfeitamente — não gostam da gente. O Correio, nesta época do
ano, finge-se de eficiente e já lá tem prontos impressos para que desejemos
coisas boas aos outros, nivelando a todos em nossos augúrios.

Depois de abraçar e ser abraçado, desejar sincera e indiferentemente,


embrulhar e desembrulhar presentes, cada um poderá fazer votos a si
mesmo, desejar para si o que bem entender. Subindo na escala das idades,
este sonhou todo o mês com um trenzinho elétrico, aquele com uma
bicicleta (com farol e tudo), o outro certa moça, mais além um quarto
sonhador esteve a remoer a idéia de ser ministro e o rico… bem, o rico só
pensa em ser mais rico. O rico detesta amistosamente os ministros, já não
tem olhos para a graça da moça, pernas para pedalar uma bicicleta e, muito
menos, tempo para brincar com um trenzinho.

Dos planos de cada um, pouquíssimos serão transformados em realidade.


Alguns hão de abandoná-los por desleixo e a maioria, mal o ano de 56
começar, não pensará mais nele, por pura desesperança. O melhor, portanto,
é não fazer planos. Desejar somente, posto que isso sim, é humano e
acalentador.

De minha parte estou disposto a esquecer todas as passadas amarguras, tudo


que o destino me arranjou de ruim neste ano que finda. Ficarei somente
com as lembranças do que me foi grato e me foi bom.

No mais, desejarei ficar como estou porque, se não é o que há de melhor,


também não é tão ruim assim e, tudo somado, ficaram gratas alegrias. Que
Deus me proporcione as coisas que sempre me foram gratas e que — Ele
sabe — não chegam a fazer de mim um ambicioso.

Que não me falte aquele almoço honesto dos sábados (único almoço
comível na semana), com aquele feijão que só a negra Almira sabe fazer;
que não me falte o arroz e a cerveja — é muito importante a cerveja, meu
Deus! —, como é importante manter em dia o ordenado da Almira.

Se não me for dado comparecer às grandes noites de gala, que fazer?


Restame o melhor, afinal, que é esticar de vez em quando por aí,
transformando em festa uma noite que poderia ser de sono.

E para os pequenos gostos pessoais, que me reste sensibilidade bastante


para entretê-las. Ai de mim se começo a não achar mais graça nos pequenos
gostos pessoais. Que o perfume do sabonete, no banho matinal, seja sempre
violeta; que haja um cigarro forte para depois do café; uma camisa limpa
para vestir; um terno que pode não ser novo, mas que também não esteja
amarrotado. Uma vez ou outra, acredito que não me fará mal um filme da
Lollobrigida, nem um uísque com gelo ou — digamos — uma valsa.

Nada de coisas impossíveis para que a vida possa ser mais bem vivida.
Apenas uma praia para janeiro, uma fantasia para fevereiro, um conhaque
para junho, um livro para agosto e as mesmas vontades para dezembro.

No mais, continuarei a manter certas esperanças inconfessáveis porém


passíveis — e quanto — de acontecerem.

A crônica acima foi publicada na revista “Manchete” nº. 193, de 31/12/55.


Pescaria
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

— Fomos uns cinco pescar — conta-nos o amigo que há muito não


encontrávamos. Tinha comprado um molinete e, segundo nos confessou,
desde menino sonhava em ter o seu próprio molinete. Por isso aceitou o
convite.

Quando o encontramos, às 11 horas da noite de sábado, estava cansadíssimo


e queria ir dormir. Mesmo assim contou como foi a pescaria.

— Eles me convidaram dizendo que estava dando muito pampo na Barra da


Tijuca. Passaram lá em casa às 7, me pegaram e saímos para comprar isca.

Ficaram comprando isca e lá pelas 9 horas entraram num bar para tomar um
negócio porque estava ameaçando chuva e era preciso precaução. Às 11
horas, saíram do bar e tinha um camarada na porta vendendo siris.

— Vivos? — perguntamos:

Nosso amigo diz que sim e que, por isso mesmo, era preciso preparar.
Ninguém levava comida para a pescaria e, portanto, até que seria bom
cozinharem uns siris para fazer o farnel.

Na casa de um dele, a cozinheira foi avisada de que chegariam dentro em


pouco com uma centena de siris para preparar. E de fato chegaram, lá pelas
duas da tarde.

Foi tudo muito rápido. Às 5 horas os siris estavam prontinhos e todos


sentados em volta da mesa, para experimentar. Trouxeram umas cervejas e
foram comendo, foram comendo, até que chegou uma hora em que havia
mais siris do que fome. Resolveram tomar providências e telefonaram para
uns amigos.

— Venham comer siris.


Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque. Uísque vai,
uísque vem, deu fome outra vez. Eram oito horas quando a cozinheira
salvou a situação com uma panelada de carne-seca com abóbora. Uns
sirizinhos antes, como aperitivo, e todos caíram na carne-seca.

Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os outros suas caixas de


fósforo e começaram a lembrar sambas antigos.

E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na mão, confessa:

— Saí de lá agora.

— E a pescaria?

— Pescaria? Que pescaria?

Homenageamos o autor, que hoje, 11/01/2002, estaria completando 79 anos


de idade.

Texto extraído do livro “10 em Humor”, Editora Expressão e Cultura —


Rio de Janeiro, 1968, pág. 54.

Divisão

Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)

Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar
as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui
fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as
árvores, a vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça.
0 resto dos moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com
nossas futuras necessidades.

A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos
cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu
haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas,
mais modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que
faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.
Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as
valsas, as canções francesas, um ou outro “chopinzinho”, o Mozart e Bing
Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas
antigos e estes chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto
comum serão quebrados e jogados no lixo. É justo e honesto.

Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou
querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim.
Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando
livrarias. Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um
caráter mais pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E
conseqüentemente com a estante também.

Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei


comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos
conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja
só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia
acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais do que eles, a
chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses
bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de
água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.

Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças


passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens,
souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e
que não possa ser entre nos dividido.

Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu
ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente
dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.

Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) — A casa demolida — Editora do


Autor, Rio de Janeiro, 1968, pág. 201.
A mensagem
Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

Um amigo nosso, comandante da VASP, conta-me a estranha mensagem


recebida por um piloto americano durante uma aterrissagem.

O avião da companhia norte-americana sobrevoava a Bahia, a caminho do


Rio, quando um defeito no motor obrigou o piloto a providenciar uma
aterrissagem no aeroporto mais próximo possível.

Na Bahia, justamente na pequena cidade de Barreiras, existe uma pista de


emergência (se é que se pode chamar aquilo de pista) para os aviões das
linhas internacionais. Raramente é usada, mas era a mais próxima da rota
do avião. Assim, o piloto não teve dúvidas. A situação dele estava muito
mais pra urubu do que pra colibri. 0 negócio era mesmo se mandar para
Barreiras.

Pediu pouso durante certo tempo, dirigindo-se à Rádio local em inglês. A


resposta demorou um pouco, mas acabou vindo. Alguém, com forte sotaque
nordestino, falando um inglês arrevesado e misturado com palavras em
português, respondia que estava ouvindo e aconselhava o comandante a
procurar outro local para aterrissagem.

Há dias estava chovendo em Barreiras e a pista se achava em péssimo


estado.

O piloto, sem outra alternativa, insistiu em pousar assim mesmo, e tornou a


pedir instruções, ouvindo-se lá a voz a dizer que estava bem, mas que não
se responsabilizava pelo que desse e viesse.

Acontece porém que isso foi dito com outras palavras, ainda num misto de
português e inglês. Assim:

— Ok. You land. But se der bode, I’il take my body out.

Homenageamos o autor que hoje, 11/01/2003, estaria completando 80 anos


de idade.
Texto extraído do livro “10 em Humor”, Editora Expressão e Cultura —
Rio de Janeiro, 1968, pág. 42.

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