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REPORTAGEM

O fascínio de Ouro Preto é


feito de histórias de fé, de
morte e de ouro
BRAZIL PHOTOS/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES
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Irmandades de negros, uma serra de salteadores,


igrejas feitas de ouro, um sino que toca à noite
perturbando o sono de uma criança, a fome que
ataca homens com as mãos cheias de pepitas, a arte
barroca a usar a morte como lição de vida. O que é
Ouro Preto hoje?

Alexandra Prado Coelho em Ouro Preto, Brasil


16 de Agosto de 2022, 7:20

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s asas dos anjos são imaculadamente brancas e erguem-se, muito direitas, em

A direcção aos céus. Das mangas dos vestidos drapeados em tom de prata saem mãos
elegantemente suspensas no ar. O olhar de todos os que, desde cedo, se reuniram
junto à Igreja do Pilar, uma das muitas da cidade de Ouro Preto
(https://www.publico.pt/2000/04/09/jornal/o-relogio-parou-em-ouro-preto-142423), no
estado brasileiro de Minas Gerais, concentra-se nestas criaturas de ar celestial, meninas
que terão certamente estado muitas semanas, talvez meses, a treinar cada gesto deste dia
da procissão de Corpus Christi.

Uma menina mulata, bem mais pequena, tem um vestido verde com bordados brancos,
umas asas um pouco mais despenteadas e uma bandolete de florinhas brancas no
cabelo. Dois jovens acólitos negros seguem atrás, orgulhosos do seu traje branco e
vermelho. De máscara de protecção no rosto, um deles coloca um joelho no chão para
atar melhor o sapato.

A banda, que esteve pacientemente à espera no exterior da igreja, toca agora a plenos
pulmões, com cada músico seguindo as pautas colocadas nas costas do elemento que
segue à frente. Vai ainda haver muitas paragens pelas ruas estreitas de Ouro Preto, com o
chão decorado com serradura colorida, a desenhar pombas, corações e até o corpo de
Cristo crucificado.
“A religiosidade aqui é muito mais forte do que noutras partes do Brasil”, confirma
Guiomar de Grammont, escritora e organizadora de eventos culturais. “Apesar de o
Marquês de Pombal ter proibido a presença de jesuítas em Ouro Preto, devido às
suspeitas de que os padres [dispensados de revista nos inúmeros postos de controlo
instaurados pela Coroa portuguesa (https://www.publico.pt/bicentenario-
independencia-brasil), que tributava todo o ouro encontrado] ajudavam os
contrabandistas, a Igreja era tolerada porque dissolvia um pouco as tensões, que eram
muitas numa região em que se busca ouro.”

São, desde o início, o ouro e a mineração que fazem esta terra. “Ouro Preto existe por
causa da mineração (https://www.publico.pt/2022/08/11/culturaipsilon/noticia/tragedias-
mineracao-ali-perceber-nao-nada-so-roupa-corpo-2016741). Os primeiros bandeirantes
chegaram aqui em busca de ouro e encontraram nos riachos o ouro de aluvião, coberto
de uma fuligem escura, daí o nome da cidade. Os monumentos mais bonitos, as igrejas
mais bonitas, foram feitos por causa do ouro.”

Mas se tudo o que a cidade tem de rico e de belo vem da mineração – as irmandades
competiam entre elas, cada uma tentando ter a igreja mais bonita –, ela traz também
“um sofrimento terrível”. Quando era criança, Guiomar sentia esse peso de uma maneira
muito forte.

Histórias de fantasmas
Na altura morava em Brasília e vinha a Ouro Preto, terra natal da mãe, nas férias. “Havia
lendas que falavam de morte, da culpa ligada à morte, havia muitas histórias de
fantasmas. Ouro Preto me assustava, o sino à noite deixava-me petrificada de medo.
Sentia muito fortemente, quando era criança, o peso do barroco, esse barroco em que a
morte é uma professora de bem viver. Ela está o tempo todo nos discursos, nas imagens,
porque você precisa saber que o corpo vai morrer para que a alma renasça na vida
eterna.”

Tudo era excessivo nesses tempos da corrida ao ouro, quando esta terra foi baptizada
como Vila Rica de Ouro Preto, nos inícios do século XVIII (mais tarde perderia o Vila
Rica). Não é por acaso que se fala em febre. Os homens estavam dispostos a tudo para
encontrar uma pepita no leito de um rio e alimentavam essa febre com lendas, ouvidas
aos índios, que falavam de cursos de água feitos de prata, ouro e esmeraldas.

O mercado e a Igreja de São Francisco, obra de Aleijadinho, do fotógrafo brasileiro Marc Ferrez (circa 1880)
INSTITUTO MOREIRA SALLES

O padre jesuíta italiano André João Antonil (1649-1716, levado para o Brasil pelo padre
António Vieira), autor do livro Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,
considerado um documento essencial para se conhecer o Brasil Colónia, “faz um relato
impressionante sobre o que acontecia nas minas”, recorda Guiomar. “Ele diz que os
mineradores comiam o bicho de Taquara, que é uma larva, porque não tinham mais que
comer.”
Aos poucos foi surgindo uma rede de abastecimento com tropeiros, um dos quais era o
bisavô de Guiomar. É difícil traçar a história da família e perceber se foi nessa época que
se instalaram em Ouro Preto. “Quanto mais pobres eram as pessoas, e a família da minha
mãe era muito pobre, menos documentos, menos registo dessa genealogia. Do bisavô
não sabemos o nome, sabemos que era tropeiro, trazia alimentos, víveres, coisas que não
se produziam aqui.”

Borba Gato foi um desses bandeirantes do início, homem com uma história de vida que
sempre impressionou Guiomar. Juntamente com o sogro, Fernão Dias Pais Leme, “teve
muito sucesso na penetração em território brasileiro” e, “sabendo que a fome era o pior
problema para os viajantes, planeou postos de parada onde se plantava alguma coisa,
para preparar já a entrada posterior”.


“Quem conseguiu chegar às Minas Gerais depois de
uma jornada pontilhada de perigos sabia o que queria:
amealhar ouro fácil, em grande quantidade e muito,
mas muito depressa mesmo. Deslumbrados ante a
abundância do metal precioso que faiscava por todo o
lado e na sofreguidão de sempre buscar novos filões, os
mineiros esqueceram-se do principal: ouro não se
come. Foi um desastre”
Lilia Schwartz e Heloisa Starling, em "Brasil, Uma Biografia"

Este era, nesse tempo, um território de homens duros, e isso marca ainda o que é Ouro
Preto. “Eram sobretudo os homens que vinham, não traziam família, e usavam métodos
muito rudimentares. Descascavam as montanhas para que o ouro escorresse mais para
os rios e acabavam fazendo com que os veios desaparecessem. Havia uma pressa em
chegar, em alcançar, e ela marca Minas até hoje.”

Dessa pressa falam também as historiadoras Lilia Schwartz


(https://www.publico.pt/2022/05/08/mundo/entrevista/lilia-schwarcz-brasil-sensacao-
nao-demos-grito-independencia-morte-2005243) e Heloisa Starling em Brasil, Uma
Biografia (https://www.publico.pt/2015/05/29/culturaipsilon/critica/o-brasil-nao-e-para-
principiantes-1697049): “As minas começam onde os caminhos terminam, afirmavam os
paulistas no fim do século XVII. Quem conseguiu chegar às Minas Gerais depois de uma
jornada pontilhada de perigos sabia o que queria: amealhar ouro fácil, em grande
quantidade e muito, mas muito depressa mesmo. Deslumbrados ante a abundância do
metal precioso que faiscava por todo o lado e na sofreguidão de sempre buscar novos
filões, os mineiros esqueceram-se do principal: ouro não se come. Foi um desastre.”
Citando mais uma vez o padre Antonil, “os moradores das Minas morriam de fome com
as mãos cheias de ouro”.

E as histórias que assustavam Guiomar na sua infância aparecem igualmente nesta


imensa biografia do Brasil, no capítulo sobre o ouro de Minas: escrevem as autoras que
junto ao antigo Caminho Novo, que dava acesso à região, “continuam se propalando
histórias sobre aparições de luzes misteriosas em noites de chuva forte, de almas de
homens assassinados rondando o local da sua morte, de assombrações brancas que se
materializam para perturbar o sono dos viajantes, ou de cavalgadas sobrenaturais pelas
terras altas da [serra da] Mantiqueira”.

Mesmo que, tal como acontece no resto do Brasil, haja


em Ouro Preto uma afirmação crescente da identidade
negra, ela é mais subtil que noutras cidades, como o
Rio de Janeiro, São Paulo ou Salvador da Bahia.
Guiomar atribui esse aspecto à profunda influência da
Igreja

Depois, o ouro de aluvião começou a escassear no Quadrilátero Ferrífero (a exploração


entrou em queda a partir de 1750) e foi já no século XIX que “os ingleses tomaram conta
das minas de ouro”, que ainda existem, mas hoje mais voltadas para o turismo, como
acontece com a da Passagem de Mariana, que se pode percorrer num vagão. Mas
enquanto os turistas se encantam com as igrejas cobertas de ouro, as esculturas do
Aleijadinho e as descidas às minas, há, ali ao lado, histórias trágicas mergulhadas em
silêncios.

“Conheço uma família negra, por exemplo, em que o pai, que trabalhava na estação do
trem que levava minério para cá e para lá, suicidou-se, colocando a cabeça na linha, e
deixou cinco filhos”, recorda Guiomar. “Os filhos tornaram-se alcoólicos, e todos os que
eram homens já morreram. Tem um sofrimento muito grande da população explorada,
mas são pessoas que não têm um discurso sobre o quanto a exploração mineira afectou a
vida deles”, afirma a escritora. “Aqui as pessoas têm uma relação ambígua com a
mineradora.”

A lenda de Chico Rei


De igual modo ambígua parece ser a questão racial
(https://www.publico.pt/2014/03/23/mundo/noticia/quem-quer-ser-negro-no-brasil-
1628727). Mesmo que, tal como acontece no resto do Brasil, haja aqui uma afirmação
crescente da identidade negra, ela é mais subtil que noutras cidades, como o Rio de
Janeiro, São Paulo ou Salvador da Bahia. Mais uma vez, Guiomar atribui esse aspecto à
profunda influência da Igreja.

Não que faltassem escravos na região. Para desbastar as montanhas e outros trabalhos
pesados, foram levados para Minas, em número sempre crescente, negros escravizados
(https://www.publico.pt/2022/08/06/culturaipsilon/noticia/trafico-africanos-
escravizados-formacao-brasil-papel-africa-africanos-2015350?ref=bicentenario-
independencia-brasil&cx=stack) vindos de países como os Camarões, a Nigéria, o
Senegal, Angola, Congo e o Gabão. Hoje, percorrendo as igrejas de Ouro Preto, cruzamo-
nos com essa herança, integrada de formas por vezes surpreendentes. Um dos casos
mais interessantes é o da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos,
fundada pela irmandade com o mesmo nome e ligada a uma personagem muito
particular, Chico Rei.

Conta a lenda (não há documentos factuais que a confirmem) que Francisco Rei, levado
como escravo para o Brasil, era rei de uma tribo no Congo e, tendo comprado a sua
alforria, tornou-se monarca também em Ouro Preto, e criou a irmandade em honra de
Santa Ifigénia, tendo erguido para ela a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Sendo ou
não verdadeira a história, o facto é que em Ouro Preto tanto havia irmandades de
brancos como de pardos e mulatos e até de escravizados, como esta de Nossa Senhora do
Rosário. E o mais famoso artista do barroco mineiro, o Aleijadinho, era um mulato, filho
de um branco e de uma escrava negra.
“A força da Igreja criou uma amálgama social”, explica Guiomar. “Essas irmandades,
como a do Rosário, sendo de pardos ou negros, em vez de incentivarem a permanência
de ritos, crenças ou cultos africanos, acabaram tornando mais forte a vinculação com os
santos católicos e com a Igreja. A Igreja conseguiu impor-se sobre essas culturas de
origem. Nas Minas, os escravos conseguiam comprar alforria e circular pelos espaços
urbanos mais do que noutras zonas do Brasil. Essa mobilidade, e aparente liberdade, ao
contrário de gerar uma sobrevivência das culturas de origem, fez com que essas culturas
se mesclassem mais com as culturas do dominador.”

Talvez por isso, seja tão natural encontrar na Igreja do Rosário a imagem de Santa
Ifigénia, essa santa negra, “filha de Égipo e Eufenisa, reis da Noba, um dos pequenos
reinos da antiga Etiópia”, ou, na pintura do forro da capela-mor, entre as figuras dos
doutores da Igreja, um Papa negro, como é natural seguir pelas tão portuguesas calçadas
empedradas e inclinadas de Ouro Preto, atrás dos anjinhos negros que saem na procissão
de Corpus Christi, de vestidinhos bordados e asas ao vento.

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