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HISTÓRIA

Num jantar “imperial”, a identidade do


Brasil discute-se à mesa
Um chef português e um chef brasileiro juntaram-se para recriar um menu inspirado na
colecção do imperador D. Pedro II, no antigo Paço Imperial. As comemorações do
Bicentenário da Independência do Brasil são um “encontro de diferenças”.

Alexandra Prado Coelho no Rio de Janeiro


3 de Junho de 2022, 18:29

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Não podemos saber, hoje, quais os sabores que enchiam os pratos de D. Pedro II,
imperador do Brasil, na primeira metade do século XIX. É um facto que, com espírito de
coleccionador, D. Pedro guardou os menus das refeições que lhe foram servidas em
muitas viagens e banquetes oficiais, mas a lista de pratos deixa pistas um pouco vagas.
Como seriam exactamente as empadas que apareciam com tanta frequência nos
cardápios? E a sopa de espargos? Qual era o tipo de espargos mais utilizado? E que carne
para o filet?

Havia muito mais perguntas do que respostas no momento em que dois chefs, o
brasileiro Rafa Costa e Silva (http://fugas.publico.pt/Vinhos/334892_quando-os-chefs-
escolhem-os-vinhos?pagina=2), do restaurante Lasai, no Rio de Janeiro, e Pedro Pena
Bastos, do Cura (https://www.publico.pt/2020/10/02/fugas/noticia/cura-ritz-pedro-pena-
bastos-acredita-bom-classico-reinventado-1933263), em Lisboa, aceitaram o desafio,
lançado pelo embaixador português no Brasil a partir de uma ideia da jornalista
gastronómica do jornal O Globo, Luciana Fróes, para criar um jantar inspirado nos
antigos banquetes imperais.
Dois "chefs", o brasileiro Rafa Costa e Silva, do restaurante Lasai, no Rio de Janeiro (à direita na foto), e Pedro Pena
Bastos, do Cura, em Lisboa recriaram um jantar inspirado nos menus imperiais FERNANDO DONASCI

Sobremesa: “pudim” de caramelo de maçã com crumble e hortelã pelos "chefs" Rafa Costa e Silva e Pedro Pena
Bastos FERNANDO DONASCI

Por isso, o que apresentaram na noite de quinta-feira, para 60 personalidades do mundo


da cultura do Brasil reunidas no antigo Paço Imperial, a primeira residência da família
imperial no Rio de Janeiro, foi, como os próprios explicaram, uma reinterpretação
desses menus imperiais. “Não é uma réplica, é uma releitura, tentamos modernizar um
pouco”, explicou Rafa Costa e Silva, enquanto Pedro Pena Bastos sublinhou o facto de
90% dos produtos utilizados serem do Brasil, “o que demonstra o que este país tem
crescido em termos gastronómicos”.

Assim, a empada que D. Pedro II terá comido tantas vezes transformou-se, em 2022,
numa base aberta com creme de castanhas brasileiras e barriga de porco alentejano (este
foi um dos poucos produtos que o chef do Cura levou de Portugal). A outra entrada
volante servida no evento, integrado nas iniciativas organizadas por Portugal para as
comemorações do Bicentenário da Independência
(https://www.publico.pt/2022/01/06/opiniao/opiniao/ano-brasil-1990890), foi uma salada
de camarão, algo também muito comum nos menus imperiais, mas à qual “a gente deu
uma carioqueira”, indo buscar a muito popular salada de batata que os cariocas tanto
comem e fazendo um snack servido sobre um crocante de linhaça.

Nos pratos principais, a homenagem foi para a clássica sopa de espargos, aqui com um
ovo a baixa temperatura, ovas de salmão, para dar um toque salgado, leite de coco e os
espargos numa textura cremosa; e para o ainda mais clássico filet, nesta versão
assumidamente Filé Carioca, com batata baroa, ou mandioquinha
(https://www.publico.pt/2018/12/22/fugas/noticia/brasil-dizse-sim-mandioca-1855017), e
cogumelos também cariocas (no lugar das trufas tantas vezes servidas a D. Pedro II). A
curiosidade é que Pedro trouxe de Portugal gordura da vaca minhota, a Rubia Galega,
para pincelar a carne da raça Wagyu criada no Brasil.

Jantar que comemora o bicentenário da independência do Brasil no antigo Paço Imperial, no Rio de Janeiro
FERNANDO DONASCI
Os vinhos servidos foram seleccionados pelo crítico brasileiro Jorge Lucki, que quis
prestar homenagem a várias regiões do país e brincar com alguns nomes, abrindo com
um Marquês de Marialva Blanc des Nois Baga Cuvée 2014 da Adega de Cantanhede,
Bairrada, e seguindo com um Caminhos Cruzados – “que melhor nome” para as relações
luso-brasileiras, (https://www.publico.pt/2021/12/19/mundo/prepublicacao/portugal-
brasil-raizes-estranhamento-incomunicacao-1988746) comentou Lucki – Reserva
Encruzado 2019. O prato de carne foi acompanhado por um Niepoort Batuta 2012 e um
Marquês de Borba 2015 de João Portugal Ramos, representando assim o Douro e o
Alentejo.

Por fim, a sobremesa, um “pudim” de caramelo de maçã com crumble e hortelã, foi
servida com um Moscatel de Setúbal da Quinta do Piloto, de 2012, e, no final, foi
apresentado o Porto de honra com uma edição especial Adriano Reserva para assinalar o
Centenário da 1.ª Travessia Aérea do Atlântico Sul
(https://www.publico.pt/2022/03/30/ciencia/noticia/ha-100-anos-iniciavase-primeira-
travessia-aerea-atlantico-sul-2000648) por Gago Coutinho e Sacadura Cabral.

Debates identitários
Simbolismo não faltou ao evento, até porque estávamos no Paço Imperial onde D. Pedro
I do Brasil (D. Pedro IV de Portugal)
(https://www.publico.pt/2022/05/30/culturaipsilon/noticia/brasil-pediu-oficialmente-
portugal-trasladacao-coracao-d-pedro-2008185) anunciou ao mundo que ficava no Brasil,
dando assim o primeiro, inequívoco e decisivo sinal de que Portugal e o Brasil iriam
separar-se. Aquele que ficou conhecido como o Dia do Fico aconteceu em Janeiro de
1822, vários meses antes do ainda mais famoso Grito do Ipiranga
(https://www.publico.pt/2010/10/03/jornal/laurentino-gomes-o-brasil-nao-sera-um-pais-
do-primeiro-mundo-numa-ou-duas-geracoes18221822182218221822-20289447), que selou
a decisão da independência, mas foi o princípio do fim da relação colonizador-
colonizado.
Duzentos anos depois, a questão da independência continua a ser objecto de polémica
no Brasil (https://www.publico.pt/2022/05/08/mundo/entrevista/lilia-schwarcz-brasil-
sensacao-nao-demos-grito-independencia-morte-2005243). O que deveríamos estar a
discutir dois séculos depois desse momento histórico? O produtor musical Celso Sim, do
Teatro Oficina em São Paulo, um dos convidados do jantar, interrogava-se no final: “São
200 anos da independência. Como comemorar isto? Não há cancelamento, não vou
cancelar, ela aconteceu. Mas o convite que recebi [para este jantar] não é para celebrar o
aqui e o agora. Falta aqui um fio terra.”


Estamos aqui celebrando uma relação entre um
império português e uma colónia que deixou de ser
colónia, vira vice-reino, vira império e vira um país
independente, com essa história escravocrata, de
extermínio, uma história incrível. Não há como negar
este encontro de diferenças"
Celso Sim, produtor musical

Esta ligação à terra de que Celso Sim fala tem a ver com a ausência no evento dos
grandes debates identitários que atravessam o Brasil de hoje. “Estamos aqui celebrando
uma relação entre um império português e uma colónia que deixou de ser colónia, vira
vice-reino, vira império e vira um país independente, com essa história escravocrata, de
extermínio, uma história incrível. Não há como negar este encontro de diferenças, é uma
encruzilhada que não vai terminar nunca.”

Olhando em redor, Celso Sim, que se identifica como “mestiço”, nota que “tem apenas
um homem negro entre os convidados” e, no entanto, “há muitos negros e negras
trabalhando” (https://www.publico.pt/2022/04/14/opiniao/opiniao/ebano-academia-
2002500). E conclui: “Não tem como não falar nisso”. Caso contrário, estaremos “numa
bolha” que olha o passado sem entender a sua ligação com o presente. “Parece que a
gente está numa bolha em 1822. Oi. Ninguém está em 1922, na Semana da Arte Brasileira
(https://www.publico.pt/2022/03/13/culturaipsilon/noticia/brasil-explodiu-ha-cem-anos-
mario-andrade-semana-22-1998095) [no centenário da independência], e aqui não
estamos em 2022”.

Cultura e elite
Noutra ponto da sala, a historiadora Isabel Lustosa, autora de vários livros sobre o século
XIX e as relações entre Portugal e o Brasil, entre os quais uma biografia de D. Pedro I, diz
uma frase que pode ser polémica: “Nós somos portugueses.” Também esta ideia, mesmo
que não seja a que mais está na moda nos debates identitários brasileiros de 2022, é
importante para perceber o que fez o Brasil independente.

Isabel Lustosa explica o que está a tentar dizer: “Objectivamente, a cultura brasileira é
muito portuguesa (https://www.publico.pt/2022/05/05/sociedade/noticia/casa-brasil-
celebra-30-anos-maior-numero-brasileiros-portugal-ja-sao-210-mil-2004909). Durante
séculos, a educação no Brasil foi construída a partir do modelo português
(https://www.publico.pt/2022/01/01/mundo/entrevista/carlos-fino-brasil-vergonha-
heranca-portuguesa-1990484). A obra de um autor bastante conservador que é o
Gilberto Freyre (https://www.publico.pt/2014/03/02/culturaipsilon/opiniao/casa-grande-
sem-senzala-1626419) vem mostrar como essa cultura europeia foi contaminada com a
presença africana nos lares, mas a matriz cultural que é a língua, a religião, a literatura,
ela permanece e você vai ver os autores reivindicando a sua herança camoniana no
Brasil.”

Claro que as outras identidades estiveram sempre lá, mas “são as elites que formam a
cultura no Brasil e que definem o programa cultural que é ter primeiro o negro e depois
o índio, como uma espécie de adereço. Nas pinturas de Debret [um dos artistas da corte]
o índio e o negro estão nas alegorias, mas quem constrói essa cultura é uma elite.” Ou
seja, o hoje muito referido “lugar da fala” não pertence nem aos indígenas nem aos
negros, e só muito recentemente esse debate começa a poder ser feito no Brasil.

O tempo de falar do “pardo” (como Isabel Lustosa se identifica) ou do “mestiço”, como


Celso Sim, ainda não chegou porque, explica o responsável do Teatro Oficina, “não está
ainda na urgência identitária”, mas “virá”.
Conceito absolutista
E, no meio de tudo isto, o que fazer então com as figuras históricas? Onde ficam, hoje, D.
João VI, D. Pedro I e o seu filho D. Pedro II? “É preciso olhar para elas”, sem dúvida,
responde Celso Sim. Isabel Lustosa tem olhado, e muito, sobretudo para D. Pedro I. “Ele
cresce num ambiente moderno, da transição do antigo regime para a era liberal, tem
uma visão de que Constituições são boas, que não era a visão do pai dele, tem uma
perspectiva mais moderna da política do que o pai tinha, mas também é um membro da
dinastia de Bragança, consciente do seu papel na preservação da dinastia e com a
preocupação de que os direitos legítimos, que é um conceito absolutista, dos seus filhos
fossem respeitados. É um personagem contraditório no meio de um mundo em
mudança, que consegue dar uma Constituição para Portugal e para o Brasil e colocar a
filha rainha de Portugal e o filho imperador do Brasil.”

Apesar disso, a sua importância “é relativa”. A independência deu-se através dele, mas
não por vontade dele em primeiro lugar. “Deu-se porque as duas partes [Portugal e
Brasil] não se entenderam no pós-liberalismo. Chegou o movimento constitucionalista e
as elites de um lado e do outro, chegaram à conclusão de que era inviável.” A
historiadora acredita que “foi Portugal que quis ficar independente do Brasil” porque
“depois que o rei veio para cá, o Brasil já era independente, era a sede da monarquia,
com rei, a corte, embaixadores, tudo aqui, daí que não tinha interesse nenhum em se
tornar independente, pelo contrário queria continuar metrópole”. A verdadeira “briga”
foi entre “liberais daqui e de lá”, e D. Pedro I, muito influenciado pela mulher, D.
Leopoldina, que queria garantir os direitos dos filhos, percebeu, a certa altura, que “era
mais vantajoso ficar” e tomou o partido do Brasil.


Nós somos portugueses"
Isabel Lustosa, historiadora e autora de uma biografia de D. Pedro I
Duzentos anos depois, a História continua, e continuará a ser discutida como algo vivo –
sendo no meio de um jantar de recriação dos menus imperais, num cenário que foi palco
dessa mesma História, sendo em debates nos quais o “lugar da fala”
(https://www.publico.pt/2021/11/05/culturaipsilon/entrevista/valter-hugo-mae-
mesticagem-gloria-1983358) já foi enriquecido com outros protagonistas, indígenas,
negros, pardos, mestiços e todos os que não tiveram voz durante séculos.

Esse “encontro de diferenças”, como diz Celso Sim, “é uma encruzilhada que não vai
terminar nunca”. É uma encruzilhada “em que todos estamos envolvidos e que não vai
terminar nem se milhares de moiras cortarem esse fio, ele vai renascer por si mesmo.”

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