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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

LUIZ HENRIQUE TORRES

MEMÓRIAS DO CAIS:
O PORTO VELHO DO RIO GRANDE

FURG
RIO GRANDE
2009

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

de Luiz Henrique Torres.


Gravura da capa: Grande angular do Cais do Porto Velho em 1865. Acervo: Biblioteca
Rio Grandense.
Criação da Arte, composição e diagramação: Luiz Henrique Torres.
Obra integralmente custeada com recursos do autor.

T693m Torres, Luiz Henrique


Memórias do cais: o porto velho do Rio Grande / Luiz Henrique Torres.-
Rio Grande : FURG, 2009.
56p.; Il.; 23cm.

1. História - Brasil 2. História - Rio Grande 3. Rio Grande - Porto Velho -


Memórias I. Título

CDU 981.652

Bibliotecária responsável: Jandira Maria Cardoso Reguffe - CRB 10/1354

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................................5

UMA CIDADE VOLTADA PARA O PORTO........................................................................7

O PORTO E A ECONOMIA................................................................................................15

MEMÓRIAS DO VELHO PORTO.......................................................................................19

A BARRA E O CAIS DO PORTO VELHO..........................................................................30

O AUTOR ...........................................................................................................................55

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Porto Velho remodelado junto a Rua Riachuelo em 1878. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense (BRG).

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

INTRODUÇÃO

Pretendia escrever este livro a mais de dez anos atrás. Outros projetos de pesquisa
e livros acabaram prolongando aquela disposição de fazer uma incursão até uma das
essências da formação histórica da cidade do Rio Grande: o Porto Velho. Lendo
documentos desde o século 18, fiquei com a certeza de que entender Rio Grande
retirando a sua dimensão portuária é basicamente inviável. Militares, comerciantes,
imigrantes, marítimos, pescadores, viajantes estrangeiros ou brasileiros, escravos negros
e colonos livres, navegaram pelo Oceano ou pela Lagoa dos Patos tendo por seu primeiro
destino no Rio Grande do Sul o cais do Porto Velho.
A demora da publicação foi positiva, pois, a idéia inicial era um estudo acadêmico e
hoje procuro leitores não especializados cujo elo que nos une é o interesse pelo passado
e por suas multifacetadas memórias.
Minha proposta é economizar no texto para esbanjar nas imagens. As imagens são
atraentes e seduzem a imaginação. Tenho norteado a produção recente em elaborar
textos que reduzam o rigor acadêmico para chegar a um público mais amplo que tem
interesse pelas raízes históricas desta cidade que deu origem urbana ao Rio Grande do
Sul luso-brasileiro.
A dinamização da economia gaúcha passou pelo Porto Velho do Rio Grande, em
especial no século 19. Com a inauguração em 1915, do Porto Novo, o fluxo de navios
passaria para este novo espaço na antiga Ilha do Ladino.
A problemática da abertura da Barra, edificação dos Molhes e do Porto Novo não
serão focados neste livro, que se restringe a uma breve incursão em alguns marcos
referenciais sobre o Porto Velho, especialmente no século 19. Um amplo e atual estudo
sobre o Porto e a Barra do Rio Grande foi realizado por Francisco das Neves Alves, fonte
que indico aos leitores para aprofundamento e contextualização. Neste estudo, me
debrucei em especial nos relatórios da Câmara Municipal da Cidade do Rio Grande no
século 19, a partir do qual foi possível estabelecer uma lógica nos eventos: ausência de
cais, cais de estacada, cais de pedra, cais com armazéns.
A rua da Boa Vista ou Riachuelo é um cartão postal que circulou pelo planeta.
Relações de trabalho livre e escravo, fluxo de capital comercial em atividades de
exportação e importação definiram o restrito espaço urbano a um dos locais mais
importantes da história do Rio Grande do Sul. As edificações do porto foram uma
conquista da comunidade local que ao longo de mais de dois séculos teve que conquistar
arduamente cada melhoria ocorrida em seu espaço portuário. A presença de
embarcações e pessoas no Porto Velho dependia das condições da Barra do Rio Grande,
um fator de abertura para o mundo ou de isolamento no caso da inviabilidade de acesso.
A cidade floresceu com o olhar na Barra do Rio Grande e o Porto Velho é fruto desta
dialética.
Olhar as imagens da rua Riachuelo é imaginar o Cais da Boa Vista, o Cais da
Alfândega, o pequeno cais do Mercado Público e do entreposto de peixe, o canalete da
Barroso, a Estação Marítima. Gerações circularam nestes locais e muitos viveram e
morreram em seu entorno. O que instiga ainda mais uma caminhada por estas Memórias
do Cais.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Praça Xavier Ferreira e o centro da cidade em 1878. Acervo: BRG.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

UMA CIDADE VOLTADA PARA O PORTO


A proximidade do Oceano, garante à Vila do Rio Grande uma
preeminência permanente. É aqui que todos os navios tem que entregar seus
papéis, sendo que a maior parte deles raramente segue adiante. É aqui
também que os principais negociantes residem ou tem seus agentes
estabelecidos; de tal maneira que ela pode ser considerada como o maior
mercado do Brasil Meridional’. John Luccock (1809).
Com sua fundação oficializada em 19 de fevereiro de 1737, com a chegada da frota
do Brigadeiro José da Silva Paes, a atual cidade do Rio Grande foi um relevante
referencial estratégico para os objetivos de Portugal em garantir o controle do Extremo Sul
do Brasil. Os primeiros tempos de ocupação estiveram ligados a uma vida militar que
convergia aos conflitos com os espanhóis e seus descendentes estabelecidos no Prata.
Ao longo do século 18, novas experiências civilizatórias trazidas pelos povoadores
paulistas, cariocas, baianos, mineiros e de imigrantes açorianos enriqueceram a cultura
sul-rio-grandense nascente. Rio Grande sediou as pioneiras experiências de
administração militar com a Comandância do Presídio e também de administração civil
com a criação da primeira Vila e respectiva Câmara de Vereadores do Rio Grande do Sul,
instalada em 1751. A planta a seguir mostra a Vila em 1767.1

1
Planta da Vila do Rio Grande em 1767. José Custódio de Sá e Faria. In: Imagens de Vilas e Cidades do
Brasil Colonial. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

O povoamento na atual cidade do Rio Grande emergiu neste contexto platino de


belicosidades que definiram as motivações para o estabelecimento de padrões de
sobrevivência e civilidade. Foi durante a terceira campanha do cerco espanhol à
Sacramento que o Conselho Ultramarino Português autorizou o brigadeiro José da Silva
Paes a construir fortificações, no já identificado canal de São Pedro, com o objetivo de
garantir um espaço para apoio militar à Colônia e também para o deslocamento de
colonos que desejassem fugir ao cerco. Entre Rio Grande e Sacramento são
aproximadamente 700 quilômetros, e com as grandes dificuldades em manter a posição, a
Vila do Rio Grande de São Pedro assumiu, paulatinamente, o papel de estabelecer o
controle português no extremo sul do Brasil. Por esta importância estratégica, foi um alvo
preferencial da Espanha.

Porto Velho em 1865. Acervo: BRG

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A ocupação e fortificação da Barra do Rio Grande foi fator de grande satisfação


para Silva Paes que despendeu todos os esforços no êxito desta empresa, afinal, através
da Comandância Militar do Rio Grande, ficava garantida a posse de todo o território, que
se estendia até Laguna (Santa Catarina), barrados os espanhóis em suas pretensões de
ocupar este ponto estratégico, ficando sob controle o acesso a imensa rede hidrográfica
que penetrava para o interior a partir da Lagoa dos Patos.2 Para o sul, era possível
socorrer a Colônia do Sacramento em tempo de guerra e, em tempo de paz,
incrementava-se aquela povoação e os negócios ali realizados. O novo estabelecimento
permitia, dessa forma, disputar a posse dos imensos rebanhos platinos e, ainda, a
participação direta no comércio de cavalos e mulas, garantindo o abastecimento dos
centros consumidores do país.

Porto Velho em 1852. Aquarela de Hermann Wendroth.

2
O termo é usado para manter a tradição presente na documentação histórica. Cientificamente o termo
correto é Laguna dos Patos.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

As intervenções legislativas da Coroa Portuguesa buscando controlar o fluxo de


chegada e saída de navios que transportavam mercadorias já estão presentes no decreto
de 19 de novembro de 1749, que criou em Rio Grande uma Provedoria Privativa para
administrar as Rendas Públicas, competência de um Comissário de Mostras, o qual
estava subordinado à Provedoria da Fazenda Real.
A Vila do Rio Grande de São Pedro nos primórdios do século 19 contava com
aproximadamente 2.500 habitantes e 500 casas. A localização junto à barra de
escoamento da Lagoa dos Patos no Oceano Atlântico garantiu a Rio Grande uma posição
privilegiada para o desenvolvimento das atividades comerciais com centros
produtores/consumidores brasileiros e com países europeus e platinos. O fluxo monetário
e especialmente de mercadorias foi consolidando o capitalismo comercial como o sistema
dominante ainda nos quadros da política mercantilista da Coroa de Portugal. A Vila do Rio
Grande assim como o Brasil vivia a condição de colônia e as regras em vigor ainda eram
as do colonialismo.
Os agentes históricos portugueses, espanhóis, negros, indígenas e miscigenados,
envolveram-se numa trama de fronteiras e conflitos militares que prolongou-se até o
século 19. Uma dinâmica cultural estabelecida em 1680 com a fundação da Colônia do
Sacramento do Rio da Prata pelos lusitanos e que teve continuidade com o surgimento de
Montevidéu, Rio Grande, San Carlos (Uruguai) e tantas outras localidades que ao longo
dos séculos 18 e 19 definiram a fisionomia da região, consolidando as motivações
históricas para o surgimento e colonização dinamizados pelos confrontos das duas
potências ibéricas. A ausência de infra-estrutura, a rusticidade da sociedade em formação,
as intempéries da natureza e a possibilidade de atividades bélicas com os vizinhos do
Prata não era, na primeira metade do século XVIII, motivação para um povoamento
espontâneo para Rio Grande, muito pelo contrário. A intervenção do poder público
português, através de políticas de atração de colonos, como os açorianos,3 foi
fundamental para a consolidação de um núcleo urbano em crescimento.
Com a integração econômica do Rio Grande do Sul sendo realizada pelos tropeiros
do gado chimarrão da Vacaria do Mar e especialmente com a atividade sedentária e
persistente das charqueadas, Rio Grande, devido à existência do porto, era o principal
centro comercial do Governo do Rio Grande. Comerciantes vão estabelecendo filiais de
casas do Rio de Janeiro e de outras localidades. Num levantamento realizado em 1808,
dos quarenta comerciantes estabelecidos em Rio Grande à maioria era constituída por
portugueses, seguidos de oriundos da Colônia do Sacramento, do Rio de Janeiro, de
Viamão e até da Ilha de Santa Catarina. Somente um comerciante era natural de Rio
Grande. Nas décadas seguintes, proliferariam os comerciantes ingleses e alemães. O
ritmo comercial redefiniu o papel histórico de praça militarizada passando para centro
portuário de escoamento da produção do Governo do Rio Grande de São Pedro.
A atual cidade do Rio Grande foi o primeiro referencial urbanístico luso-brasileiro
nas terras meridionais do Brasil. A fundação de um povoado português no espaço platino
fez parte de um planejamento do Conselho Ultramarino Português. Segundo uma Carta
Régia datada de 24 de março de 1736, uma frota comandada por José da Silva Paes
deveria partir do Rio de Janeiro para o Rio da Prata, buscando três objetivos: desalojar os
espanhóis de Montevidéu, levantar o bloqueio espanhol à Colônia do Sacramento e fundar

3
Ver: TORRES, Luiz Henrique. A Colonização Açoriana em Rio Grande (1752-1763). In: Biblos. Rio Grande:
FURG, 2004.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

uma colônia na parte do sul do Rio Grande de São Pedro. Somente este último objetivo foi
realizado com sucesso, pois no dia 19 de fevereiro de 1737, ao desembarcarem num
inóspito sítio formado por areia, pântano e dunas, teve início um processo militar e
colonizatório que consolidou-se, entre avanços e recuos, ao longo do século XVIII.

Porto Velho em 1852. Aquarela de Hermann Wendroth.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A Vila do Rio Grande estava situada num terreno onde se fazia presente formações
de dunas próximas ao centro urbano. A organização inicial se deu, em quadras dispostas
ao longo de duas ruas paralelas à praia. As quadras eram formadas por moradias em fita,
com quintais nos fundos. A igreja estava implantada de costas para a praia, ou seja, com
sua frente voltada para o sul e para uma das ruas longitudinais da vila.4
A importância estratégica e econômica da então Vila do Rio Grande de São Pedro
(1751-1835) na viabilização do escoamento marítimo da produção ligada a pecuária e a
agricultura do território que hoje constitui o Rio Grande do Sul, levou a Coroa Portuguesa
a adotar iniciativas mais contundentes de controle fiscal do fluxo de mercadorias que se
intensificara com a produção charqueadora desde a década de 1780 e que propiciava a
evasão fiscal através do contrabando. Neste contexto ocorreu o estabelecimento da
Alfândega, referência de suma importância para entender o principal cais do Porto Velho
na primeira metade do século 19.

Planta da Vila do Rio Grande em 1829. Acervo: BRG.

4
RHODEN, Luíz Fernando. Urbanismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 156.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A instalação da Alfândega do Rio Grande ocorreu em primeiro de outubro de 1804,


evidenciando, já nos primórdios do século 19, a importância econômica e estratégica da
Vila do Rio Grande de São Pedro. A praça militarizada assumiu um novo papel como
destacada praça comercial e se estabeleceu em terreno nas proximidades da esquina da
atual rua Marechal Floriano com a rua dos Andradas tendo por frente a atual Praça Xavier
Ferreira. Estava distante 28 braças do trapiche onde era desembarcadas as mercadorias.
Conforme John Luccock, ao visitar Rio Grande em 1809 ele observou a
precariedade dos prédios públicos inclusive do prédio da Alfândega: “É uma construção de
cantaria, com paredes de cerca de dez pés de alto, coberto de um telhado muito íngreme
que lhe dá o aspecto de uma velha cocheira inglesa”. A precariedade do estabelecimento
alfandegário era ainda maior no trapiche público o único lugar em que todas as
mercadorias deveriam ser desembarcadas e que não possuía infra-estrutura para tal
função.5 Apesar das dificuldades materiais, Luccock também deixou registradas projeções
de um grande desenvolvimento comercial para Rio Grande devido há existência do porto
marítimo.6

Rua Ewbank e prédio da Alfândega por volta de 1915. Acervo: BRG.

5
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;
São Paulo, EDUSP, 1975, p. 118.
6
LUCCOCK, p. 116-117.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Como observou Auguste Saint-Hilaire em 1820, “a Vila era centro de considerável


comércio de carne seca, de couros, sebo e trigo. Negociantes ricos os há em quantidade;
o mobiliário das casas e a aparência dos homens demonstram em geral a abastança
deste grupo comercial”. As embarcações “aportam na aldeia do Norte e as mercadorias
são transportadas para a alfândega de São Pedro. Como o centro do comércio do sul da
Capitania se acha, de há muito, localizado em São Pedro, pois os negociantes mais ricos
da região tem aí suas residências e armazéns não seria conveniente privar Rio Grande
dos privilégios usufruídos com a localização da alfândega embora esta localização seja
contrária a ordem natural das coisas”.7

Rua Riachuelo na década de 1910. Acervo: BRG.

7
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ERUS/Martins Livreiro, 1987, p.68.

Luiz Henrique Torres


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O segundo prédio da Alfândega foi construído em 1832 e ficava de frente para a


praça Xavier Ferreira pela rua dos Andradas. O atual prédio foi construído entre 1874-79
sendo parte essencial da Rua Riachuelo tendo uma vista que se destacava entre o casario
que ocupava toda a extensão da rua. “O prédio da Alfândega, situado no ponto mais
central da cidade do Rio Grande, é o mais belo e imponente edifício existente, até a
presente data, na mesma cidade. É uma sólida construção de alvenaria de pedra e tijolos,
com um só pavimento, tendo frente a quatro ruas e possuindo dois amplos pátios internos.
As entradas do edifício, isto é, as entrada centrais em cada rua, são cobertas por cúpulas,
exceto a entrada central da rua Riachuelo, que é rematada por uma torre com cerca de 30
metros de altura; servia esta, antigamente, como observatório para a entrada dos navios
no porto. As paredes externas são de espessura de um metro e às internas tem espessura
variável”.8 O prédio da Alfândega foi a maior obra civil realizada na cidade do Rio Grande
no século 19. O custo da obra, quase 700 contos de réis somente no período de 1874-82
e cujo governo Imperial era responsável, foi extremamente alto se compararmos com o
próprio orçamento anual da cidade do Rio Grande que neste período variava entre 51 e 60
contos de réis. Apenas como comparação, até 1882 foram gastos na construção do prédio
às receitas de aproximadamente 12 anos de arrecadação em nível local.

O PORTO E A ECONOMIA

Todos ralham contra o local do Rio Grande e ninguém trata de o melhorar,


não obstante ser patente a todas as luzes que seus defeitos naturais são
remediáveis pela arte.9 Gonçalves Chaves (1822).

A constituição de um grupo mercantil no Rio Grande do Sul esteve relacionado aos


interesses de negociantes do Rio de Janeiro neste comércio e nas transações com a
Colônia do Sacramento. Segundo Helen Osório10, as vinculações econômicas e sociais
dos negociantes da praça do Rio de Janeiro com o espaço do Rio Grande de São Pedro
remontam a 1737. As exportações de charque, couro e trigo, através do Porto da Vila do
Rio Grande tornaram-se relevantes em nível de abastecimento interno da América
Portuguesa a partir da década de 1780. Excetuando-se os couros, cujo mercado central
era a Europa, os produtos oriundos do Rio Grande de São Pedro distribuíam-se pelas
praças do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Se o maior comprador de charque sulino
foi à Bahia, o principal parceiro comercial foi o Rio de Janeiro, pois para esta cidade
dirigia-se a maioria do trigo e produtos agrícolas, provindo do Porto do Rio de Janeiro,
dois terços dos escravos importados pela Capitania do Rio Grande, além de produtos
têxteis e manufaturas européias. Os principais negociantes do Rio Grande do Sul eram
majoritariamente externos e foram correspondentes ou momentaneamente sócios dos
homens de grosso trato do Rio de Janeiro. Manuel José de Oliveira, comerciante carioca
radicado em Rio Grande possuía 135 escravos mas continuava a depender do sócio-
irmão radicado no Rio de Janeiro.
8
AZEVEDO, José Luiz Bragança de. Alfândega da Cidade do Rio Grande. Rio Grande: [s.n.], 2004, p. 50.
9
CHAVES, Antonio José Gonçalves. Memórias Ecônomo-Políticas sobre a Administração Pública do Brasil.
Rio de Janeiro 1822-23.
10
OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um
grupo mercantil da América Portuguesa In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, nº 39, 2000.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

O desenvolvimento da Vila do Rio Grande nas duas primeiras décadas do século


19 esteve, vinculado estreitamente à expansão da região pelotense, mas o seu
desligamento não trará efeitos sensíveis sobre a dinâmica de sua evolução. Prevalece, até
o fim do período colonial, a centralização das atividades econômicas da Capitania em
torno da pecuária e do charque, cujas transações comerciais eram concentradas no porto
e Vila do Rio Grande. Através do porto, Rio Grande garantiu um considerável nível de
desenvolvimento, que refletiu-se no crescimento da área urbana. Este desenvolvimento
ganhou um vulto assombroso se consideradas as críticas condições que marcaram sua
existência ao longo dos mais de setenta anos decorridos desde sua fundação e,
sobretudo, se levado em conta que as suas condições físicas adversas prevalecem, ainda,
nesta fase de prosperidade.11

Cais da Boa Vista. Francis Richard 1860. Acervo: BRG.

11
QUEIRÓZ, Maria Luiza B. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: Edfurg, 1987.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Nos primórdios do século 19, Rio Grande era o principal centro de comércio da
Capitania, estando o crescimento sócio-econômico ligado diretamente ao movimento
portuário, o qual repercutiu num aumento da demanda de serviços portuários e de reparos
de navios o que constituiu uma fonte de geração de empregos. Surgiu uma elite comercial
muitas vezes associada aos setores de produção do interior da Freguesia ou da Capitania.
A formação desta elite remonta a década de 1780. John Luccock, em 1809, considerou
Rio Grande como “o maior mercado do Brasil Meridional” destacando que os principais
negociantes da Capitania estavam estabelecidos na Vila. O progresso e o
desenvolvimento da Vila do Rio Grande adveio da sua função comercial e da ação
interessada e direta de seus comerciantes, diante de seus problemas mais graves,
substituindo a inércia a que a câmara local se via obrigada em razão de contar com
rendimentos que não garantiam, sequer, a sua própria manutenção.12

Porto Velho em 1852. Hermann Wendroth.

12
QUEIROZ, p. 156.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

No ano de 1822, a Vila estava constituída por vinte e quatro lojas de fazendas,
quinze armazéns de atacado, três boticas, dois ferreiros, dois tanoeiros, dois ourives, duas
lojas de louça, dois latoeiros e um caldeiro, estando a maior parte destas casas comerciais
situadas na rua da Praia, junto ao porto. As melhores residências construídas com tijolos,
trazidos de Porto Alegre, e várias com sacadas e balcões de ferro, pertenciam aos
comerciantes. Neste ano, havia seis ruas principais correndo paralelas ao porto, cruzadas
por becos estreitos, inexistindo calçamento. A presença da areia dificultava inclusive o
deslocamento dos pedestres ou carroças, e no caso de fortes ventos, o comércio era
obrigado a fechar as portas. A população pobre, ocupando cabanas feitas de barro e
cobertas de palha, habitavam o setor antigo da Vila, constituído por quatro ruas paralelas
e becos.
Em 1823, foram concluídas as obras de construção do porto feito de madeira e a
dragagem do cais, permitindo que navios com mais de duzentas toneladas, que até então
só tinham acesso ao Porto de São José do Norte, ancorassem no Porto da Vila do Rio
Grande. Foram obras realizadas com a participação financeira dos comerciantes da Vila,
os quais estiveram envolvidos também em outras obras públicas como a edificação de um
teatro. O papel comercial, nos primórdios do século 19, superou a função militar da Vila.
Até o símbolo inicial da ocupação bélica, o desativado Forte Jesus-Maria-José, passou a
sediar um semáforo sinalizador para os navios que navegavam pela barra. Para John
Luccock, os canhões herdados dos espanhóis que ainda encontravam-se no Forte, foram
montados sobre carretas que estavam colocadas num círculo suficientemente distante do
canal para não causar o mínimo aborrecimento a um inimigo que se aproximasse e se
desmantelariam ao primeiro disparo.
O ritmo comercial da Vila redefiniu o seu papel histórico de praça militarizada
passando para centro portuário de escoamento de toda produção da Capitania dirigido ao
mercado interno brasileiro. A aquarela abaixo retrata o porto em 1852 (H. Wendroth).

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

MEMÓRIAS DO VELHO PORTO


Na cidade, realiza-se um comércio muito ativo: “pavilhões de todas as
nações flutuam no porto (...) graças a seu comércio e seu porto, que é o único
desta rica província, a cidade sofrerá, pela força das circunstâncias, uma
transformação completa. Alexander Baguet (1845).13

Inúmeros episódios estão ligados a trajetória do Porto Velho alguns dos quais serão
destacados a seguir. Ao desembarcar no cais, era natural ir até a Igreja do Carmo (1809)
ou até a Matriz de São Pedro (1755) fazer agradecimentos pela viagem ser bem sucedida.
O Porto é o local do alívio pois a passagem pela barra diabólica era fator de grande
ansiedade.
O alívio em chegar ao Cais: A Barra do Rio Grande era um fator fundamental para
dinamizar a economia mas também poderia promover o isolamento da localidade. O canal
navegável mudava de posição freqüentemente propiciando naufrágios e promovendo
grandes prejuízos aos armadores. As primeiras referências a Rio Grande feitas por
Luccock, são descrições das dificuldades de acesso ao porto devido aos bancos de areia.
Após muita ansiedade dos tripulantes e passageiros “surgiu um bote que veio ao nosso
encontro, com um piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados”, indicou a rota que o
navio devia seguir. “O primeiro desses sinais é dado erguendo-se do bote uma
bandeirinha, na direção que o navio deve tomar; os outros dois, abaixando completamente
a bandeira”, significando que o navio deite âncora onde está. Segundo ele “quando
alcançamos o bote, este não nos entregou o piloto, mas prosseguiu um pouco à frente,
sondando com uma longa vara, que viravam de ponta a ponta com agilidade, à medida
que avançávamos através de uma barra rasa e ampla, situada numa angra profunda e
perigosa”.14 O acesso ao porto foi fator de apreensão ao comerciante inglês, um lugar
comum aos viajantes no período anterior a construção dos molhes da barra na década de
1910. “Da entrada da Barra até o ancoradouro, por uma extensão de nove milhas
predominam as mesmas obstruções, deixando apenas um canal estreito e intrincado com
água escassamente suficiente para um brique bem carregado”. No cartão-postal de 1913,
a Igreja do Carmo destaca-se no centro da imagem. Acervo: Papareia.

13
BAGUET, Alexander. Viagem ao Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999.
14
LUCCOCK, p. 114-115.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Porto Velho em 1852. Hermann Wendroth.


O primeiro navio a vapor: Episódio que chamou a atenção da população foi a
primeira viagem de um navio a vapor no Rio Grande do Sul. O navio partiu de Pelotas às 8
da manhã do dia 7 de outubro de 1832 e chegou a Rio Grande ao meio-dia. “Ao confrontar
com o primeiro edifício desta vila, todas as embarcações e iates içavam há um tempo
suas bandeiras, flâmulas e galhardetes, e um considerável número de foguetes subiu
imediatamente ao ar. As janelas estavam ocupadas de senhoras e as praias atulhadas de
povo, que, com acenos de lenços, gritos de vivas e continuação de fogos, fazia uma bela
vista e não punha em dúvida o entusiasmo de que todos estavam possuídos. Ao fazer o
bordo para atracar no trapiche, que também estava cheio de gente, soavam de parte a
parte festivos vivas e saudações, acompanhadas de fogo que arremessava ao ar. Depois
de ancorada a barca unida ao trapiche, desembarcaram muitos passageiros e outros
cidadãos subiram a dita barca, cada um com a sua notável curiosidade e interesse
examinando-a atentamente, por ser bem de supor que alguns dos observadores não
tivessem visto uma embarcação semelhante. As 14h, partiu, levando talvez mais
passageiros que conduzira”.15

15
O Noticiador. Rio Grande: 10/10/1832.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

O porto na Revolução Farroupilha: Com a ocupação de Porto Alegre em


setembro de 1835, o presidente da Província, Fernandes Braga, organiza a fuga naval
com destino a Rio Grande. Trouxe junto os cofres provinciais e desembarcou no Porto
Velho sediando em Rio Grande a capital imperial da Província do Rio Grande do Sul. A
outra capital, a farroupilha, é estabelecida em Porto Alegre. Outro episódio deste período
dos primórdios da Revolução Farroupilha, envolveu as tropas imperiais que fecharam a
Barra desde abril de 1836, provocando protestos dos navios norte-americanos que ficaram
retidos nos portos de São José do Norte e Rio Grande. Austin Hayes cônsul dos Estados
Unidos em Rio Grande defendeu a vinda de um navio de guerra norte-americano até a
Barra do Rio Grande para garantir a livre circulação dos navios. A crise diplomática não
teve maiores desdobramentos na relação monarquia brasileira e o republicanismo norte-
americano, mas não esqueçamos que os farroupilhas eram republicanos. Também em
1836, dias de grande tensão foram passados na cidade com a ameaça da invasão pelas
tropas farroupilha de Bento Gonçalves da Silva. O motivo era a presença de um navio
prisão ou “presiganga” com presos políticos simpáticos ao republicanismo ou ao
liberalismo radical. Estava neste navio, ancorado no Porto do Norte, Domingos de
Almeida, um expoente liberal que posteriormente se tornou ministro na República Rio-
Grandense. Frente a possível invasão militar os presos foram libertados. Porém, os
farroupilhas lamentaram posteriormente a não ocupação da Vila e Porto do Rio Grande
que seria conquista fundamental para o deslocamento marítimo farroupilha.
A areia hostil e a superação: Nicolau Dreys, comerciante que viveu na cidade na
década de 1820 descreveu com sensibilidade o difícil enfrentamento com as condições
naturais adversas para a constituição de uma civilização. Ele ressaltou que com a abertura
da Rua Nova das Flores (rua Riachuelo) as construções voltavam-se para a Lagoa e não
de costas para esta como na Rua da Praia (rua Marechal Floriano). Numa síntese das
projeções do futuro da localidade ele escreveu: “No meio das areias estéreis que a
circundam e invadem continuamente, ela se apresenta como uma criação excepcional da
política e do comércio: indiferente e como estrangeira ao território que ocupa, não deve
nada senão ao caráter ativo, industrioso e empreendedor dos habitantes. Ali, o homem
pode mais que a natureza; onde achou impotência e miséria ele fez nascer prosperidade;
pois, a cidade de S. Pedro, com suas casas suntuosas, seus ricos armazéns, seus cais
regulares e seu porto retificado pode agora concorrer com as mais notáveis cidades da
América do Sul”.16 Abaixo, cartão-postal do Cais na década de 1910-20. Acervo: Papareia.

16
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: IEL,
1961. Original 1839.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A visita do Imperador: D. Pedro II esteve na cidade em julho de 1865 rumando


para frente de combate em Uruguaiana que havia sido invadida por tropas paraguaias. Em
sua permanência em Rio Grande, recebeu inúmeras manifestações de apreço. Seu genro
casado com a filha Isabel, o Conde d’Eu, deixou anotações em seu diário desta passagem
desde a chegada do navio ao porto “por detrás de uma saliência da margem do sul
vislumbrava-se a cidade do Rio Grande precedida de uma floresta de mastros”, até os
detalhes sobre a vida urbana. Em conversas, Conde d’Eu foi informado que cidade tinha
cerca de 14.000 habitantes e apresentava muitas casas de comércio européias. As
principais mercadorias para exportação eram os couros e a carne seca. “As ruas
principais, em que se vêem lojas elegantes, são três, todas paralelas à praia. Há muitas
casas de azulejos, o que dá impressão de asseio e elegância. A rua mais importante
apresenta hoje muitas bandeiras de consulados”.Conforme suas observações, as ruas são
calçadas; mas antes de se “passarem as últimas casas da cidade, já se está num mar de
areia, em que se torna muito custoso andar”.17 Os jornais da época estimaram que mais
de 6.000 pessoas aglomeraram-se junto ao Cais da Boa Vista para observarem a chegada
do Imperador e sua comitiva. Cartões postais relativos a esta passagem, ajudaram a
divulgar Rio Grande na Corte Imperial.

Chegada de D. Pedro II ao cais da Boa Vista em 1865. Acervo: BRG.

17
D’EU, Conde. Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: EDUSP, 1980.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Iates de São Lourenço: O cartão-postal de iates ancorados junto ao Mercado


Público marcou gerações. Conforme Jairo Scholl Costa foi para o Porto do Rio Grande
que navegaram os primeiros iates mercantes de São Lourenço do Sul, era naquele porto
que estavam grandes compradores de produtos da colônia lourenciana; no Rio Grande,
todas as empresas de navegação lourencianas tinham agentes; para lá iam os jovens
lourencianos prestar serviço militar na Marinha. E era natural que assim fosse; que fortes
e perenes relações se estabelecessem entre ambas as cidades, pois São Lourenço e Rio
Grande tinham a mesma natureza marinheira, uma cidade encontrava eco na outra. A
Lagoa dos Patos irmanou as duas cidades, devido ao espírito náutico de ambas; ao
intenso intercâmbio comercial; aos contratos sociais e esportivos, de modo que múltiplos
laços as ligaram, realizando-se muitos casamentos entre jovens das duas cidades e o
nascimento de fortes e duradouras amizades entre os dois povos. Foi na cidade do Rio
Grande, quando a navegação mercante lourenciana começou a decair, que muitos
mestres e marinheiros encontraram trabalho e foi, ainda, do Rio Grande, que viria muita
da influência que desenvolveria o iatismo de São Lourenço do Sul, nos anos recentes18.

Iates junto ao Mercado Público. Museu da Cidade.

18
COSTA, Jairo Scholl. Navegadores da Lagoa dos Patos - a saga náutica de São Lourenço do Sul . São
Lourenço do Sul: Hofstatter,1999.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A Rua Barroso: A rua Barroso já teve uma estética muito diferenciada da atual.
Nela existia um Canalete onde transitavam canoas e caíques vindos da Ilha do Ladino,
onde no século 18 existiu um forte espanhol, conduzindo produtos desta extinta ilha que
foi aterrada quando da construção do Porto Novo do Rio Grande. Estes moradores
cruzavam com suas embarcações o lodoso macegal que desaguava no Canalete,
evitando um caminho maior que era a volta pela ponta da Macega. Para deslocamento de
pedestres e de veículos de tração animal, foi construída uma ponte de madeira em arco,
com altura suficiente para que embarcações pudessem circular nas águas. A ponte ficava
no final da rua da Praia (Marechal Floriano) em direção à Macega área que teve ruas
abertas a partir da década de 1880 (área em direção a Capitania dos Portos). O canalete
foi aterrado em 1895. Em 1900, durante uma epidemia de febre amarela na cidade, foi
levantada a infundada hipótese de que o aterramento do canalete era o fator para a
eclosão da doença!
No tempo de Tamandaré: Inúmeros homens tiveram suas vidas voltadas para o
mar seja como marítimos ou militares da Marinha. Residir próximo às águas poderia
despertar vocações para o mar como foi o caso do Marques de Tamandaré. Joaquim
Marques Lisboa ao relatar algumas passagens de sua infância, recordou que por volta do
ano de 1818, ao olhar da janela de sua casa observava a água da Lagoa dos Patos e as
embarcações muito próximas. De fato, ele morava na esquina da rua Marechal Floriano
com o Beco do Chico Marques (atual rua Francisco Marques), num período anterior ao
aterramento que fez surgir a rua Riachuelo e o início da definição da linha do cais.

Joaquim Marques Lisboa, Patrono da Marinha do Brasil.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A Rua Riachuelo: Esta rua foi conquistada à Lagoa através de aterramentos em


suas margens pantanosas. Em janeiro de 1822 correspondência da Câmara Municipal
manda proceder a abertura e alinhamento de uma nova rua junto ao Canal dando a
denominação de Boa Vista, momento que deve ter sido dado os primeiros passos no
aterramento que teve continuidade nos anos seguintes. Material retirado do Forte Jesus-
Maria-José (que ficava nas imediações da Praça Sete de Setembro) teriam sido levados
de carroça e despejados nesta área em 1826, contribuindo para o aterramento e
consolidação da rua Nova das Flores. Nascia uma das mais importantes ruas do Brasil, a
rua da Boa Vista e depois Riachuelo caracterizada pela grande concentração de casas
comerciais de firmas de várias partes do mundo. Estacadas proliferaram ao longo da Rua
da Boa Vista após a sua construção. O nome de Riachuelo lhe foi dado em 9 de outubro
de 1865, comemorando a grande batalha naval que se dera no Paraguai, em Riachuelo,
na embocadura do rio Paraná, a 11 de junho de 1865, saindo vitoriosa a esquadra
brasileira comandada pelo Almirante Barroso.19

Rua Riachuelo junto a Estação Marítima. Acervo: Fototeca Municipal.

19
MONTEIRO, Antenor. Ruas da cidade do Rio Grande. Rio Grande, datilografado, 1947.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A Estação Marítima: Nas últimas décadas do século 19 e nas primeiras do século


20, Rio Grande passou por transformações urbanas com inovações tecnológicas e
consolidação do capitalismo industrial. Uma destas inovações foi a ferrovia que no Rio
Grande do Sul surge na década de 1870, voltada a necessidade estratégica de defesa da
fronteira com os países platinos. Gradualmente, os caminhos de ferro passam a dinamizar
as atividades econômicas através da integração regional, aproximando os produtos da
campanha e da zona colonial do público consumidor, ampliando a circulação de
mercadorias e facilitando o deslocamento da população. Rio Grande foi um centro de
convergência dos caminhos de ferro responsáveis pelo transporte de grande parte da
produção da então Província do Rio Grande do Sul devido às instalações portuárias. Em
1884, foi inaugurado o opulento prédio da Estação Central do Rio Grande, ponto de
passagem não apenas de mercadorias, mas, também de interação cultural entre diversas
localidades gaúchas. Na década de 1880, a área circunvizinha do final da Riachuelo
esquina com a Barroso foi concedida a Southern Brasilian Railway para estender um
ramal ferroviário até o local modificando o projeto de uma área de lazer ou um novo
mercado público. Nascia a Estação Marítima, com a área atravessada por trilhas onde
zorras conduziam produtos para os navios atracados onde hoje a balsa para São José do
Norte atua.

Cartão-postal da Estação Marítima por volta de 1920. Acervo: Papareia.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Breve trajetória cronológica do Porto Velho: Na planta de Custódio de Sá e


Faria (1767) elaborada durante a ocupação espanhola, o único trapiche situava-se nas
imediações da atual rua Benjamin Constant e a água chegava até poucos metros dos
fundos da Igreja Matriz de São Pedro (a Capela de São Francisco não existia sendo
inaugurada em 1814). Uma área alagadiça é indicada na extensão da área da rua
Riachuelo. Na planta de 1829, observa-se que o trapiche da Alfândega tinha início junto
ao prédio, deixando claro que a área da atual rua General Osório ficava submersa. Já
parte da área do prédio atual da Alfândega, em sua fachada da rua Riachuelo, estava
coberto pelas águas. A Riachuelo é chamada de rua Nova das Flores, e apesar de
estreita, está claramente desenhada. Na planta de 1835 é feita referência a Rua Nova da
Boa Vista.

Cais do Porto Velho na rua Riachuelo em 1878. Acervo: BRG.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

No século 18, não existia um espaço portuário edificado, ocorrendo o atracamento


dos navios e o desembarque dos produtos e pessoas em embarcações menores. O
engenheiro militar Sebastião Francisco Bettamio, em 1780, ressaltou a necessidade de
definir um local para edificar um porto para o carregamento de embarcações,
evidenciando a inexistência de um porto planificado.20
Saint-Hilaire21 refere-se que em 1820 havia um cais, com um galpão de dezesseis
passos de comprimento por vinte de largura, coberto de telhas. Um guindaste
descarregava as mercadorias no galpão. Era o Cais da Alfândega que fora instalada em
1804. Segundo ele, por ali passavam charque, couro, sebo e trigo. Estacadas de madeira
e ferro são utilizadas para construção do cais, porém, a aspiração é um cais feito de
pedra. Na década de 1850 a Câmara faz várias solicitações para construção de um cais
no porto pois a estacada estava em mau estado, porém não obtém os empréstimos
solicitados. Cais no Litoral foi solicitado desde a década de 1850, porém somente em
1870 a primeira parte dos trabalhos em frente à Alfândega fora concluída pelo engenheiro
Ewbank Câmara. Em fevereiro de 1873 procurava-se estender a obra até a Barroso.

Iates junto ao Mercado Público no ano de 1878. Acervo: BRG.

20
BETTAMIO, Sebastião Francisco. Notícia particular do Continente do Rio Grande do Sul. In: FREITAS,
Décio. O Capitalismo Pastoril. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: UCS, 1980.
21
SAINT-HILAIRE, Op. cit.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

No ano de 1849 foi iniciada a construção de uma doca próximo ao Mercado Público
para a venda de peixe. O antigo Mercado Público sobreviveu durante alguns anos na
parte central do atual Mercado Público o qual foi construído entre 1853-63. Uma nova
doca foi construída em 1876 “junto ao mercado em frente à Banca do Peixe, como sabeis,
construída de tijolo e terra romana, sobre estaqueamento de madeira de lei, com dois
metros de profundidade e dois de alicerce, com cobertura de lageões da Província de um
palmo de grossura, tendo uma grande escadaria de cantaria na frente. Colocaram-se no
centro quatro balisas com argolões de ferro, para amarração das canoas”.22 Portanto os
argolões não eram para amarrar escravos, como conta a lenda, mas para amarração das
canoas.

Cais junto ao Mercado Público. Acervo: Papareia

Henry Vereker,23 cônsul inglês, em 1860, ressalta que era intenso o tráfego
marítimo e os navios deveriam lançar âncora nas proximidades da Alfândega esperando a
vez de descarregar as mercadorias, sendo que navios brasileiros ficam a oeste do cais da
Alfândega, e os estrangeiros a leste. O Cais da Boa Vista havia sido projeto, mas, ainda
não havia sido construído em 1862 devido à falta de recursos. Um cais em frente à Santa
Casa de Misericórdia começou a ser estudado em 1898.
A Companhia Francesa do Porto do Rio Grande entre 1908 e 1919, passa a
controlar a área do Porto Velho. A partir de 1911 iniciam as obras dos Molhes da Barra e
em 1915 é inaugurado o Porto Novo. Com a encampação da Companhia Francesa pelo
Governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1919, o Porto passa para a esfera da
administração estadual.

22
Relatório da Câmara Municipal da cidade do Rio Grande em sessão de 8 de janeiro 1876.
23
VEREKER, Henry P. Vereker, 1860: roteiro da costa do Rio Grande do Sul. Rio Grande: Ed. da FURG,
2001 (tradução: João Reguffe).

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

A BARRA E O CAIS DO PORTO VELHO

Ali o homem pode mais que a natureza; onde achou impotência e miséria ele
fez nascer prosperidade. Nicolau Dreys (1839).

Desde o início da colonização nas primeiras décadas do século 18, navegar pela
Barra do Rio Grande representava um momento crítico do filme épico da fundação luso-
brasileira no sul do Brasil. Os acidentes e naufrágios tornaram-se rotina. O longo trajeto de
reivindicações e desafios para a população local resultou numa das mais importantes
obras da engenharia mundial do início do século 20, onde trabalharam mais de quatro mil
homens. Entre 1911 e 1915 foram construídos os dois molhes que garantiram um
aumento substancial do calado no canal permitindo a entrada de grandes embarcações. A
barra diabólica cedeu frente ao crescente otimismo burguês ligado à crença do domínio da
tecnologia sobre a natureza. Paralelamente, as obras do Porto Novo estavam interligadas
ao trabalho de aprofundamento da barra com a construção dos molhes. Vultosos recursos
financeiros foram gastos para obter o calado esperado e a construção de um complexo
portuário de grandes dimensões para a época. Com a entrada, em março de 1915, do
navio-escola Benjamin Constant com o calado de 6,3 metros (foto abaixo – acervo
Papareia), a barra do Rio Grande foi oficialmente inaugurada para a navegação. Iniciava-
se uma nova etapa de abertura para o comércio marítimo num contexto local de inserção
nos quadros do capitalismo industrial. As condições de navegação na Barra e de
segurança do porto, objetivo perseguido desde a fixação das primeiras e rudimentares
sinalizações do canal de acesso ainda nos tempos do Brigadeiro Silva Paes, finalmente
colocavam o Porto do Rio Grande com um local seguro para a navegação mundial. Desde
então, a maioria dos navios de maior calado ancorava junto ao Porto Novo reduzindo o
intenso movimento no Porto Velho.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

O cais do Porto Velho acompanhou a silhueta do centro da cidade desde os


primórdios do século 19. Foi um cartão de visitas retratado por Debret em 1823, por
Wendroth em 1852 ou em diversas fotografias tiradas a partir de 1865. Esta foi a primeira
visão do Rio Grande do Sul para os viajantes estrangeiros, aos imigrantes em busca de
uma nova vida ligada a terra e ao trabalho ou frente ao olhar dos escravos negros que
eram desembarcados em seu cais, rumando para diferentes localidades gaúchas. Em
1872 o cais sofreu uma reforma e ampliação para comportar o movimento de cargas. Na
década de 1920 foram construídos os armazéns junto ao Porto Velho. O centro urbano
ligado as atuais ruas Riachuelo e Marechal Floriano dinamizaram-se em estreito vínculo
com a existência deste universo portuário. Apesar da inauguração do Porto Novo em
1915, a importância do Porto Velho persiste enquanto ancoradouro de embarcações de
pequeno e médio porte, descarga de pescado e tráfego de passageiros e embarcações
ligando Rio Grande com São José do Norte e as Ilhas. Nas últimas décadas também é um
espaço cultural que aproxima a população de seu cais e atrai milhares de turistas durante
a Festa do Mar.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Concordo com Francisco das Neves Alves24 que enfatizou em sua interpretação
que a história da cidade está marcada pelo recorrente enfrentamento do ser humano com
a natureza. Vencer as intempéries e adequar-se ao modelo europeu de civilização marcou
gerações estando as questões relativas ao porto inseridas neste processo. A construção
do cais e as transformações nas ruas contíguas buscavam promover uma maior
comodidade às atividades mercantis e aformosear a cidade dando-lhe uma feição de
cartão-postal ao mundo com o qual queria se relacionar.
Ponto de confluência das atividades de embarque e desembarque, o Porto Velho
representou ao longo de mais de dois séculos seja no plano econômico como no cultural,
uma janela para o mundo. As imagens a seguir, convidam o leitor para uma viagem no
tempo até os antigos cenários do Porto Velho.

24
ALVES, Francisco das Neves. Porto e Barra do Rio Grande: história, memória e cultura portuária. Porto
Alegre: Corag, 2008, vol.1, p. 174.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Chegada de D. Pedro II em 1865 e cartão-postal com o Cais da Boa Vista (1865). Acervo:BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Porto Velho em 1865 e rua Riachuelo no final do século 19. Acervo: BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Prédio da Câmara Municipal (no local da atual Biblioteca Rio-Grandense) em 1894. Acervo: BRG.

Alfândega e Rua Riachuelo. BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Rua Riachuelo entre 1910-15. Acervo: BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Rua Riachuelo sem os armazéns construídos por volta de 1926. Acervo: Museu da Cidade.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Navio de guerra português Pátria ancorado no Porto Velho em 1905. Acervo: Papareia.

Cartão-postal rua Riachuelo 1902. Acervo: Museu da Cidade.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cais do Porto na década de 1910 e cartão-postal do Porto Velho em 1912. Papareia.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Vista do Mercado Público e do Porto Velho. Acervo: BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Bonde na rua Riachuelo e obras em frente à Alfândega. BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Obras na Riachuelo na década de 1910 (BRG) e populares no cais, em torno de 1930 (Papareia).

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Rincão da Cebola na década de 1940.25 Cais da Riachuelo encoberto durante a enchente de 1941.

25
In: PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais do Município do Rio Grande. Porto Alegre: Imprensa Oficial,
1944.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Fotografia entre 1900-1910. Acervo: Fontana.26 Cais do Porto década de 1940. BRG.

26
FONTANA, Almicar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande. Rio Grande: Atelier Fontana, 1912.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Rua Riachuelo (Fontana). Área da Marítima e Macega (BRG).

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cais do Mercado Público na década de 1950 (Papareia).

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cartão-postal da década de 1950 (BRG).

Primeira fotografia aérea da cidade com navios no Porto Velho em 1927. Acervo: Papareia.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Vista aérea nas décadas de 1960-70. Acervo: BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cartão-postal do ano de 1904. O canto direito era usado para anotações ao destinatário. Se este
livro for dado de presente o espaço pode ser utilizado para a dedicatória. Acervo: BRG.

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Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Jean Debret. Vista do Porto do Rio Grande (1824). BRG.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cartão-postal da rua Riachuelo nos primórdios do século 20. Acervo: Museu da Cidade.

O autor é Doutor em História do Brasil. É professor da disciplina História do Município do Rio Grande
na Universidade Federal do Rio Grande.

Luiz Henrique Torres


Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande

Cartão-postal do Porto Velho e da Ilha do Ladino entre 1900-1910. Acervo: Museu da Cidade.

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