Você está na página 1de 13

IICT | bHL | blogue de História Lusófona | Ano VI | Janeiro 2011

Mercadorias, rotas e agentes mercantis:


O movimento da barra do porto de Rio Grande
(primeira metade do século XIX)

1
Gabriel Santos Berute

Introdução
Nas primeiras décadas do século XIX, a Vila de Rio Grande, no extremo-
sul da América portuguesa, desfrutava de uma situação de prosperida-
de econômica, em parte atribuída à situação de conflito enfrentada pe-
los seus principais concorrentes na região, Montevidéu e Buenos Aires.
O comércio de couros e de charque, antes sob o controle dos vizinhos
platinos, foi deslocado para Rio Grande.
A condição de sede da Alfândega e a presença de um grupo
mercantil que investia na melhoria da sua infra-estrutura também con-
2
tribuíam para a prosperidade então observada . Para Maria Bertulini
Queiroz, a vila consolidava sua posição de centro comercial e sua im-
portância para a economia rio-grandense. A antiga função militar cedia
3
espaço para as atividades mercantis .

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS – Brasil. Bolsista CA-
PES. E-mail: gabrielberute@gmail.com
2
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Fede-
ral/Conselho Editorial, 2002 [1820-21], p. 95-6, p. 67-73; 87-9; 94-101; 106-8; LUC-
COCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo:
Livraria Martins, 1942 [1809], p. 116-17; 122; ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Pra-
ta e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2006 [1833-34],
p. 257.
3
QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio
Grande: FURG, 1987, p. 156-61.

1
2 Gabriel Berute

Neste texto, analisei o comércio marítimo e de cabotagem reali-


zado através do porto do Rio Grande durante a primeira metade do sé-
culo XIX. Procurei identificar quais eram os parceiros mercantis, os
produtos comercializados e ressaltar alguns aspectos da participação
dos agentes mercantis nele atuantes. Com isso, pretendi observar se
ocorreram modificações significativas nas características da atividade
comercial e nas vinculações comerciais com as demais praças mercan-
tis ao longo do período considerado.

A atividade mercantil na barra do porto de Rio Grande


Os dados utilizados na análise foram os registros de entrada e saída de
4
embarcações na barra do porto de Rio Grande entre 1803 e 1851 . Os
registros que informam sobre a entrada referem-se aos anos de 1803
até 1851, sendo que não há informações para o período entre 1816 e
1833. As saídas se restringem aos anos de 1809 e ao período de 1831
a 1851, apresentando lacunas entre 1843 e 1846. Assim, as considera-
ções apresentadas nesta parte do texto baseiam-se nos registros de
1841 e 1842, pois são os anos com o maior número de ocorrências –
298 registros de importação e 313 de exportação. Para os demais, es-
pecialmente para as duas primeiras décadas do século XIX, fiz uso dos
dados disponíveis na bibliografia consultada. Apesar dos limites, os da-
dos aqui analisados apresentam valiosas indicações a respeito da mo-
vimentação do porto marítimo do Rio Grande do Sul, seus parceiros
comerciais, produtos comercializados e agentes mercantis.
Helen Osório observou que, entre 1802 e 1821 as capitanias do
Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Santa Catarina eram os mais im-
portantes parceiros comerciais. Juntas, as três primeiras praças recebi-
am quase a totalidade das exportações rio-grandenses. O Rio de Janei-
ro era o primeiro – e, quase exclusivo – mercado do trigo e o segundo
importador de charque (a Bahia era o principal comprador do produto).
Também era o destino de grande parte dos couros e de outros produ-
tos agropecuários. O porto carioca era origem de 67 a 76% do total das

4
ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL (AHRS). Autoridades Militares, maços
14, 16, 18, 22, 27, 46, 51; Marinha – Praticagem da Barra, maços 22, 23, 24; 27 e 28;
Diversos, maço 72. Doravante AHRS. AM/M.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 3

importações sul-rio-grandenses, através das quais se adquiria açúcar,


arroz, farinha de mandioca, sal, escravos, manufaturados, entre outros
produtos. Com a Bahia, os negócios de importação eram menos avul-
tados e constituíam-se de sal, escravos, açúcar, fazendas secas e fer-
ragens. A balança comercial rio-grandense apresentava déficits cons-
tantes com a capital do Vice-reino, que eram financiados pelos superá-
5
vits obtidos no comércio com a Bahia e com Pernambuco .
6
Os registros da barra do Rio Grande mostraram que no princípio
da década de 1840, o Rio de Janeiro mantinha a sua posição de desta-
que nos negócios rio-grandenses, seguido da Bahia, Pernambuco e
Santa Catarina. Para estas quatro praças foram dirigidos quatro quintos
das entradas e das saídas de embarcações computadas. Apesar do
predomínio do comércio com os portos da América portuguesa, tam-
bém foi possível observar a ocorrência de transações diretas com im-
portantes portos nos Estados Unidos, na Europa e com a América es-
7
panhola .
Nos mapas de exportação e importação apresentadas por Antô-
nio José Gonçalves Chaves em sua “Quinta Memória”, consta que, en-
tre 1816 e 1822, a então capitania já negociava diretamente com di-
versos portos fora da América portuguesa. Os principais portos estran-
geiros informados como destino das mercadorias rio-grandenses foram
Montevidéu, Havana, Nova York, Salem, Boston e Antuérpia. Eram en-
viados para estes portos couros de boi e de égua, carne-seca (char-
que), barris de carne (“carne salgada em barris”), sebo, graxa, cabelo e
chifres. Quanto às importações, a capitania recebia sal, vinho, azeite,
fazendas secas, aguardente, ferragens e manufaturados. Entre os for-
necedores destas mercadorias, predominavam Montevidéu e Buenos

5
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e
comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 183-223.
6
AHRS. AM/M.
7
Segundo Queiroz, parte importante das transações comerciais do Rio Grande de São
Pedro voltava-se aos seus vizinhos platinos através do contrabando, que mesmo assim
resultava bastante rendosa para todos os envolvidos. QUEIROZ, M. A Vila do Rio Gran-
de, op. cit., p. 149-51.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


4 Gabriel Berute

Aires; Nova York, Boston, Filadélfia, Salem; Porto, Lisboa, Cádiz, Gibral-
8
tar, Marselha e Hamburgo .
A consulta à documentação emitida a partir do consulado dos Es-
tados Unidos no Rio Grande do Sul informa que, apesar dos problemas
enfrentados durante a Guerra dos Farrapos (1835-45), diversas embar-
cações daquele país entraram no porto de Rio Grande entre 1829 e
1840, carregadas mercadorias como farinha, sal, especiarias, artigos
diversos e produtos domésticos. Estas partiam levando couros, chifres,
cabelos, sebo e erva-mate, não apenas para portos dos Estados Uni-
dos, pois faziam parte de uma rede mais ampla de transações mercan-
9
tis .
Segundo o comerciante Nicolau Dreys, na década de 1830, era
significativa a presença de embarcações pertencentes a estrangeiros
(franceses, ingleses, americanos, italianos e das cidades hanseáticas)
no porto de Rio Grande, embora grande parte delas fosse propriedade
10
de negociantes estabelecidos na própria província .
A confrontação com a bibliografia, portanto, permite afirmar que
desde meados da década de 1810, no mínimo, efetuavam-se transa-
ções comerciais diretamente com portos estrangeiros, sem a interme-
11
diação do Rio de Janeiro , e possivelmente estas tenham se iniciado
logo após a “Abertura dos Portos”, em 1808.

8
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-política sobre a administração
pública do Brasil. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1978 [1822], p.
134-70.
9
FRANCO, Sérgio da Costa (org.). Despachos dos Cônsules dos Estados Unidos no Rio
Grande do Sul: 1829/1841. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul; Instituto Histórico e Geográfico do Estado do Rio Grande do Sul, 1998,
p. 101-37.
10
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul.
Porto Alegre: IEL, 1961[1839], p. 143. Ver também ISABELLE, A. Viagem ao Rio da Pra-
ta, op. cit., p. 245-46.
11
Segundo Jucá de Sampaio e João Fragoso, ao longo do século XVIII, o Rio de Janeiro
havia se transformado no ponto de encontro de uma intricada rede de circuitos mer-
cantis do Atlântico Sul e também em um porto de redistribuição de mercadorias. SAM-
PAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjun-
turas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2003; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierar-

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 5

Quanto aos gêneros comercializados, nos registros de 1841 e


12
1842 constam 39 produtos diferentes. As importações apresentavam-
se relativamente mais variadas em relação às exportações. Os princi-
13 14
pais itens importados eram escravos , sal e gêneros diversos. Outros
produtos de destaque foram fazendas, farinha, açúcar, aguardente,
vinho, açúcar e carvão. Nas exportações, verificou-se que o gado e
seus derivados permaneciam como os principais produtos exportados.
Carnes, couros, sebo, cabelos, chifres e canelas de bois, compunham
cerca de 87% dos 413 carregamentos contabilizados. Sendo assim, a
pauta de mercadorias negociadas neste momento não parece ter sofri-
do alterações significativas em relação ao início do século XIX, inde-
pendentemente da origem e do destino.
Entre as mercadorias acima, destacavam-se as carnes e os cou-
ros que reuniam aproximadamente 68% dos registros de exportação do
porto de Rio Grande. As cargas de carnes tinham como destino o mer-
cado interno: Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. Os dois únicos por-
tos estrangeiros identificados foram Liverpool e Nova York. Em relação
à exportação dos couros, verificou-se a maior presença de portos es-
trangeiros entre os destinos indicados. Ainda que o Rio de Janeiro fosse
o principal importador, os dezessete destinos estrangeiros somam 40%
das cargas contabilizadas. Os principais portos fora do Brasil eram No-
va York, Porto/“Portugal”, Liverpool, Hamburgo e Marselha, com 24%
das exportações do produto.

quia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1998.
12
AHRS. AM/M.
13
Sobre o comércio de escravos no Rio Grande do Sul, ver BERUTE, Gabriel Santos.
Dos escravos que partem para os Portos do Sul: características do tráfico negreiro do
Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790- c.1825. Porto Alegre: PPG-História/UFRGS,
2006 [dissertação de mestrado].
14
O sal era fundamental para o preparo do charque, um dos mais importantes produ-
tos exportados pelo Rio Grande de São Pedro14. O insumo representava 21% dos car-
regamentos com cargas informadas nos anos de 1841 e 1842 (103 carregamentos no
total). AHRS. AM/M. Para algumas estatísticas do volume de sal importado pela provín-
cia entre 1816 e 1854, ver CHAVES, A.. Memórias ecônomo-política, op. cit., p. 170;
SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no
século XIX. Rio Grande: FURG, 2006 [monografia de bacharelado], p. 27-33.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


6 Gabriel Berute

De acordo com Helen Osório, entre 1790 e 1821, o destino priori-


tário dos couros era o Rio de Janeiro, que “recebeu nos (...) anos de
1803, 1808 e 1815, 85%, 78,6% e 76,2% dos couros. Entre 1818 e
1821, sua participação oscilou entre 83,5 e 79,6%. Pernambuco era o
terceiro porto importador de couros, mas em proporções muito inferio-
res às da Bahia”. Este era o segundo item mais reexportado pelo Rio de
15
Janeiro, perdendo apenas para o açúcar . Portanto, em comparação
com os dados da autora, fica sugerido que a função de reexportador
dos couros rio-grandenses que o porto do Rio de Janeiro desempenhava
foi reduzida a partir do primeiro reinado, embora se mantivesse em
patamares elevados.
Organizando os mesmos dados de acordo com a “bandeira” da
embarcação na qual foi feita a exportação dos referidos produtos, ficou
claro o predomínio das embarcações “nacionais” no transporte de car-
ne (98%) e de modo menos acentuado na exportação dos couros
(63%). As bandeiras estrangeiras, por sua vez, correspondiam à parce-
la de 37% das embarcações que saíram do porto de Rio Grande carre-
gadas com couros. As “norte-americanas” (17%), as “inglesas” (9%) e
as “dinamarquesas” (4%) foram as que apresentaram os percentuais
mais elevados. Para Portugal, predominavam as embarcações “brasilei-
ras” e “portuguesas”.
A Abertura dos Portos (1808) propiciou o crescimento significati-
vo da presença de estrangeiros no comércio do Brasil, especialmente
de ingleses. Apesar do descontentamento dos luso-brasileiros e das
tentativas governamentais de dificultar sua atuação, a presença destes
agentes era uma realidade observada, predominantemente no comér-
16
cio de cabotagem . Segundo o negociante inglês, John Luccock, na
época de sua passagem pela capitania rio-grandense (1809), o comér-
cio da região passava por uma transformação. Muitos dos produtos an-
teriormente importados através de Portugal estavam perdendo espaço

15
OSÓRIO, H. O império português no sul da América, op. cit., p. 202-7.
16
FARIA, Sheila de Castro. Comerciantes. In: VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos
Pereira das (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino, 1808-1821. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2008, p. 88-9.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 7

para os produtos ingleses devido aos preços mais atrativos e por serem
17
mais adequados ao gosto dos setores mais abastados da região .

Os agentes
Quanto aos responsáveis pelas transações realizadas através do porto
de Rio Grande, reuni sob a designação agente, os consignatários de
cargas e os donos de embarcações. Ao contrário da seção anterior, uti-
lizei todos os dados disponíveis, uma vez que não existem trabalhos
semelhantes referentes à província rio-grandense que permitam esta-
belecer um exercício comparativo.
Observando o conjunto da movimentação portuária a partir dos
registros de 414 agentes diferentes responsáveis por 478 carregamen-
18
tos de importação e 405 de exportação , percebi que a maioria deles
realizou apenas um ou dois carregamentos: em cifras aproximadas es-
te grupo reunia 87% dos agentes e 62% dos registros. O grupo que rea-
lizou 5 ou mais transações representava entre 4 e 5% dos agentes e
acumulava parcela entre 16 e 24% dos carregamentos. Esta caracterís-
tica não difere da definição segundo a qual os diferentes setores do
comércio colonial caracterizavam-se pela presença concomitante de
um grande grupo de pequenos comerciantes eventuais, mas indispen-
sáveis para o bom funcionamento da atividade, e de um número redu-
19
zido de negociantes que dominavam a maioria dos negócios . A seguir

17
LUCCOCK, J. Notas sobre o Rio de Janeiro, op. cit., p. 122.
18
Não foram considerados os registros nos quais não constam os nomes dos consigna-
tários e/ou dos proprietários das embarcações: 33% (entradas) e 26% (saídas).
19
FRAGOSO, J. Homens de grossa aventura, op. cit, p. 187-233; FLORENTINO, Manolo.
Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 150-54.
Observei a mesma característica ao analisar o tráfico de escravos da capitania rio-
grandense. BERUTE, G. Dos escravos que partem para os Portos do Sul, op. cit., p. 102-
111; 125-136. No que diz respeito ao o comércio terrestre em Minas Gerais no século
XVIII, tanto Cláudia Chaves quanto Junia Furtado também observaram a presença im-
portante de “mercadores eventuais” (Chaves) ou “comerciantes ocasionais” (Furtado).
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Melhoramentos no Brazil: integração e mercado na
América Portuguesa (1780-1822). Niterói: PPGH-UFF, 2001, p. 113-161; FURTADO, Júnia

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


8 Gabriel Berute

enfatizo a participação dos principais agentes (2 ou mais consignações)


envolvidos na exportação de carnes, charque e couros bem como na
importação de sal.
Apenas 45 agentes fizeram mais de duas consignações de expor-
tação de carne (39%), mas foram responsáveis por aproximadamente
62% das 189 consignações. É pronunciada a presença de Militão Máxi-
mo de Souza, o único com cinco carregamentos, cerca de 3% das tran-
20
sações .
Os sete maiores exportadores de charque (16%) concentraram
36% das consignações. Ressalta-se Paiva & Vianna, com 11% dos car-
21
regamentos enquanto Eufrásio Lopes de Araújo e Francisco Manuel
Barbosa foram responsáveis por 13% das cargas do produto.
Sublinha-se a presença maciça dos luso-brasileiros entre os con-
signatários de carne e charque, enquanto os estrangeiros constavam
entre os principais exportadores de couros (13% dos agentes, respon-
sáveis por 29% das consignações). Os cinco estrangeiros identificados
acumulavam 9% das consignações de couros. A participação de Hol-
land Deveis & Companhia, Adolfo Hugentobler e da firma da qual era
sócio, Hugentobler & Douley é significativa, ainda que os dois exporta-
dores mais importantes fossem a firma de um luso-brasileiro, Manuel

Furtado. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio das Minas


setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006 [2ª Edição], p. 262.
20
Natural do Rio Grande do Sul, consta como responsável pela remessa de gado e seus
derivados a partir de Porto Alegre e Rio Grande para o porto do Rio de Janeiro, entre
1842 e 1854. KUNIOCHI, Márcia Naomi. Crédito, negócios e acumulação. Rio de Janeiro:
1844-1857. São Paulo: FFLCH-USP, 2001 [tese de doutorado], p. 182-192. Também foi
sócio de Irineu Evangelista de Souza, o Barão/Visconde de Mauá em diferentes negó-
cios: bancos, navegação a vapor, estrada de ferro e indústria química. Ver GUIMARÃES,
Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade
Bancária Mauá, MacGregor & Companhia (1854-1866). São Paulo: FFLCH-USP, 1997
[tese de doutorado], p. 108; 127; 130-32; 157; 161; 171; 197.
21
Segundo as informações reunidas por Josiane da Silveira, Eufrásio Lopes de Araújo
teria nascido em Rio Grande, em 1814; foi um dos sócios da Praça do Comércio da
mesma cidade e teve atuação política de destaque, tendo recebido diferentes títulos
honoríficos, inclusive o de Visconde de São José do Norte. SILVEIRA, J. Rio Grande:
portas abertas, op. cit., p. 41-2. Ver também MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A
Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representa-
tiva do setor mercantil. São Leopoldo: PPG-História/UNISINOS, 2003 [dissertação de
mestrado], p. 108.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 9

Ferreira Porto & Companhia e o já mencionado Antonio José de Oliveira


22
Castro . Os estrangeiros concentram 6% das cargas de couros, prati-
camente a mesma parcela acumulada pela firma de Manuel Ferreira
Porto.
Entre os importadores de sal que fizeram mais de uma remessa
(26% dos agentes responsáveis por 37% dos carregamentos), a firma
Holland Deveis & Companhia foi a mais freqüente, juntamente com An-
tonio José de Oliveira Castro, também presente entre os exportadores
de carne e couros. As sociedades mercantis Holland Deveis & Compa-
nhia e Forbes & Companhia foram os únicos estrangeiros que identifi-
quei entre os principais importadores de sal. Paiva & Vianna, o principal
exportador de charque, também estava envolvido na importação de
23
sal, embora com um número menor de carregamentos .
Outros importadores de sal que se destacaram foram Antonio de
Siqueira, Antonio Raimundo da Paz e Militão Máximo de Souza, por
também constarem entre os que exportavam couros, e carne, no caso
deste último. Estes agentes haviam sido responsáveis por parcelas de
10% e 9% das consignações de couros e sal, respectivamente.
Considerando em conjunto os dados acima, percebe-se que os
luso-brasileiros atuavam praticamente sozinhos nos negócios de expor-
tação de carne e charque, e eram maioria na importação de sal e na
exportação de couros. Nesta última, os estrangeiros apareciam de for-
24
ma mais consistente .

22
Sobre os negócios de Adolfo Hugentobler e da firma Hugentobler & Douley, ver tam-
bém TORRES, Daniel de Quadros. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes
mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Rio Grande: FURG, 2006
[monografia de bacharelado], p. 41-3.
23
Antonio de Siqueira, Paiva & Vianna e Lobo & Barbosa constam entre os maiores
importadores do insumo nos carregamentos computados por Josiane da Silveira refe-
rentes aos anos de 1850 e 1854. O primeiro aparece com 2 carregamentos (1850), o
segundo com 11 em 1850 e mais 3 em 1854. Já Lobo & Barbosa consta com 4 e 7 re-
gistros de importação do insumo, nos respectivos anos. A autora também identifica a
presença de Hugentobler & Companhia como responsável por 6 carregamentos no ano
de 1850 e de vinte e duas, em 1854. SILVEIRA, J. Rio Grande: portas abertas, op. cit., p.
39-40.
24
Josiane da Silveira e Daniel Torres, em suas respectivas investigações, consideraram
que havia uma clara divisão entre os negociantes estrangeiros e luso-brasileiros: estes
dominavam os produtos voltados para o mercado interno (charque) enquanto aqueles

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


10 Gabriel Berute

Chamo a atenção ainda para a participação de alguns dos impor-


tadores de sal na exportação de um ou mais dos outros três produtos
apresentados acima. Apenas Antonio José de Oliveira Castro estava
envolvido nas transações dos quatro gêneros considerados. Outros
como Holland Deveis & Companhia e Manuel Ferreira Porto & Compa-
nhia importavam sal e também exportavam couros. Já as sociedades
mercantis de Lobo & Barbosa e Paiva & Viana estavam envolvidas con-
comitantemente com a importação de sal e a exportação de charque.
Os negócios destes agentes não se limitavam aos itens apresen-
tados acima. A firma de Deveis, por exemplo, importava produtos como
farinha de trigo, carvão e gêneros diversos, vindos de Liverpool, para
onde enviava cabelo, chifres e couros; de Lisboa trazia sal, azeite e vi-
25
nho . Já a firma Paiva & Viana, que remetia couros para a cidade do
Porto, igualmente enviava charque para a Bahia de onde importava
26
aguardente, escravos e sal . Manuel Ferreira Porto & Companhia, por
sua vez, importava escravos, gêneros diversos e sal do Rio de Janeiro,
27
que era destino de couros enviados através de sua firma .
Enfim, o que se pretende sugerir com estes exemplos e com a
análise dos dados acima é que estas transações faziam parte de redes
mercantis complementares, nas quais os mesmos agentes importavam
e exportavam mercadorias entre as mesmas praças, de acordo com as
necessidades e conveniências. Era justamente na intermediação da
comercialização de mercadorias produzidas em localidades distintas
que os agentes mercantis auferiam seus lucros através das diferenças
de preços das mercadorias comercializadas, conforme definição de
28
Fernand Braudel .
O último aspecto referente aos agentes mercantis a ser aborda-
do diz respeito àqueles que faziam parte do grupo de negociantes de
grosso trato matriculados na Real Junta do Comércio, Agricultura, Fá-

dominavam os do mercado externo (couros). SILVEIRA, J. Rio Grande: portas abertas,


op. cit., p. 58; TORRES, D. Rio Grande – Pelotas, op. cit., p. 43.
25
AHRS. AM/M., registro 295, 356, 361, 415, 449, 478, 487, 525, 539 e 979.
26
Idem, registro 684, 1126, 1151 e 1157.
27
Idem, registro 282, 648 e 829.
28
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Vol. 2 (Os jogos
das trocas). São Paulo: Martins Fontes, 1998 [1ª ed., 1979], p. 117-19; 355-59.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 11

bricas e Navegação (Rio de Janeiro) e que estiveram envolvidos na co-


mercialização de mercadorias através do porto de Rio Grande. Entre
1809 e 1850 foram matriculados 1.329 negociantes de grosso trato,
quase a metade estabelecida na Corte. O restante, destacadamente na
Bahia, no Rio Grande do Sul e em Pernambuco. A praça mercantil rio-
grandense reunia o terceiro grupo de matriculados, com 10% dos regis-
29
tros (136) .
Constatei que 35 destes negociantes de grosso trato estiveram
envolvidos diretamente no comércio com o porto de Rio Grande, a
maioria deles estava estabelecida na província rio-grandense (18), se-
guido do Rio de Janeiro (9) e da Bahia (6). Entre eles chamo a atenção
para José da Costa Santos, um dos importadores de sal, e que estava
30
entre os comerciantes atuantes na capitania em 1808 e era matricu-
lado como negociante de grosso trato da Praça de Porto Alegre desde
31
março de 1816 . Consta em três entradas (1815-16) nas quais impor-
tou escravos, arroz, açúcar, sal, cal, fumo, entre outras mercadorias
32
não discriminadas .
Já Miguel da Cunha Pereira apareceu como consignatário de três
embarcações que chegaram ao porto de Rio Grande em 1815 carrega-
33
das principalmente com escravos (43) vindos do Rio de Janeiro . Nas-
cido em 1774, na Colônia do Sacramento, era membro de uma das fa-

29
ANRJ. REAL JUNTA DO COMÉRCIO, AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAÇÃO. Matrícula
dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1
(1809-1826); v. 2 (1827-1843). Doravante ANRJ. Cód. 170, v., fl.
30
Almanack da Vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da Capitania do Rio
Grande do Sul, de Manoel Antônio de Magalhães, 1808. In: FREITAS. Décio. O Capita-
lismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
1980, p. 94.
31
ANRJ, Cód. 170, v. 1, fl. 86.
32
AHRS. AM/M, registro 167, 196 e 205. José da Costa Santos era proprietário da Es-
tância São Lourenço onde possuía uma “charqueada de telha com seus pertences de
currais, varais e mais oficinas”. José da Costa Santos, inventário, APERS, 1827, 1º Car-
tório Órfãos e Provedoria de Pelotas, mç. 9, nº 113. Ver também BERUTE, G. Dos escra-
vos que partem para os Portos do Sul, op. cit., p. 104-108.
33
AHRS. AM/M, registro 161, 164 e 214. Já havia identificado a presenta de Miguel da
Cunha Pereira no tráfico negreiro entre 1813-19. BERUTE, G. Dos escravos que par-
tem para os Portos do Sul, op. cit., p. 113.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


12 Gabriel Berute

mílias que desta se retiraram para povoar o extremo sul do Brasil, em


34
1777 . Estava presente no comércio rio-grandense ao menos desde
1798 e também constava entre os comerciantes da capitania listados
35
no Almanaque de 1808 .
Outro dos negociantes de grosso trato estabelecidos no Rio
Grande do Sul era o Capitão-mor Antonio José Afonso Guimarães. Pos-
suía três embarcações e negociava mercadorias como sal, escravos,
36
carne e couros com o Rio de Janeiro e outras praças . Matriculado co-
mo negociante de grosso trato desde 1813, também conquistou posi-
ções de destaque na sociedade rio-grandense: tesoureiro da Sociedade
Promotora da Indústria Rio-grandense, procurador do Hospital de Bene-
ficência, tesoureiro da Caixa Econômica (1833), vereador em Rio Gran-
37
de e Deputado provincial em 1850 e 1851 .

Considerações finais
Frente ao exposto sublinhe-se que, embora a economia rio-grandense
tenha permanecido como fornecedora de charque para o mercado in-
terno e de couros para o mercado externo, com a abertura dos portos e

34
RHEINGANTZ, Carlos. Povoamento do Rio Grande de São Pedro. A contribuição da
Colônia do Sacramento. In: Anais do Simpósio comemorativo do bicentenário da restau-
ração do Rio Grande. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto
de Geografia e História Militar do Brasil, 1979, v. 2, p. 11-524.
35
Requerimento da Corporação dos Comerciantes e Fazendeiros da Capitania do Rio
Grande de São Pedro à Junta da Real Fazenda. 1798 (Anexo ao Ofício do Governador do
Rio Grande de São Pedro, tenente-general Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara.
Porto Alegre, 24/11/1800). AHU_ACL_CU_O19, Cx. 5, D. 373 (Projeto Resgate); Alma-
nack da Vila de Porto Alegre... In: FREITAS, D. O Capitalismo pastoril, op. cit., p. 94-8.
Falecido no ano de 1858, na Vila do Rio Grande, teve o seu inventário aberto quatro
anos mais tarde. Sua fortuna era composta por objetos de ouro e prata, casas de mo-
rada, duas chácaras, 35 escravos e dívidas ativas no total de 12:666$668 réis. Miguel
da Cunha Pereira, inventário e testamento anexo, APERS, 1862, 1º Cartório Órfãos e
Provedoria de Rio Grande, mç. 36, nº 760.
36
AHRS. AM/M, registro 327, 436, 498, 510, 859, 982, 1006 e 1065.
37
Sobre a Sociedade Promotora da Indústria Rio-grandense e seus sócios, ver KLAFKE,
Álvaro Antônio. O Império na província: construção do Estado nacional nas páginas de
O propagador da Indústria Rio-grandense – 1833-1834. Porto Alegre: PPG-
História/UFRGS, 2006 [dissertação de mestrado].

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011


O movimento da barra do porto de Rio Grande 13

o processo de independência, ampliaram-se seus parceiros comerciais.


Além do comércio realizado com a intermediação do Rio de Janeiro,
passaram a ser realizados negócios diretamente com diferentes portos
na Europa e nos Estados Unidos. Quanto aos seus agentes, observou-se
que os comerciantes luso-brasileiros começaram a enfrentar a concor-
rência de estrangeiros estabelecidos na província rio-grandense, prin-
cipalmente nas transações envolvendo mercadorias destinadas ao
mercado externo.

IICT | bHL | blogue de História Lusófona |Ano VI | Janeiro 2011

Você também pode gostar