Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Gabriel Santos Berute
Introdução
Nas primeiras décadas do século XIX, a Vila de Rio Grande, no extremo-
sul da América portuguesa, desfrutava de uma situação de prosperida-
de econômica, em parte atribuída à situação de conflito enfrentada pe-
los seus principais concorrentes na região, Montevidéu e Buenos Aires.
O comércio de couros e de charque, antes sob o controle dos vizinhos
platinos, foi deslocado para Rio Grande.
A condição de sede da Alfândega e a presença de um grupo
mercantil que investia na melhoria da sua infra-estrutura também con-
2
tribuíam para a prosperidade então observada . Para Maria Bertulini
Queiroz, a vila consolidava sua posição de centro comercial e sua im-
portância para a economia rio-grandense. A antiga função militar cedia
3
espaço para as atividades mercantis .
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS – Brasil. Bolsista CA-
PES. E-mail: gabrielberute@gmail.com
2
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Fede-
ral/Conselho Editorial, 2002 [1820-21], p. 95-6, p. 67-73; 87-9; 94-101; 106-8; LUC-
COCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo:
Livraria Martins, 1942 [1809], p. 116-17; 122; ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Pra-
ta e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2006 [1833-34],
p. 257.
3
QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio
Grande: FURG, 1987, p. 156-61.
1
2 Gabriel Berute
4
ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL (AHRS). Autoridades Militares, maços
14, 16, 18, 22, 27, 46, 51; Marinha – Praticagem da Barra, maços 22, 23, 24; 27 e 28;
Diversos, maço 72. Doravante AHRS. AM/M.
5
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e
comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 183-223.
6
AHRS. AM/M.
7
Segundo Queiroz, parte importante das transações comerciais do Rio Grande de São
Pedro voltava-se aos seus vizinhos platinos através do contrabando, que mesmo assim
resultava bastante rendosa para todos os envolvidos. QUEIROZ, M. A Vila do Rio Gran-
de, op. cit., p. 149-51.
Aires; Nova York, Boston, Filadélfia, Salem; Porto, Lisboa, Cádiz, Gibral-
8
tar, Marselha e Hamburgo .
A consulta à documentação emitida a partir do consulado dos Es-
tados Unidos no Rio Grande do Sul informa que, apesar dos problemas
enfrentados durante a Guerra dos Farrapos (1835-45), diversas embar-
cações daquele país entraram no porto de Rio Grande entre 1829 e
1840, carregadas mercadorias como farinha, sal, especiarias, artigos
diversos e produtos domésticos. Estas partiam levando couros, chifres,
cabelos, sebo e erva-mate, não apenas para portos dos Estados Uni-
dos, pois faziam parte de uma rede mais ampla de transações mercan-
9
tis .
Segundo o comerciante Nicolau Dreys, na década de 1830, era
significativa a presença de embarcações pertencentes a estrangeiros
(franceses, ingleses, americanos, italianos e das cidades hanseáticas)
no porto de Rio Grande, embora grande parte delas fosse propriedade
10
de negociantes estabelecidos na própria província .
A confrontação com a bibliografia, portanto, permite afirmar que
desde meados da década de 1810, no mínimo, efetuavam-se transa-
ções comerciais diretamente com portos estrangeiros, sem a interme-
11
diação do Rio de Janeiro , e possivelmente estas tenham se iniciado
logo após a “Abertura dos Portos”, em 1808.
8
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-política sobre a administração
pública do Brasil. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1978 [1822], p.
134-70.
9
FRANCO, Sérgio da Costa (org.). Despachos dos Cônsules dos Estados Unidos no Rio
Grande do Sul: 1829/1841. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul; Instituto Histórico e Geográfico do Estado do Rio Grande do Sul, 1998,
p. 101-37.
10
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul.
Porto Alegre: IEL, 1961[1839], p. 143. Ver também ISABELLE, A. Viagem ao Rio da Pra-
ta, op. cit., p. 245-46.
11
Segundo Jucá de Sampaio e João Fragoso, ao longo do século XVIII, o Rio de Janeiro
havia se transformado no ponto de encontro de uma intricada rede de circuitos mer-
cantis do Atlântico Sul e também em um porto de redistribuição de mercadorias. SAM-
PAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjun-
turas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2003; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierar-
quia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1998.
12
AHRS. AM/M.
13
Sobre o comércio de escravos no Rio Grande do Sul, ver BERUTE, Gabriel Santos.
Dos escravos que partem para os Portos do Sul: características do tráfico negreiro do
Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790- c.1825. Porto Alegre: PPG-História/UFRGS,
2006 [dissertação de mestrado].
14
O sal era fundamental para o preparo do charque, um dos mais importantes produ-
tos exportados pelo Rio Grande de São Pedro14. O insumo representava 21% dos car-
regamentos com cargas informadas nos anos de 1841 e 1842 (103 carregamentos no
total). AHRS. AM/M. Para algumas estatísticas do volume de sal importado pela provín-
cia entre 1816 e 1854, ver CHAVES, A.. Memórias ecônomo-política, op. cit., p. 170;
SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no
século XIX. Rio Grande: FURG, 2006 [monografia de bacharelado], p. 27-33.
15
OSÓRIO, H. O império português no sul da América, op. cit., p. 202-7.
16
FARIA, Sheila de Castro. Comerciantes. In: VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos
Pereira das (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino, 1808-1821. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2008, p. 88-9.
para os produtos ingleses devido aos preços mais atrativos e por serem
17
mais adequados ao gosto dos setores mais abastados da região .
Os agentes
Quanto aos responsáveis pelas transações realizadas através do porto
de Rio Grande, reuni sob a designação agente, os consignatários de
cargas e os donos de embarcações. Ao contrário da seção anterior, uti-
lizei todos os dados disponíveis, uma vez que não existem trabalhos
semelhantes referentes à província rio-grandense que permitam esta-
belecer um exercício comparativo.
Observando o conjunto da movimentação portuária a partir dos
registros de 414 agentes diferentes responsáveis por 478 carregamen-
18
tos de importação e 405 de exportação , percebi que a maioria deles
realizou apenas um ou dois carregamentos: em cifras aproximadas es-
te grupo reunia 87% dos agentes e 62% dos registros. O grupo que rea-
lizou 5 ou mais transações representava entre 4 e 5% dos agentes e
acumulava parcela entre 16 e 24% dos carregamentos. Esta caracterís-
tica não difere da definição segundo a qual os diferentes setores do
comércio colonial caracterizavam-se pela presença concomitante de
um grande grupo de pequenos comerciantes eventuais, mas indispen-
sáveis para o bom funcionamento da atividade, e de um número redu-
19
zido de negociantes que dominavam a maioria dos negócios . A seguir
17
LUCCOCK, J. Notas sobre o Rio de Janeiro, op. cit., p. 122.
18
Não foram considerados os registros nos quais não constam os nomes dos consigna-
tários e/ou dos proprietários das embarcações: 33% (entradas) e 26% (saídas).
19
FRAGOSO, J. Homens de grossa aventura, op. cit, p. 187-233; FLORENTINO, Manolo.
Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 150-54.
Observei a mesma característica ao analisar o tráfico de escravos da capitania rio-
grandense. BERUTE, G. Dos escravos que partem para os Portos do Sul, op. cit., p. 102-
111; 125-136. No que diz respeito ao o comércio terrestre em Minas Gerais no século
XVIII, tanto Cláudia Chaves quanto Junia Furtado também observaram a presença im-
portante de “mercadores eventuais” (Chaves) ou “comerciantes ocasionais” (Furtado).
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Melhoramentos no Brazil: integração e mercado na
América Portuguesa (1780-1822). Niterói: PPGH-UFF, 2001, p. 113-161; FURTADO, Júnia
22
Sobre os negócios de Adolfo Hugentobler e da firma Hugentobler & Douley, ver tam-
bém TORRES, Daniel de Quadros. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes
mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Rio Grande: FURG, 2006
[monografia de bacharelado], p. 41-3.
23
Antonio de Siqueira, Paiva & Vianna e Lobo & Barbosa constam entre os maiores
importadores do insumo nos carregamentos computados por Josiane da Silveira refe-
rentes aos anos de 1850 e 1854. O primeiro aparece com 2 carregamentos (1850), o
segundo com 11 em 1850 e mais 3 em 1854. Já Lobo & Barbosa consta com 4 e 7 re-
gistros de importação do insumo, nos respectivos anos. A autora também identifica a
presença de Hugentobler & Companhia como responsável por 6 carregamentos no ano
de 1850 e de vinte e duas, em 1854. SILVEIRA, J. Rio Grande: portas abertas, op. cit., p.
39-40.
24
Josiane da Silveira e Daniel Torres, em suas respectivas investigações, consideraram
que havia uma clara divisão entre os negociantes estrangeiros e luso-brasileiros: estes
dominavam os produtos voltados para o mercado interno (charque) enquanto aqueles
29
ANRJ. REAL JUNTA DO COMÉRCIO, AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAÇÃO. Matrícula
dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1
(1809-1826); v. 2 (1827-1843). Doravante ANRJ. Cód. 170, v., fl.
30
Almanack da Vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da Capitania do Rio
Grande do Sul, de Manoel Antônio de Magalhães, 1808. In: FREITAS. Décio. O Capita-
lismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
1980, p. 94.
31
ANRJ, Cód. 170, v. 1, fl. 86.
32
AHRS. AM/M, registro 167, 196 e 205. José da Costa Santos era proprietário da Es-
tância São Lourenço onde possuía uma “charqueada de telha com seus pertences de
currais, varais e mais oficinas”. José da Costa Santos, inventário, APERS, 1827, 1º Car-
tório Órfãos e Provedoria de Pelotas, mç. 9, nº 113. Ver também BERUTE, G. Dos escra-
vos que partem para os Portos do Sul, op. cit., p. 104-108.
33
AHRS. AM/M, registro 161, 164 e 214. Já havia identificado a presenta de Miguel da
Cunha Pereira no tráfico negreiro entre 1813-19. BERUTE, G. Dos escravos que par-
tem para os Portos do Sul, op. cit., p. 113.
Considerações finais
Frente ao exposto sublinhe-se que, embora a economia rio-grandense
tenha permanecido como fornecedora de charque para o mercado in-
terno e de couros para o mercado externo, com a abertura dos portos e
34
RHEINGANTZ, Carlos. Povoamento do Rio Grande de São Pedro. A contribuição da
Colônia do Sacramento. In: Anais do Simpósio comemorativo do bicentenário da restau-
ração do Rio Grande. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto
de Geografia e História Militar do Brasil, 1979, v. 2, p. 11-524.
35
Requerimento da Corporação dos Comerciantes e Fazendeiros da Capitania do Rio
Grande de São Pedro à Junta da Real Fazenda. 1798 (Anexo ao Ofício do Governador do
Rio Grande de São Pedro, tenente-general Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara.
Porto Alegre, 24/11/1800). AHU_ACL_CU_O19, Cx. 5, D. 373 (Projeto Resgate); Alma-
nack da Vila de Porto Alegre... In: FREITAS, D. O Capitalismo pastoril, op. cit., p. 94-8.
Falecido no ano de 1858, na Vila do Rio Grande, teve o seu inventário aberto quatro
anos mais tarde. Sua fortuna era composta por objetos de ouro e prata, casas de mo-
rada, duas chácaras, 35 escravos e dívidas ativas no total de 12:666$668 réis. Miguel
da Cunha Pereira, inventário e testamento anexo, APERS, 1862, 1º Cartório Órfãos e
Provedoria de Rio Grande, mç. 36, nº 760.
36
AHRS. AM/M, registro 327, 436, 498, 510, 859, 982, 1006 e 1065.
37
Sobre a Sociedade Promotora da Indústria Rio-grandense e seus sócios, ver KLAFKE,
Álvaro Antônio. O Império na província: construção do Estado nacional nas páginas de
O propagador da Indústria Rio-grandense – 1833-1834. Porto Alegre: PPG-
História/UFRGS, 2006 [dissertação de mestrado].