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O Rio de Janeiro e Atlântico1

Luiz Felipe de Alencastro

O livro « Ensaios de história das ciências” reune artigos de pesquisadores de vários


quadrantes e de diversas disciplinas para analisar as mudanças ocorridas entre a época
pombalina e o reinado joanino na perspectiva da mudança da Corte e da Independência. Na
sua maioria consagradas à história das ciências, os artigos são apresentados no texto
introdutório de Heloisa Gesteira e Lorelai Kury organizadoras da coletânea. Por minha parte,
limito-me a alinhar algumas considerações sobre a geopolítica portuguesa e brasileira do
período, tiradas dos debates transcorridos no seminário « As ciências no Brasil no período
joanino » que deu origem a este livro e de uma comunicação que apresentei numa de suas
sessões.2
Como demonstraram os artigos aqui reunidos, as transformações do período estudado,
estão centrado em três etapas distintas. A primeira etapa desenrola-se en torno do Tratado de
Madrí (1750), da expulsão dos jesuítas (1759) e da transferência da capital do vice-reino para
o Rio de Janeiro (1763). A segunda refere-se à mudança da Corte para o Rio de Janeiro,
enquanto a terceira etapa concerne a Independência e a afirmação da unidade nacional
brasileira.
Nos meados do século XVII, confrontado às perdas territoriais e à concorrência
européia no Oriente, o império português se recentrava no Atlântico negreiro. Um século mais
tarde, a irridiação da economia do ouro e o Tratado de Madrí - que triplicou as dimensões do
território da América portuguesa -, desenvolvem a rede de comércio articulada em torno do
polígono mineiro (incluindo Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e oeste da Bahia) que formará
o esqueleto do território nacional. Até então virada para o litoral, a América portuguesa se
continentaliza. Na sequência da expulsão dos Jesuítas, a administração pombalina transforma
boa parte dos aldeamentos indígenas em unidades de ocupação do território colonial. Nos dois
extremos da América portuguesa, a redefinição da exploração da Amazônia e a integração do

1
. Prefácio ao livro KURY, Lorelai; GESTEIRA, Heloisa (Orgs.). Ensaios de história das ciências no Brasil: das
Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

2
. Um resumo da comunicação foi publicado no jornal Folha de São Paulo de 14/12/2008, sob o título “A
terceira margem do Rio”. Para uma abordagem mais extensa de onde foram tiradas as referências e as citações
aqui mencionadas, cf., “Le Versant brésilien de l’Atlantique Sud 1550-1850 », Annales, 61 (2), 2006, pp.
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«Continente do Rio Grande de São Pedro», ilustram o impacto da divisão interregional do


trabalho gerada pela economia mineira.
Ponto extremo da ocupação portuguesa no Oeste, a capitania do Mato Grosso
comunicava-se com o restante do território por três vias: o caminho terrestre ligando Vila
Bela-Cuiabá-Goiás-Minas-Rio de Janeiro, a via fluvial sul de Vila Bela a São Paulo, pelos
rios Paraguai, Taquari, Pardo, Paraná e Tietê e, enfim, a via fluvial norte de Cuiabá a Belém
do Pará, pelos rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas. Nesta última rota, as atividades
da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, (CGGPM 1755-1778), criada para reduzir a
autarcia extrativista e promover a economia agro-exportadora no litoral amazônico,
notadamente com a introdução do tráfico negreiro na região, foram ainda acompanhadas por
outras medidas incitatórias. Para estimular as ligações entre Cuiabá e Belém, os comerciantes
belenenses receberam o monopólio da venda de sal para a capitania do Mato Grosso. Na
mesma ordem de idéias, foi concedida a isenção de tributos sobre os escravos africanos
importados no Mato Grosso através da rota fluvial amazônica. Para tanto, a CGGPM recebeu
o governo direto do enclave negreiro da Guiné-Bissau. O escopo transatlântico da jurisdição
da CGGPM ilustra o papel do tráfico negreiro na organização do Atlântico português e luso-
brasileiro.
Na outra ponta da América portuguesa, o Morgado de Mateus, governador de São
Paulo com jurisdição sobre todo o Sul ( 1765-1775), completa o processo de
continentalização da colônia.3 Procurava-se povoar a fronteira platina e incentivar o comércio
tropeiro entre o Sul, Sorocaba e as outras feiras de gado destinado à Minas Gerais. Desta
forma, foi estabelecido o monopólio régio da criação de burros aos fazendeiros do Rio
Grande. Vale a pena lembrar que o burro é um animal híbrido (produto do cruzamento do
jumento com a égua) e estéril que, em razão do controle outorgado aos criadores do Sul, tinha
de ser adquirido dos tropeiros nas feiras de gado paulistas e mineiras. Com a medida, o
Morgado de Mateus objetivava fixar o povoamento português na fronteira luso-espanhola do
Sul (a), estimular o comércio interregional (b) e aumentar a receita tributária coletada nos
postos fiscais régios (“registros”) estabelecidos ao longo dos caminhos trilhados pelos
tropeiros (c).
A nova geopolítica ajuda a entender a transferência, em 1763, da capital do vice-reino
da Bahia para o Rio de Janeiro. Mais próxima das zonas mineiras, a nova capital também

3
. A passagem dos enclaves e feitorias européias à condição de colônia, com uma economia e uma
administração continentalizada, nem sempre ocorre (como foi o caso das feitorias lusitanas na Ásia) e nem
mesmo é indispensável à expansão mercantil (como demonstrou Karl Polanyi).
3

facilitava a ajuda aos enclaves portugueses no Sul. Patenteada em 1763 pela ocupação do
forte português do Rio Grande (situado no canal que liga a Lagoa dos Patos, e de todo o
interior riograndense, ao Atlântico) pelo governador de Buenos Aires, Pedro Cevallos, que se
ilustraria na invasão da ilha de Santa Catarina (1777), a ameaça espanhola pesava sobre a
parte meridional da América Portuguesa. Em contraponto à estratégia de Lisboa, Madrí
tentava contornar a hegemonia luso-brasileira no Atlântico Sul, com a criação do vice-reinado
do Prata (1776). O novo vice-reino também incluía em sua jurisdição as ilhas africanas de
Fernando Po e Anobón, assim como o comércio do litoral dos Camarões e do Gabão,
recebidos de Portugal no Tratado de Santo Ildefonso, em troca de territórios espanhóis no Sul
do Brasil
Institucionalizando a ocupação dos novos territórios, a Coroa instala uma rede de
registros ao longo das vias de comunicação e de comércio. De Viamão, nos pampas, à
Alcobaça, nas margens paraenses do Tocantins, de Cuiabá, no extremo oeste, até Paraty, na
beira-mar, cerca de 140 registros constelavam o circuito continental de trocas formado em
torno das minas de ouro e de diamante, demarcando o futuro território nacional.4
Segunda etapa das transformações coloniais dos séculos XVIII e XIX, a transferência
da Corte para o Rio de Janeiro aparece, a justo título, como um momento chave da história
brasileira. Cabe, porém, levar em conta todos os condicionantes extraterritoriais, sul-
atlânticos, que moldavam a América portuguesa. Assim, a vinda da Corte – comboiada pelos
canhões da Royal Navy - ocorre no quadro mais geral da ofensiva inglesa nesta parte do
oceano, ilustrada pelos ataques de 1806 e 1807 a Buenos Aires, cujo comércio também seria
aberto à Inglaterra. Da mesma forma, a escolha do Rio de Janeiro como nova sede do reino
merece ser examinada no contexto amplo do Atlântico lusitano.
Às vezes apresentada como uma decisão longamente refletida – e excogitada em
Lisboa desde 1580 - que confirmaria a predestinação da glória nacional brasileira, a mudança
da Corte também obedecia aos objetivos da hegemonia britânica nos mares, tornada evidente
desde a destruição da frota francesa em Trafalgar, em 1805. Assim, respondendo à
chancelaria britânica, que insistia, ainda em 1838, na generosidade da proteção naval inglesa
na viagem da família real para o Brasil, Sá da Bandeira, primeiro-ministro português,
argumentou que a Corte podia muito bem ter se estabelecido na ilha da Madeira, mais
próxima de Lisboa e protegida de um eventual ataque naval francês. Para Sá da Bandeira, a

4
. A lista destes registros está disponível no site
http://www.receita.fazenda.gov.br/Memoria/administracao/reparticoes/colonia/registros.asp acessado em abril de
2011.
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vinda da corte para o Rio de Janeiro fora imposta pelos ingleses, sobretudo interessados em
ter livre acesso aos mercados da América portuguesa. Nessa perspectiva, o fator decisivo do
translado da corte é a pressão inglesa para forçar a abertura do comércio do Brasil e não a
eventual visão edênica existe em Lisboa sobre o Rio de Janeiro e o destino nacional brasileiro.
A interpretação excessivamente territorial da história do Brasil também subestima o
impacto de outro evento importante ocorrido em 1808. Paralelamente à chegada da Corte e à
abertura dos portos, os negreiros brasileiros engolfaram-se nos portos africanos recém
abandonados pelos traficantes da Inglaterra e dos Estados Unidos. De fato, concretizou-se em
1808 a proibição do tráfico de africanos ordenada aos comerciantes britânicos e americanos
por seus respectivos governos. Atenta à mudança, a Mesa de Inspeção -órgão regulador do
comércio do Rio de Janeiro - anunciou, em agosto de 1808, as grandes oportunidades que se
abriam ao Brasil, "pela falta de concorrentes estrangeiros na costa [da África], sendo a todos
[outros negociantes] vedado este comércio [de escravos]". Na seqüência, as trocas diretas com
a Inglaterra estimulam as exportações brasileiras de manufaturados europeus para a Europa,
avolumando a importação de africanos. Campeão absoluto do comércio negreiro, o Brasil
captou 1,5 milhão de africanos entre 1808 e 1850. Desses, 760 mil foram ilegalmente
introduzidos no país, sobretudo entre 1831 e 1850.

Nesse contexto, a transferência da corte ofereceu duas condições importantes para a


sobrevivência do sistema negreiro. Um governo português -e depois brasileiro- obstinado na
continuidade do escravismo e um aparato diplomático competente, apto a neutralizar as
ofensivas diplomática e naval inglesa, protelando o tráfico de africanos até 1850. A visão
irênica da chegada da corte propala a ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança
que reinava nas duas margens do Atlântico.

Mas houve também uma terceira margem no rio-oceano, formando a cadeia de trocas
que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira,
mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.

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