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A MÁQUINA VELHA: Aí Deus pensou “A Terra vai ficar só assim, com o céu em cima e com nada

Livre adaptação da obra homônima de Adriana Falcão por baixo não, é?”
Por: Jéssica Ranny, com a colaboração de Émerson Gerin, Laura Zanetti e Loraine LOUCO 3: Foi aí que Deus inventou o inferno.
Ferreira LOUCO 2: No começo a Terra só servia pra isso.
LOUCO 1: Pra ficar por baixo do céu e em cima do inferno.
CENA 1 VELHA: Foi então que Deus disse: “Oxente! Se tem a Terra, eu tenho que botar gente
para morar lá.”
(Os personagens da cidade apresentam-se posicionados conforme estarão na cena final LOUCO 1: Foi assim que ele criou a vida.
da peça, exceto o velho que se encontra sozinho em um canto. Antônio e Karina LOUCO 2: E no que criou a vida, criou junto a morte, pois tudo que é vivo, morre.
jovens encontram-se no meio do palco. Na outra extremidade, a velha em um foco.) VELHA: “Danou-se!”, Deus pensou na hora: “se todo ser vivo tem nariz, boca, orelha
e olho, tem que haver alguma serventia pra isso tudo.”
TODOS: Lá de onde Antônio vem, é longe que só a gota. LOUCO 3: Os olhos e o nariz já tinham as deles!
LOUCO 4: Os olhos são para olhar pro céu
(Pessoas da cidade saem. Um grupo de personagens dando sinais de insanidade LOUCO 5: E o nariz para a pessoa respirar enquanto viva
aglomera-se num ponto focal do palco. A velha senhora apresenta-se no meio, em uma LOUCO 6: E para parar de respirar pra morrer em paz.
cadeira, como quem conta uma história aos demais, que a interrompem adicionando VELHA: Mas carecia arranjar uma utilidade pra boca e pras orelhas.
elementos à narrativa.) LOUCO 1: E não foi por isso que Deus fez o verbo?
TODOS OS DEMAIS: Verbo?
VELHA: Lá de onde Antônio vem é longe que só a gota! VELHA: Verbo era como Deus chamava as palavras. E Deus achou de inventar
LOUCO 1: Longe que só a gota pra trás! palavras!
LOUCO 2: O que é muito mais longe que só a gota, do que longe que só a gota pros LOUCO 2: Montanha.
lados. LOUCO 3: Rio, Riacho.
LOUCO 3: Pois vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura besta, que LOUCO 4: Elefante, jumento.
qualquer bicho alado derrota. LOUCO 5: Capim, Abacate.
LOUCO 4: Já vir de longe pra trás é vir de longe no tempo. LOUCO 6: Sapoti, Laranja-cravo.
LOUCO 5: Lonjura que pra ficar desimpossível, demora. VELHA: Mas como para cada palavra tinha que ter uma coisa, Deus teve que inventar
LOUCO 6: Lá no tempo de Antônio, o mundo já tinha virado era uma doidice. um monte de coisa, pra ficar uma coisa para cada palavra.
VELHA: Mas para se entender a história da doidice desse tempo, há de se começar LOUCO 6: Sapoti, Laranja-cravo.
pelo começo. Bilhões de anos atrás, quando o mundo foi criado. Tudo era uma seca só. LOUCO 5: Capim, Abacate.
LOUCO 2: Não tinha terra. LOUCO 4: Elefante, jumento.
LOUCO 3: Não tinha bicho. LOUCO 3: Rio, Riacho.
LOUCO 4: Não tinha gente. LOUCO 2: Montanha.
LOUCO 5: Não tinha nada. VELHA: E os homens acharam pouco e se botaram a inventar mais coisa ainda.
LOUCOS 1 E 6: Era só o Breu. LOUCO 1: Iiiih, prego, parafuso…
VELHA: Aí, Deus foi ficando meio enjoado e decidiu criar o mundo. Ele pensou LOUCO 2: Mungunzá, picolé…
assim: “vê que besteira a minha, por que é que vai ficar tudo sem nada, se eu posso LOUCO 3: Automóvel, motocicleta…
inventar o que eu quiser?”. E saiu inventando. LOUCO 4: Máquina de escrever…
LOUCO 6: Primeiro, Deus inventou o tempo que era pra ter tempo de inventar o resto. LOUCO 5: Computador…
LOUCO 5: Em seguida, Deus inventou o céu que era pra ter onde morar. LOUCO 6: Internet!
LOUCO 4: E como o céu tem que ficar em cima de alguma coisa, inventou a Terra VELHA: Desde o início do mundo até o tempo de Antônio, muita palavra se inventou,
que era pra ficar por debaixo. muita coisa aconteceu, muito tempo teve que passar até chegar o dia do tempo dele.
Mas o tempo de Antônio, assim conhecido desse jeito, o tempo de Antônio, como J6: Mas essa Dona Nazaré é uma mulher guerreira viu!
ficou conhecido esse tempo, o tempo de Antônio começou no dia em que Antônio veio AVÓ: Oito filhos, nesse fim de mundo!
ao mundo. C1: Uma maluca, isso sim!
C2: Oxi! Maluca porquê?
EM OFF, VOZES DIZEM JUNTAS: Nasceu?! C3: Foi tanto menino de uma vez, que o Seu Antônio, o pai, acabou foi dando no pé
assim que soube da última gravidez!
(No Blackout, toca-se no som ou canta-se a música do nascer do dia. Sugestão: Canto C4: Oh coitada…
do povo de um lugar - Caetano Veloso) C5: Coitada mesmo...
C6: Mas menino, que coitada que nada… Nesse fim de mundo, onde não tem nada o
CENA 2 que fazer, ir embora é coisa que todo homem quer…
C7: E as mulheres também!
(Pessoas da cidade comentam o acontecimento. Podem ser lavadeiras estendendo
roupa em um varal, cidadãos que passam e comentam.) (A Velha entra e vai, lentamente, se dirigindo para o foco)

C1: Ixe gente, Dona Nazaré entrou em trabalho de parto! C8: O problema é saber se as mulheres podem…
C2: E é?!? J1: Ué, poder elas podem, o difícil mesmo é querer!
C3: E já chamaram a parteira? J2: O difícil mesmo é ter coragem!
C4:: Acho que nem precisa! Dona Nazaré já sabe muito bem o que fazer! J3: O difícil mesmo é ter dinheiro!
C5: Já é o oitavo menino que Dona Nazaré põe no mundo! Ela já tem toda a prática! J4: O difícil mesmo é ter desprendimento!
C6: Eita lugarzinho sem futuro, de gente enxerida e fofoqueira! AVÓ: O difícil mesmo é ser mulher!
C7: Nasceu Antônio! TODAS: O difícil mesmo é tudo junto!
C8: Antônio, nasceu! CÍCERO: Eita desgrama de cidade! Cidade desgramada! Quem sair por último, que
J1: Antônio? apague a luz!
J2: Antônio de Dona Nazaré!
J3: Um meninão desse tamanho! CENA 3
J4: Ué, mas Antônio não nasceu, não foi semana passada?
AVÓ: Foi! VELHA: É que esse não era tempo de mulher, esse ainda era o tempo de Antônio. Mas
C1: Foi não, menino! Semana passada, nasceu foi o Antônio da Dona Alzira, da rua de o tempo de Antônio, chamado assim desse jeito, o tempo de Antônio, como ficou
cima! conhecido esse tempo, o tempo de Antônio começou em Nordestina.
C2: Mas aquele não era o Antônio de Dona Cotó?
C3: Não, aquele era o Antonio de Dona Clotilde! O de Dona Cotó chama é Marcos! (Aqui deve acontecer uma grande movimentação onde as pessoas entram e saem,
C4: Antônio Marcos! fazem seus afazeres, e vão falando seus textos ao mesmo tempo. )
C5: Ah bom! Agora eu acho que entendi!
C6: Pois eu não entendi foi é nada! C1: Nordestina era uma cidadezinha desse tamaninho assim da qual se dizia:
C7: Se preocupe não! Todos os oito filhos de Dona Nazaré se chamam Antônio! C2: Eita lugarzinho sem futuro, de gente enxerida e fofoqueira!
C8: Antônio Carlos, Antônio Aleixo, Luiz Antônio, José Antônio C3: Antônio ouviu dizer isso desde pequeno e deu por certo o fato.
J1: Antônio Alfredo, Antônio Roberto, Antônio Anderson e agora o Antônio! C4: Pra se chegar em Nordestina tinha que andar bem muito.
J2: Antônio de quê? C5: É claro que ninguém fazia isso!!!
J3: Antônio de Dona Nazaré! C6: O que é que a pessoa ia fazer num lugar que não tinha nada pra fazer?
J4: E isso não vai dar confusão não?!?
J5: Calma que daqui a pouco tudo se resolve!
C7: No entanto quem fazia o caminho inverso contava pros outros o quanto tinha (Os viajantes fazem suas reflexões, depois vão saindo rumo ao mundo um a um. O pai
andado. E então se deduzia que se o caminho de saída era um, o caminho de chegada de Karina aparece e observa tudo.)
só podia ser o mesmo.
C8: Entre Nordestina e a cidade que ficava antes dela tinha uma placa com os dizeres Viajante 1: Tu vê ali, onde começa a não se ver mais! Bem onde divide! Não aparece
“Bem-vindo a Nordestina”. uma linha? É linha do horizonte o nome dela!
Viajante 2: Pois na hora que eu cruzar essa bendita que se diz “linha”, faço questão de
(Os viajantes entram em cena e vão se posicionando à espera do carro que os levará conferir mesmo se tem uma linha no chão, entre Nordestina e a cidade que tem depois.
embora. Antônio também entra e observa tudo isso.) Viajante 3: O que eu quero conferir mesmo é como é pra lá da risca, lá nesse tal de
mundo, pra ver se ele merece tanta fama.
J1: Há quem diga que até o tempo de Antônio quase ninguém tomou conhecimento da Viajante 4: E tu, depois que eu for, o próximo que vai, vai ser tu!?
existência dessa placa, pois o povo que morava da placa pra dentro imaginava uma Viajante 5: Oxi! Tu tá ficando maluco? Eu vou é agora mesmo, no mesmo carro que tu
risca no chão que separava Nordestina do resto do mundo. vai!
J2: Já o povo que morava da placa pra fora não imaginava nada, jamais pensou no Viajante 6: Pois então nós vamos é tudo junto. Como se diz por aí…
assunto e não tinha a menor idéia de que dali pra frente ainda tinha mais um pouco. TODOS: Eita desgrama de cidade! Cidade desgramada! Quem sair por último, que
J3: O povo de Nordestina se dividia entre os que estavam indo embora de lá e os que apague a luz!
estavam preocupados com isso! Viajante 6: Quem nunca vai, é aquele ali ó!
J4: E tinha Antônio, que não estava indo embora, mas também não estava nem aí. Viajante 5: Quem? Antônio?
Viajante 4: Sim! Antônio da Dona Nazaré!
(Aqui deve ocorrer uma demonstração do apreço de Antônio pela cidade. Ele pode Viajante 3 (fala pra Antônio): Tu não vai é nunca que eu sei!
recitar um poema, cantar uma música ou encenar enquanto a música toca no som. Viajante 2 (fala pra Antônio): Tu vai ser o próximo que vai a vida inteira e no final , o
Sugestões: “Interior” - 5 a seco ou “Deus e eu no Sertão” - Victor e Léo. Após, os que tu vai ser mesmo, é aquele que nunca foi!
viajantes retomam os sonhos de sair dali.) Viajante 1 (fala pra Antônio): Não sei é o que tu vê nisso daqui!

Por ser daqui, conheço as ruas e calçadas (Antônio sai aborrecido, passando pelo Velho que já estava entrando em cena.)
Conheço o interior das casas
E o interior de quem vive dentro das casas VELHO: Ah, se palavra gastasse duvido que tivesse sobrado um adeus em Nordestina,
E o interior do interior haja vista a frequência com que se usava naquele tempo essa palavra. Era muita gente
Conheço histórias que há milênios são contadas indo embora.
Outras que foram apagadas Viajante 1: Adeus Mãe! Quando chegar, eu ligo!
Conheço histórias que ainda estão encasuladas Viajante 2: Adeus Dorinha, semana que vem te mando uma carta!
Só esperando acontecer Viajante 3: Adeus, painho! Depois eu volto pra lhe buscar!
Recolho as impressões Viajante 4: Adeus minha terrinha! Até nunca mais!
Curo desilusões Viajante 5: Adeus… Adeus… Oxe que diabos, minha família já foi é toda embora, só
E faço algum refrão das coisas que vivi sobrou eu aqui morrendo aos pouquinhos! Adeus morte! Vou ali viver um tiquinho!
Concentro as emoções Viajante 6: Adeus fim de mundo! Adeus desgrama de cidade, Cidade desgramada,
Miro nos corações quem sair por último, que apague a luz!
E canto aquilo que eu vou ser por ser daqui
CENA 5
CENA 4
(Aparece Karina, primeiro na janela e depois em cena.)
VELHO: Vivia em Nordestina, mesmo ali na rua de baixo, uma moça, que apertava os (Aqui ocorre uma demonstração do desejo de Karina por meio de música cantada ou
olhos pela metade quando olhava pela janela, por quem Antônio era completamente encenação acompanhada de música no som. Karina pode estar acompanhada de
apaixonado. outras Jovens da cidade - J1 a J4. Sugestão de música: Lisbela - Versão adaptada.)
VELHA: Ninguém sabe dizer até hoje se o que endoidecia Antônio era o olhar pelo
meio de Karina ou o resto todo. Eu quero a sina de um artista de cinema
VELHO: Pra Karina, Antônio era só o rapaz que dava um pulo em sua casa quando Eu quero a cena onde eu possa brilhar
largava do trabalho. Um brilho intenso, um desejo, eu quero um beijo
ANTÔNIO: Cheguei cedo pro treino, Karina? Um beijo imenso, onde eu possa me afogar
PAI DE KARINA: Lá vai mais uma penca de desiludido! Eu quero ser o matador das cinco estrelas
KARINA: (ignorando Antônio) Pai… Eu quero ser o Bruce Lee do Maranhão
PAI DE KARINA: Eu tô pra ver um povo tão capacitado pra ser burro! A Patativa do Norte, eu quero a sorte
KARINA: Por que pai? Eu quero a sorte de um chofer de caminhão
PAI DE KARINA: Oxi, ir embora e deixar tudo pra trás, é no mínimo, uma falta de Pra me danar por essa estrada, mundo afora, ir embora
humanidade! Sem sair do meu lugar
KARINA: Não é não, pai! Pra me danar, por essa estrada, mudo afora, ir embora
PAI DE KARINA: É sim, Karina, acham que vão arrumar serviço, que vão virar gente, Sem sair do meu lugar
vão virar gente importante, mas na verdade mesmo, vão é ser ninguém nesse mundão Ser o primeiro, ser o rei, eu quero um sonho
de Deus. Moça donzela, mulher, dama, ilusão
KARINA: Mas pai, o povo vai embora daqui porque aqui não tem recurso. Na minha vida tudo vira brincadeira
PAI DE KARINA: Pois então que mandem recurso pra cá! A matina é verdadeira, domingo e televisão
KARINA: Pra que mandar recurso pra cá se o povo daqui tá é indo embora? Eu quero um beijo de cinema americano
PAI DE KARINA: Pro povo ficar! Fechar os olhos fugir do perigo
KARINA: Mas se aqui não tem recurso, pai… Matar bandido, prender ladrão
PAI DE KARINA: A mesma desculpa de sempre, de todo mundo! Até da tua mãe, que A minha vida vai virar novela
foi e nunca mais nem lembrou que tinha família… Esqueceu até que tinha filha… Essa Pra me danar por essa estrada, mundo afora, ir embora
cidade nunca vai andar pra frente se o povo fizer sempre questão de deixar ela pra E sair do meu lugar
trás… Pra me danar, por essa estrada, mudo afora, ir embora
(O pai de Karina sai) E sair do meu lugar
ANTÔNIO: Karina…
KARINA: Que é Antônio? ANTÔNIO: Não tem como tu querer coisa mais fácil não, Karina?
ANTÔNIO: Você quer começar o treino? KARINA: Receio que não, Antônio.
KARINA: Não é treino Antônio, é ensaio! Mas acho que é melhor deixar pra amanhã.
ANTÔNIO: Oxente, por que? (Antônio sai de cena.)
KARINA: Porque não tem clima, Antônio. Não é isso aqui que eu quero pra mim, não CENA 6
é esse lugar, não é essa vida.
ANTÔNIO: Oxe, pois me diga o que tu quer que eu te dou. (Karina pega um papel e uma caneta de dentro de uma pequena bolsa que trazia
KARINA: O que eu quero você não pode me dar, Antônio. consigo. É uma carta que planeja mandar para a sua mãe. No meio da leitura da
ANTÔNIO: E que coisa tão impossível é essa que eu não posso te dar? carta a avó de Karina entra.)
KARINA: Eu preciso aproveitar que hoje é dia que o povo vai embora pra ver se VELHA: O tempo em Nordestina andava espaçoso por não ter quem lhe
alguém leva essa carta pra mim. (Lê a própria carta) Mãe, meu peito tá que não interrompesse em momento importante.
aguenta mais de saudade. Só hoje, olhando pra esse lugar, pra esse fim de mundo, é VELHO: Especialmente, para Antônio, que passava o dia todinho esperando para ver
que eu entendo os motivos que lhe tiraram daqui. Ô minha mãe, se eu pudesse ir atrás logo o entardecer.
de tu, aí nesse tal de mundo, eu ia sem pensar. Mas eu sinto que não posso deixar o VELHA: Afinal, passasse o tempo do jeito que passasse, o que Antônio queria mesmo
pai, ele já sofreu demais, não merece mais sofrimento não, não merece ficar aqui era que chegasse logo o final do dia pra ele poder ir na casa de Karina.
sozinho. No entanto, já tá todo mundo indo embora e eu não sei se eu aguento ficar VELHO: Daí, de tanto se ocupar com a demora do tempo, acabou por ganhar
muito tempo por aqui ainda não. Eu tenho meus sonhos pra realizar aí no mundo. E eu intimidade com ele e então, ficaram amigos.
vou realizá-los, um dia eu vou! Estou contando os dias pra completar 18 e só VELHA: Antônio fazia companhia pro tempo e em troca, de vez em quando, o tempo
esperando uma resposta tua pra decidir que rumo tomar na minha vida. Saiba que te fazia umas surpresas pra Antônio. Era só ele pensar:
amo muito. Beijos, Karina. ANTÔNIO: Desisto! Hoje não acaba mais é nunca!
AVÓ DE KARINA: Mais uma carta pra sua mãe, fia? VELHO: Que nessa hora, o tempo engolia o resto da tarde num só bote, se rezava a
KARINA: Oxe, vó, tava me espiando daí é? A senhora deixe de ser enxerida! Ave-maria e Antônio ia pro treino.
AVÓ: E tu deixe de ser insolente, menina! Insolente e ingrata! É assim que tu trata a ANTÔNIO: Cheguei cedo pro treino, Karina?
mulher que te criou? KARINA: Não é treino, Antônio. É ensaio!
KARINA: Desculpe, vozinha. Não é ingratidão não, é tristeza, desesperança. VELHA: Ensaio é quando você fica se preparando e repetindo a mesma mentira
AVÓ: Mas tu tá desacreditada de sair dessa cidade ou de receber uma resposta de sua sentida pra poder um dia usar, mas que se não usar acaba servindo direitinho pra poder
mãe? ser feito o improviso sentido que é a mesma coisa, só que sem ensaio.
KARINA: Um pouco dos dois. O que é que tu acha? KARINA: Mas quem é você?
AVÓ: Eu não acho é nada, minha filha. Primeiro, eu nunca tive muito direito de achar ANTÔNIO: Eu sou quem você quiser que eu seja! Tudo aquilo que você deseja é só
coisa nenhuma. Na sua idade, eu já tinha um monte de menino pra cuidar sozinha. Na desejar que eu faço!
promessa de um dia dar uma vida melhor pra gente, seu avô foi pro mundo e eu fiquei KARINA: Então foi você, quem eu sempre esperei?
aqui cumprindo a sina de todas mulheres: a de dar conta de tudo e todo mundo, menos ANTÔNIO: Caso não me reconheça, me peça uma prova que eu te dou!
de si mesma. Como uma engrenagem numa máquina, que faz os ponteiros do tempo KARINA: Qualquer coisa?
girarem, mas que continua sempre parada no mesmo lugar. Quando chegou a vez de ANTÔNIO: Se eu tô falando que eu te dou!
sua mãe, eu não pensei duas vezes e disse “vá, vá ser feliz no mundo, minha filha, eu KARINA: Então eu vou pedir! Eu quero que você tire a escuridão da noite!
cuido da sua cria”. Achei que o desprendimento podia fazer dela mais feliz que eu. E ANTÔNIO: Mas como é que eu vou tirar só a escuridão e deixar a noite ser noite?
pode até ser que tenha feito, mas eu não tive nem o gostinho de saber se ela achou a tal KARINA: Se eu soubesse como era, eu nem pedia! Eu mesma ia lá e fazia!
felicidade que eu sonhei por nós duas. Não aprendi o caminho nem quando fiquei, ANTÔNIO: Então eu vou encher o céu de estrelas até que fique uma tão pertinho da
nem quando ela partiu. Então, minha menina, eu é que não vou me atrever a opinar na outra que ninguém possa enxergar mais escuridão nenhuma entre elas!
sua caminhada. Só o que eu posso fazer é rezar pra que o tempo te ajude a achar a
direção da sua jornada. (Aproximam-se e quando chegam perto de concretizar o beijo, Karina interrompe. em
parte por desconfiança em parte por desconforto em relação aos próprios
(Avó sai e Karina vai logo depois. Música do fim da tarde.) sentimentos.)

CENA 7 KARINA: Antônio! Tu ia me dar um beijo de verdade é? Você ainda não entendeu
como é que se dá um beijo de novela?
(Música do amanhecer. Algumas pessoas da cidade passam realizando seus afazeres ANTÔNIO: Sim! Entendi até demais! Um personagem que não sou eu, vai usar a
diários. Antônio encena o que está sendo narrado.) minha boca pra beijar um personagem que usa a sua boca, mas não é você. Daí eu
tenho que sentir o personagem aqui dentro, sentir o amor dele, ter vontade por ele, mas
na horinha mesmo, eu tenho que deixar de ser ele e voltar a ser eu pra poder me
lembrar que esse é um beijo de novela e que quem tá beijando não sou eu, é ele! Pra KARINA: ... Você não sabe nem representar uma cena e já quer até inventar os
falar bem muito a verdade, eu entendi, eu só não acho mesmo é justo, pois o único efeitos?
beneficiado nessa história é o tal do personagem. VELHO: A sorte de Antônio é que o tempo sempre foi muito generoso com ele.
KARINA: Beneficiado, Antônio? Beneficiado? Antônio, tu tá querendo se beneficiar
de mim é? CENA 8
ANTÔNIO: Não!
KARINA: É pra isso que tu vem ensaiar comigo todo dia? (Pessoas da cidade entram, alguém com uma televisão. Todos fazem a representação
ANTÔNIO: Não! de estar assistindo enquanto acontecem as narrações.)
KARINA: Pra se beneficiar de mim?
ANTÔNIO: Não! C1: Sair de Nordestina não era fácil!
KARINA: Antônio, tu não tem vergonha não é? C2: Pra uma mulher então…
ANTÔNIO: Não! Quer dizer, sim! Quer dizer, é o quê??? C3: Se sair de Nordestina não era fácil, pode ter certeza de que tirar Nordestina da
KARINA: Falta de mentalidade, coisa mais de interior! De gente que não pensa, não pessoa podia ser ainda mais difícil.
reflete, que não quer evoluir nem crescer. Não se importa em aprender! Ô Antônio, tu C4: As pessoas que ficavam e que ainda não tinham a perspectiva de quando ou como
não vai querer sair daqui de Nordestina nunca não é? iriam sair de Nordestina, buscavam algumas formas simples de “fugir” dali!
ANTÔNIO: Eu não, pra quê? C5: Uma dessas maneiras de fugir de lá, era ver TV!
KARINA: Porque aqui não tem é nada! Nordestina nem ao menos aparece no mapa! C6: E como fugiam de lá…
Não tem mar, mal tem gente, não tem nem Wi-fi! C7: E como viam televisão!
ANTÔNIO: Grande coisa… Mar… Nem sei o que é que esse povo tem com mar… C8: Televisão era um negócio onde ficavam passando umas historinhas pro povo ficar
Deve ser uma decepção só, esse tal de mar! Um mundão d’água e não se pode beber vendo.
nenhuma gota! AVÓ DE KARINA: As historinhas iam acontecendo aos pedaços e de vez em quando
KARINA: Você nunca nem viu o mar pra falar mal dele! Quer saber de uma coisa! Eu vinham, não um, mas vários anúncios pra vender coisas assim como bicicleta.
vou lá no mundo! Vou e vou virar gente, como se eu sempre tivesse vivido lá! J1: A finalidade era encontrar quem quisesse comprar o que era anunciado, pois com
ANTÔNIO: Vai nada Karina! Você é a cara desse lugar! Você poderia até ir! Mas sabe parte do dinheiro das vendas pagavam-se os tais anúncios e com parte do dinheiro dos
o que Nordestina fazia? Ia atrás de tu! Por mais que tu andasse, por mais que tu anúncios pagavam-se as feições das tais historinhas.
corresse, até se tu voasse, por mais que dissesse “Fica aí Nordestina! Me esquece!”, J2: Mas eles faziam as historinhas tão bem-feitas que quem olhasse assim pensava que
Nordestina ia atrás de tu, como quem diz “Karina, Karina, ô Karina, volte aqui, venha a finalidade eram as historinhas.
ser eu e me deixe ser você!” J3: Mas a verdade era mesmo que a finalidade era vender o mundo pro povo todo.
KARINA: Mas olha só pra você ver! Você não sabe nem representar uma cena e já J4: Então ocorria ai a outra forma mais comum pro povo poder “fugir” de Nordestina.
quer até inventar os efeitos? Era justamente quando acontecia, uma vez por mês, a tal da Feira dos Importados!
VELHO: Por conta de sua amizade com o tempo, Antônio fazia de Karina cinema pros PAI DE KARINA: Feira é quando um tanto de gente, doida pra vender qualquer coisa,
olhos dele! Com direito até à reprise! se organiza em um grupo pra poder encontrar outro grupo, composto por um tanto de
gente, que tá doida pra comprar qualquer coisa.
(A fala de Karina se repete mais duas vezes com os mesmos movimentos. O retorno no
tempo pode ser marcado com uma batida de bengala do velho.) CENA 9

KARINA: ... Você não sabe nem representar uma cena e já quer até inventar os (Entram feirantes anunciando seus produtos. As pessoas da cidade olham as
efeitos? mercadorias. J1, amiga de Karina, conversa com ela em um canto enquanto isso.)
VELHA: Tá certo que o tempo era amigo de Antônio, mas amizade assim abusada é FEIRANTE 6: Atenção, atenção! Olha só quem está chegando na cidade!
coisa que não se deve fazer! FEIRANTE 5: É a feira dos importados trazendo um monte de muamba, digo, de
produtos da maior qualidade.
FEIRANTE 4: Pra você que quer ser blogueirinha e fazer sucesso com os rapazes, tem
maquiagem e creme rejuvenescedor agradando a toda idade. FEIRANTE 1: Ei você, jovem bonita, atraente, que cuida da sua pele e que tem
FEIRANTE 3: Avon, Natura, Jequiti e mais uma cambada de cosméticos que vão vontade de ser artista. Sim, você mesmo, na próxima semana a Boate Bataclan estará
realçar a sua beleza natural (insinua tratar-se de um cidadão) ou esconder aquela cara selecionando moças para dançarem na Noite em uma de suas filiais na capital. A
feia que devia ser crime previsto no código penal! (insinua outro cidadão) Boate Bataclan tem anos de experiência no ramo do entretenimento, tendo promovido
FEIRANTE 2: CDs e DVDs com os lançamentos do momento: a dupla Jacklane e diversas moças para a vida artística noturna! Venha você também ser uma bataclete!
Manda Brasa, modão raiz que não tem igual e Dois filhos de Francisco, grande estreia
do cinema nacional. CENA 10
FEIRANTE 1: Então venha cá, se achegue e se aprochegue, porque chegou a sua vez!
FEIRANTE 2: É produto em abundância, aqui se desconhece escassez. (Zé Honório entrega para Karina uma encomenda.)
FEIRANTE 3: Tem bugiganga da China, coisa chique dois EUA e até perfume
francês! ZÉ HONÓRIO: Olha aqui o que eu trouxe para você, Karina! Do jeitinho que você
FEIRANTE 4: Tem promoção também: Leve um e pague três! pediu.
FEIRANTE 5: Se achegue, mulher, deixe de timidez! KARINA: Quanto foi?
FEIRANTE 6: Não vá perder essa, outra feira só no próximo mês! ZÉ HONÓRIO: Pra você não custou nada. Fica de presente!
KARINA: De presente eu não quero.
(Enquanto as pessoas compram com os feirantes, Jéssica e Karina conversam num ZÉ HONÓRIO: Então tá, foi R$ 1,99. (Ela entrega uma nota de 2 reais) Eu não tenho
canto. Seu Cícero, que escuta de longe, faz comentários para si mesmo.) troco.
KARINA: Fica de presente!
J1: Karina, a costureira falou que é pra você passar lá porque ela tá te esperando! ZÉ HONÓRIO: O único presente que eu quero de você, Karina, é poder transportar
KARINA: Pra que? esses seus olhinhos de oceano Atlântico. Já decidiu quando vai?
J1: Ué, todo mundo já escolheu e experimentou a máscara que vai usar na Festa de KARINA: Quando eu decidir, compro meu bilhete e vou por mim mesma. Não preciso
Nossa Senhora da Misericórdia de Nordestina, nossa padroeira! te avisar com antecedência.
CÍCERO: Todo mundo? Quem é todo mundo? Elas e o resto das bicha feia da cidade. ZÉ HONÓRIO: Até tu ficar de maior, virar gente e poder viajar é tanta antecedência
KARINA: Não sei se eu vou não, ano passado só fiz foi passar raiva e gastar o último que eu me canso só de supor.
dinheiro que minha mãe me mandou! KARINA: Pois saiba que faltam só 147 dias pra eu completar 18.
J1: Oxi, não tá sabendo da novidade não? Esse ano vai ter até gente de fora! ZÉ HONÓRIO: (Irônico) Ah, num instantinho passa.
CÍCERO: Gente de fora, sei, gente de fora! Marcaram a feira pro mesmo dia da festa, KARINA: Num instantinho não, mas passa!
até parece que se não fosse isso, ia vir alguém pra Nordestina? Ô cidade desgramada, ZÉ HONÓRIO: Mas eu sei que tu tem pressa, Karina. Sei do teu sonho de ser artista.
desgrama de cidade, o último a sair, que apague a luz! KARINA: E como é que tu sabe disso?
KARINA: Sei não… ZÉ HONÓRIO: Tô sabendo que tu anda ensaiando. Eu sei onde tem teste de novela,
J1: Tá bom, Karina. Só precisava dar os dois recados que a Costureira mandou! Que a viu?! Se tu quiser, eu posso te levar logo pro mundo. Seu pai não vai perceber nada.
sua máscara já está bem adiantada e que ela não pode aceitar nem devolução nem Quando ele der fé, tu vai estar é longe! Mas… para correr esse risco, eu quero que tu
desistência! seja minha.
KARINA: E quem foi que mandou ela adiantar a minha máscara, principalmente KARINA: Mas é nada!
sendo o caso de eu nem ao menos ter feito alguma encomenda pra ela? ZÉ HONÓRIO: Diz que tu vai escondida comigo pro mundo, Karina! O plano já está
J1: Não sei Karina, depois pergunte pra ela! aqui, pensado na minha inteligência.

(Zé Honório interrompe as duas para falar com Karina e J1 deixa-os a sós. Um (Ele se aproxima tentando agarrá-la, mas ela foge e esbarra em Antônio. Logo, Zé
feirante faz um anúncio em um megafone. Aos poucos as pessoas vão deixando a Honório vai embora.)
cena.)
ANTÔNIO: Cheguei cedo pro treino, Karina? KARINA: Que é?
VELHO: Mas não havia uma que servisse pra Antônio dizer tudo aquilo que ele sentia
CENA 11 por Karina.
ANTÔNIO: É… hã… é que...
VELHO: Naquele tempo, toda moça queria ser bonita KARINA: Vai, Antônio, que leseira!!
VELHA: E toda moça bonita queria ser artista. VELHO: Não havia som nem letra escrita que pudesse dizer nada parecido.
VELHO: Então, Karina vivia treinando pra artista... ANTÔNIO: É...
VELHA: Karina vivia ensaiando pra ser artista, já que lá dentro da cabeça dela esse KARINA: É o que, Antônio?
era o melhor caminho possível pra sair de Nordesntina! ANTÔNIO: É hoje!
VELHO: E fingia tão direitinho que Antônio até acreditava. KARINA: É hoje?!?
ANTÔNIO: (Repete, percebendo que ela está distraída) Cheguei cedo pro treino, ANTÔNIO: Sim, hoje!
Karina? KARINA: Hoje o que filho de Deus?
KARINA: Não é treino, Antônio. É ensaio! Chegou não! Tá na hora mesmo! Eu to VELHO: Por fim, Antônio se rendeu ao desespero e arregou, disfarçando de Karina o
precisando ensaiar e é muito! que tanto queria lhe dizer, mas ainda não tinha coragem.
ANTÔNIO: Então me diga direitinho o que fazer que eu faço, agorinha mesmo. ANTÔNIO: É hoje o último capítulo da novela!
KARINA: Tu fica de costas pra mim, eu fico de costas pra tu. Tu vira pra mim, diz
“Eu te amo, Sivirina”, eu digo “Eu também, Tertuliano”, aí tu me vira e me dá um (Entram as pessoas da cidade com a televisão e ficam todos encantados assistindo à
beijo de novela. Decorou? novela. Antônio passa o braço timidamente em torno dos ombros de Karina. As
ANTÔNIO: Que eu te amo eu decorei faz tempo, Karina. Que tu é Sivirina é que não pessoas assistem reagindo, até que chega ao final. As pessoas saem com a televisão e
tem jeito de eu decorar. ficam só Antônio e Karina.)

(O velho bate com a bengala no chão e arrasta pra trás, dando a ideia de que o tempo KARINA: (Inocentemente diz pra Antônio no final da novela) Ai que lindo! É por
havia voltado.) essas e outras razões que eu quero ir pro mundo Antônio!
ANTÔNIO: Vai nada Karina! Pode não!
VELHO: Antônio quase ia dizendo isso pra Karina nessa hora, mas não era com KARINA: Oxi! E desde quando eu lhe dei esse tipo de liberdade!
aquelas palavras que havia de dizer coisa tão importante daí, novamente, o tempo lhe ANTÔNIO: Ué Karina...
ajudou. KARINA: Pode parar com isso! A vida é minha e o que eu faço com ela não é da sua
ANTÔNIO: Eu te amo! conta!
KARINA: Eu também! ANTÔNIO: Não é não???
ANTÔNIO: Também ?!? KARINA: E você é alguma coisa minha, por acaso?
VELHO: E quando Antônio foi dar o beijo mais esperado de sua vida… VELHA: Por acaso, Antônio não era coisa nenhuma de Karina. Nem amigo pra servir
KARINA: (Ela interrompe para esconder seus sentimentos por ele) De mentira, de confidente!
Antônio! Tem que ser de mentira. Senão não prende a atenção de quem assiste, não VELHO: Mas isso também seria coisa que Antônio não ia querer! Se não fosse logo
ilude o espectador, fica parecendo uma coisa que existe, vida real, amor de verdade. pra ser o amor de Karina, seria melhor, mil vezes não ser coisíssima nenhuma!
Fica besta, Antônio. Entendeu? VELHA: Daí o tempo foi passando, deu onze, onze e meia, onze e quarenta e cinco e
ANTÔNIO: Ai. (senta-se no chão de forma bem incomodada) Antônio com aquela mesma frase na cabeça.
KARINA: Que foi? VELHO: É hoje!
ANTÔNIO: Ééé... VELHA: Deu cinco pra virar outro dia e foi ali, naquele último restinho da noite que a
KARINA: Oxente, Antônio? vida de Antônio deu uma virada medonha. Foi quando ele olhou pra Karina que seu
VELHO: Desesperadamente, Antônio começou a procurar entre as palavras coração disse pra sua cabeça,
importantes a mais parecida com aquela coisa lá que ele queria dizer. VELHO: Vá!
VELHA: E sua cabeça disse pra sua coragem! saindo aos poucos até a festa acabar. Mas antes do fim, Zé Honório se ajoelha diante
VELHO: Vou! de J1 indicando que firmaram algum tipo de compromisso. Quando todos saem, ficam
VELHA: E sua coragem respondeu, somente Antônio e Karina abraçados.)
ANTÔNIO: Vou nada!
VELHO: Mas sua boca falou e seu ouvido não ouviu e então, ele beijou Karina KARINA: Escutou?
mesmo ali, no meio de qualquer lugar. ANTÔNIO: O quê?
VELHA: (amenizando) Foi uma bitoquinha de nada, na bochecha… Quase que Karina KARINA: O último suspiro da noite.
nem percebeu! ANTÔNIO: E noite suspira?
VELHO: Mas foi muito pro rapaz simples e inocente que tinha passado a vida inteira KARINA: Qual é a coisa que não suspira quando sobra felicidade do lado de dentro
em Nordestina. dela?
VELHA: De verdade foi muito pra cabeça dela, que ficou sem entender o que (Antônio suspira)
exatamente aquele beijinho significava. KARINA: Escutou?
VELHO: Outra coisa que deve ter sido difícil pra Karina entender foi a carreira ANTÔNIO: Agora fui eu que suspirei.
desembestada em que Antônio se meteu logo depois do beijo roubado. KARINA: Eu sei, não foi o suspiro, não. Foi o primeiro barulho do dia.
VELHA: E então Karina se pôs a pensar, e pensou tanto que bem ligeiro chegou o dia ANTÔNIO: Não diga isso não pelo amor de Deus.
da Festa de Nossa Senhora da Misericórdia de Nordestina. KARINA: Não deixe o dia amanhecer, não, Antônio.
ANTÔNIO: Deixo nada!
CENA 12 KARINA: E como é que tu vai fazer?
ANTÔNIO: (pausa) A gente fecha os olhos e assim não vê o dia amanhecer.
(Começa a festa, as pessoas dançam. No início da festa, Zé Honório tenta dançar com
Karina, quando não consegue, vai dançar com J1, com quem passa o resto da festa. (Blackout)
Quando Karina vê Antônio, fica fugindo dele enquanto ele tenta falar com ela. Até o
ponto em que ele para de correr atrás, sobre em um banco e pede para parar o som.) CENA 13

ANTÔNIO: Para tudo! Para tudo que eu tenho uma coisa muito importante pra falar! (Música do dia amanhecendo. J1 vai até a casa de Karina.)
Até porque eu já esperei foi é muito pra falar isso que tá preso aqui e não vou esperar
mais não! Sabe por que? Porque esse tal amor que um personagem finge que sente, J1: Nossa Karina, eu estou tão feliz!
amor dessa qualidade que tem paciência até mesmo pra esperar entre um anúncio e KARINA: Nem me fala, Jéssica! Eu também estou feliz demais!
outro para somente no “voltamos a apresentar” concluir o que tinha fingido que tinha J1: Tu acredita que o Zé Honório, da barraca da calça jeans me pediu em casamento!
começado… Esse tal amor, é somente amor de ficção Karina! E é muito diferente Daí, ele quer que eu vá com ele pra cidade grande! A gente vai viver na van que ele
desse negócio que eu sinto aqui! Esse negócio doido que eu não encontro palavras usa pra levar e trazer as mercadorias pras feiras! Eu não sei nem ao certo se fico mais
existentes que expliquem como ele é exagerado. feliz porque vou casar ou porque vou embora desse fim de mundo!
KARINA: Onde foi que tu leu isso, Antônio?
ANTÔNIO: Eu nem li, nem decorei e nem sei repetir de novo, porque sentimento (Karina fica entristecida, se dando conta de que todos vão embora e agora ela se
sentido de verdade, não precisa ser documentado em pedaço de papel, nem romance sente presa em Nordestina)
ou filme de cinema, justo porque não é da conta de mais ninguém que não seja a
pessoa que sente e a outra que é a responsável pelo sentimento causado. Vai, Karina, J1: Ué amiga, não fique assim não! Pelo menos uma vez por mês eu apareço por aqui
finge pelo menos uma vez que tu é tu , pra ver se você descobre o que tu sente. pra ver vocês!
KARINA: Não é isso…
(Ele vira de costas. Ela coloca lentamente a mão em seu ombro. Ele se vira e ela se
joga em seus braços. A música da festa retorna. As pessoas voltam a dançar, mas vão
J1: Ah, já sei. Você ficou sabendo do falecimento do seu João que morava lá na beira ANTÔNIO: Desse jeito, eu tô me sentindo um pouquinho desprezado por você,
do rio né? Não fica assim não, amiga, coisa comum é deixar essa terra. Você sabe que Karina.
de um jeito ou de outro, todo mundo acaba indo embora de Nordestina. KARINA: Desprezo é quando a importância da pessoa some do pensamento da gente
por conta própria, Antônio. Eu que tô fazendo “fugir” a tua presença da minha cabeça,
(Jéssica se despede e sai. Segue um velório com um grande cortejo fúnebre.) mas é só pra facilitar a minha própria fuga. Por mais que tudo mudasse, tu ia ser pra
sempre o Antônio de Dona Nazaré, e eu a Karina da rua de baixo. E também, pra que
VELHO: Nesse instante Karina tornou-se uma pessoa atormentada. ser mais do que isso, se o mundo nunca ia nem ao menos perceber que a gente existe,
VELHA: Provavelmente por saber que da forma como as coisas iam acontecendo, seu pra chamar a gente pelo nome?
tormento não ia lhe abandonar era nunca. ANTÔNIO: É o mundo o que você quer? Pois então eu trago ele pra você.
KARINA: De uma forma ou de outra, todo mundo vai dando um jeito de ir embora de KARINA: Você não está entendendo, Antônio. Esse mundo que eu quero, sou eu que
Nordestina… Só eu vou ficar… preciso buscar.
VELHA: O tempo passava rápido e repetido como só em Nordestina ele podia passar.
VELHO: Parecia que nada mudaria nunca, mas pra Antônio, tudo mudou ali e foi ali (Karina vai para casa.)
que o tormento de Karina se transformou no tormento de Antônio.
VELHA: Foi tudo tão intenso que nenhum dos dois jamais esqueceu de cada um dos VELHO: Antônio bem quis ir atrás de Karina.
detalhes… VELHA: Mas àquela altura, já tinha entendido que não era papel seu tentar impedi-la
ANTÔNIO: Cheguei cedo pro treino, Karina? de coisa alguma.
KARINA: Hoje não vai ter treino, não, Antônio. Nem treino nem ensaio. Nem hoje,
nem amanhã, nem depois, nem depois de depois de amanhã. (Antônio e o velho saem. Karina volta guardando um envelope na bolsa e, antes de
ANTÔNIO: Ué… E por quê? sair, olha para a cidade.)
KARINA: Porque eu já treinei foi demais. Já ensaiei o suficiente. Eu já tô pronta pra
pôr em prática tudo o que eu treinei e ensaiei. E por esse motivo, eu tô indo embora KARINA: Você está duvidando né?
pro mundo. VELHA: E Nordestina bem que deve ter duvidado mesmo, mas não disse nada, pois
ANTÔNIO: Oxi Karina! Deixa de besteira! as cidades, por menores que fossem, não serviam pra responder nada a seu ninguém,
VELHA: A certeza com que Antônio disse aquilo provocou em Karina uma tristeza muito menos pra duvidar de coisa nenhuma.
que tava guardada pra mais tarde.
VELHO: Ela então se botou a maldizer o mundo, usando cada palavra mais difícil que (Karina sai. Blackout.)
a outra. Nunca ele imaginou que ela tivesse tamanha sabedoria da língua portuguesa.
VELHA: Ela também não sabia que sabia, e não sabia sequer se estava usando as
palavras adequadas, mas se fez entender perfeitamente. CENA 14
KARINA: É claro que eu não queria querer ir embora, Antônio. Se eu pudesse mandar
no meu querer. Se fosse possível desenhar o mapa do mundo todinho de novo, se eu (Música da ida de Karina para a cidade. Cena visual demonstra que ela procura um
pudesse inventar outra geografia, outra economia, outra sociologia, outra filosofia... endereço, quando encontra bate à porta. Sua mãe aparece.)
VELHO: Como Karina falou bonito aquele dia!
KARINA: Aqui eu estou presa numa máquina, Antônio, na qual eu não passo de uma KARINA: Está lembrada de mim?
engrenagem que faz os ponteiros do tempo girarem, mas que continua sempre parada MÃE: Eu não esqueceria esse rosto nunca nessa vida.
no mesmo lugar. Se eu não quiser ser pra sempre um farrapo de gente, gastando meus
dias esfarrapados numa vida esfarrapada, eu tenho que ir pro mundo, Antônio, porque (As duas se abraçam intensamente.)
a verdade, a vida mesmo, acontece é da risca pra lá.
VELHO: E pela primeira vez na vida, Antônio botou seu próprio querer na frente do
dela e disse, mesmo porque quis dizer.
MÃE: (excessivamente animada) Karina, eu não acredito que você está aqui. Você vai MÃE: Pra isso o que?
amar esse mundo! É tudo tão desenvolvido e tecnológico e animado e iluminado e KARINA: Eu vim buscar ele.
agitado… MÃE: Ele?
KARINA: Tô animada por demais pra ver tudo, conhecer todo mundo, seus amigos, KARINA: Determinado elemento que atende pelo nome de mundo.
namorado… Você tem um namorado? MÃE: E tu vai levar ele como?
MÃE: Você vai ver que a vida de uma mulher independente na cidade grande pode ser KARINA: Levando. Puxando, tangendo. E no caso do mundo ser bicho de palestra aí
um pouco solitária, minha filha. Mas isso não é nada, aqui tem tanto para ocupar a eu me apresento, justifico minha causa, argumento, enumero minhas virtudes, sou
mente que a gente até esquece desses detalhes. Nós vamos sair juntas, vamos ao mulher criativa, era eu quem inventava as cenas que Antônio ensaiava comigo.
shopping, vamos à praia, você vai conhecer o mar! Você vai ver tanta coisa aqui que MÃE: Mas endoidou foi de vez! Uma moça do interior, ingênua como você. O mundo
nunca viu igual, que vai esquecer que um dia existiu Nordestina. vai te engolir!
KARINA: Foi isso que aconteceu com você? Se esqueceu de nós? KARINA: Acontece que eu sou meio indigesta. É mais fácil eu engolir ele primeiro.
MÃE: Claro que não, Karina. MÃE: Tu não conhece esse mundo.
KARINA: Eu senti tanta saudade, minha mãe. KARINA: Esse mundo também não me conhece! Mas é por pouco tempo!
MÃE: Eu também, minha filha! MÃE: E tu vai sair por aí, parando na frente de todo mundo, pessoa por pessoa: -Tá
KARINA: Eu te escrevi tantas vezes, você não recebeu minhas cartas? me vendo pessoa? Ou tu vai arranjar um lugar só pra onde todo mundo olhe e tu lá
MÃE: Recebi. parada?
KARINA: E por que não respondeu? KARINA: Parada não, que ninguém quer saber de ver ninguém parado.
MÃE: Porque eu não sabia como dizer, Karina… MÃE: Então, fazendo o quê?
KARINA: Como dizer o que? Que notícia é essa que é tão difícil assim colocar em KARINA: A coisa mais endoidecida que alguém já fez na vista desse povo.
palavras? MÃE: E o que é que tu vai fazer, Karina?
MÃE: Eu não sabia como dizer que, embora eu tivesse saudade de você, Karina, eu KARINA: No caminho eu penso. Tchau.
não estava disposta a abrir mão do que eu vim buscar aqui para voltar àquela vida MÃE: Espera, Karina…
esfarrapada.
KARINA: E quem disse que eu queria que tu voltasse? Eu queria era vir pro mundo (Blackout.)
com você. CENA 15
MÃE: Ô Karina, esse mundão aqui não é fácil não, a gente fica, porque às vezes é
melhor ser um tiquinho de alguma coisa num lugar desse tamanho, do que continuar (Toca vinheta do programa de televisão. No palco, assistentes ilustram as falas da
sendo nada em lugar nenhum, que é o que virou aquela cidade. Mas a vera mesmo, é apresentadora e uma plateia reage.)
que isso aqui, tal qual uma máquina, te obriga a girar como engrenagem.
KARINA: Mas não foi dessa obrigação que tu fugiu? APRESENTADORA: Boa noite, plateia maravilhosa! Boa noite, você aí de casa! É
MÃE: Eu só escolhi o outro lado da moeda. Um trabalho, uma carreira, uma vida com com muita empolgação (assistentes de palco batem palminhas) e fogo no rabo
mais horizontes… (assistentes fazem o movimento do “Esquenta”) que estamos começando mais um:
KARINA: Engraçado cê dizer isso, no meio desse tanto de prédio a gente quase nem Assistentes: Rebola pra Subir!
vê o tal do horizonte.
MÃE: Para ter algumas coisas, a gente precisa abrir mão de outras. (Toca jingle do programa e assistentes fazem uma coreografia cômica junto à
KARINA: Eu não quero abrir mão, eu quero tudo. Eu quero ser artista de televisão. apresentadora.)
Mas também quero ver vozinha envelhecer. Quero dar um beijo de boa noite em pai
antes de dormir e, se for possível, quero um tiquinho do amor de Antônio também. Por APRESENTADORA: O programa que extrapola o tédio da vida cotidiana trazendo
que é que não pode ser? aqui pessoas capazes de surpreender a família brasileira! Será que os nossos
MÃE: Mas não se pode ter esse mundo aqui, estando lá. participantes de hoje vão superar os participantes da semana passada? Já tivemos a
KARINA: Quem disse que não, se foi pra isso que eu vim? baiana arretada que engole espadas com pimenta e o peão goiano que peida fogo! Não
vai ser fácil, hein!? Vamos à nossa primeira participante: Ela se chama Karina da Rua APRESENTADORA: Mas promessa todo mundo faz, inclusive, tem gente que ganha
de Baixo e promete fazer algo nunca antes visto na televisão brasileira. Fiquei curiosa, voto e dinheiro pra isso, o que não é o seu caso, Karina. Então acho que pra estar no
pode entrar Karina! programa…
ASSISTENTES: Rebola pra subir!
(Jingle. Assistentes de palco trazem Karina. Ela entra desajeitada, com um microfone APRESENTADORA: Você precisa fazer algo mais interessante!
na mão e um pouco assustada com o fato de estar em um estúdio de televisão.) KARINA: Mas eu prometo que vou viajar pro futuro.
APRESENTADORA: Pro futuro? Mas se nem os cientistas mais renomados
APRESENTADORA: Olá, Karina! (Ela acena) Tudo bem, Karina? conseguiram isso até hoje que garantia nós temos que você, Karina de Nordestina, vai
KARINA: Sim! conseguir viajar pro futuro?
APRESENTADORA: Fale mais perto do microfone, Karina. KARINA: Eu dou como garantia a minha palavra!
KARINA: Sim!
APRESENTADORA: Está feliz de estar aqui, Karina? (Plateia reprova, pode usar corações para simbolizar os likes ou as assistentes podem
KARINA: Sim! indicar que o número de likes está caindo.)
APRESENTADORA: Você pode contar mais de você pra gente, Karina.
KARINA: Sim! APRESENTADORA: Ih Karina, tô achando que você já veio mesmo de outro tempo,
APRESENTADORA: De onde você é, Karina!? hoje em dia palavra não é garantia de nada não. Sendo assim, caro telespectador, acho
KARINA: Sim! Digo, sou da cidade de Nordestina. que Karina não tem a alma do programa…
APRESENTADORA: E onde fica isso, Karina!? ASSISTENTES: Rebola pra subir.
KARINA: No Brasil. APRESENTADORA: Então nós vamos para o nosso próximo participante, vem aí…
APRESENTADORA: Em que lugar do Brasil, Karina?
KARINA: Na cidade de Nordestina. (Faz sinal para as assistentes tirarem Karina do palco, que interrompe antes de se
APRESENTADORA: Ela é uma graça! Então temos aqui, diretamente de Nordestina, deixar levar)
cidade do... Nordeste do... Brasil, Karina. Você já sabe como funciona o nosso
programa, Karina? (Não deixa ela responder) É o seguinte: O nosso programa é KARINA: Se minha palavra é garantia pouca, prometo então a minha vida!
transmitido ao vivo pela TV e pelas nossas redes socias, quando um participante
propõe uma algo interessante, os números de likes começam a subir. Então é isso que (Uma pessoa da plateia levanta um coração)
você tem que fazer:
ASSISTENTES: Rebola pra subir! ASSISTENTES: (baixinho) Rebola…
APRESENTADORA: Mas caso a sua proposta fique desinteressante e os números de APRESENTADORA: Hum, agora ficou interessante, continue...
likes não subam, a gente interrompe e chama o próximo participante. Entendeu, KARINA: Prometo que se eu não viajar no tempo, vocês poderão presenciar a minha
Karina? morte!
(Mais corações levantam na plateia)
(Karina faz que sim com a cabeça) ASSISTENTES: (aumentando um pouco) Rebola…
APRESENTADORA: Prossiga...
APRESENTADORA: Você sabe rebolar, Karina? KARINA: E a minha não vai ser qualquer morte morrida não, a minha vai ser morte
importante!
(Karina faz que não com a cabeça)
(Mais corações levantam na plateia)
APRESENTADORA: Se não sabe rebolar, então veio fazer o que aqui?
KARINA: Eu vim fazer uma promessa! ASSISTENTES: (muito empolgadas) Rebola…
APRESENTADORA: Conta pra gente como isso vai acontecer, Karina.
(À medida que ela vai falando, vai aumentando o número de likes.) R2: A pequena cidade de Nordestina se prepara para receber milhares de pessoas
nesses próximos dias.
KARINA: No dia marcado, eu vou viajar no tempo bem lá do meio da praça da cidade R3: A morte anunciada de Karina de Nordestina atrai romeiros, turistas e curiosos ao
de Nordestina. Eu vou para o futuro, que é um tempo onde tudo já melhorou e evoluiu. sertão.
E vou fazer isso na frente das televisões do mundo inteiro e, caso eu não consiga ir R1: A morte do ano.
mesmo para o tempo futuro, vou enfrentar a máquina. Trata-se de uma máquina R2: A morte do século.
medonha que tenta me engolir faz é tempo me dizendo onde é o meu lugar. Mas eu R3: Mais uma morte violenta nos noticiários, só que dessa vez ela foi anunciada…
vou olhar nos olhos dela, abrir os braços e dizer que venha, porque se eu não for capaz R1: Karina promete que uma máquina de 700 lâminas irá lhe atingir o coração, caso
de viajar pro futuro e mudar esse tal de tempo, não me vale viver como uma não viaje para o futuro.
engrenagem dentro dela não. Então, se os ponteiros do tempo não acelerarem de uma R2: A prefeitura já está tomando as devidas providências, o corpo de Karina será
vez em direção ao futuro, então, lá no meio da praça de Nordestina, a tal máquina, velado na Câmara de Vereadores, de onde será transportado em carro aberto para o
com suas 700 lâminas, vai esfarrapar o resto de vida que eu tenho, esgarçando meu local escolhido pela família para o sepultamento.
peito todinho, atingindo meu coração, fazendo explodir e voar por aí tudo que tem R3: O coral infantil da escola municipal se apresentará durante o enterro caso Karina
dentro dele: artéria, sangue e amor… de mainha, painho, voinha e Antônio. morra mesmo.
APRESENTADORA: Vejam bem, caros telespectadores, é provável que muito em R1: O Brasil inteiro reza por Karina.
breve Karina se torne (irônica) a alma desse programa. Pelo número de likes, Karina, R2: A brazilian woman dies in the name of love.
eu diria que nos vemos em nordestina! R3: Você verá essa noite: A nova geração que vem da roça! O que fazem, como
sobrevivem, o que pensam, como morrem...
CENA 16 VELHA: A primeira parte da sua missão, Karina já tinha cumprido. Olha o mundo
todinho aí, olhando pra Nordestina.
(Em Nordestina. Antônio pode expressar aqui sua tristeza e saudade por Karina, por VELHO: Mas ainda faltava cumprir o resto.
meio de uma música ou de uma encenação. Depois disso, a cidade comenta em VELHA: Foi pra isso que Karina ficou os oito dias no meio da praça! Não arredava os
polvorosa.) pés de lá pra nada, nem pra comer, nem pra dormir, pois desvendar o funcionamento
daquela máquina não era tarefa fácil. Por sorte, Karina já era experiente no quesito de
C1: Vão transmitir a morte de Karina ao vivo. inventar cena, então criar aquele espetáculo para as câmeras não havia de ser muito
C2: Karina da rua de Baixo? diferente.
C3: É, a Karina de Antônio.
C4: Antônio de dona Nazaré? CENA 17
C5: Sim! O oitavo Antônio!
C6: Mas num era a Karina que foi pra cidade? (Antônio que presenciou parte da agitação da cidade se dirige à Karina.)
C7: É essa!
C8: Mas não era a do Antônio? ANTÔNIO: Faça isso não!
J1: E depois que vai pro mundo, mulher lá pertence a homem algum? KARINA: Faço, pois já dei minha palavra!
J2: Do mundo ela também não é, num disseram que voltou pra cá? ANTÔNIO: Pra quê isso, Karina!?
J3: Nem de Antônio, nem do mundo. Karina é dela mesma. KARINA: Pra que tanta agonia se eu só vou dar uma chegadinha no futuro e volto
J4: E da televisão todinha, olha lá! logo?
ANTÔNIO: Volta logo como, se o futuro é muito longe?
(Os repórteres 1 a 3 entram, todos ao mesmo tempo) KARINA: Mas eu não vou tão longe assim não, vou andar somente uns 34 anos pra
frente, duas vezes mais que o tempo que tenho pra trás, contando do dia em que nasci
R1: Caipira promete morrer de amor na frente das câmeras. até o dia da minha partida.
ANTÔNIO: Isso tudinho?
KARINA: Nem um dia a mais nem um dia a menos, Antônio, eu prometo. Eu vou só AVÓ: Minha filha, o que você está fazendo?
multiplicar minha idade por três, depois eu desmultiplico e pronto, assunto resolvido. POVO: 9
ANTÔNIO: Então faça a viagem no tempo sem essa história de máquina! KARINA: Estou aprendendo o caminho de ida, vovó, por mim e pela senhora. Mas
KARINA: Mas se foi a máquina e minha possível morte que trouxeram o mundo até fique tranquila, que eu vou prestando bem atenção no caminho de volta.
aqui em Nordestina, sem a máquina o mundo vai embora! POVO 8:
ANTÔNIO: Mas Karina, se alguma coisa der errado você tá frita. Era uma vez Karina. MÃE: Algumas idas não tem volta, Karina. Depois que se atravessa um certo limite,
Tu não tem medo não? nunca mais se é a mesma.
KARINA: Medo da morte? É coisa que não tenho. Já olhei nos olhos dela, já conheci POVO: 7
seus encantos, já discordei de suas ideias, já lhe expliquei ponto por ponto cada uma KARINA: Eu não tenho interesse de ser a mesma, minha mãe. Eu quero mais é ser
de minhas crenças. E tá resolvido: é melhor arriscar e ter a chance de uma vida outra.
verdadeira, que continuar aqui viva, enquanto eu morro aos pouquinhos. POVO: 6
ANTÔNIO: Mas e eu, Karina? Como é que você supõe que eu viva sem você? AVÓ: E o que é que essa outra quer tanto do futuro, minha neta?
KARINA: Se tu me ama mesmo, Antônio, vai preferir viver sem Karina nenhuma do POVO: 5
que com aquela Karina infeliz que você viu um dia partir desta cidade. KARINA: Eu quero é ele todinho, bem aqui no meu hoje, que é pra eu parar de viver
VELHO: Karina não estava errada, embora a ideia do possível não retorno de Karina no ontem como uma engrenagem enferrujada que mal faz o ponteiro do tempo girar.
arrepiasse Antônio pela espinha, a possibilidade de sua infelicidade muito mais o POVO: 4
angustiava. MÃE: Então vá, minha filha, mas faça diferente de mim, faça as engrenagens girarem
VELHA: E no que os sete dias se passaram o oitavo dia acordou e Nordestina deu de a seu favor.
cara com o mundo, do jeitinho que Karina havia prometido para si mesma. POVO: 3
AVÓ: E, por favor, Karina, não deixe, jamais, essa máquina te engolir.
CENA 18 POVO: 2
KARINA: Não se preocupem, o futuro é logo ali.
(Todos se reúnem na praça para assistir a viagem de Karina.) POVO: 1
VELHA: Seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem
R4: Ela apareceu no programa Rebola pra Subir e disse que ia morrer ou viajar no vou, e sua coragem respondeu, vou é nada, mas Karina não ouviu. Ela nunca foi de dar
tempo! Nesse momento, em que o dever do repórter se faz mais forte, enviaram toda a ouvidos a quem a limitasse, não era agora que havia de escutar, ainda que fosse ela
produção do do programa para a cidade de Nordestina! mesma.
R1: Uma máquina de 700 lâminas? Uma viagem? O que acontecerá com Karina? VELHO: Antônio não sabia como Karina havia de viajar mesmo para o futuro, mas na
R2: Estamos aqui, ao vivo, direto de Nordestina para transmitir esse grande evento! dúvida, ou no desespero mesmo, danou-se a rezar bem muito e lembrou de pedir uma
R3: E todos os olhos, todos os ouvidos, todas as câmeras e todos os microfones do ajudinha pro seu velho amigo tempo.
universo apontaram pra Karina da rua de Baixo, de Nordestina, do mundo. VELHA: Não se sabe se foi a fé de Karina que achava de acreditar em romance de
VELHA: Num instante deu a hora certinha que Karina tinha marcado pra viajar, meia televisão, beijo de novela e até viagem pro futuro…
noite em ponto! VELHO: Ou se foi a oração de Antônio ao tempo.
VELHO: Ai minha Nossa Senhora da Misericórdia de Nordestina… VELHA: Ou se foram os dois juntos.
VELHO: Mas o fato é que de repente o tempo parou de passar num solavanco ou foi
(As pessoas iniciam uma contagem regressiva. Karina dá um abraço em seu pai. A Karina que num solavanco parou de passar, de repente, pelo tempo.
mãe e a avó de Karina se posicionam próximas a ela. Karina puxa um fio até a coxia, (Velho sai de cena. Um silêncio profundo.)
como se ligasse a máquina. Conforme a contagem acontece a lâmina da máquina
projetada pela iluminação pode ficar mais rápida ou maior.) CENA 19

POVO: 10
(Karina velha e Karina jovem se encontram. Os loucos podem aparecer mais ao R4: Será que temos aqui mais um caso da Fake News?
fundo, em torno da velha.) C2: É, Karina, que fuleragem é essa?

KARINA: Karina? (Começa uma grande vaia e confusão.)


VELHA: Ah, Karina!
KARINA: Como é que eu te chamo? De tu? De eu? Ou de nós duas? KARINA: Todo mundo, por favor, me escuta! Eu fui no futuro sim!
VELHA: Pode me chamar de ninguém, que é exatamente o que eu vou ser depois que C3: Ah para, Karina, que todo mundo aqui viu que tu não arredou um pé dessa praça.
tu voltar pro passado, pra viver tudo diferente e chegar aqui uma outra Karina, mais
aperfeiçoada do que essa. (Todos começam a rir e debochar, criando mais uma confusão. Karina custa a
KARINA: E Nordestina? retomar a palavra)
VELHA: Ah, tu vai ter a chance de mudar aquele lugar e é muito! E mudando o lugar,
tu muda também a vida de quem vive lá… KARINA: Eu viajei no tempo sim! Só que o exato instante de minha volta no tempo,
KARINA: E minha família? E Antônio? coincidiu com praticamente o exato instante de minha ida. Por isso, praticamente tudo
VELHA: Hoje completa 34 anos que não vejo. está no mesmíssimo ponto que eu tinha deixado, meia noite em ponto.
KARINA: Ué, e eu vou passar a vida inteira sem eles? Então eu não sei se quero viver C4: Olha, Karina, pra quem olha pra tu, a gente só pensa que tu esteve aí o tempo
isso tudo não! todo. E por isso que o mundo todo vai duvidar que tu tenha ido ao futuro mesmo.
VELHA: Eu vivi a vida inteira sem eles só pra chegar até aqui e falar com você! Eu C5: Que sujeitinha mais sem palavra, que não foi a futuro algum nem morreu morte
voltei na mesma horinha que tinha partido, ninguém acreditou em mim, acharam que nenhuma.
era loucura e eu fui obrigada a viver a vida no esquecimento. Tu não vai repetir essa
besteira não! (Grande confusão novamente. Karina retoma a palavra novamente.)
KARINA: Então o que eu posso fazer de diferente?
VELHA: Primeiramente, quando você voltar, enfrente o povo! Eles vão exigir uma KARINA: Eu fui ao futuro sim, só que me atrapalhei um pouquinho no caminho de
prova de que tu viesse ao futuro mesmo! Então, abra esse papel! Tudo que você volta e acabei regressando praticamente no mesmo instante que tinha partido.
precisa está aí. Vá logo, que eu tô é que não aguento mais de saudade de mainha, de C6: Ah é Então prove!?
painho, de voinha e de Antônio… KARINA: Pois bem… No futuro, eu encontrei com uma camarada que me mandou
alguns recados! Quem quiser ouvir que ouça! (Pega o papel que a velha deu)
(As duas se abraçam, a velha sai de cena e Karina jovem retorna para o exato ponto Primeiramente, segurem suas roupas, porque lá vem uma ventania doida!
em que estava quando terminou a contagem regressiva.)
(Deve acontecer alguma desconfiança e muitas falas que desqualificam Karina. Em
POVO: Um! seguida, ecoa um grande barulho de vento!)

(Vendo que a Máquina acelera em sua direção, Karina desvia e movimenta-se KARINA: Agora, quem não acredita no impossível, que olhe bem, porque vem aí uma
puxando o fio da tomada, desligando a máquina.) grande névoa.

CENA 20 (Deve acontecer agora uma desconfiança menor. Em seguida, máquinas de fumaça
preenchem o palco.)
C1: Ué, nem morreu, nem viajou?
APRESENTADORA: Parece que ela amareloooou… KARINA: Agora, pra terminar com prova que dê cabo à qualquer desconfiança de
R1: Karina acaba de desligar a tal máquina da morte… minha viagem ao futuro, eu digo que quem tiver medo de raio, que tape os ouvidos,
R2: E a tal viagem do futuro parece que ficou só na conversa mesmo… porque vai acontecer uma tempestade de raios, relâmpagos e trovoadas!
R3: Mas nós estamos aqui para filmar a morte de Karina! Cadê?
(Deve acontecer agora uma desconfiança menor ainda. Em seguida, barulhos de VELHA: Assim, presente, passado e futuro ficaram todos num tempo só! Tempo
raios e estrobo. Em um breve blackout causado pelos raios, ocorre a troca de atores: junto, sem distância um do outro!
a velha, agora com o mesmo figurino da jovem, ocupa o lugar de Karina jovem, que VELHO: Longe mesmo ficou só Nordestina.
sai de cena para retornar como velha posteriormente. O mesmo ocorre com Antônio. ANTÔNIO: É que lá de onde Antônio vem...
As pessoas acreditam finalmente que Karina viajou no tempo.) KARINA: Lá mesmo de onde Antônio vem…
VELHA: Vem Karina também. E já não precisa ser tão longe assim…
KARINA: No futuro medo vai virar lenda, falta vai virar sobra, Nordestina vai virar VELHO: Pode estar perto…
livro, filme, peça de teatro... palavra vai virar fato e alegria vai virar moda. No meio ANTÔNIO: Perto mesmo…
da praça vai nascer um pé de caju que dará flor o ano todo. Onde tinha a estação, um KARINA: Pertinho, pertinho…
cinema, e onde tinha bica, vai ter até estátua de Karina. Em Nordestina, vai ter TODOS: Tão perto que só a gota!
biblioteca, museu, teatro. Ninguém mais vai querer sair daqui…
PAI DE KARINA: (Pode olhar para a mãe) E sair daqui pra quê, se aqui é que vai (Blackout. Fim do espetáculo.)
estar bom?
KARINA: (aponta pra duas pessoas aleatórias, pode ser um casal que dançou junto na
festa) Vocês dois vão estar se querendo no futuro, se querendo, se amando, se
beijando, se coisando… (aponta para um feirante) Você parou de vender pirataria e
ingressou na marinha. A feira minha gente, a feira virou foi é shopping! (A ponta para
outra pessoa) Moça, eu vi você no futuro, olhe, vou lhe dizer, a senhora casou! Casou
sim! Sete vezes! E tava com uma cara de que ia completar uma dezena ainda! Eita
mulher valente! E o sertão não virou mar, não, mas um mar de gente veio pra cá e se
botou a fazer essa cidade crescer.

(Entram a Velha e o Velho. As pessoas vão se posicionando de modo a repetir as


mesmas posições da cena inicial. Exceto pela velha que se encontra agora ao lado de
Antônio Velho e sua cadeira com os loucos no entorno está vazia no foco.)

VELHA: E o povo gostou tanto das histórias de Karina que pôs-se a copiar as ideias
dela. Cada um foi arrumando sua vida de acordo com o que ela contava. E o povo foi
fazendo o mundo ficar justo do jeito que Karina dizia, até que foi ficando igualzinho.
VELHO: Não havia como inventar prova melhor do que essa de que Karina tinha ido
no futuro mesmo!
VELHA: Ninguém nunca soube de fato, se a viagem de Karina aconteceu mesmo na
hora programada.
VELHO: Mas também, disso ninguém mais queria saber! O povo só queria saber era
de ser feliz! E nisso Karina foi é muito competente em dar rumo!
KARINA: (Virando-se para Antônio) Antônio, no futuro, treino, ensaio, novela e filme
virou tudo foi realidade!
ANTÔNIO: Tu inventando e eu fazendo…
VELHA: Tu fazendo e eu inventando.
VELHO e ANTÔNIO: E a realidade éramos nós dois? Para Sempre felizes?
VELHA E KARINA: Felizes para sempre, Antônio!

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