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Samires Lima Souza & Amanda Maria dos Santos Silva

EXPERIÊNCIA, TRABALHO
E ARTESANATO: as rendeiras de Lagoa
do Sobradinho (Luís Correia-PI) e a
produção de renda de bilro.
Samires Lima Souza1
Amanda Maria dos Santos Silva2

Resumo
O artigo trata-se de um estudo de campo realizado com as rendeiras de bilro da
comunidade de Lagoa do Sobradinho em Luís Correia-PI, com o objetivo de identi-
ficar as experiências das rendeiras no local. Foram entrevistadas três rendeiras que
possuem grande conhecimento na prática do rendar. A partir da utilização da histó-
ria oral foi possível obter relatos, informações sobre o desenvolvimento do ofício no
local e as perspectivas das artesãs sobre a manutenção do conhecimento tradicional
na comunidade. Obteve-se como resultado questões de gênero, trabalho e identida-
de cultural que interferem na prática e na manutenção do saber tradicional na co-
munidade. 53
Palavras-chave: Renda de bilro. Lagoa do Sobradinho. Rendeiras.

Abstract
The article is a field study carried out with the billet lace makers from the commu-
nity of Lagoa do Sobradinho in Luís Correia-PI, and its objective is to identify ex-
periences of the lace makers in the place. Three of them, who have great knowledge
and experience in making laces, were interviewed. By using oral speech, it was pos-
sible to obtain their reports and information about the development of the craft in
the place and their perspectives on the maintenance of the traditional knowledge in
the community. As a result, questions of gender, work and cultural identity have
interfered with the practice and maintenance of traditional knowledge in the com-
munity.
Keywords: Billet lace. Lagoa do Sobradinho. Lace makers.

1
Graduanda em Turismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Reis Velloso, Par-
naíba. E-mail: samiresjm@hotmail.com
2
Mestre em Educação Brasileira. Bacharel em Turismo. Graduada em História. Professora auxiliar do
curso Bacharelado em Turismo da UFPI. E-mail: amssphb@gmail.com

ISSN 2447-7354
Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano III, n. 04. Janeiro-Julho de 2017. Parnaíba-PI

Introdução pectivas que elas possuem sobre a práti-


ca do rendar na comunidade, observan-
A Renda de bilro é um artesanato ri-
do suas perspectivas relacionadas a pro-
co em detalhes e seu patrimônio cultural
dução de bilro na comunidade, também
material está cada vez mais valorizado
serão analisados as motivações que in-
nas grandes cidades, mesmo com o
terferem na sua manutenção, como
crescimento de indústrias voltadas a
questões de gênero, cultura e trabalho.
produção da renda, pois ela possui uma
delicadeza e confecção diferenciada que . O artigo baseou-se em uma aborda-
promovem uma peça única em detalhes gem do estudo qualitativo e bibliográfi-
e beleza. Conhecida também como ren- co, utilizando também o estudo de
da de almofada ela pode ser localizada campo para obter maior aproximação
em inúmeros estados do Brasil, como: com o objeto de estudo, as rendeiras da
Santa Catarina, Piauí, Rio de Janeiro e comunidade Lagoa do Sobradinho, ob-
Ceará. servando que “o trabalho de campo
constitui-se numa etapa essencial da
Este artesanato é encontrado em al-
pesquisa qualitativa, que a rigor não
guns locais no estado do Piauí, princi-
poderia ser pensada sem ele” (MINA-
palmente na zona litorânea, no qual é
YO, 2006, p. 202).
muito reconhecida na comunidade de
Morros da Mariana, no qual já realiza- Ir a campo e conhecer o objeto estu-
ram diversas pesquisas sobre as rendei- dado é fundamental para entender em-
ras desta localidade que se encontra no piricamente o mesmo, além de propor-
município de Ilha Grande de Santa Isa- cionar uma maior aproximação com
54 bel. Há outros lugares que produzem, ele, o estudo de campo promove ao
mas não possuem tamanha visibilidade pesquisador percepções fundamentais
e desenvolvimento quanto à área citada, para a compreensão do local de pesqui-
no entanto, este artigo abordou a pro- sa e o que será pesquisado.
dução desse artesanato tradicional em
A pesquisa de campo aconteceu entre
Lagoa do Sobradinho, localizado no
os meses de novembro e dezembro de
município de Luís Correia.
2016, utilizando a observação partici-
A comunidade Lagoa do Sobradinho pante para obter uma compreensão em-
é um povoado pequeno, possui em tor- pírica do cotidiano das rendeiras, além
no de 900 habitantes, é um povoado da observação, foram realizadas entre-
humilde, porém as casas construídas são vistas abertas e semiestruturadas duran-
de tijolos, o que diferencia este povoado te esse período para obter informações
dos demais, que geralmente vivem em mais valiosas no qual:
casas de taipa. A maioria dos habitantes
sobrevive da pesca, da agricultura e do
aposento, e uma pequena parcela sus- [...] a quantidade de material produzido nes-
tenta-se através trabalho autônomo. ses encontros tende a ser maior mais denso e
Nesta localidade encontram-se rendeiras ter um grau de profundidade incomparável
que, por lazer, amor ao oficio e questões em relação ao questionário, por que a apro-
financeiras produzem renda de bilro. ximação qualitativa permite atingir regiões
inacessíveis à simples pergunta e resposta [...]
Diante disso, este artigo tem como
(MINAYO, 2006, p. 265).
objetivo identificar as experiências das
artesãs, analisando como o artesanato é
desenvolvido no local e quais as pers-

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Foi utilizado como instrumento de compreendermos o desenvolvimento do


coleta um gravador para registrar com oficio e as experiências que ocorreram
precisão as palavras das rendeiras, dan- com as artesãs.
do mais confiabilidade aos relatos, faci-
A estrutura do artigo parte da
litando a compreensão da historia do
compreensão do que é patrimônio cul-
modo de produção do artesanato na
tural imaterial, usando sua definição
comunidade e das perspectivas das ren-
para então abordar a renda de bilro co-
deiras sobre o ofício. Para proporcionar
mo um conhecimento tradicional, rela-
um maior entendimento acerca dos ma-
tando em seguida um pouco da história
teriais usados na produção do artesana-
do local que se confunde com a história
to foram produzidas imagens.
do artesanato, até abordar as experiên-
Foi usada a abordagem etnográfica, cias das rendeiras, suas perspectivas e a
no qual “inclui pessoas leigas, represen- realidade encontrada na comunidade.
tações de situações a serem transforma-
das, de forma orgânica à produção de
conhecimento sobre tais situações” Renda de Bilro: Patrimônio Cultural
(MINAYO, 2006, p. 162). A partir do Imaterial
uso desta abordagem podem-se compre-
ender os questionamentos citados e ob- O Patrimônio cultural imaterial se-
ter informações sobre as experiências gundo a Organização das Nações Uni-
das artesãs empiricamente, adquirindo das para a Educação, a Ciência e a Cul-
assim percepções próprias sobre o obje- tura, fundamental para guardar as me-
to estudado. Foram entrevistadas as
rendeiras, Maria de Lourdes, 55 anos,
mórias, tradições e cultura de um povo.
De acordo com a UNESCO1, “o Patri- 55
rendeira desde criança; Maria Vilma, 60 mônio Cultural Imaterial ou Intangível
anos, pratica o ofício desde os sete anos compreende as expressões de vida e tra-
e Francisca Soares, 64 anos, pratica o dições que comunidades, grupos e indi-
ofício de rendeira desde os vinte e dois víduos em todas as partes do mundo
anos de idade. A análise dos dados foi recebem de seus ancestrais e passam
realizada a partir da analise do discurso, seus conhecimentos a seus descenden-
que é baseado nas falas das entrevista- tes”, estabelecendo dessa maneira uma
das para obter conclusões sobre o traba- conexão de identidade entre os povos e
lho realizado. sua cultura.

A escolha de entrevistar apenas três A Renda de bilro ainda não está no


artesãs parte da compreensão de que as Livro de Registro dos Saberes2, porém
mulheres escolhidas possuem grande está em andamento para ser reconheci-
experiência e conhecimento no oficio de da como patrimônio imaterial pelo
rendar. Para coletar as informações do IPHAN, ela pode ser considerado pa-
estudo de campo, foi utilizada a história trimônio cultural material, a partir de
oral, pois, “é através do oral que se pode suas peças que são confeccionadas e
aprender com mais clareza as verdadei- possuem esse valor, e patrimônio imate-
ras razões de uma decisão; que se des- rial, a partir dos conhecimentos repas-
cobre o valor de malhas tão eficientes sados de geração em geração o saber
quanto às estruturas oficialmente reco- fazer. É relevante afirmar que: “no pa-
nhecidas e visíveis [...]” (FERREIRA; trimónio material, o mais importante
FERNANDES; ALBERTI, 2000, p. 1
< http://zip.net/bxtM6p> Acesso em 26.12.2016.
34). Esses relatos são fundamentais para 2
< http://zip.net/bytMLH> Acesso em 27.12.2016.

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são as coisas, no património imaterial, o começaram a se difundir no país, desta


principal são as pessoas” (CABRAL, forma:
2011, p. 16), ou seja, o que é palpável
Pode-se encontrar atualmente o arte-
faz parte do patrimônio material, en-
sanato de rendas na Região Norte (Pa-
quanto o patrimônio imaterial é repre-
rá); no Nordeste (Alagoas, Bahia, Cea-
sentado pelo conhecimento, pelo saber
rá, Maranhão, Paraíba, Pernambuco,
fazer.
Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe);
Porém “a ideia de transformar a no Sudeste (Rio de Janeiro e Minas Ge-
renda de bilros em patrimônio cultural rais) e no Sul (Santa Catarina) (MAT-
se estabelece a partir do momento em SUSAKI; KANAMARU, 2013, p. 07).
que é considerada pela comunidade e
Com a renda de bilro difundida em
pelos espectadores como parte integran-
várias regiões, fez com que a mesma
te de sua identidade cultural” (ANGE-
desenvolvesse diferentes formas de defi-
LO, 2005, p. 176), através dessa identi-
nição, no qual também é conhecida co-
dade o indivíduo estabelece sua cultura,
mo:
crenças e tradições, preservando-a e
mantendo-a para as próximas gerações.
A Renda de bilro tem suas origens [...] renda de almofada, renda da terra, ren-
desconhecidas, pois não há documentos da do norte, renda do Ceará. São variados os
suficientes que comprovem onde ela se nomes encontrados no Brasil e no mundo
originou. No entanto, no Brasil a tese para esse tipo de renda. As duas primeiras
mais aceita entre os pesquisadores é que denominações se referem aos materiais utili-
56 seu surgimento deu-se a partir dos imi- zados para o feitio da renda, que assim a
grantes açorianos que segundo, Zanella diferem da renda de agulha; as três últimas
(1999, p.146) desembarcaram em Santa são denominações que associam o fabrico da
Catarina no século XVIII. No qual che- renda à região na qual é produzida (MAT-
garam ao sul do Brasil em busca de me- SUSAKI; KANAMARU, 2013, p. 07).
lhores condições de vida e ao se depara-
rem com as dificuldades encontradas no
Brasil, tiveram que mudar seus hábitos Cada região procura denominar esse
para se adaptarem a sua nova realidade, artesanato de acordo com sua cultura,
com isso, a produção da renda de bilro na localidade pesquisada ela é denomi-
também passou por modificações, pois: nada renda de birro. A seguir, apresen-
ta-se a relação entre patrimônio cultural
imaterial e o conhecimento reproduzido
Com o advento do turismo [...] a renda de na comunidade Lagoa do Sobradinho.
bilro passou a ser economicamente valoriza-
da, pois a sua comercialização possibilitava
às mulheres de pescadores das comunidades Rendeiras de Bilro de Lagoa do Sobra-
do interior da Ilha complementarem o orça- dinho
mento doméstico (ZANELLA, 1999, p. 146).
Situado no município de Luís Cor-
reia, Lagoa do Sobradinho é um peque-
Com o artesanato fazendo parte da no povoado, no qual os moradores so-
sociedade sendo um complemento fi- brevivem da agricultura familiar de sub-
nanceiro para as famílias, as mesmas sistência, da pesca e da produção de
artesanato renda de bilro. Não há in-

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formações que afirmem com precisão a ras, sendo repassada de geração a gera-
história da comunidade, no entanto a ção pelas mulheres da comunidade.
ocupação da localidade é relatada pelos
Dona Maria de Lourdes (2016) des-
moradores, os quais guardam em suas
creve que: “de primeiro só faziam renda
memórias individuais e coletivas marcas
com espinhos, agora que as pessoas tão
do passado que hoje ajudam a contar o
usando alfinete. No tempo da mamãe
presente. Assim, a rendeira Francisca
ela usava lamparina em cima da mufa-
Soares (2016) relatou: “o lugar não mu-
da3, via a hora a lamparina cair e acabar
dou quase nada, a diferença é que antes
com tudo”. Além da melhoria dos obje-
as casa não era feita de tijolo, era casa
tos usados para produzir o artesanato, a
de taipa”.
produção tornou-se mais eficaz devido
Com relação ao nome do povoado os materiais industrializados e dá che-
Francisca Soares (2016) afirma que: gada da eletricidade à comunidade, pos-
“dizem os mais antigos que o nome do sibilitando a facilidade de produzir me-
lugar se deu, porque onde ficam as du- lhor durante a noite.
nas tinha um sobrado com dois andares,
Um aspecto interessante que aproxi-
aí chamaram o lugar de sobradinho”.
ma a realidade das rendeiras da comu-
Além de relatos de que havia um sobra-
nidade, que também é observado em
do onde hoje se localiza as dunas, há
um estudo de Camila Bergamin (2005)
suposições que há 100 anos, onde se
sobre rendeiras em Florianópolis, relata
localiza as mesmas, já foi moradia de
que:
índios.
A história da comunidade se confun- 57
de com a história das rendeiras, pois há O trabalho com a renda era necessário a essas
relatos que as primeiras moradoras mulheres não só como complemento para a
trouxeram e repassaram o conhecimen- arrecadação de dinheiro para manutenção da
to tradicional na comunidade, no qual casa [...] Muitas dessas mulheres eram espo-
até hoje é possível encontrar esse patri- sas de pescadores, que passavam longas tem-
mônio imaterial. poradas em alto mar, acabando por deixar o
sustento e a chefia da família nas mãos e nos
As rendeiras da comunidade de La-
bilros dessas mulheres (BERGAMIN, 2005,
goa do Sobradinho fazem parte de uma
p. 16).
pequena parcela de mulheres do litoral
piauiense, que de forma autônoma man-
têm o conhecimento na produção da
Essa situação era encontrada em
renda de bilro. A partir do relato de Ma-
quase todas as famílias da comunidade,
ria de Lourdes, atualmente é possível
atualmente poucas famílias reproduzem
identificar a atuação de 30 rendeiras,
essa forma de vida, pois muitos já se
onde a maioria é idosa e donas de casa,
aposentaram e sobrevivem da agricultu-
com idades entre 40 a 60 anos, praticam
ra familiar de subsistência, do trabalho
o oficio por lazer e por necessidades
autônomo e do aposento, dessa forma a
financeiras.
produção do bilro transformou-se em
Não foi possível identificar com pre-
cisão quando foi iniciada a produção da
renda na comunidade, sabe-se que essa 3
tradição veio com as primeiras morado- Segundo as rendeiras, “mufada” é especifica-
mente a almofada própria para produzir o artesa-
nato renda de bilro.

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uma pratica de lazer, deixando de ser a alguém crivar4, já a mufada geralmente as


principal fonte sustento familiar. rendeiras devem saber fazer sua própria mu-
fada, a minha mufada é de palha de bana-
Quando questionada sobre a produ- neira, e é pequena porque a minha renda é
ção do artesanato na comunidade, Ma-
pequena, quem faz a renda grande, tem a
ria de Lourdes (2016) afirma que a prá-
mufada grande, tem algumas que usam mu-
tica sempre foi exclusivamente femini-
fadas de folhas de cajueiro, eu não uso por-
na, pois segundo seus relatos: “se algum
que a folha é dura e intorta os alfinete e que-
homem fizesse renda, era visto como
bra os espinhos e a renda sai mal feita.
viado, e se algum homem fizesse, tinha
que ser escondido, ninguém podia sa-
ber”.
Os instrumentos utilizados pela ren-
Essa visão parte de questões tradicio- deira para produzir o artesanato, (como
nais e de gênero, pois enquanto os ho- apresentado na figura1), são rico em
mens iam para a roça, as mães cuida- detalhes, além disso, estes instrumentos
vam dos filhos e exerciam a produção e a renda são peças frágeis, dessa forma,
de renda de bilro para ajudar no orça- são de grande importância à organiza-
mento familiar e para distrair-se, usan- ção e o cuidado com os mesmos, pois
do-a como forma de lazer. segundo ela, faz a diferença na obtenção
de um bom material.

A questão da tradição pode ser visualizada


como representação da cultura material, em
58 especial feminina, [...] uma vez que fazer
rendas era uma atribuição feminina que
simplesmente foi sendo passada por diversas
gerações enquanto tradição e, ao mesmo
tempo, era tida como um trabalho de mulher
que servia como meio de subsistência ou uma
forma de ajudar no orçamento doméstico
(ANGELO, 2015, p. 15).

Figura 1: Almofada e seus instrumentos. Fonte:


Pesquisa direta (2016).
O homem participa da produção da
renda apenas na fabricação do bilro,
peça usada para segurar a linha que será
traçada e ajuda a rendeira a encher a Um aspecto relevante sobre as peças
almofada ou mufada como elas o cha- produzidas pelas rendeiras, é que elas
mam. Quando questionada sobre a fa- além da renda tradicional confeccionam
bricação dos outros materiais para pro- também a renda de bico, (como apre-
duzir o artesanato, a rendeira Maria de sentado na figura 2), ambas segundo a
Lourdes (2016) relata que: artesã, são vendidas no metro e por en-
comenda e mesmo assim possuem peças
guardadas. Dona Maria de Lourdes
Para fazer a renda usamos a linha, o birro, 4
os alfinetes, os espinhos de mandacaru, o As rendeiras afirmam que a palavra crivar no
contexto delas, significa furar o papelão, forman-
papelão e a mufada. A linha e o alfinete nós
do figuras, desenhos, no qual os alfinetes serão
compramos em loja, o papelão peço para fixados.

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(2016) quando questionada sobre a dife- lia e com amigas, no entanto o aprendi-
rença dessas peças explica, “a renda zado muitas vezes era imposto para as
mesmo, ela é toda reta, já a renda de filhas, pois as mesmas deveriam buscar
bico ela tem uma ponta, por isso o no- uma forma de conseguir recursos para
me”. comprarem bens materiais, essa realida-
de pode ser vista a seguir:

As mulheres aprendiam a atividade da renda


muito cedo. Meninas na idade média de sete
anos já possuíam seu espaço do dia reservado
a aprender a fazer a renda-de-bilro. E não o
faziam, muitas vezes por vontade própria,
mas por determinação materna, que via na
renda um importante aprendizado que deve-
ria passar as filhas, também como uma ten-
Figura 2: Renda de Bico e Renda Tradicional. tativa para garantir uma atividade que a
Fonte: Pesquisa direta (2016).
sustente em qualquer situação de adversidade
financeira (BERGAMIN, 2005, p. 19).

Quando questionada como as mulhe-


res aprendiam a rendar e como ela Dessa forma esse conhecimento foi
aprendeu, dona Maria de Lourdes sendo repassado de geração em geração,
(2016) relata que aprendeu o oficio ob- no entanto com o surgimento da mo- 59
servando sua mãe, pois nem sempre ela dernidade, melhores condições de vida,
estava disposta a ensinar. a reprodução desse conhecimento pelas
filhas das rendeiras sofreu uma trans-
formação, no qual resultou em uma di-
As mães ensinava as filhas a aprender, para minuição de rendeiras na comunidade,
aprenderem a trabalhar e tirar um trocadi- pois sua continuação foi afetada. Quan-
nho meno para roupa, muitos gostavam de do questionada sobre o repasse desse
fazer aquilo, outras aprendiam por que as conhecimento através dos jovens, Maria
mães botavam mesmo. Minha mãe não me de Lourdes (2016) declara que:
ensinou, ela ensinou só as filhas mais velhas,
eu aprendi porque quando minha mãe ia
mexer na panela, eu ai lá e mexia os birros, Os jovens tem falta de interesse pra querer
eu aprendi assim, mexendo na mufada de aprender, acho que é porque não tem com-
pouquinho em pouquinho, quem me ensinou prador certo, por que se tivesse comprador
foi outra mulher, depois que eu aprendi, a certo, eles iam conseguir ganhar dinheiro,
minha irmã ainda me ensinou a assentar5 a assim acho que eles se interessariam em
renda, porque eu não sabia. aprender e continuar com ela aqui.

Além da mãe havia uma parcela que Essa realidade baseia-se na não inse-
aprendia com outros membros da famí- ridade do artesanato na cadeia produti-
va, que causa um desinteresse nos jo-
5 vens, pois eles enxergam a prática de
Segundo a rendeira, assentar a renda é começá-
la.
rendar como forma de conseguir recur-

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sos financeiros, no entanto as rendeiras lidade dificulta a ida das artesãs para a
além de questões financeiras enxergam praia, deixando seus produtos na condi-
o ofício como forma de lazer. “Fazer ção de não visibilidade e resultando na
renda é uma forma de se distrair, é um não inseridade da renda no mercado.
exercício pra mão da gente”, relata Ma-
ria de Lourdes (2016).
Conclusões
Quando questionada sobre sua pers-
pectiva com relação à continuidade do A partir das experiências relatadas foi
oficio no local, a rendeira Maria de possível observar que os métodos na
Lourdes (2016) afirma: produção continuam tradicionais, além
disso, foram poucas as mudanças nos
instrumentos para produzir o artesana-
Sinceramente eu tô preocupado com esse to, tais instrumentos que são produzidos
trabalho daqui, parece que tá em extinção, pelas artesãs e por moradores, usam os
mas enquanto pelo meno uma que nem eu, mesmos materiais de muitos anos atrás,
uma como a Vilma, não vamo parar não, e a participação do homem na produção
mas quando a gente morrer, acho que acaba. da renda apenas e apresentada na fabri-
Agora esses mais novos aí, só se tiver outro cação de alguns objetos que fazem parte
tipo de trabalho para eles aprenderem a fa- do bilro.
zer, porque se não aparecer comprador vai
continuar do mesmo jeito assim. Com relação às perspectivas das
rendeiras sobre a continuidade do oficio
60 Porém, a rendeira Maria Vilma
no local, foi observado que há duvidas
entre as artesãs, segundo os relatos exis-
tem em torno de 30 rendeiras na comu-
(2016), quando questionada, acredita
nidade. De acordo com a definição de
que sua reprodução não irá acabar, diz:
patrimônio imaterial, a prática de ren-
“eu acredito que não vai acabar ainda
dar sofre ameaça de não permanecer no
tem muita rendeira por aqui”.
local sendo esquecida pelos jovens, po-
Apesar de opiniões contrarias, a rea- rém nada impede que ela não seja re-
lidade de ambas é parecida, as duas re- produzida posteriormente e continue a
clamam da falta de compradores, pois fazer parte do local.
não há visibilidade acerca dos produtos
Conforme os relatos foram possíveis
vendidos, além disso, todas as rendeiras
analisar as motivações que implicam na
trabalham separadamente, o que causa
valorização e manutenção do patrimô-
certa disputa entre elas, porém foi rela-
nio no local, uma delas é a baixa co-
tado que uma vez ou outra as artesãs se
mercialização do artesanato, o que acar-
reúnem para se ajudarem.
reta na falta de interesse dos jovens em
Dona Francisca Soares (2016), quan- aprender o oficio das mães, pois segun-
do questionada sobre a exposição das do as rendeiras, a visão que eles possu-
confecções de bilro na praia que seria em sobre esse patrimônio é voltada ape-
uma forma de aumentar sua visibilida- nas para as questões financeiras, e as
de, relata: “eu já fui na praia vender visões das artesãs se referem principal-
minha renda, mas as pessoas pegam na mente como uma prática que lhes ofere-
renda com a mão suja e não compra cem lazer.
elas, aí estraga a renda, assim não vale a
Além disso, os jovens não foram
pena ir na praia vender elas”. Essa rea-
obrigados a aprender o oficio desde cri-

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ança como suas mães foram submeti- Catarina em História. Florianópolis:


das. Essa não imposição determinou v.7, n.1 2005.
que o aprendizado fosse escolhido por
suas filhas que enxergam hoje que pro- CABRAL, Clara Bertrand. Património
duzir a renda de bilro no povoado não Cultural Imaterial: convenção da
lhes oferecem recursos financeiros, des- Unesco e seus contextos. Lisboa: Edi-
sa forma elas não sentem a necessidade ções 70. Coleção “Arte & Comunica-
de aprender o oficio das mães, e com a ção”, 2011.
industrialização e a falta de obrigatorie- FERREIRA, Marieta de Morais; FER-
dade, as mesmas deixaram de reprodu- NANDES, Tânia Maria Dias; AL-
zir o conhecimento imaterial de rendar, BERTI, Verena. (Org.). História oral:
procurando outras formas de lazer e de desafios para o século XXI. 20.ed. Rio
conseguir recursos financeiros. de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de
Outro aspecto importante que foi Oswaldo Cruz / CPDOC – Fundação
analisado com relação à reprodução do Getúlio Vargas, 2000.
patrimônio é que os jovens por não pra- MATSUSAKI, Bianca do Carmo; KA-
ticarem o ato de rendar, acabam per- NAMARU, Antônio Takao. Fios entrela-
dendo a identidade cultural que as mães çados. 9° Colóquio de Moda. Fortaleza
possuem, sendo essa uma das preocupa- (CE): 2013.
ções das rendeiras, que esse patrimônio,
por conta do desinteresse dos jovens se MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O
perca, e por consequência seja esqueci- desafio do conhecimento: pesquisa
do na localidade. qualitativa em saúde. 9. ed. São Paulo:
Hucitec, 2006.
61
A partir deste estudo de campo pos-
teriormente será realizado um aprofun- ZANELLA, Andréa Vieira. Aprendendo
damento sobre gênero e identidade, pois a tecer a renda que o tece: apropriação da
são primordiais para entender como a atividade e constituição do sujeito na perspec-
renda de bilro pode ser preservada em tiva histórico-cultural. Revista de Ciên-
Lagoa do Sobradinho, será estudado cias Humanas [Florianópolis], Edição
como estas questões interferem na re- especial temática, pp. 145 – 158,1999.
produção do saber fazer na comunidade
e em sua valorização.

Referências
ANGELO, Elis Regina Barbosa. Te-
cendo rendas: gênero, cotidiano e ge-
ração, Lagoa da Conceição, Florianó-
polis SC. Dissertação (mestrado). Pro-
grama de Pós-Graduação em História,
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2005.
BERGAMIN, C. A importância da renda
de bilro na economia familiar em Florianó-
polis no início do século XX e a sua conti-
nuidade no tempo presente. Revista Santa

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