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Universidade Aberta

4. Reprodução e
hereditariedade

Paula Bacelar Nicolau


01-01-2011
Objetivos de aprendizagem

 Definir e caraterizar os ciclos celulares de células procariotas e de


células eucariotas;

 Conhecer o conceito de reprodução e os tipos de reprodução;

 Caraterizar a reprodução em células procariotas e em células


eucariotas;

 Caraterizar e distinguir os processos de mitose e de meiose;

 Conhecer e caraterizar os mecanismos que regem a


hereditariedade, nomeadamente a hereditariedade Mendeliana a
hereditariedade cromossómica e as proporções não-Mendelianas.

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Introdução
Duas caraterísticas fundamentais de todos os organismos vivos são a suas
capacidades de crescimento e de reprodução. De facto, todos os
organismos vivos nascem, desenvolvem-se e crescem, atingem a
maturidade e reproduzem-se, e eventualmente morrem. Estes
acontecimentos são repetitivos para cada uma, e todas as espécies
biológicas, e representados em ciclos de vida.

O crescimento de um organismo resulta quer do aumento de volume


celular quer do aumento de seu número de células. Ao nível celular, o
crescimento é acompanhado pela síntese adicional das diversas moléculas
e macromoléculas biológicas (proteínas, lípidos, ácidos nucleicos, etc.) e
pela concomitante expansão da área da membrana plasmática. No entanto,
uma célula não cresce indefinidamente, pois o seu crescimento levaria a
um decréscimo da eficiência celular nas trocas com o meio exterior
(devido à diminuição da razão “área de superfície/ volume”; ver Capítulo
2), e por esta razão, o crescimento de uma célula é sempre acompanhado
pela sua divisão (i.e. pela sua reprodução).

Num organismo unicelular, o crescimento origina o aumento do número


de indivíduos (e resulta no crescimento da sua população). Num
organismo multicelular, o crescimento resulta no aumento do número de
células do indivíduo (ex. crescimento de um organismo do seu estado
juvenil ao estado adulto) ou na substituição de células num indivíduo
adulto (ex. ca. de 2 milhões de células da medula óssea dividem-se por
segundo, para manter o número de hemácias no sangue).

A reprodução é o processo através do qual as espécies se perpetuam. Por


outras palavras, é o processo pelo qual a informação genética contida nos
cromossomas de um indivíduo é continuada e passada a um novo
indivíduo. Existe uma diversidade de mecanismos reprodutores, que se
agrupam em dois tipos básicos: reprodução assexuada e reprodução
sexuada.

No processo de reprodução assexuada a informação genética transferida à


descendência provém de um único progenitor e portanto as células filhas
são geneticamente idênticas à célula progenitora, e idênticas entre si. Do
ponto de vista dos processos celulares, e com a exceção dos procariotas, a
reprodução assexuada envolve sempre uma divisão nuclear a que
chamamos mitose. O processo de divisão celular mitótico está na base da
reprodução assexuada, bem como na base do crescimento de células
eucariotas (como acima referido).

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No processo de reprodução sexuada há a participação genética de dois
indivíduos distintos. O ciclo de vida de um organismo que se reproduz
sexualmente é mais complexo que aquele que se reproduz
assexuadamente, e apresenta uma alternância de fases nucleares. Nestes
organismos, um grupo de células especiais divide-se por um processo de
redução cromossómica – meiose - que origina (direta ou indiretamente,
como veremos) as células sexuais ou gâmetas. Os gâmetas fundem-se, no
processo de fecundação, e originam um ovo, que se desenvolve num novo
indivíduo.

Neste capítulo centramo-nos nos mecanismos de reprodução celular, e nos


mecanismos básicos da hereditariedade. Vamos considerar primeiro o
ciclo de vida de organismos unicelulares (procariotas e eucariotas) e a
reprodução assexuada e finalmente o ciclo de vida de organismos
multicelulares e a reprodução sexuada.

4.1 Ciclo celular

O ciclo de vida de uma célula é a sequência de eventos ou fases que


constituem o ciclo de crescimento vegetativo e a divisão celular. Muitos
processos biossintéticos (proteínas, lípidos, etc.) ocorrem mais ou menos
continuamente ao longo do ciclo celular. Em contraste, a replicação de
DNA (o material hereditário celular) é um processo descontínuo que
ocorre num período limitado e específico do ciclo celular.

4.1.1 Ciclo celular de organismos procariotas

O ciclo de vida de uma célula procariota, como uma bactéria, é


relativamente simples (Fig. 4.1). O crescimento da célula procariota
cromossoma traduz-se no aumento do seu
membrana volume devido à síntese dos
plasmática

parede celular
constituintes celulares. Ao atingir
Replicação de DNA
uma determinada dimensão é
desencadeado o processo de
divisão celular - fissão binária -
Crescimento processo pelo qual um indivíduo se
divide em dois de dimensão
semelhante. A divisão celular, em
Divisão celular
células procariotas, corresponde ao
seu processo de reprodução e dado
que a informação hereditária
Figura 4.1 - Divisão celular de uma
bactéria (fissão binária). passada às células filhas é

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proveniente de apenas um progenitor, a reprodução é assexuada.

O material genético, composto por um único cromossoma circular, é


replicado numa fase anterior do ciclo de vida celular. O cromossoma
bacteriano encontra-se ligado numa determinada zona do plasmalema. O
processo de replicação do DNA é um processo enzimático que se inicia
numa região do cromossoma, denominada origem de replicação (O), e
findo o qual estão formadas duas cópias filhas do genoma ligadas, lado a
lado, à membrana plasmática (Fig. 4.2). O crescimento bacteriano dá-se
pela deposição de nova membrana e de novos materiais celulares entre os
dois locais de ligação dos cromossomas “filhos” à membrana plasmática,
o que assegura que cada célula filha contenha apenas uma cópia do
genoma. Subsequentememte a célula divide-se.

Figura 4.2 – Replicação do cromossoma circular de uma bactéria. A replicação inicia-se


na origem de replicação (O) e procede bidireccionalmente, com duas
regiões de replicação ("garfos de replicação") movendo-se em direções
opostas, ao longo do cromossoma.

4.1.2 Ciclo celular de organismos eucariotas

As células eucariotas são de maior dimensão do que as procariotas e têm


célula um ciclo celular consideravelmente mais
M filha
G2 complexo (Fig. 4.3). O genoma eucariota é
1
muito maior que o procariota, encontrando-se Número de cromossomas em
alguns eucariotas
agrupado em cromossomas lineares múltiplos
(em oposição ao cromossoma único, circular, Grupo nº de cromossomas
Fungos (haplóide)
dos procariotas), cujo número varia, e é Penicillium 1-4
S
característico de cada espécie biológica 1. A Saccharomyces 18
G1
complexa organização do DNA eucariota Plantas (ploidia variável)
Ervilheira 14
Figura 4.3 - Esquema permite à célula desempenhar com eficiência Cana de açúcar 80
representativo do ciclo de os processos celulares que envolvem estas Vertebrados (diplóide)
vida de uma célula eucariota, moléculas (replicação e transcrição) apesar da Humano 46
Cão 78
representando as fases da
interfase (G1, S, G2) e mitose
M).

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enorme quantidade de informação nelas contida (ver Quadro IV.1).

O ciclo celular de células eucariotas pode ser dividido em cinco fases: G1,
S, G2, M e C. As três primeiras fases são, no seu conjunto, designadas por
interfase; a fase M ou mitose é a fase de divisão nuclear (segregação de
cromossomas); C ou citocinese é a fase de divisão citoplasmática.

Quadro IV.1 - Organização do genoma em células eucariotas

O genoma eucariota encontra-se agrupado em múltiplos cromossomas lineares,


cujo número varia, e é característico de cada espécie biológica. Por exemplo, a
espécie humana possui 46 cromossomas em cada célula somática, ou seja 23
pares de cromossomas (sendo uma unidade de cada par proveniente de cada um
dos nossos progenitores).

Os cromossomas são constituídos por um complexo de DNA e de proteína


(cerca de 40:60, %), designado por cromatina. Incorporado em cada
cromossoma, encontra-se uma longa e ininterrupta molécula de DNA (ver
Capítulo 2) que contém centenas ou milhares de genes, as unidades de
hereditariedade que especificam as nossas caraterísticas fenotípicas. A
localização específica de cada gene na molécula de DNA do cromossoma
denomina-se locus (plural, loci). De entre as proteínas que fazem parte da
cromatina, salientam-se as histonas. As histonas (H1, H2A, H2B, H3 e H4)
formam complexos de oito proteínas (núcleos histónicos), em torno dos quais
se enrola helicoidalmente a cadeia dupla de DNA. Ao conjunto formado pelo
DNA enrolado em torno de cada complexo de histonas chama-se nucleossoma
(sequência de cerca de 200 nucleótidos por complexo de histonas). Os
nucleossomas podem, por sua vez, apresentar um maior grau de agregação, ou
seja grau de compactação do DNA. A cromatina no seu maior grau de
compactação designa-se por heterocromatina e no menor grau de compactação
designa-se por eucromatina. As regiões de DNA com maior grau de
compactação têm um grau menor de expressão (transcrição).

nucleossomas
compactados

DNA
nucleossoma
núcleo
cromatina histónico
cromossoma supercompactada

DNA

cromatina
com baixo
grau de
74 compactação fibra de cromatina
4.1.2.1 Interfase

A interfase pode ser definida como a fase intermédia entre duas divisões
celulares sucessivas. No entanto, cerca de 90% do ciclo de vida de uma
célula normal pode ser passado nesta fase. Apesar do termo interfase
sugerir um estado passivo (pois quando observada ao microscópio a célula
pode aparentar um estado de dormência), a atividade bioquímica nesta
fase do ciclo celular é elevada. A interfase compreende as fases G1, S, G2
e por vezes G0. A fase G1 (G, do inglês gap, intervalo) é a fase de
crescimento primário celular (e da concomitante síntese de moléculas e
macromoléculas, à exceção do DNA, bem como de duplicação de 2
O conteúdo de DNA duplica
do nível 2C para o nível 4C,
componentes do citoplasma) e para muitos organismos ocupa a maior durante a fase S do ciclo
parte do ciclo celular. Na fase S2 (S, de síntese de DNA) os cromossomas celular, e retorna ao nível 2C,
abruptamente, quando os
são replicados e passam a ser formados por dois cromatídeos irmãos, que cromossomas se separam na
se mantêm ligados através de uma região denominada por centrómero (ver fase de mitose (M).
secção 4.1.2.2.). G2 (G, do inglês gap) é a fase de preparação para a 4C
síntese de DNA síntese de DNA

divisão celular, em que a célula retoma a atividade de crescimento, com


síntese de RNA e proteínas, e fim da duplicação de organelos, e em os 2C

cromossomas começam a condensar-se e há uma acentuada síntese de G1 S G2 M G 1 S G2 M


divisão mitótica divisão mitótica
tubulina (componente dos microtúbulos e do fuso mitótico).
1º ciclo celular 2º ciclo celular

O tempo que uma célula demora a completar o ciclo celular varia com o
organismo ou com a célula em causa, sendo esta variação devida
principalmente a diferenças na fase G1. As células pausam frequentemente
na fase G1, antes da replicação do DNA, num estado de “dormência”
designado por fase G0. Por exemplo, as células musculares mantém-se
sempre na fase G0, enquanto que células do fígado podem voltar à fase G1,
como resposta a estímulos devidos a danificação do órgão. 3
Exemplos de reprodução
assexuada:

4.1.2.2 Mitose

O processo de divisão celular que envolve a mitose é aquele em que uma (a) divisão mitótica (ex.
célula origina duas células “filhas” geneticamente idênticas entre si e Amiba)

idênticas à célula “mãe”. A mitose é responsável pela proliferação celular,


originando o aumento do número de organismos (no caso dos seres
unicelulares corresponde ao seu processo de reprodução assexuada, e ao
crescimento da população) ou o aumento do número de células de um
(b) formação de gomos
organismo (no caso dos seres multicelulares corresponde ao crescimento). (gemulação) (ex. Hydra)

A divisão mitótica é a base do modo de reprodução assexuada em todos os


organismos eucariotas. A reprodução assexuada 3 é o processo pelo qual
um indivíduo herda toda a sua informação genética de um único indivíduo
progenitor, sendo portanto geneticamente idêntico a este. (c) a regeneração de partes de
organismo ou de organismos
inteiros (ex. estrela do mar).

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A mitose pode subdividir-se em 4 fases distintas: profase, metafase,
anafase e telofase (Fig. 4.4).

Interfase
Cr -cromatina; Nl - nucléolo

Nl

Citocinese:
 Em células vegetais: há
formação de placa celular
(sse ta) que separará os dois
núcleos filhos.
(Nota: em células animais
há formação de anel de
constrição na zona Profase:
equatorial da célula).  Condensação de
cromossomas (seta),
 Desintegração do
envelope nuclear,
 Desaparecimento de
nucléolos,
Telofase:  Início de formação do
 Cromossomas localizam-se fuso mitótico,
nos polos opostos da célula  Cinetocoros ligam-se
 Reaparecimento de ao fuso mitótico.
envelope nuclear e de
nucléolos
 Microtúbulos polares
alongam-se, preparando a
célula para a citocinese.
Metafase:
 Os cromossomas, ligados aos
microtúbulos do fuso mitótico pelos
cinetocoros, alinham na
zona da placa metafásica,
 No final da metafase os
Anafase:
centrómeros dividem-se Cr
 Separação dos cromatídeos libertando os cromatídeos
irmãos para polos opostos da
irmãos.
célula, devido a encurtamento Cr- cromossoma; F- fuso
dos microtúbulos cinetocorais
acromático.

Figura 4.4 – Fases da mitose (x 250) numa célula vegetal do ápice radicular de cebola.

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cromatídeo
Profase: fase da mitose caracterizada pela
compactação dos cromossomas. Durante a
microtúbulos
profase, o envelope nuclear desintegra-se e cinetocorais
os nucléolos desaparecem. Em células
animais, os centríolos, divididos no final da
interfase (fase G2), movem-se em direção região do centrómero cinetocoro
aos pólos opostos da célula e forma-se uma do cromossoma

rede de microtúbulos a que se chama fuso


mitótico (que se estende desde os pólos cromossoma
metafásico
opostos da célula até à sua zona equatorial).
Nas células vegetais, apesar de não serem Figura 4.5 - Esquema de
visíveis MTOCS ou existirem centríolos, cromossoma metafásico.
forma-se o mesmo fuso mitótico. No final
da profase, cada cromossoma (composto por um par de cromatídeos 4
Cinetocoro: disco proteico,
irmãos) encontra-se associado aos microtúbulos cinetocorais do fuso que liga cada cromatídeo
irmão dos cromossomas (ao
mitótico por intermédio de discos proteicos – cinetocoros4– que se ligam nível do centrómero) aos
aos cromossomas numa região denominada por centrómero5 (Fig. 4.5). microtúbulos do fuso
mitótico.

Metafase: fase da mitose caracterizada pelo alinhamento dos cromossomas 5


Centrómero: região de
na região equatorial da célula, a que se chama placa metafásica6. Cada constrição dos cromossomas
que mantêm a ligação entre os
cromossoma é guiado para essa região celular pelos microtúbulos do fuso dois cromatídeos irmãos, e à
mitótico. Os centrómeros dividem-se no final da metafase, libertando os qual os cinetocóros se ligam.

cromatídeos irmãos.
6
Placa metafásica: plano
perpendicular ao eixo do fuso
Anafase: fase caracterizada pela separação física dos cromatídeos irmãos. mitótico. Indica onde ocorrerá
Os pólos da célula afastam-se um do outro, devido a movimentos dos o plano de divisão celular.
microtúbulos, e cada cromatídeo irmão é puxado para o respetivo pólo por
encurtamento dos microtúbulos aos quais estão ligados. O encurtamento
dos microtúbulos deve-se à despolimerização da sua extremidade polar
(no MTOC).

Telofase: nesta fase, o fuso mitótico desaparece por despolimerização dos


microtúbulos nos seus monómeros de tubulina (que poderão passar a
integrar o citoesqueleto das células filhas). O envelope nuclear forma-se
em torno de cada um dos dois grupos de cromatídeos irmãos, que passam
a ser chamados cromossomas, e os núcleos tornam-se visíveis.

4.1.2.3 Citocinese

A citocinese é a fase de divisão do citoplasma da célula eucariota em duas


células filhas. Na maioria dos casos, a citocinese ocorre logo após a
divisão nuclear, razão pela qual alguns autores consideram a citocinese
como parte integrante e final da telofase, na mitose. No entanto, em alguns

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casos a citocinese não se dá logo após a divisão nuclear, como é o caso nas
células polinucleadas de fungos.

Em células animais ou outros eucariotas, sem parede celular, a citocinese


acontece devido a uma constrição da célula na zona definida pela placa
metafásica. Nas células vegetais e outras com parede celular rígida, a
citocinese dá-se por deposição de vesículas contendo componentes
membranares que se fundem e originam a nova membrana plasmática das
células filhas (Fig. 4.6). Celulose e pectina são então depositadas no
exterior das membranas para a formação das novas paredes celulares.
parede celular nova parede celular

(a) anel de constrição


células filhas (b) células filhas
vesículas parede celular
primária em formação

Figura 4.6 - Comparação da citocinese numa célula (a) animal e (b) vegetal.

4.1.3 Regulação do ciclo celular em células eucariotas

A progressão dos acontecimentos no ciclo de vida celular é coordenada de


modo semelhante em todas as células eucariotas, desde os fungos aos
mamíferos. Existem três pontos-chave em que a célula verifica o seu
estado (suficientemente grande para dividir? estado de cromossomas?) e
nos quais decide, ou não, passar à fase seguinte do
ciclo (Fig. 4.7):
G2 M
1. Crescimento celular: verificação no final da fase
G1. Antes do inicio da replicação do DNA, a célula
verifica se as condições são propícias à divisão
S celular e decide prosseguir ou não à fase seguinte
G1 (S). As células que entram em fase G0 não passam
este ponto chave.
Figura 4.7 - Regulação
do ciclo celular. Os três 2. Replicação do DNA: verificação no final da
pontos de verificação fase G2. O ciclo prossegue para a mitose.
estão marcados com o
símbolo. 3. Mitose: verificação na metafase da mitose. Ponto
de verificação que desencadeia a fase terminal da

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mitose e o início ao novo ciclo de crescimento (G1).

A regulação destes pontos chave é feita por proteínas INÍCIO DE


MITOS E
reguladoras das quais se destacam dois tipos - ciclinas e
proteínas cinase dependentes das ciclinas (CdK) - cujo
funcionamento permite à célula “reconhecer” se está pronta a
P
prosseguir para a fase seguinte do ciclo celular (Fig. 4.8).
cicl ina G2 M
As ciclinas são proteínas reguladoras que se ligam às proteínas mitót ica

CdK, e que ao fazê-lo as tornam ativas enzimaticamente. As


Cdk S
CdK, uma vez ativas, são capazes de fosforilar7 variadas outras G1
cicl ina de
enzimas celulares, e deste modo, alterar a suas atividades, fas e G1
iniciando processos do ciclo celular. No final de cada fase do P
ciclo, as ciclinas são degradadas e consequentemente as CdK
passam ao estado inativo. No final da fase G2, as CdK são, por
INÍCIO DE
exemplo, responsáveis pela fosforilação das histonas ligadas ao REPLICAÇÃO

DNA, dos filamentos ligados à membrana nuclear e de DE DNA

proteínas associadas aos microtúbulos do fuso mitótico, que Figura 4.8 - Regulação do ciclo celular
iniciam o processo de mitose. Apenas um tipo de CdK foi por ciclinas e proteínas cinase dependentes
das ciclinas, nos pontos de verificação das
descrito, enquanto que diferentes ciclinas regulam cada um dos fases G2 e G1 (símbolo ).
três pontos de verificação do ciclo celular. Deste modo os
complexos ciclina-CdK são capazes de iniciar diferentes
processos celulares.

Quando os sistema de regulação do crescimento celular têm deficiências, 7


Fosforilação: reação de
adição de um grupo fosfato a
por exemplo devido a mutações nos genes que codificam as proteínas uma molécula.
implicadas na sua regulação, a célula pode entrar num crescimento
descontrolado, como no caso das células cancerígenas.

4.2 Ciclo de vida de organismo com reprodução sexuada

A reprodução sexuada envolve a “mistura” de informação genética


proveniente de dois organismos parentais distintos e resulta numa
progenitura geneticamente dissemelhante dos parentais e dissemelhante
entre si. Para além disso as dissemelhanças são aleatórias (como veremos).

A reprodução sexuada está associada à existência de gâmetas, que se


fundem (fecundação) para formar um ovo ou zigoto. Nos organismos
multicelulares, o zigoto desenvolve-se geralmente formando um embrião
(e posteriormente um indivíduo adulto), por crescimento numa série de 8
Células somáticas: células
de um organismo que não
divisões mitóticas, e progressiva especialização de grupos de células. estão envolvidas no processo
Todas as células somáticas8 do indivíduo adulto têm a mesma informação reprodutor.

79
genética. Nos animais, as células que eventualmente se dividem por
meiose para produzir gâmetas são um grupo de células especiais, células
9
Células germinais: células da linha germinal9, distintas das células somáticas. Ambos os tipos de
de um organismo que estão
envolvidas no processo
células são diplóides (do grego, diplous, dobro), mas enquanto que as
reprodutor. células somáticas se dividem por mitose (originando o crescimento do
organismo), as células da linha germinal dividem-se por meiose,
originando gâmetas haplóides (do grego haplous, simples). No caso das
plantas, o produto direto da meiose são esporos haplóides.

O ciclo de vida de um organismo que se reproduz sexuadamente


caracteriza-se, assim, pela ocorrência de dois fenómenos, que se alternam:
a meiose, que reduz o número de cromossomas típico da espécie para
metade, e a fecundação, que repõe esse número (Fig. 4.9). O ciclo de vida
dos organismos com reprodução sexuada apresenta, deste modo, um
padrão de alternância de fases nucleares entre diplóide e haplóide. Por
convenção o número (n) de cromossomas haplóide de uma espécie é
designado por n e o número diplóide é 2n.

Figura 4.9 - Alternância de fases nucleares na


reprodução sexuada, em animais: a fase
diplóide inicia-se com a fecundação e termina
fêmea macho com a meiose, enquanto que a fase haplóide
diplóide diplóide se inicia com a meiose e termina com a
(2n) (2n) fecundação. Legenda: ( ) fase diplóide, ( )
meiose meiose fase haplóide.

óvulo espermatozóide No ciclo de vida sexuada, dependendo


haplóide haplóide da proeminência relativa das fases
(n) (n)
haplóide e diplóide, bem como do
fecundação momento em que se dá a meiose,
zigoto podemos distinguir três tipos básicos
diplóide
(2n) de ciclos de vida (Fig. 4.10). Nos
animais superiores, a maior parte do ciclo de vida é passada na fase
diplóide, sendo os gâmetas as únicas estruturas da fase haplóide, assim
como os produtos diretos da meiose (Fig.4.10(a)). O oposto acontece em
alguns fungos e algas que apresentam um ciclo de vida
predominantemente na fase haplóide, apenas com um breve período na
fase diplóide constituído pelo zigoto; nestes organismos a meiose ocorre
logo após a formação do zigoto originando células haplóides que se
dividem por mitose e originam organismos multicelulares haplóides (Fig.

80
10
4.10(b)). Em grande parte das plantas e em alguns tipos de algas, o ciclo geração gametófita: inicia-
se com a germinação dos
de vida apresenta uma alternância de fases nucleares, em que ambas esporos e termina com a
formam indivíduos multicelulares, e em que ocorre simultaneamente uma formação dos gâmetas.

alternância de gerações: geração gametófita 10 e geração esporófita11. 11


geração esporófita: inicia-
Neste caso, a meiose origina esporos haplóides (e não gâmetas) que se se com a formação do zigoto e
termina com a formação dos
desenvolvem numa estrutura multicelular haplóide, que posteriormente esporos.
forma os gâmetas (Fig. 4.10(c)).

organismo
gâmetas multicelular
organismo
haplóide
n n n multicelular MITOSE MITOSE
MITOSE (gametófito)
MITOSE haplóide n
n n n
n n n
MEIOSE FECUNDAÇÃO gâmetas n esporos gâmetas
MEIOSE FECUNDAÇÃO
MEIOSE FECUNDAÇÃO
organismo organismo
2n 2n
multicelular zigoto 2n multicelular
diplóide diplóide zigoto
MITOSE zigoto (esporófito) MITOSE
(a) animais (b) alguns fungos e algumas algas (c) plantas e algumas algas

Figura 4.10 - Três tipos ciclos de vida sexuada. Em comum, todos apresentam
alternância de fases nucleares, marcadas pelo processos de meiose e de
fecundação. Legenda: ( ) fase haplóide; ( ) fase diplóide.

4.2.1 Meiose

A meiose é um tipo de divisão celular que ocorre apenas num grupo de


células especiais e resulta na formação de células com metade do número
de cromossomas típico da espécie. Como na mitose, a célula inicia o
processo de divisão com o seu DNA replicado (na fase S da interfase), ou 12
O conteúdo de DNA duplica
seja cada cromossoma é formado por um par de cromatídeos irmãos do nível 2C para o nível 4C,
na fase S do ciclo celular
ligados ao nível do centrómero. Num organismo diplóide, a meiose anterior. Na meiose é primeiro
consiste em duas divisões nucleares sucessivas, originando 4 células com reduzido ao nível 2C, quando
os cromossomas homólogos
metade dos cromossomas da célula parental12 i.e. haplóides. Apesar de ser segregam durante a meiose I,
um processo contínuo é mais facilmente descrito se dividido em duas e depois reduzido ao nível 1C
quando os cromatídeos irmãos
fases: meiose I e meiose II (Fig. 4.11). Cada uma destas fases é ainda se separam na meiose II.
subdividida em profase, metafase, anafase e telofase.
Meiose I Meiose II
4C
Apesar das semelhanças entre os dois processos de divisão celular -
meiose e mitose - existem, no entanto, algumas diferenças básicas:
2C

1. No início da primeira divisão nuclear (profase I), os cromossomas 1C


G1 S G2
homólogos (parentais; cada um formado por dois cromatídeos irmãos)
emparelham e trocam porções entre si, num processo a que se chama Interfase 1 Interfase 2

81
crossing over. Nesta fase, cada par de cromossomas homólogos é visível,
ao microscópio, como uma tétrada formada por um complexo de quatro
cromatídeos. Em seguida, como no processo de mitose, o envelope nuclear
desintegra-se, os nucléolos desaparecem e forma-se o fuso mitótico, ao
qual se ligam os cromossomas que iniciam a sua migração para o plano
equatorial da célula. Na metáfase I, os cromossomas homólogos
encontram-se dispostos na placa metafásica (plano equatorial da célula).
Subsequentemente, na telofase I, os pares de cromossomas homólogos
separam-se, sendo cada um transportado para um pólo oposto da célula.
Assim, após a divisão celular, as duas células filhas contêm, cada uma, um
dos dois cromossomas homólogos de cada par da célula diplóide parental.
As células filhas da mitose I têm um número haplóide de cromossomas,
no entanto, cada cromossoma homólogo é composto por dois cromatídeos.

Profase I Metafase I Anafase I Telofase I Células filhas


 Cromossomas  Os microtúbulos  Os pares de  Um conjunto de  Cada célula filha
homólogos do fuso mitótico cromossomas cromossomas recebe material
compactam e ligam-se aos homólogos chega a cada pólo cromossómico -
emparelham cromossomas separam-se e celular recombinado- dos
 Ocorre crossing  Pares de movem-se para  Início da divisão cromossomas
over cromossomas pólos opostos nuclear homólogos
 Fuso mitótico homólogos alinham
forma-se no plano equatorial
da célula

Profase II Metafase II Anafase II Telofase II Células filhas


 Os cromossomas  Os microtúbulos  Os cromatídeos  Os cromatídeos  Divisão celular
re-compactam do fuso mitótico irmãos segregam e chegam aos terminada.
 Formação de novo ligam-se aos movem-se para respetivos pólos  Cada célula filha
fuso mitótico cromossomas pólos opostos  Início da divisão tem metade do
 Os cromossomas celular número de
alinham no plano cromossomas da
equatorial celular célula original
Figura 4.11 - A meiose é um processo de divisão celular que envolve duas divisões
nucleares sucessivas, sem que haja replicação do DNA entre elas; resultam
quatro células com metade do número de cromossomas da célula inicial.

82
2. Os cromossomas não replicam antes da segunda divisão nuclear. A
segunda divisão nuclear - meiose II - consiste numa divisão mitótica,
envolvendo os produtos da meiose I. Como os cromossomas não replicam
entre a meiose I e a meiose II, desta segunda divisão resultam quatro
células haplóides. Cada uma das células filhas contém um conjunto
completo de cromossomas, que corresponde a metade daquele presente
nas células parentais, e que devido ao processo do crossing over, são
distintos entre si.

As células haplóides resultantes da meiose desenvolvem-se diretamente


em gâmetas, no caso dos animais, e a meiose diz-se gamética. No entanto,
em plantas, fungos e muitos protistas, as células haplóides meióticas
sofrem subsequentes mitoses, produzindo os gâmetas numa fase posterior
do ciclo de vida, por mitose. Na plantas, a meiose forma células haplóides
– esporos – que por mitose, originam indivíduos multicelulares haplóides;
neste caso a meiose diz-se espórica.

A orientação aleatória dos cromossomas homólogos na placa metafásica


(metafase I) e a subsequente separação dos cromossomas homólogos
(anafase I) são responsáveis pela segregação independente (e portanto
igualmente aleatória) dos genes localizados em cromossomas distintos.

Podemos, assim, encontrar três fontes de variabilidade genética, em


associação com a meiose e com o processo de reprodução sexuado:
(i) crossing over entre cromossomas homólogos (profase I)(que resulta
em novas combinações cromossómicas nas células haplóides meióticas),
(ii) segregação independente do par de cromossomas homólogos (anafase
I) e (iii) processo aleatório de fertilização dos gâmetas.

O quadro IV.2 faz uma comparação entre os processos de mitose e


meiose.

83
Quadro IV.2 - Comparação entre processos de mitose e de meiose

Mitose Meiose
(células somáticas) (células em ciclo de vida sexuado)

Uma divisão celular resulta em Duas divisões celulares resultam em


duas células filhas 4 produtos de meiose

células
produto da
filhas
meiose
célula parental

Número de cromossomas igual Número de cromossomas é reduzido


para metade nas células resultantes
2n
2n células
filhas n n
célula parental
2n 2n
n n

Sem emparelhamento de Sinapse completa de homólogos na


homólogos (normalmente) profase I

Sem crossing over Pelo menos um crossing over por


cada par de homólogos

Centrómeros dividem-se na Centrómeros não se dividem na


anafase anafase I, mas na anafase II

Processo conservativo: o Promove variabilidade entre os


genótipo das células filhas é produtos da meiose
idêntico ao genótipo parental

Célula em mitose pode ser Célula em meiose é diplóide


haplóide ou diploide

84
4.2.2 Comparação entre reprodução assexuada e reprodução
sexuada

Na reprodução assexuada, um indivíduo herda todo o seu património


genético de um único progenitor, sendo portanto geneticamente idêntico a
este. Deste modo, um mínimo de variação genética será esperada ao longo
de gerações sucessivas. Neste tipo de reprodução não existe alternância de
fases nucleares, meiose ou gâmetas.

Em contraste, a reprodução sexuada envolve a “mistura” de informação


genética proveniente de dois organismos parentais distintos e resulta numa
descendência geneticamente dissemelhante dos parentais e dissemelhante
entre si (ver acima). As caraterísticas resultantes das alterações genéticas,
na descendência de um organismo com reprodução sexuada, são
aleatórias, podendo ser vantajosas - ou não - para o indivíduo que as
adquire.

Os processos de reprodução assexuada ocorrem em muitos organismos


multicelulares, como são exemplos a gemulação (na hidra), a regeneração
de partes de organismos ou organismos inteiros (na estrela do mar) ou a
partenogénese (desenvolvimento de um organismo adulto a partir de uma
célula não fertilizada; em alguns lagartos, peixes e anfíbios). No entanto, a
maioria das plantas e animais, e muitos microrganismos, apresenta ciclos
de vida com reprodução sexuada (alguns, apenas em condições de stress),
o que sugere que este tipo de reprodução deve apresentar vantagens em
relação à reprodução assexuada.

A vantagem da reprodução sexuada relativamente à reprodução assexuada


poderá advir da natureza variável da maior parte dos ambientes terrestres.
Num ambiente imutável, a reprodução assexuada é adequada, e
eventualmente preferível. Não é por acaso que plantas com ciclos de
reprodução assexuada são mais comuns nos habitats árticos, onde as
condições são extremas - mas estáveis - e onde a melhor aposta para o
sucesso de uma espécie é a reprodução com um mínimo de alterações
genéticas nas suas caraterísticas de "plantas bem adaptadas ao local onde
vivem". Num ambiente variável e imprevisível, no entanto, a reprodução
sexuada apresenta duas vantagens em relação à reprodução assexuada: (i)
vantagem competitiva, quando o organismo é exposto a alterações
ambientais, e (ii) a capacidade de juntar no mesmo genoma mutações
favoráveis que ocorrem em genomas separados (parentais).

A modificação genética de organismos depende também da ocorrência de


mutações que consistem em alterações espontâneas e imprevisíveis do

85
genoma (geralmente envolvendo modificações de bases específicas ou de
rearranjo na sequência de nucleótidos no DNA). As mutações são
fenómenos raros, e as mutações “benéficas” são, assim, fenómenos ainda
mais raros. Apesar de as mutações ocorrerem tanto nos processos de
reprodução assexuada como sexuada, apenas nos ciclos com reprodução
sexuada há a possibilidade de juntar as mutações favoráveis que ocorrem
em dois indivíduos distintos.

4.3. Noções básicas de hereditariedade


As propriedades observáveis de um organismo, da cor do cabelo de um
indivíduo ao número, ou cor, de pétalas de uma flor são chamadas
fenótipos. Qualquer caraterística fenotípica é determinada pelo genótipo
do organismo, ou seja, pela informação genética presente na forma de um
13
Alelos: (do grego: allelon, par de alelos13 para cada gene14. As dezenas de milhares de genes que
um e outro) formas
alternativas do par de gene
herdamos dos nossos progenitores constituem o nosso genoma.
que codificam uma
determinada caraterística. A variabilidade genética que associamos à reprodução sexuada, sabemos
14
hoje, é em parte devida ao modo aleatório como os genes, em
gene : unidade de
hereditariedade; segmento de cromossomas distintos, segregam durante a meiose, e em parte devida à
DNA que especifica uma recombinação entre genes de cromossomas homólogos, durante a profase I
determinada cadeia polipep-
tídica, proteína, tRNA ou da meiose (crossing over).
rRNA.
Até meados do século XIX, no entanto, a visão
geral sobre o mecanismo da hereditariedade, era a
de que as caraterísticas dos progenitores se
"misturavam" ou "diluíam" na formação da
descendência. Assim, segundo essa hipótese, do
cruzamento de dois indivíduos, um com olhos
castanhos e outro com olhos verdes, resultaria uma
Figura 4.12 - Gregor descendência de olhos castanho-esverdeados.
Mendel (1822-1884). Contudo, só ocasionalmente este resultado era
verificado. Para além disso, se as caraterísticas se
"diluíssem", os organismos de uma população tenderiam, a longo prazo, a
ser idênticos entre si, o que também não era verificado. Quais seriam então
os mecanismos que regiam a hereditariedade? E como se atingiu o
conhecimento atual?

86
4.3.1 Hereditariedade Mendeliana
Gregor Mendel (Fig. 4.12), um monge austríaco, levou a cabo entre 1856 e 15
linhas puras: refere-se a um
dado fenótipo que não varia
1863 um trabalho minucioso que resultou em conclusões importantes ao longo de gerações
sobre os mecanismos da hereditariedade. Utilizou, nos seus trabalhos, sucessivas.
várias linhas puras15 de ervilheira, Pisum sativum (Fig. 4.13), que diferiam
entre si num único fenótipo (Tabela 4.1).

pétalas Figura 4.13 - A ervilheira, Pisum sativum, é uma


espécie de fácil cultivo e com um grande número de
antera variedades distintas de linha pura. A estrutura das suas
androceu

filete flores, em que as pétalas envolvem os órgãos sexuais da


planta (androceu e gineceu) garante a autopolinização da
estigma
gineceu

planta, a não ser que esta seja disturbada. Pisum sativum


carpelo era já um objeto de estudos experimentais de
hereditariedade desde 1760.

Tabela 4.1 – Alguns resultados obtidos por Mendel em cruzamentos de linhas


puras de ervilheira com caraterísticas contrastantes.

Caraterística Cruzamento parental Plantas F1 Plantas F2 Relação


(*)
numérica
Cor da semente Semente amarela
X Todas amarelas 6022 amarelas; 3,01:1
Semente verde 2001 verdes
Cor da corola Corola vermelha
X Todas vermelhas 705 vermelhas; 3,14:1
Corola branca 224 brancas
Comprimento Caule longo
do caule X Todos longos 787 longos; 2,84:1
Caule curto 277 curtos
(*) o símbolo "X" indica "cruzamento".

87
Mendel procedeu a cruzamentos controlados de ervilheiras com
caraterísticas contrastantes e analisou qualitativa e (pela primeira vez, em
estudos de hereditariedade) quantitativamente os resultados obtidos, ao
longo de várias gerações de ervilheiras. Assim, do cruzamento de duas
linhas puras com fenótipos contrastantes resultava uma primeira geração
filial, ou geração F1, em que apenas um dos fenótipos era observado. Por
exemplo, o cruzamento entre plantas com sementes amarelas e plantas
com sementes verdes, originava uma F1 de plantas com sementes todas
amarelas (Fig. 4.14). No entanto, o cruzamento dos híbridos da geração F 1
originava uma mistura de plantas com caraterísticas de ambas as linhas
puras do cruzamento inicial. Esta segunda geração filial, ou geração F 2,
era composta por plantas que apresentavam o fenótipo das plantas do
cruzamento inicial na proporção aproximada de 3:1 (sementes amarelas:
sementes verdes).

P: ervilheiras com sementes amarelas X ervilheiras com sementes verdes

F1: 100 % ervilheiras com sementes amarelas

F2: 75 % ervilheiras com sementes amarelas, 25 % ervilheiras com sementes verdes

Figura 4.14 – Cruzamento entre ervilheiras com sementes amarelas e ervilheiras com
sementes verdes. A geração F1 originou apenas plantas com sementes
amarelas. A geração F2 originou plantas com sementes amarelas e plantas
com sementes verdes, na proporção 3:1 (amarelas: verdes).

Às caraterísticas observadas na geração F1 (e maioritárias na F2), Mendel


chamou caracteres dominantes, enquanto que as não observadas eram
caracteres recessivos (“escondidos” na F1, mas presentes na F2, embora em
menor frequência que os dominantes).

Para explicar os resultados obtidos, Mendel concebeu a ideia de que as


caraterísticas fenotípicas eram determinadas por "fatores" discretos
(unidades de hereditariedade) que na maioria dos organismos existiriam
como pares de “determinantes”. Os “fatores” e os “determinantes” de
Mendel são hoje conhecidos, respetivamente, como genes e alelos.

Os dois alelos (num organismo diplóide) que codificam uma determinada


caraterística podem ser idênticos ou diferentes, o que se reflete no fenótipo
do organismo. Assim, e.g., na ervilheira, as sementes podem ser amarelas

88
ou verdes, o que depende da combinação de alelos presentes no seu
genoma (Fig. 4.15). Um organismo com dois alelos iguais para uma
determinada caraterística é dito homozigótico para essa caraterística,
enquanto que um organismo com dois alelos diferentes é heterozigótico.

Num organismo heterozigótico para uma dada caraterística, um dos alelos


é geralmente o alelo dominante (caraterística expressa fisicamente) e o
outro é o alelo recessivo (não expresso, apesar de presente no genoma).
Convencionalmente, o alelo dominante é representado por uma letra
16
maiúscula e o alelo recessivo, pela mesma letra minúscula. Deste modo, genótipo versus fenótipo:
Fenótipo Genótipo
sabendo (por análise dos cruzamentos de ervilheiras efetuados) que a cor F1:
(proporção) _
“amarela” das ervilhas é o alelo dominante e a cor “verde” é o alelo amarelo Aa (100%)
recessivo, estes são representados, respetivamente, pelas letras A e a. (100%)

F2:
Os possíveis resultados de um cruzamento podem ser visualizados num Fenótipo Genótipo
diagrama de Punnett (Reginald C. Punnett; geneticista Inglês), como é (proporção) _

representado na figura 4.15. Note como os diagramas de Punnett explicam amarelo AA (25%)
(75%) Aa (50%)
as proporções dos fenótipos obtidos nos cruzamentos representados na
figura 4.14. Como se pode depreender desta figura, organismos com o verde aa (25%)
(25%)
mesmo fenótipo podem ter genótipos distintos16 (e.g., a proporção
fenotípica de 3:1 obtida na geração F2 corresponde, na realidade, a uma
proporção genotípica "mascarada" de 1:2:1).

As principais conclusões do trabalho de Mendel (para além conceito


fulcral de "fator" como unidade hereditária) são hoje conhecidas como as
Leis de hereditariedade de Mendel:

Lei da segregação (1ª Lei de Hereditariedade de Mendel)

Os dois alelos do par, responsáveis pela expressão de determinada


caraterística fenotípica, são entidades discretas que retêm a sua
identidade quando emparelhadas com um alelo distinto, e que emergem
do híbrido sem alteração. Por outras palavras, os dois alelos de um gene
segregam, ou separam-se um do outro (na anafase I da meiose, pelo
conhecimento atual) sem que a sua coexistência no organismo os tenha
alterado.

A "Lei da Segregação" pode ser "inferida" dos resultados obtidos de


experiências de cruzamentos monohíbridos, como aqueles das figuras 4.14
e 4.15. Se, no entanto, analisarmos cruzamentos mais complexos, como
por exemplo o cruzamento dihíbrido de plantas de sementes amarelas lisas
com plantas de sementes verde rugosas (Fig. 4.16), em que estão
envolvidas duas caraterísticas hereditárias, deduzimos o que é expresso
pela 2ª Lei de hereditariedade de Mendel.

89
cruzamento: AA x aa cruzamento: Aa x Aa

gâmetas : A a gâmetas : A a A a
(100%) (100%) (50%) (50%) (50%) (50%)

Diagrama de Punnett: Diagrama de Punnett:


(Gâmetas masculinos) (Gâmetas masculinos)
a a A a
(Gâmetas femininos)

(Gâmetas femininos)
Aa Aa AA Aa
(amarela) (amarela) (amarela) (amarela)
A A 25% 25%
25% 25%

Aa Aa Aa aa
(amarela) (amarela) (amarela) (verde)
A a 25% 25%
25% 25%

(a) Geração F1 (b) Geração F2

Figura 4.15 - Nos diagramas de Punnett colocam-se os possíveis tipos de gâmetas


masculinos num dos lados do diagrama e os tipos possíveis de gâmetas
femininos no outro lado. O genótipo dos potenciais zigotos é indicado
pela intersecção das linhas verticais com as linhas horizontais. Legenda:
(a) representa o cruzamento esperado numa geração F 1 entre linhas puras
de ervilheiras com sementes amarelas e ervilheiras com sementes verdes;
(b) representa o cruzamento esperado numa geração F 2 entre híbridos da
geração F1.

Lei da segregação independente (2ª Lei de hereditariedade de Mendel)

Os dois alelos que determinam uma caraterística genética segregam


independentemente dos alelos que determinam outra caraterística
genética. Por outras palavras, os pares de alelos que codificam
caraterísticas distintas, segregam independentemente uns dos outros,
gerando gâmetas com todas as combinações possíveis de alelos.

90
Cruzamento: AaLl x AaLl
Gâmetas do dihíbrido: AL (25%), Al (25%), al (25%), aL (25%)
(Gâmetas masculinos) Fenótipo Genótipo
AL Al al aL (proporção ) _
AALL AALl AaLl AaLL
amarelo/liso AALL
AL (9/16) AALl
AaLL
(Gâmetas femininos)

AALl AAll Aall AaLl AaLl


Al
amarelo/rugoso AAll
(3/16) Aall
AaLl Aall aall aaLl
al verde/liso aaLL
(3/16) aaLl
AaLL AaLl aaLl aaLL
aL
verde/rugoso aall
(1/16)

Figura 4.16 - Diagrama de Punnett explicativo dos resultados obtidos do cruzamento


dihíbrido de Mendel entre plantas com sementes amarelas lisas e plantas
com sementes verdes e rugosas. A proporção prevista pelo diagrama para
as 4 combinações possíveis de fenótipos é 9:3:3:1 (como observado por
Mendel). (A- alelo semente amarela, a – alelo semente verde, L - alelo
semente forma lisa, l – alelo semente forma rugosa).

Na genética Mendeliana, os fenótipos dos indivíduos progenitores são,


portanto, "transferidos" para as gerações seguintes de um modo tal, cuja
probabilidade de expressão pode ser calculada. No entanto, nem todas as
caraterísticas fenotípicas seguem as proporções previstas por Mendel. Em
muitos casos, a expressão de um alelo pode ser influenciada pela
expressão de outro gene, noutros casos, mais do que um alelo influenciam
um dado fenótipo (ver secção 4.3.3).

4.3.2 Hereditariedade cromossómica


Há que realçar que a hereditariedade Mendeliana, baseada num conceito
abstrato ("fator"/ gene) cuja localização na célula, gâmeta, é desconhecida,
explicou com sucesso as consequências genéticas da meiose apesar de os
cromossomas - então - ainda não terem sido descritos.

Os resultados de Mendel ficaram esquecidos, na literatura científica, até


1900, altura em que os seus escritos foram redescobertos, por três
investigadores trabalhando independentemente, Karl Korrens (Alemanha),

91
17
A evolução das técnicas e
instrumentos de microscopia
permitiu muitos avanços no Hugo de Vries (Holanda) e Erich von Tschermak (Áustria). As várias
campo biológico, entre os
quais se destaca a observação
descobertas no campo biológico17, durante a segunda metade do século
e o estudo dos processos de XIX, juntamente com as leis da hereditariedade de Mendel, permitiram
divisão celular, mitose e
meiose. identificar e descrever o papel dos cromossomas na hereditariedade.
18
Loccus de um gene num
cromossoma e seus alelos. Ex: Segundo a teoria cromossómica da hereditariedade enunciada por Walter
alelo cor Sutton (1902-1903), os "fatores"/genes de Mendel tem localizações
branca específicas18 (loccus, plural loci) nos cromossomas, e são os cromossomas
(e não os alelos) que (i) segregam e (ii) segregam independentemente. A
par de cromossomas loccus para
homólogos cor da corola teoria cromossómica da hereditariedade pode ser resumida nos seguintes
pontos:
alelo cor
vermelha 1. O núcleo de todas as células, à exceção das células da linha germinal,
contém dois conjuntos de cromossomas homólogos, sendo um de origem
materna e outro de origem paterna.
19
crossing over: processo em 2. Os cromossomas retêm a sua individualidade e são geneticamente
que cromossomas homólogos
trocam segmentos um com o contínuos ao longo do ciclo de vida de um organismo.
outro. Este processo explica
como é que um gene (ou 3. Os cromossomas homólogos parentais formam um complexo
grupo de genes), inicialmente
presente num cromatídeo do sináptico19 (crossing-over; profase I da meiose) durante a divisão que
par de homólogos, pode ser
transferido para o outro precede a formação dos gâmetas, e segregam durante o mesmo processo
cromossoma, de um modo (meiose).
recíproco.
Ex:
4. Cada cromossoma (do conjunto haplóide) tem uma função específica no
desenvolvimento.

5. Os conjuntos de cromossomas homólogos, numa célula diplóide, são


equivalentes no sentido da sua funcionalidade, mas cada um transporta um
complemento distinto de "determinantes" genéticos.

6. Os membros maternos e paternos dos diferentes pares de cromossomas


homólogos separam-se aleatoriamente durante a redução meiótica.

Deste modo, os cromossomas tornaram-se na base física para o


entendimento dos estudos de hereditariedade de Mendel. A presença de
dois conjuntos de cromossomas homólogos nas células está de acordo com
a sugestão de Mendel de que cada caraterística fenotípica teria dois
"determinantes". A separação dos cromossomas homólogos durante o
processo de formação dos gâmetas explica a lei de Segregação de Mendel,
e a aleatoriedade com que os cromossomas homólogos se alinham e
separam explicam a lei da Segregação Independente.

92
4.3.3 Proporções não-Mendelianas
A relação entre genes cromossómicos e os fenótipos expressos pelos
fatores de Mendel nem sempre é fácil de compreender. Com efeito,
Mendel foi muito feliz com a escolha dos fenótipos da ervilheira, pois
(sabe-se hoje) que os genes responsáveis pelas caraterísticas escolhidas se
encontram localizados em cromossomas distintos, ou muito distantes no
mesmo cromossoma (permitindo a sua segregação independente). Caso os
genes responsáveis pelos fenótipos escolhidos por Mendel estivessem num
mesmo cromossomas (i.e., não segregassem independentemente), os
resultados obtidos dos cruzamentos de ervilheiras não teriam permitido
Mendel tirasse as conclusões claras sobre a hereditariedade.

Os genes revelam, frequentemente, padrões de hereditariedade mais


complexos do que aqueles previstos por Mendel, e cujas causas incluem as
seguintes:

Alelos múltiplos: Um gene pode ter mais do que duas formas alélicas
numa determinada população; com efeito, a maioria dos genes estudados
existe com diversos alelos alternativos. Exemplo de alelos múltiplos é o
gene responsável pelo grupo sanguíneo ABO, o qual codifica para uma
enzima que adiciona sacáridos (funcionam como marcadores celulares) na
superfície dos eritrócitos. Os enzimas codificados pelos alelos A e B
adicionam sacáridos distintos e o produto do alelo O não adiciona nenhum
sacárido (Tabela. 4.2). A interpretação da figura permite concluir que A e
B são ambos alelos dominantes em relação a O, e que o alelo O é
recessivo, sendo apenas expresso em indivíduos homozigóticos (OO). O
grupo AB surge, pois não há dominância do alelo A em relação ao alelo B
(ou vice-versa) sendo ambos expressos.

Tabela 4.2 - Hereditariedade do sistema ABO

Fenótipo Genótipo Aglutinogénios* nos eritrócitos

grupo A AA ou AO A
grupo B BB ou BO B
grupo AB AB AeB
grupo O OO nenhum
* tipo de proteína glicosilada.

Interação génica: A maioria dos fenótipos é o resultado da expressão de


vários genes. Assim, uma falha no produto expresso pelos genes pode
afetar o fenótipo observado. Um exemplo de interação génica é o da

93
pigmentação púrpura que é por vezes observada em sementes de certas
variedades de milho (Zea mays). O pigmento em causa - antocianina - é
formado numa curta via metabólica, na qual atuam dois enzimas distintos:

Enzima 1 Enzima 2
Substrato inicial Intermediário Antocianina
(incolor) (incolor) (púrpura)

Para o pigmento ser produzido é necessário que exista, pelo menos, uma
cópia funcional de cada enzima. Os alelos dominantes codificam enzimas
funcionais, mas os recessivos codificam enzimas não-funcionais.
Interações entre genes tornam difícil a interpretação de certos padrões de
hereditariedade.

Pleiotropia: Um alelo diz-se pleiotrópico quando tem efeito sobre mais do


que um fenótipo. O alelo dominante que gera a cor de pelagem amarela
em ratinhos de laboratório, nunca existe na forma homozigótica, pois para
além de se manifestar na cor da pelagem, é simultaneamente causador de
um defeito letal no desenvolvimento dos ratinhos. Um alelo pleiotrópico
pode ser simultaneamente dominante (ex. pelagem amarela) e recessivo
(ex. defeito de desenvolvimento letal).

Dominância incompleta: Nem todos os alelos são completamente


dominantes ou completamente recessivos. Alguns pares de alelos
produzem um fenótipo heterozigótico intermédio entre o dos progenitores
(dominância incompleta) ou representativa dos dois progenitores
(codominância, Fig.4.17).

Efeito do ambiente: O grau de expressão de alguns alelos é afetado por


condições ambientais, como é o caso da pelagem da raposa do Ártico que
difere (cor e comprimento) com o clima: branca e longa no inverno, e
castanha e curta no verão.

94
P: VV x BB F2: VB x VB
(vermelho) (banco)
gâmetas : V B
gâmetas : V B
(50%) (50%)
(Gâmetas masculinos)
V B
F1: VB (50%) (50%)
(cor-de-rosa)
VV VB
(Gâmetas femininos)

V (vermelho) (cor-de-
(50%) 25% rosa)
25%
VB BB
B (cor-de- (branco)
rosa) 25%
(50%)
25%

Figura 4.17 - Cruzamento entre linhas puras de bocas-de-lobo, que diferem pela cor da
corola (vermelho, VV; branco, BB). Os heterozigóticos da F1 manifestam
um fenótipo novo, cor-de-rosa, pois nenhum dos alelos V ou B domina em
relação ao outro. O resultado obtido na F2, contudo, expressa os resultados
teóricos de Mendel (1:2:1).

Questões de aprendizagem
4.1 Descreva o ciclo celular dos organismos eucariotas.

4.2 Defina interfase.

4.3 Como se processa a regulação do ciclo celular em células eucariotas?

4.4 Compare os três ciclos de vida sexuada.

4.5 Explique a contribuição de Mendel para a genética clássica.

4.6 Caracterize pleiotropia.

95

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