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TÉCNICO-OPERATIVA
NO SERVIÇO SOCIAL
Esta edição da Revista Conexão Geraes
aborda alguns componentes da dimensão
técnico-operativa da profissão, além de
outros temas relevantes para a
categoria profissional
Hoje, somos mais de 18.000 assistentes sociais Nosso esforço coletivo tem buscado garantir
em Minas Gerais e vivemos em um estado espaços de debates e formação continuada a
com grandes dimensões e muitas expressões. exemplo dos minicursos desenvolvidos, em que
Queremos, a cada instante, romper com as os proissionais têm a oportunidade de discutir
amarras do conservadorismo que insistem em temas importantes para fortalecer relexões e
tentar nos parar. qualiicar a nossa intervenção proissional.
Como se percebe, a luta pela comunicação “Fazer saber” está presente no trabalho do
pública tem uma relação muito estreita assistente social. Constitui parte de nossas
com o Serviço Social por estar permeada do atribuições, conforme indica a Lei que
mesmo espírito do Código de Ética e da Lei regulamenta a proissão - Lei 8662, de 7 de junho
que regulamenta a proissão, bem como do de 1993: prestar orientação social a indivíduos,
projeto ético-político. Há ainda, na perspectiva grupos e à população (art. 4º, inciso III). Podemos
da fundamentação teórico-metodológica, dizer assim, que o uso da linguagem em nosso
as contribuições de Iamamoto (1982), que trabalho tem um valor de uso.
apontam o conhecimento e a linguagem como
instrumentos de trabalho do assistente social. É no sentido de “fazer saber” que a deliberação
Estas relexões apontam para a necessidade Este tempo de travessias constantes em densos
de um aprofundamento a respeito da relação nevoeiros, de “tempo que voa e escorre pelas
entre o Serviço Social e linguagem na era das mãos”, exige consistência teórico-metodológica
comunicações. O tema do 3º Seminário Nacional, e a capacidade de por meio do pensamento
não poderia ser mais oportuno. Vem iluminar um dialético ser capaz de delagrar processos,
aspecto da proissão muito pouco visitado pela com paciência histórica. As Assessorias de
categoria. Ainal, como o assistente social tem Comunicação foram instituídas no Conselho
desenvolvido esta ferramenta de trabalho na era Federal e nos Regionais em decorrência da
das comunicações? Quais relexões o proissional consciência de que, embora comunicar não seja
tem acumulado sobre a linguagem e comunicação privilégio de uma proissão, é certo que o uso
na relação com o empregador, a sociedade dos instrumentos exige conhecimento técnico
Em 2003 fundamos, na Faculdade de Serviço duro, ao lado da Educação. Neste breve espaço
Social da Uerj, o Grupo de Estudos e Pesquisas vamos apenas sintetizar alguns desses pontos
sobre Orçamento Público e Seguridade Social de chegada, que para a pesquisa são sempre
(Gopss). Hoje somos professores, doutorandos, pontos de novas partidas.
mestrandos, bolsistas de iniciação cientíica
e, mais recentemente, pós-doutorandos (18 O monitoramento do desempenho do
membros). Desde então viemos monitorando o Orçamento da Seguridade Social (OSS) no âmbito
orçamento público federal, com destaque para do Orçamento Geral da União (OGU) entre os
a Seguridade Social, mas também há pesquisas anos de 1997 e 2011, e o acompanhamento da
sobre o orçamento iscal, outras políticas produção sobre o assunto no nível nacional,
públicas e sobre os demais entes federativos permitem caracterizar a manutenção de uma
(estados e municípios). Este acompanhamento espécie de crescimento vegetativo do OSS. Ele
vem permitindo chegar a algumas cresce quanto aos valores correntes ano a ano,
caracterizações da dinâmica político-econômica mas abaixo do crescimento do Produto Interno
que envolve a alocação de recursos pelo Estado Bruto (PIB), da carga tributária - a receita, e
para as políticas sociais, com destaque para da demanda, com o que vislumbramos certa
as políticas de Seguridade Social, seu núcleo estagnação como percentual do PIB - entre
Esta racionalidade tecnocientíica (instrumental), É esta conluência que nos deixa tão preocupados
desdobrou-se em um pensamento autoritário, que com as questões entre ciência e ética na sociedade
implica a especialização e o controle para além da contemporânea, dado que as esferas material
esfera produtiva da fábrica, mas acima de tudo (econômica), cultural (simbólica) e política (poder),
para a esfera pública, inclusive estatal, reduzindo o imbricam-se mutuamente, se transformam e
campo da participação democrática. tornam-se mais complexas, porém, mantendo o
trabalho alienado, o trabalhador em mercadoria, e o
Na contemporaneidade, avançou ainda mais, homem limitado ao consumo, e não potencializado
penetrando na esfera da vida privada, ao ponto em sua condição de ser sujeito das situações.
de recriar necessidades e manipular desejos,
transmutando todos em consumidores de massa Recorrendo a Marx, na introdução de “Para a crítica
e, qualquer crítica a esta condição, é considerada da economia política”, ainda em sua primeira parte,
irracional e sem qualquer valor. ele nos dá pistas para pensar estas relações quando
ao falar sobre a produção, consumo, distribuição,
O principal fator de embate do pensamento troca/circulação airma “cada um não é apenas
imediatamente o outro, nem apenas intermediário
positivista, a neutralidade, torna-se inoperante,
do outro: cada um, ao realizar-se, cria o outro”.
pois o desenvolvimento cientíico e tecnológico
(Marx, 1985, p. 111)
forja novas relações no campo da produção
e da reprodução social, isto é, deiniu uma
No mesmo texto, continua,
nova moralidade no campo das organizações
e instituições, da cultura e do poder. Com esta “a produção não produz, pois unicamente o objeto
condição, as implicações morais, gestaram novas de consumo, mas também o modo de consumo, ou
sociabilidades (questão ética). seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a
produção cria o consumidor. (...) a produção não se
limita a fornecer um objeto material à necessidade,
O homem contemporâneo transformou-se. Aquele
fornece ainda uma necessidade ao objeto material.
homem que construiu sua própria condição de (...) a produção não cria somente um objeto para o
fazer escolhas como sujeito moral, torna-se a cada sujeito, mas também um sujeito para o objeto”. (Marx,
dia, objeto, ou seja, perde sua condição de sujeito, 1985, p. 110)
compromete sua condição ética e política de fazer
escolhas, decidir e agir/responder sobre sua própria Esta perspectiva de análise nos faz compreender
vida, agora deinida pelo mercado (esse grande que estas questões estão muito mais articuladas
Estamos diante de uma diversidade de situações e Isto pode ser melhor compreendido se reletirmos
ambiguidades de grande proporção, uma realidade um pouco sobre as alterações no mercado de
contraditória e em movimento, na qual não parece trabalho e nas condições de trabalho, por meio
ser possível controlar todas as suas variáveis. Tanto de uma refuncionalização de procedimentos e
pela condição na qual se encontra o sujeito (objeto) rearranjo do peril proissional e suas atribuições,
como na proporção em que predomina o objeto situações que impõem o surgimento de novas
(sujeito). problemáticas e mobilizam novas competências.
Se o homem mudou e com ele suas formas de Estas mudanças em curso têm gerado novas
sociabilidade, suas relações sociais e de produção, necessidades que são incorporadas pelas
exigências dos sujeitos demandantes (e seus
não mudaram também os meios ou instrumentos
interesses de classe), expressadas em requisições
com que ele transforma o seu mundo?
socioinstitucionais e técnico-operativas,
materializadas por meio do mercado de trabalho.
O que está sendo indicado é que novas
conigurações se fazem nos espaços de
Esta questão, portanto, tem rebatimento direto
trabalho, nas formas de compreender este e nas
no Serviço Social. É evidente que uma proissão e
intencionalidades que são impostas. Porém, cabe
os seus proissionais não desfrutam em qualquer
observar que esta indicação acerca do trabalho
condição de plena autonomia, ela é sempre relativa.
e das formas de pensar sobre ele seguem as
É importante reairmar que o Serviço Social faz
condições sociais e históricas em que os indivíduos
parte do trabalho coletivo, ou seja, produz efeito
vivem, isto é, a forma como executamos e a maneira
nas condições materiais e sociais daqueles que
como pensamos.
trabalham – reprodução da força de trabalho.
Porém, o assistente social para seu exercício
Nas atuais condições societárias, o trabalho proissional, não dispõe de todos os meios
não tem se tornado apenas um processo de necessários para efetivação do seu trabalho,
alienação, também se expressa como sofrimento, sejam inanceiros, técnicos e humanos, pois
As relexões trazidas aqui são parte do que o tratamento que damos às dimensões?
estamos estudando e já escrevemos sobre Em seguida, nos detemos na dimensão técnico-
a questão da dimensão técnico-operativa e operativa para situarmos os instrumentos e
dos instrumentos e técnicas no Serviço Social técnicas como um dos elementos que constituem
(SANTOS, 2002, 2008, 2010 E essa dimensão e materializam as demais
2012; SANTOS E NORONHA, 2010; dimensões.
SANTOS, BACKX E GUERRA, 2012). Neste sentido
nosso objetivo não foi o de trazer elementos Conforme SANTOS (2002), o termo “dimensão”
novos ao debate, mas sim, socializar esse estudo remete às propriedades de alguma coisa, no
com a categoria proissional, desta forma, ampliar sentido de seus pressupostos, de suas direções, de
essa discussão e dar continuidade ao mesmo. seus princípios fundamentais. Em nosso caso, nos
referimos aos princípios que contribuem para a
Este artigo guarda quatro constatações que vêm concretização da proissão de Serviço Social e que
fundamentando nossas indagações, a saber: formam a sua base. Melhor dizendo, são todos os
elementos que constituem e são constitutivos da
1ª - que a intervenção proissional do assistente proissão, intrínsecos à passagem da inalidade
social é constitutiva de diferentes dimensões, ideal – que está no âmbito do pensamento,
dentre elas, as dimensões teórico-metodológica, da projeção – à inalidade real – âmbito da
ético-política e técnico-operativa; efetividade da ação. São as várias EXTENSÕES que
2ª - que essas dimensões constituem uma relação determinam a proissão e suas particularidades.
de unidade na diversidade;
3ª - que a dimensão técnico-operativa do Serviço Destacamos três dimensões da intervenção
Social expressa as demais dimensões; proissional as quais são conluentes aos autores
4ª - que os instrumentos e técnicas são um dos no debate do campo proissional: a teórico-
elementos constitutivos da dimensão técnico- metodológica; a ético-política e a técnico-
operativa. operativa. Essas dimensões encontram-se
presentes nas diferentes expressões do exercício
Tendo como parâmetro essas constatações, proissional: formativa, investigativa, organizativa
desenvolvemos esse tema a partir das questões: e interventiva1. Elas formam entre si uma relação
O que são dimensões de uma intervenção? de unidade na diversidade. O que signiica essa
De quais dimensões estamos falando? Qual airmativa?
GUERRA,Y. “O Projeto Proissional Crítico: estratégia de 2 - O Cotidiano, segundo Guerra (2007) é o lugar onde a
enfrentamento das condições contemporâneas da prática reprodução social se realiza por meio da reprodução dos
proissional”. IN: Revista Serviço Social e Sociedade, nº91 Ano indivíduos. Possui como características: Heterogeneidade/
XXVIII. SP: Cortez Editora, 2007. Diferencialidade: o sujeito dirige sua atenção para demanda
muito diferente entre si no intuito de responder a elas. Ocupam
LIMA; MIOTO; DAL PRÁ. “A Documentação no Cotidiano integralmente a atenção dos sujeitos; espontaneidade: em
da Intervenção dos Assistentes Sociais: algumas razão desta característica, os sujeitos se apropriam de maneira
considerações acerca do diário de campo”. In: Revista espontânea (e naturalizada) dos costumes, dos modos e
Textos & Contextos. Porto Alegre v.6 n.1 p. 93 a 104, 2007. comportamentos da sociedade, donde sua capacidade de
reproduzir as motivações particulares e as humano-genéricas;
MARTINELLI, M. L; KOURMOWYON, E. Um novo olhar para a Imediaticidade: as ações desencadeadas na vida cotidiana
questão dos instrumentais técnico-operativos em Serviço tendem a responder às demandas imediatas da reprodução
Social. Revista Serviço Social & Sociedade, São Paulo,n.45, ano dos sujeitos; Supericialidade extensiva: as demandas do
XV, agosto, p.137-141, 1994. cotidiano são extensivas, amplas, difusas, encaminham de
maneira supericial, dado que a prioridade da vida cotidiana
SANTOS, Cláudia Mônica dos. “As Dimensões da Prática está em responder aos fenômenos na sua extensividade, e não
Proissional do Serviço Social” IN: Revista Libertas. Volume 2 na sua intensidade.
número 2 e volume 3, números 1 e 2. FSS/UFJF, 2002.
3 - Martinelli (1994 p.137) airma que os instrumentos e técnicas
__________________________. Instrumentos e Técnicas: são elementos organicamente articulados numa unidade
intenções e tensões na formação proissional do assistente dialética e constituem os “instrumentais técnico-operativos”,
social. Libertas (Juiz de Fora), v. 4 e 5, p. 223-248, 2008. sendo que “o instrumental não é nem o instrumento nem a
técnica tomados isoladamente”.
_________________________. Os Instrumentos e Técnicas
na Formação Proissional do Assistente Social no Brasil. IN: Trindade, também, utiliza a denominação Instrumental
Temporalis, v. 11, p. 159-171, Brasília: ABEPSS, 2008. técnico-operativo para se referir ao conjunto de instrumentos
e técnicas: “para a efetivação da prática do serviço social, os
________________________. Na Prática a Teoria é proissionais acionam um conjunto articulado de instrumentos
outra? Mitos e Dilemas na relação entre teoria, prática e e técnicas.” (2000 e 2001).
instrumentos e técnicas em Serviço Social. Rio de Janeiro:
Lúmen-Juris, 2010.SANTOS, C.M; BACKX, S; GUERRA, Y. A 4 - Cabe ressaltar que não existe apenas um único projeto
Dimensão Técnico-operativa no Serviço Social: desaios proissional, mas sim projetos proissionais.
contemporâneos. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2012.
Autores: Cléssio Cunha Mendes, assistente social, e Mônica Hallak, assistente social,
mestre em Filosoia pela UFMG e doutora em Serviço Social pela UFRJ
O cotidiano do assistente social é certamente um marxista, nas últimas décadas, aptos “a conigurar
campo de constante conlito para as diversas visões [...] os componentes essenciais de uma teoria da
de mundo, práticas e valores dos proissionais vida cotidiana” (CARVALHO; NETTO, 2007, p. 65).
que nele atuam. Em que pese a luta histórica em Kosik (1976) trata da vida cotidiana em sua obra
torno da formulação de um projeto ético-político, “Dialética do concreto”. Heller (2002 e 2008),
fato é que, mesmo contemporaneamente, desde por sua vez, escreve sobre o cotidiano em “O
os primeiros anos de sua atuação, o proissional cotidiano e a história” e em “Sociología de la vida
se depara com as mais diversas polêmicas em cotidiana” desenvolvendo elementos formulados
torno de sua prática: o que fazer diante do usuário originalmente por Lukács. Lefebvre destina
que procura o serviço rotineiramente em busca quatro títulos2 ao tema e se ocupa dele durante,
de determinado benefício? Como avaliar suas no mínimo, trinta e cinco anos de sua vida
necessidades? A partir de quais parâmetros? Até intelectual.
que ponto as políticas públicas podem oferecer
caminhos para a tão sonhada emancipação Não obstante as distinções entre os autores, alguns
dos indivíduos? Tais questões do cotidiano elementos os unem na exposição do signiicado
proissional estão intimamente relacionadas ao da vida cotidiana, entre eles a compreensão de
cotidiano vivido pela própria população atendida. que ela seria o lócus de reprodução de valores e
As contradições que emergem do primeiro tradições e por isso de permanência e manutenção
reletem as contradições do segundo. O cotidiano de situações alienadas e alienantes. Isto é, a vida
em sentido amplo, uma das diversas dimensões cotidiana estaria fortemente relacionada ao
da vida social, está repleto dessas contradições fenômeno da alienação. Não só porque o trabalho
que, ao tornarem-se objeto de relexão teórica, alienado é parte da cotidianidade, mas também
podem enriquecer os caminhos assumidos pelo pela tendência à cristalização dos costumes e
proissional em seu dia a dia de trabalho. crenças que, muitas vezes, não condizem com
o desenvolvimento da ciência, da arte e do
Não por outro motivo, o cotidiano foi abordado trabalho criador, os quais abririam a possibilidade
em ensaios publicados por Maria do Carmo Brant de superação da alienação. Por outro lado, estes
Carvalho e José Paulo Netto, em 1987, sob o título autores também consideram, ainda que de forma
“Cotidiano: conhecimento e crítica”. Neles, os distinta, o cotidiano como importante momento
autores, ambos assistentes sociais, identiicam os de resistência à alienação, pois é na vida do dia a
estudos de Henri Lefebvre, Agnes Heller e Karel dia que se depreendem também novas formas de
Kosik como os mais representativos da tradição produção da vida social.
Desse modo, os autores oferecem subsídios aos O cotidiano é atravessado por uma rede complexa
proissionais de Serviço Social para entender de relações que escapam às compreensões
esses “aspectos determinados” e a necessidade estigmatizadas e idealizadas da vida social. Se
de mediações que a sua compreensão acarreta, é o espaço de disseminar e ocultar as formas de
gerando um reconhecimento de sua prática a poder e dominação, como denuncia Foucault
partir de novas formas de pensar a vida cotidiana (2012), é onde também as relações de submissão
da população atendida. Uma questão que se e suas consequências imediatas podem ser
coloca, então, é até que ponto os assistentes vistas de forma mais clara e direta: a relação de
sociais contribuem para superar a tendência à subserviência, o sentimento de humilhação diante
cristalização de crenças e valores mencionada da posição de desvantagem econômica e social,
acima. são apenas alguns aspectos a serem desvendados
no rico espaço de troca que os proissionais de
Para os autores em tela, incluindo os assistentes Serviço Social ocupam. Ao acompanhar e (re)
sociais, os estudos de Marx constituem referência conhecer a reprodução cotidiana da população,
para a análise do cotidiano, porque o ilósofo o assistente social pode identiicar as resistências
alemão tratou da vida humana como produto do construídas no dia a dia, as novas necessidades
próprio homem e, assim, como airma Lefebvre surgidas com as mudanças na reprodução da
(1972, p. 45), a “[...] ‘produção’ volta a aparecer vida concreta e, acima de tudo e todos os dias,
no sentido pleno do termo: produção pelo ser transformar a forma de se relacionar com os
humano de sua própria vida”, o que inclui os usuários dos serviços sociais e de encarar suas
valores, crenças e costumes. Lefebvre considera necessidades
toda vida em sociedade como criação humana;
o que signiica “produção de si mesmo, do ‘ser É talvez ainda um componente do messianismo
humano’, no curso do desenvolvimento histórico. proissional a idealização de que os usuários
O que implica a produção de relações sociais. procuram os serviços sociais em busca de
Enim, tomado em sua amplitude o termo emancipação ou de superação de estados
Pensar a educação popular supõe, minimamente, segundo Aida Bezerra (1974), revela-se como
uma base teórica e uma contextualização histórica. importante pano de fundo da ação educativa no
A contextualização necessária implicaria em sentido da denuncia das relações de exploração,
retroceder às origens da educação popular no a convocar a luta anti-imperialista, mobilizadora
Brasil, no período que antecede o golpe militar de um movimento de organização política das
de 1964. Tarefa impossível no limite espacial deste camadas populares.
texto, que se deterá, portanto, numa relexão que
buscará traçar possíveis vínculos entre a educação Portanto, poderíamos dizer que naquele período
popular e o Serviço Social. Fazer esse movimento se passava de um viés de neutralização dos
merece considerar alguns registros que, mesmo conlitos - tônica da conjuntura precedente, para
não explicitados, são pilares na estruturação a consideração das contradições sociais, a tornar
deste texto: o da história política e cultural vivida também visível a presença diferenciada de outra
no nosso país, o das ações concretas tidas como expressão de consciência social.
educação popular e, inalmente, os fundamentos
da ação dos educadores. Já na década de 1980, período de redemocratização,
ver-se-á um conjunto de práticas educativas junto a
Educação popular, na leitura que vou privilegiar, movimentos sociais, no qual a ênfase do ponto de
está associada a um determinado tipo de ação que vista da educação popular se centraria na dimensão
se reveste de caráter político (na contracorrente participativa, e seus conteúdos apresentavam
de uma outra concepção, também educativa dimensões reivindicativas frente ao Estado.
e política, de adaptação dos trabalhadores ao Há uma certa retomada da crítica ao capitalismo
desenvolvimento capitalista) e, sobretudo, na operada através de espaços organizativos de
busca da constituição de uma outra forma de trabalhadores, oriundos de lutas sindicais, formação
organizar a vida social. da igreja e de ex-participantes de tendências
políticas existentes nos anos 1960/70, que vão
Sob o capital, para além do que é produzido na redundar na criação da CUT (Central Única dos
ordem da materialidade, vai se reproduzindo nas Trabalhadores), do PT (Partido dos Trabalhadores)
outras dimensões da vida social, uma ideia-força, e, posteriormente, do MST (Movimento dos
fundada nessa particular relação social, que invade Trabalhadores Rurais sem Terra).
corações e mentes, internalizando o sentido da
impossibilidade de serem realizadas mudanças Nos anos 1990, esse processo vai ser
substantivas na vida social. Ideia-força que não se qualitativamente modiicado e o cenário que
espraia linearmente... se constitui vai revelar presença preponderante
de defensividade da luta dos trabalhadores, na
Sem adentrar na necessária recuperação histórica, qual, como destaca Mauro Iasi (2004), a educação
essencial ao entendimento da educação popular, popular vai se metamorfoseando em programas de
sinalizamos muito rapidamente o período de “inclusão social”, “desenvolvimento de cidadania”,
1959 a 1964, que antecede o Golpe Militar, e que “educação para o trabalho”.
Atualizando um pouco mais essas considerações e Porém, na história que move a todos os sujeitos
tomando como referência as análises já produzidas humanos, está posta continuamente a possibilidade
contemporaneamente, a partir da leitura do de superação da ordem vigente. Possibilidade que
chamado “campo democrático popular”, vale repõe e supõe o entendimento dos processos de
destacar um elemento teórico-organizativo que se dominação e sua negação, num movimento que
faz presente: a constituição de um novo formato busca conformar uma outra concepção de mundo.
para o projeto societário. Assim, de conformação
das classes subalternas numa perspectiva de É nesse sentido que o trabalho educativo pode
classe voltada para a constituição de outra ordem; trafegar, que a educação popular pode ser
socialista, negadora de um Estado vinculado ao airmada numa outra perspectiva. A implicar em
desenvolvimento do capital e da produção de apropriação, por parte das classes subalternas,
mercadorias. de elementos teóricos fundamentais para que
ultrapassem a aparência fenomênica da realidade,
Essa nova ordem transmudaria para um outro capturando os elementos e nexos que produzem
campo, no qual a perspectiva do popular substituiria a sociedade capitalista no interior de contextos
a da classe e de seus antagonismos, e se buscaria históricos particulares.
o denominado “acúmulo de forças” e a ocupação
dos espaços institucionais. As lutas passam a ser Para que essa perspectiva seja operada, necessárias
direcionadas para reformas dentro da ordem são referências teóricas que nos permitam escolher
burguesa, no interior da qual é secundarizada a determinado percurso, negando outros. O percurso
contradição entre capital e trabalho. O que signiica que faço supõe o campo marxista, desde Marx e
retraimento na ordem das mudanças necessárias Engels a Gramsci, entre outros.
produzidas a partir da ação coletiva e consciente
das classes subalternas, direcionadas à criação de Gramsci airma que todos os homens são ilósofos,
uma sociabilidade diferente. todos elaboram uma visão de mundo, ainda que
repleta do senso comum construído, a partir do
Vale ler a crítica a esse processo, em trabalho ordenamento hegemônico. O senso comum, visão
realizado por Lucia Neves, intitulado “Direita para o fragmentada e obscurecida da vida social, fundada
social e esquerda para o capital” (2010). Junto a seu no ideário e concepção de mundo hegemônica
coletivo de pesquisa, ela trabalha a existência de socialmente, é um ponto de partida essencial para
um novo senso comum que vai sendo produzido qualquer mudança no processo de consciência.
nesse período, no interior de uma pedagogia Esse processo envolve entendimento, vontade e
intitulada pedagogia da hegemonia. (NEVES, 2010) ações concretas, assentadas numa base material
real, que supõem o universo da cultura. Cultura
Mais uma vez, a tônica é a criação do diálogo não apartada da base econômica e da organização
entre capital e trabalho, que se complementa na política. Um tipo singular de cultura que, ainda
necessária atuação de intelectuais e organizações que se apresente no seu viés de subalternidade,
voltados para forjar uma outra concepção de contém um campo de constituição de novas
mundo, um novo senso comum. Os assistentes possibilidades humanas e sociais que podem
Finalizando, eu diria que há um desaio instigante DIAS, Edmundo. Gramsci em Turim.- A construção do conceito
de Hegemonia.São Paulo :Xamã, 2000.
que está posto: o da tradução efetiva da referência
do nosso projeto ético-político - que se propõe a GRAMSCI. Concepção Dialética da História, tradução Carlos
contribuir na direção de uma sociabilidade distinta Nelson Coutinho.Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
da capitalista - através das referências teóricas 1981.
__________ Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes,
reais que adotamos, da análise concreta que 1978.
conseguimos fazer e da intervenção possível que __________ Escritos Políticos, Volumes I e II. Lisboa: Seara
efetivamos. Nova, 1977
NANCI LAGIOTO
Mestre em Serviço Social pela UFJF e agente iscal na Seccional Juiz de Fora do CRESS-MG
O interesse em discutir este tema partiu da minha capitalista, contidos nos planos de ajuste em curso,
experiência proissional como agente iscal1 do principalmente na década de 1990.
CRESS-MG, Seccional de Juiz de Fora, cargo que
ocupo desde 1995. O trabalho de iscalização, A desresponsabilização do Estado no trato
ao longo destes anos, instigou-me a reletir se, da questão social de forma universal e não
no exercício proissional dos assistentes sociais, contratualista, a precarização/focalização/
estes têm conseguido assegurar as suas descentralização de suas atividades, bem como
prerrogativas proissionais previstas no Código a ilantropização e mercantilização das políticas
de Ética Proissional, sobretudo a sua autonomia sociais geram um aprofundamento e ampliação
técnico-proissional frente à sua condição de das desigualdades sociais. A questão social
trabalhador assalariado. é tratada de forma passageira e emergencial
eliminando a política social como direito do
É importante salientar que a “autonomia técnico- cidadão e estimulando o clientelismo. Dessa forma,
proissional” não se restringe ao direito do estimula a desigualdade social, pois não atua
proissional de exercer com liberdade a sua nos fundamentos da questão e não dá respostas
atividade proissional, apenas em sua dimensão estáveis e abrangentes.
técnico-operativa, mas o termo “técnica” se refere
ao conhecimento especializado do assistente social, No que diz respeito à política de educação no país,
à sua expertise, que envolve as três dimensões do frente à reforma do Estado, pode-se airmar que
exercício proissional: a teórico-metodológica, a lógica tem sido a de mercantilização. Segundo
a ético-política e a técnico-operativa, e neste Chauí in: Iamamoto (2007: 433), a Universidade
sentido, particulariza a sua intervenção na divisão passa a ser concebida como uma “Universidade
social e técnica do trabalho. Operacional” ou “Universidade de Resultados
e Serviços”. Tal concepção de Universidade é
Dissertar sobre autonomia proissional, contrária àquela que, pela sua função pública,
especialmente do assistente social, num tempo se compromete com valores universais e não
em que a autonomia individual, popular e da se vincula a determinadas classes ou frações de
maior parte das nações vem sendo solapada classes. Defende-se, portanto, uma Universidade
pelos países imperiais e em que muitas proissões “gratuita, pública e de qualidade, direcionada aos
foram extintas e outras criadas, é no mínimo interesses da coletividade e enraizada na realidade
desaiador. A partir de meados da década de 1970, regional e nacional” (IAMAMOTO, 2007: 433).
mediante mais uma crise estrutural do capital,
ocorrem profundas transformações societárias Dentro desta perspectiva, a Universidade deve
que têm como ponto de partida a reestruturação ser democrática, plural e autônoma, tendo como
produtiva e os processos de reforma do Estado indissociáveis o ensino, a pesquisa e a extensão.
Constatamos que a partir de 2007 houve Os assistentes sociais não relacionam as suas
aumento expressivo das demandas ao Soi por condições de trabalho e outras violações às
dois fatores: a proliferação das escolas de Serviço suas prerrogativas proissionais à autonomia
Social e a interiorização da proissão em virtude proissional. Neste sentido criei alguns indicadores
da implantação do Suas. para identiicar nas demandas ao Soi, questões
O teor dos Processos Administrativos conirma As análises das demandas ao Soi Juiz de Fora e
as violações às prerrogativas dos proissionais
dos processos de iscalização, bem como do grupo
na medida em que 82,3% destes tratam das
focal mostram, que as novas formas de gestão do
Condições de Trabalho, sendo expressivo o número
trabalho e o discurso desproissionalizante, com
de irregularidades nos Centros de Referência da
a forte tendência em diluir as fronteiras entre
Assistência Social (Cras) e Centros de Atenção
Psicossocial (Caps) sinalizando ainda a forma em
as proissões, nos dizeres de Iamamoto (2002),
que vem se processando o trabalho em equipe. podem gerar uma “crise de identidade quanto à
proissão” (p.40).
O percurso teórico que realizei para inicialmente
conceituar e contextualizar a autonomia técnica Aliado a isso, a precarização da formação
foi fundamental para o entendimento das proissional ameaça a possibilidade de uma
diferentes concepções existentes no âmbito da maior autonomia técnica em suas três dimensões:
sociologia das proissões, sobre o solapamento da a teórico-metodológica, a ético-política e
autonomia, frente ao processo de proletarização a técnico-operativa, na medida em que a
dos proissionais liberais, o que não ocorreu com o expertise do proissional ou o seu conhecimento
Serviço Social, posto que ele já nasceu como uma especializado tende a ter uma menor qualidade
proissão assalariada. Essa discussão me deu uma e a diluir-se com o conhecimento de outros
maior clareza para aprofundar o entendimento proissionais.
sobre a concepção do Serviço Social como trabalho6
e, neste sentido compreender em sua totalidade, o Com base nas demandas ao Setor de Orientação
verdadeiro “peso” dos impactos das transformações e Fiscalização no período de 2007 a 2010, nos
no mundo do trabalho sobre o Serviço Social. Processos Administrativos abertos neste mesmo
período, e análises do grupo focal, posso inferir que
No entanto, conforme sinalizam os diversos
há sinais de uma “desqualiicação” da proissão do
autores da vertente crítica do Serviço Social, o
assistente social, por parte de empregadores, de
proissional dispõe de uma autonomia relativa, que
outros proissionais e de leigos quanto à expertise
abre possibilidades para que o proissional possa
ou saber especializado destes proissionais,
imprimir no seu trabalho os valores do projeto
ético-político ao qual está vinculado. No meu sendo que as particularidades de sua intervenção
entendimento, é exatamente a autonomia técnica proissional nem sempre são reconhecidas.
que caracteriza a autonomia como relativa, pois se Os efeitos da reestruturação produtiva, com
ela não existisse, poderia se airmar que a autonomia as novas formas de gestão do trabalho têm
do proissional é nula, posto que ele não dispõe contribuído para intensiicar esta “desqualiicação”.
das condições e meios necessários para realizar a
sua atividade proissional, dada a sua condição de Os assistentes sociais, assim como os demais
trabalhador assalariado. A condição de trabalhador trabalhadores assalariados, têm ingressado no
assalariado do assistente social, portanto, tensiona mercado de trabalho de forma precarizada, com
a sua autonomia, mas não inviabiliza o direito baixos salários e nenhuma estabilidade, o que
organizada e menos ilusões otimistas”. 5 Embora esta demanda não se conigure como a mais
presente no período abrangido pela pesquisa (2007/2010),
é importante salientar que em 2009 ela foi predominante
dentre os atendimentos realizados pelo Soi. Em 2010 passou
REFERÊNCIAS a ocupar o segundo lugar devido à aprovação da Lei 12.317
que estabeleceu a carga horária de 30 horas semanais para
SIMÕES, N. l. H. Autonomia Proissional X Trabalho o assistente social. A partir de meados de 2010 a maioria dos
Assalariado: Exercício Proissional do Assistente Social. Juiz atendimentos foi referente a orientações sobre a legislação
de Fora: Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/ acima, haja vista o empenho dos assistentes sociais para a
Universidade Federal de Juiz de Fora - Dissertação de obtenção deste direito e a já mencionada resistência por
Mestrado, 2012. parte dos empregadores em cumprirem a legislação.
Seccional
Seccional Seccional Sede
Dados Montes Totais
Juiz de Fora Uberlândia BH
Claros
1 - Número de
10 13 06 47 76
instituições fiscalizadas
2 - Números de
Profissionais 16 09 06 45 76
Fiscalizados
3 - Números de
instituições com 07 01 - 07 15
Infrações à Resolução
CFESS 493/06
4 - Números de
instituições que se
adequaram a 04 - - 04 08
Resolução CFESS
493/06
5 - Número de
Instituição em
monitoramento quanto à 03 01 - 03 07
adequação a Resolução
CFESS 493/06
44 horas
12% Um percentual de 79% dos proissionais
Até 25 horas airmaram que existe, por parte da instituição,
31% reconhecimento do Serviço Social como proissão.
40 horas
24% Contraditoriamente, este reconhecimento não se
traduz na garantia de direitos trabalhistas como
analisado anteriormente. Tal fato reitera a máxima
30 horas
33% de como o capital se apropria do trabalho,
explorando sua mais-valia traduzida efetivamente
na precarização do mundo do trabalho.
REFERÊNCIAS