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Luiz Gonzaga De Carvalho Neto

Sobre o Sexo e a Modéstia

Compilado:
San

Editado:
San

Revisado:
San

Sumário

I. Introdução
II. Que é sexo?
III. Ninguém deseja o que já possui
IV. A perspectiva espiritual da sexualidade
V. Sobre a Guerra dos Sexos
VI. Sobre a verdadeira modéstia
VII. Afinal, o que é isto que estamos realmente tentando esconder e ao mesmo
tempo mostrar com as vestes?
VIII. Considerações mais ou menos históricas
Introdução

Quando o assunto é sexo o que há de mais comum hoje em dia é a mente ser empurrada
pelo doutrinarismo opaco dos religiosos, que nos dizem: “homossexualismo é contra a
natureza”, “o matrimônio é indissolúvel”, “adultério é pecado” ou pelo experimentalismo
vale tudo da modernidade, que reza: “sexo é um produto da evolução” “tudo tem uma
motivação sexual inconsciente” “o importante é não se reprimir”. Se, por um lado, os
religiosos não são capazes de nos oferecer mais do que vagas referências à tradição como
explicação para suas teses tão impopulares em nossos tempos, as atitudes modernas em
relação a sexo, por outro, têm consequências evidentemente corruptoras e tenebrosas. Se
sexo é mero produto da evolução, os machos nascem para espalhar sua semente e as
fêmeas, para escolher os parceiros mais fortes. Em termos humanos isso simplesmente
quer dizer que os homens nascem para ser adúlteros contumazes e as mulheres para ser
vadias de bandidos. Se tudo é sexo, como querem certas correntes da psicologia moderna,
quem morde um lápis ou fuma um charuto já cometeu adultério em seu coração. Há
também a vertente “mística nova era” segundo a qual sua espiritualidade é medida de
maneira mais ou menos direta pelo número e qualidade dos seus orgasmos.
No plano concreto das escolhas reais, é preciso lembrar que a verdade é necessária
mesmo quando não a compreendemos. Antes de encarar a questão teoricamente,
considere que se a posição religiosa parece opaca isso pode ser devido mais aos defeitos
intelectuais particulares dos fiéis e sacerdotes que a ensinam e à nossa própria indiferença
e estupidez ao ouvi-la do que ao conteúdo direto das doutrinas em questão. É possível
termos perdido de vista os dados fundamentais capazes de tornar essa doutrina clara.
Considere também que as doutrinas religiosas trouxeram para a humanidade a companhia
de multidões de santos e santas, enquanto o experimentalismo moderno só teve por
efeito nos obrigar a conviver com multidões de viciados e viciadas em pornografia,
pílulas, brinquedos e dietas. Isso devia bastar escolher um lado. Dize-me com quem queres
andar e te direi quem és.

Que é sexo?
Para responder essa questão o primeiro que é necessário é recuperar a inocência. Falo
antes de inocência intelectual que de inocência moral, pois o telhado protetivo da moral
desaba fácil quando sobrecarregado de dúvidas. Inocência intelectual é um tipo de
abandono das noções em favor da percepção. É algo aparentado com a ignorância
socrática, com o unknowing do monge anônimo, com a não-mente do zen e a pobreza de
espírito do Evangelho. Não digo que essas atitudes são todas equivalentes perfeitas, mas
que todas elas guardam algo em comum e, de certo modo, apontam para a mesma
direção. No caso de que tratamos, é tentar olhar para as coisas que têm sexo antes de criar
um pseudo debate de explicações que só existe em nossa cabeca. Para quem faz esse
esforço na direção da inocência é evidente que sexo é em primeiro lugar a divisão de
papéis em relação à reprodução. É também evidente que meu próprio sexo é facilmente
verificável com um breve olhar para o conjunto de órgãos que tenho entre as pernas.

“Façamos o homem à Nossa Imagem e semelhança” e “macho e fêmea Ele os criou”

É interessante notar que uma das primeiras coisas que Deus quis nos informar acerca da
condição humana depois da queda foi a vergonha de ter o sexo exposto. A nudez real e
direta – não a da arte, que é meramente representada – é capaz de causar diversos tipos
de reação, desejo, aversão, desdém e indiferença. Com o pecado original a semelhança
com Deus foi quebrada e a Imagem Divina no coração foi enterrada sob os fragmentos
desordenados da semelhança perdida. De todos os motivos para se envergonhar, porque
sentir vergonha da nudez? Creio que o sexo revela no corpo algo dessa semelhança
perdida. Homo representa a Imagem Divina, enquanto macho e fêmea indicam modos
fundamentais de semelhança. Talvez muitos dos elementos “culturais” de masculinidade e
feminilidade resultem de esforços para reconstituir uma semelhança divina. O sexo então
indica algo que é simultaneamente menos que eu – essa é sua dimensão puramente
biológica, e algo que é mais que eu – na sua dimensão simbólica, o sexo é como um
indício de um potencial na direção de uma Virilidade Perfeita ou de uma Feminilidade
Perfeita. Nossos primeiros pais então sentiram vergonha de exibir uma promessa que eles
já não podiam cumprir e alguma apreensão ou mesmo medo do que sua nudez podia
causar ou deixar de causar. Vergonha de uma semelhança da qual o sexo (como mero fato
biológico) é só uma dolorosa lembrança.
Toda discussão sobre se a identidade sexual é “natural” ou “cultural” parece fazer
de conta que não somos animais racionais. Não somos uma sobreposição lógica dos
conceitos “animal” e “racional”, nem tampouco uma junção ou mistura de dois
elementos provenientes de mundos diferentes (material + imaterial), somos todos
instâncias reais de uma espécie em que animalidade e racionalidade constituem uma só
realidade vital. Mas é preciso ir muito além desse pseudo-dualismo e lembrar que há ainda
um terceiro elemento em nossa constituição. Homo, seja Vir ou Femina, é corpo, alma e
espírito. E na sexualidade humana, como em tudo o mais que é humano, cada um desses
componentes tem que deixar sua marca. No corpo, basta olhar o que tenho entre as
pernas para saber qual é o meu sexo. A isso se acrescenta uma identidade sexual anímica,
parte natural, parte aprendida ou cultural (para quem não conhece as cosmologias
tradicionais da humanidade, a alma é o elemento intermediário, parte semelhante ao
espírito, parte semelhante ao corpo). Mas também sou espírito, e isso quer dizer que, para
ser humano, o sexo também tem que permitir a contemplação e assimilação de qualidades
espirituais que transcendem tanto a natureza quanto a sociedade, tanto o corpo quanto a
alma.
Ninguém deseja o que já possui

Ninguém deseja o que já possui. Isso não é uma ordem, é simples bom uso da
linguagem. Se acontecer de alguns homens desejarem outros homens e de algumas
mulheres desejarem outras mulheres, é simplesmente porque sentem que o desejado
possui algo que ao desejante faz falta. Nenhum homem é completamente masculino,
nenhuma mulher é completamente feminina. Em todos nos falta algo. Creio que essa é a
razão que leva alguns homossexuais a crer que somos todos homossexuais no fundo.
Também entendo que romper com as formas sociais – às vezes bem artificiais – de
masculinidade e feminilidade pode ser bastante libertador e até um ato que envolve
coragem e sinceridade.
Mas discordo das conclusões que normalmente se tiram dessas ideias. Se é
verdade que nenhum homem é perfeitamente masculino e nenhuma mulher é
perfeitamente feminina, não se conclui que são todos masculino/feminina. Muito menos
se conclui que o mero contato erótico com outros indivíduos, sejam eles do mesmo ou de
outro sexo, possa fazer algo para curar essas deficiências.
Me parece que os homens são parte masculinos, parte fragmentos desordenados
de uma semelhança divina perdida e que o mesmo vale para as mulheres. Até onde vejo, a
relação entre este homem concreto e “Vir Perfeito” ou entre esta mulher concreta e
“Femina Perfeita” é a relação entre um fragmento de símbolo e a perfeição simbolizada.
Acredito que o sexo é ao mesmo tempo sinal de um dom corporal e de uma dívida
espiritual. A quem foi dado nascer de um sexo cabe agradecer ao dom corporal de ser
homem ou mulher como Homo, isto é, completando o dom corporal com uma
Masculinidade ou Feminilidade espiritual.
Esse completar o dom corporal com um aperfeiçoamento espiritual não depende
necessariamente de atividade sexual. Depende de uma compreensão do que é a Imago
Dei que foi soterrada e da reconstituição da semelhança a partir do dado físico que nos
resta. Isso é possível na virgindade consagrada e na sexualidade consagrada. A mera
atividade sexual não pode conduzir ninguém a nenhuma perfeição espiritual. É necessário
usar o sexo num quadro simbolicamente adequado e com a graça de Deus ou renunciar a
seu uso num quadro equivalente. Tanto a virgindade quanto a sexualidade envolve
elementos de amor e sacrifício. A virgindade consagrada se baseia no fato de que a Imago
Dei está dentro de nós e é portanto possível recuperá-la contando somente com a ajuda
do próprio Deus, sem nenhum auxílio humano. A virgindade consagrada vai direto ao
essencial: “Uma só coisa é necessária”, “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”
e “buscai somente o reino dos céus e sua justiça e tudo o mais vos será dado por
acréscimo”. A virgindade é um renunciar a um apoio no próximo (num cônjuge) e contar
com o apoio direto de Deus. Ora, o apoio direto de Deus é mais perfeito do que o apoio
mediado pela criatura, pois Deus é mais perfeito que a criatura. A renúncia ao uso do
sexo cria na alma do consagrado um espaço preenchido pelo Espírito Santo pelo Dom
do Amor que Deus sente pelo Homo, Vir e Femina, e resulta na expansão quase indefinida
do potencial real de amor do consagrado ao próximo. Para quem escolheu a virgindade,
todos os seres humanos são sua própria família. Esse amor é bem fácil de notar nos bons
sacerdotes, frades, monges e monjas. Quando conversamos com eles sentimos claramente
que eles são realmente nossos pais e mães, nossos irmãos e irmãs. Sua renúncia é uma
morte espiritual que se repete continuamente, por todos os dias de suas vidas. Quem não
sente profunda reverência ao conhecê-los e ao refletir sobre isso está espiritualmente
morto.

A perspectiva espiritual da sexualidade


A perspectiva espiritual da sexualidade consagrada é um pouco diferente, mas visa o
mesmo propósito. Ela se baseia no fato de que, juntos, homem e mulher constituem eles
mesmos uma imagem da Imago Dei e esse é um poderoso símbolo para quem o
compreende. O elemento de disciplina não se baseia diretamente na renúncia, mas no
perdão e na misericórdia. Por todos os dias de suas vidas, esposo e esposa terão que
perdoar um ao outro por ser somente “este homem” e “esta mulher” e não “Vir Perfeito”
e “Femina Perfeita”. E este perdoar as deficiências pessoais em razão do Dom Universal é
um importante componente da alquimia espiritual do matrimônio. “Com a mesma
medida com que julgardes sereis julgados” e “quem recebe um profeta na qualidade de
profeta, terá recompensa de profeta”. Ou ainda, “bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia”. Perdoar a esposa quando ela é “só esta mulher aqui” em
razão do amor pelo dom de Femina Perfeita que ela porta em si e concede a ti cria na
alma do homem um espaço que o Espírito Santo preenche com virilidade espiritual e o
mesmo vale para a esposa que perdoa o marido pelo motivo correspondente. Na vida em
família o amor ao próximo se vê na prática relativamente restringido a um círculo menor
de pessoas, mas isso é compensado pelo fato desse amor cumprir a função sagrada de
perpetuar a presença da Imago Dei neste mundo.
Não escrevo estas linhas para dizer aos outros o que eles devem fazer (mais uma
vez, faço minhas as palavras do meu pai Olavo de Carvalho: “Quase nunca sei o que os
outros devem fazer”), mas simplesmente para informar meus amigos das possibilidades
que a virgindade consagrada e a sexualidade consagrada podem oferecer e para lembrar
que essas formas de consagração são as reais “opções” sexuais e espirituais para o ser
humano que quer ser perfeito.
É tão fácil e lugar comum nos nossos tempos denunciar os que consagraram sua
virgindade a Deus por não serem sempre fiéis a seus votos. Mas ninguém fala da culpa
dos casais que fazem pouco ou nenhum uso espiritual do matrimônio. A maior parte dos
casais sequer concebe o que é sexualidade consagrada.
Entre o iconoclasmo da ideologia de gênero – que quer abolir a ideia de
identidade sexual natural (como fazer isso sem destruir o que temos entre as pernas?) e a
idolatria das “medidas perfeitas”, que com sua dietas e ginásticas quer fazer de nossos
corpos perfeitas fábricas de “sex appeal”, já não sobra nenhum espaço para uma
verdadeira iconodulia do sexo.

Sobre a Guerra dos Sexos


O desejo mais comum nos homens é o de dormir com o maior número possível de
mulheres atraentes. Já o desejo mais comum das mulheres é estar entronizada no coração
do mais poderoso dos homens.
Para satisfazer o desejo dos homens, seria necessário criar uma sociedade em
que a sexualidade feminina estivesse totalmente “socializada”, uma sociedade em que
todos os homens pudessem dormir com todas as mulheres e nenhuma mulher pudesse se
negar sexualmente a nenhum homem.
Para satisfazer o desejo das mulheres, seria preciso criar uma sociedade em que
os homens estivessem permanentemente em guerra com outros homens. Assim seriam
selecionados somente os mais bravos e fortes e todos os homens seriam potencialmente
atraentes para as mulheres. O excedente populacional feminino faria da poligamia a
norma geral e todas as mulheres poderiam estar fortemente ligadas a homens poderosos.
Vamos chamar a primeira sociedade de “modelo masculino”, pois nela são os
desejos masculinos que subordinam os desejos femininos. E a segunda vamos chamar de
“modelo feminino”, pois aqui são os desejos femininos que se sobrepõem aos desejos
masculinos e determinam a forma da sociedade.

Como tem por finalidade satisfazer os homens, o “modelo masculino” se


destaca pela gentileza, pela sociabilidade e pelo desapego, enfim, é uma
sociedade bem “feminina”. Já a sociedade moldada pelos desejos das
mulheres, essa se diferencia pela bravura, pela força e pelo heroísmo. É
uma sociedade bem “masculina”. Sociedades dos dois tipos já existiram em
modo tribal. Nenhuma jamais existirá que possa corresponder aos dois
tipos ao mesmo tempo.

Assim, a “guerra dos sexos” é uma guerra entre dois modelos subconscientes de
sociedade absolutamente incompatíveis. A sociedade que se propõe a total “liberação
sexual” vai criar e alimentar dentro de si os dois modelos sociais antagônicos. Nessa
sociedade, a única maneira real de diminuir a tensão entre os dois modelos é tentar limitar
o desejo sexual. Isso se faz em nossa civilização por três meios:

1. Pelo uso de meios químicos capazes de reduzir ou alterar os desejos.


2. Pela superexposição ao sexo “maquiado”, que resulta em dessensibilização
ao sexo real.
3. Pela redução das diferenças entre os sexos.
Agora, o problema dessa civilização vai ser que essa alteração e diminuição geral
do desejo natural terá dois efeitos colaterais: o surgimento de inúmeras taras sexuais
compensatórias, e uma inevitável redução da taxa de natalidade. Talvez ela possa
compensar o primeiro efeito com a aceitação e normalização de todas as taras; e o
segundo, com grandes volumes de imigração. Pessoalmente, não acredito que vai dar
certo.
Se a gente pensar bem, acaba percebendo que em nenhuma sociedade justa é
possível a plena satisfação dos desejos sexuais por meio da liberação sexual. A “liberação”
vai tender sempre, ou na direção do modelo masculino – que é bom para os homens e
ruim para as mulheres, ou na direção do modelo feminino – que é bom para as mulheres
e ruim para os homens. Ou pela criação da “terceira via”, que é ruim para todo mundo.
Outra alternativa bem diferente é condenar moralmente a “liberação sexual” e limitar a
prática do sexo sem tentar alterar a natureza do desejo sexual. E a verdade é que até
muito recentemente, todas as soluções razoáveis para esse dilema envolveram a
recriminação pública do sexo, sua limitação à esfera privada e formalizada do casamento,
e a criação do pátrio poder na esfera doméstica.
Dentre as melhores soluções que aplicam essas restrições estão a da odiosíssima
cristandade tradicional (proibição do sexo fora do casamento, ocultação pública dos
atributos sexuais pela vestimenta, casamento estritamente monogâmico e em princípio
indissolúvel, e tolerância ao adultério – desde que não cause escândalo público), e a do
odiosíssimo mundo islâmico (proibição do sexo fora do casamento, ocultação pública dos
atributos sexuais pela vestimenta, casamento majoritariamente monogâmico, poligamia e
divórcio bem controlados e limitados, e máxima intolerância ao adultério).

Alguém pode argumentar que nenhuma dessas soluções é “ideal”. Mas quem disse que
este mundo é ideal? Por que diabos toda vez que tentamos descrever o mundo como ele
é, a reação é sempre nos pedir para descrever como acreditamos que ele deveria ser?

Sobre a verdadeira modéstia


A modéstia – ou pudor – não consiste em se vestir como uma mãe de família de
propaganda de margarina dos anos 50, embora não haja nada de mal nisso e também não
se deva cair no exagero contrário (mini saia, shorts na missa etc.). A modéstia consiste em
uma atitude de não exibicionismo (provocativo) em relação ao sexo oposto salvo
interesse honesto explícito. Quem, por exemplo, não pode ver uma roda de conversas
composta por pessoas do sexo oposto sem se atirar no meio e ser o centro das atenções,
é uma pessoa imodesta.
Afinal, o que é isto que estamos realmente tentando esconder e ao
mesmo tempo mostrar com as vestes?

Avisos:

1. As notas a seguir têm como pressuposto o dirigir-se a alguém já


familiarizado com as minhas aulas. Não vou explicar aqui o que é alma
vegetativa, estimativa, símbolo, plano imaginal etc.
2. Considerem essas notas como meros apontamentos para uma possível aula
sobre o assunto.
3. As notas a seguir também podem fornecer um exemplo do tipo de
especulação que se passa na minha cabeça quando alguém fala de modéstia.

Antes de fazer qualquer especulação sobre modéstia ou imodéstia no vestir, me parece


conveniente fazer um breve exame introdutório. Afinal, o que é isto que estamos
realmente tentando esconder e ao mesmo tempo mostrar com as vestes?

“E macho e fêmea Ele os criou”


“E abriram-se lhes os olhos, e conheceram que estavam nus”

As passagens acima indicam que o Gênesis dá como propósito original das vestes o
esconder a nudez. Como eu tenho o costume de acreditar no Gênesis, minha investigação
vai girar em torno das questões:
1. “O que é a nudez?”
2. “Porque ela deve ser coberta por vestes?”
3. “Qual é o modo adequado de cobri-la?”

Vamos ver se podemos dar alguns passos na direção da resposta à primeira pergunta.
Independente de outros possíveis significados, a nudez do Gênesis evidentemente se
refere aos genitais. E os genitais explicitam o sexo (macho ou fêmea). Então me parece
que não é possível responder o que é a nudez do Gênesis sem tentar entender as
diferenças sexuais na espécie humana.
O primeiro plano em que é podemos tratar a diferença entre macho e fêmea é o
vegetativo. Macho e fêmea são funções reprodutivas, estão ligadas à função principal da
alma vegetativa, que é a reprodução. Que macho e fêmea são diferentes no domínio
vegetativo não é preciso argumentar e as implicações disso para a vida humana vão ser
discutidas mais adiante.
O segundo plano é o sensitivo. Somos animais, isto é, somos dotados de
sentidos. Macho e fêmea são sensivelmente diferentes.
Como as faculdades sensitivas não estão restritas aos sentidos particulares, mas
compreendem em seu conjunto a estimativa, a percepção de características físicas
masculinas e femininas indica que tipo me é agradável e desejável num outro ser humano
e ao mesmo tempo põe em ação a avaliação estimativa de qual tipo me é possível realizar.
Todo ente tende para a sua própria perfeição como a um fim, e essa tendência se torna
inclinação psicológica no animal (e em nós) por meio da avaliação do conjunto das
faculdades sensitivas. A estimativa se destaca dos sentidos particulares por sua ação dupla,
uma ligada à superação de dificuldades e obstáculos que impedem a satisfação dos
sentidos externos e outra que é superior aos sentidos externos, pois se refere ao potencial
do animal para sua tipicidade própria tal como percebida pelos sentidos internos.
O terceiro plano é o do imaginal. Como somos seres humanos, i.e. animais
racionais, as diferenças sensitivas não são meros dados brutos, mas carregam sempre
valores estéticos. Neste plano somos capazes de pressentir nas qualidades sensíveis que
diferenciam macho e fêmea indicações de tipos máximos. Enquanto a quantidade é
medida por um mínimo (unidade), a qualidade é medida por um máximo, por sua
tipicidade. É principalmente neste plano que começamos a nos diferenciar claramente
dos outros animais. Sem a formação imaginal de tipos esteticamente ideais de
masculinidade e feminilidade a atividade da inteligência será profundamente prejudicada.
Se a arte sem ciência é nada, a ciência sem arte é mais ignorância do que ciência.
No plano mais propriamente humano, que é o plano do racional e intelectual, a
captação estética dos tipos máximos fornece material para a inteligência apreender neles
símbolos metafísicos, perfeições humanas e conceitos adequados.
A partir dos tipos ideais estéticos podemos extrair modelos morais, entendidos
estes tanto no sentido de perfeição moral intrínseca, quanto no sentido de moral social
extrínseca e acidental. Em outras palavras, é dessa apreensão estética no plano imaginal
que extraímos ideias acerca dos comportamentos reais que se harmonizam efetivamente
com os tipos ideais masculinos ou femininos (aspecto moral intrínseco) na sociedade real
e concreta em que vivemos (aspecto moral extrínseco). Dos mesmos tipos estéticos
podemos também extrair símbolos, podemos aprender algo acerca de Deus a partir de
Homem e Mulher, suas imagens ao mesmo tempo naturais e sagradas.
A apreensão intelectual, por sua vez, fornece à vontade algo para amar. Esse amor
encontra vazão tanto num sentido transcendente, na direção de Deus, agora mais
conhecido por meio de suas imagens Homem e Mulher, quanto no sentido imanente,
pois conhecemos homem e mulher como modelos de conduta humana. Essa ascensão
cognitiva de macho e fêmea como funções reprodutivas -> aparências sensíveis -> tipos
estéticos -> modelos intrínsecos e extrínsecos de conduta -> símbolos teológicos e
metafísicos NÃO é espontânea, nem muito menos reflete uma ordem sucessiva em que
apreendemos os fenômenos.
Ela foi indicada aqui somente para dar uma breve indicação da imensidão de
conteúdo oferecida à alma humana na simples percepção de que existem homens e
mulheres. Ainda que não tenha sido examinado e discernido, todo esse conteúdo é
despejado de uma só vez em nossas almas por simples percepção direta. Ainda que a
ascensão cognitiva não seja natural e espontânea, ela pelo menos não é realmente muito
problemática para quem esteja acostumado a uma atitude verdadeiramente intelectual ou
contemplativa. Mas a descida de volta à caverna será com certeza muito mais acidentada.

Se todo o conteúdo cognitivo do fato da masculinidade ou feminilidade descrito


no post acima pode se despejar sobre uma alma humana subitamente e pode ser
pressentido integralmente numa única curva dum corpo, num único olhar, num único
sorriso, podemos prever que o impacto que esse momento singular exerce sobre a alma
individual é incomparavelmente estonteante e quase sempre invencível. A exposição
repentina, ainda que fugaz, mas real, a um por cento do que é ser homem ou mulher é
suficiente para causar paixões avassaladoras praticamente irresistíveis num indivíduo
perfeitamente normal e mesmo em um acima do normal.
É certo que hoje todos são muito cínicos e bem pouco contemplativos, então a
força avassaladora de que falei no parágrafo anterior provavelmente tem algo de
inverossímil e de irreal para quase todos. Para vencer o cinismo e a força avassaladora do
fato sexual humano deixar de ser inverossímil, o único recurso da maioria é reduzir o
conteúdo indicado no post ao que seja facilmente concebível. O que tem por
consequência reduzir o fato do sexo somente aos planos cognitivos mais familiares,
mutilando de maneira fatal o objeto em questão e tornando impossível avançar no
assunto de maneira inteligente.
Fazendo uso de chavões determinados, seja pelo ambiente social mais imediato,
seja pela arte, seja pela religião, seja pela falta de religião, o sujeito imediatamente trava o
intelecto contemplativo e se conforta com o retorno à familiaridade psicológica de sua
própria cosmovisão. Em outras palavras, a nudez de que fala o Gênesis é um objeto
cognitivamente tão imenso que é praticamente impossível de ser exposta integralmente.
Pode não ser a única, mas a primeira razão para cobrir a nudez é que ela já está
efetivamente coberta e é mais ou menos impossível de ser descoberta realmente sem
violar as condições práticas da vida terrestre.
A primeira razão para cobrir a nudez é como a razão para a ausência de
naturalismo nos ícones. É simplesmente impossível desenhar a santidade dos santos tal
como ela existe no santo tridimensional de carne e osso.
Considerações mais ou menos históricas:

(Estou simplificando a história, não foi exatamente assim como vou falar aqui. Mas enfatizei os aspectos
que são relevantes para o assunto de que estamos tratando.)

Nas origens mais ou menos remotas dos costumes tardios de uma civilização
estão os diversos grupos sociais que lhe deram identidade histórica. Cada grupo tem seu
próprio ethos, seu próprio senso de certo e errado, de bem e mal. Nas origens da
civilização ocidental somente dois grupos tinham um ethos bem definido acerca do sexo, o
clero e a nobreza.
O clero tinha um ethos fortemente monástico, de celibato total, que é naturalmente
acompanhado por um sentimento de pureza da abstinência. Não é que reprovavam
moralmente o sexo enquanto tal, mas sim que, estando o sentimento de pureza associado
à abstinência total, e ele necessariamente o está no ethos monástico, toda e qualquer
manifestação de sexualidade corresponde à impureza, ao menos no modo de sentir. Já a
nobreza, que era ainda constituída principalmente de pessoas ativamente engajadas em
guerras e combate corpo a corpo, tinha um ethos bastante diferente. De um modo geral,
os guerreiros têm a tendência natural a considerar coisa miúda os adultérios e fornicações.
Quem tem que passar meses arriscando a vida longe de casa e da esposa acaba
desenvolvendo algum grau de indiferença pelo que aconteceu na cama do castelo quando
estava matando vikings e tentando não ser morto por eles. Correspondentemente, as
esposas dos guerreiros também acabavam aprendendo a não perguntar se, entre uma
batalha e outra, seu marido não tinha dado uns chamegos numa pobre aldeã qualquer. Foi
só num tempo posterior que o ethos de artesãos e comerciantes, gente muito urbana,
começou a contar alguma coisa. Gente urbana tende a ser incrivelmente inclinada ao
amor das aparências e a ter um ethos que quase sempre se define somente por tentar se
diferenciar da “ralé”, isto é, da gente menos capaz, geralmente muito pobre, que é
naturalmente atraída pelas migalhas de prosperidade que pode mendigar nas cidades. Essa
gente muito pobre costuma ter muito pouco de ethos no sentido próprio, ela geralmente
aceita como mais ou menos normal tudo que se possa resolver com brigas, “barracos” e,
em último caso, facadas.
Sendo realmente incapaz de emular o clero ou a nobreza, a gente urbana mais
próspera é a grande mãe dos moralismos ocos e da famigerada "mentalidade burguesa",
da gente de bem, da “família estruturada” – família na qual existe adultério, formicação,
incesto, estupro, alcoolismo e tudo o que a gente de bem publicamente despreza, desde
que se possa manter as aparências.
O mesmo ethos de gente de bem existe igualmente entre os nobres quando estes
deixam de ser gente da guerra para se tornar gente da corte, habitantes dessa cidadezinha
de luxo que vive dentro da cidade vulgar. Também acontece o mesmo com o clero,
quando se afasta de suas raízes ascéticas e começa a ser somente membro da corte do
bispo.
De modo geral, nos dias de hoje só tem existência social real o ethos de aparências
da gente de bem e o tudo se resolve com barraco dos miseráveis. Essa é uma das razões
de parecer que o dilema das questões sexuais é uma mera questão de moralismo versus
libertinagem.

Luiz Gonzaga De Carvalho Neto

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