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PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL NO DIREITO ANGOLANO. BREVE NOTA.

Valdano Afonso Jr.1


(Advogado e docente universitário).

I. A procuração é um acto unilateral atributivo de poderes representativos. Por


meio da procuração é conferido ao procurador o poder de praticar actos e
celebrar negócios jurídicos em nome de outrem, em cuja esfera jurídica se vão
produzir os seus efeitos (Cfr. artigo 262.º do Código Civil, doravante CC).

II. Estabelece o n.º 2 do artigo 262.º do CC que «salvo disposição legal em


contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o
procurador deva realizar».

III. O procurador actua como um intermediário, situação que comporta riscos


para o representado, mas que lhe traz simultaneamente vantagens, sendo
estas que o motivam a fazer-se representar na conclusão de negócios jurídicos
por outrem – procurador – em vez de o fazer pessoalmente.

IV. A lei tutela os terceiros relativamente às modificações e à revogação da


procuração – as quais devem ser-lhes comunicadas por meios idóneos – e, bem
assim, às demais causas extintivas dos poderes de representação que aqueles
ignorem sem culpa (art. 266.º do CC).

V. As vicissitudes da procuração, sejam elas decorrentes da sua modificação ou


da extinção dos poderes representativos, são inoponíveis aos terceiros que,
desconhecendo-as ou ignorando-as sem culpa, contrataram com o
procurador.

VI. A confiança e autonomia que revestem a procuração não permitem que os


efeitos de um mau uso ou um uso abusivo da procuração se projectem sobre o
terceiro, fazendo-os recair sobre este.

VII. A procuração designada “irrevogável” vem prevista no n.º 3 do artigo 265.º do


Código Civil e densificada no n.º 3 do artigo 127.º do Código do Notariado,
com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 1/97, de 17 de Janeiro e que
estabelece que «as procurações conferidas também no interesse do
procurador ou de terceiro, deverão ser lavradas por instrumento público cujo
original ficará arquivado no Cartório».

VIII. Procuração irrevogável é, em síntese, aquela que não pode ser livremente
revogada pelo representado, por ter sido conferida também no interesse
do procurador ou de terceiro. Só podendo “extinguir-se” ou ser revogada

1
Luanda, 18 de Outubro de 2021.
com acordo do interessado (o procurador ou o terceiro), ou ocorrendo
justa causa2, isto é, quando isso resultar da relação subjacente à outorga
dos poderes de representação, ou seja, da relação que justifica e
fundamenta a procuração.

IX. Para se considerar que uma procuração é irrevogável, não basta o facto de
na declaração de vontade (…) se ler que "o mandante considera esta
procuração irrevogável nos termos da Lei por ser passada no interesse da
própria mandatária" é antes necessário averiguar se, em concreto, ela foi
conferida também no interesse do procurador.

X. A procuração irrevogável não caduca com a morte do mandante. A sua eficácia


post mortem , traduz-se, como se afirma no Ac. STJ de 3/6/97 (Portugal) –, em
«ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral
da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente
praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os actos de que fora
incumbido». Daqui se infere que não é possível qualificar a venda ou doação
posterior à morte do mandante como venda ou doação de bens alheios, ainda
que entretanto, por efeito da morte do mandante e da subsequente abertura
da sucessão (artº 2031º do C. Civil), e eventual aceitação da herança pelos
sucessores (artº 2050º do C. Civil), esses bens tenham passado temporária e
aparentemente a integrar o acervo hereditário.

XI. A esta caracterização se refere JANUÁRIO GOMES, quando declara que a


«convenção de irrevogabilidade nada acrescenta ao regime legal, sendo, de per
si, inoperante» (Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina,
Coimbra, 1989, p. 149): ou há interesse comum do mandante e do mandatário
ou de terceiro, e há irrevogabilidade, com ou sem convenção expressa; ou não
há tal interesse comum, e prevalece a livre revogabilidade, que torna ineficaz
qualquer convenção em contrário. Como diz ainda o mencionado Ac. STJ,
citando VAZ SERRA, «a irrevogabilidade tem de "resultar da relação
jurídica basilar e, em especial, por ter sido conferido no interesse do
mandatário (ou do procurador) ou de terceiro"».

2
O conceito de ‘justa causa’, diz Baptista Machado (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, em
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, págs. 356-363,
especialmente 361-362), é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma
apreciação valorativa do caso concreto. Será uma ‘justa causa’ ou um ‘fundamento importante’ qualquer
circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a
continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar
a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais,
essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de
correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A ‘justa causa’ representará, em
regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um ‘incumprimento’): será aquela violação
contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da
relação contratual. Em certos casos, porém, a ‘justa causa’ não consiste numa violação do contrato pelo
sujeito contra o qual é exercido o direito de resolução, mas num facto que se liga à vida ou à esfera de
controle daquela das partes a que a lei confere o direito de resolução: assim, por ex., o comodante que
venha a ter uma necessidade urgente e inesperada do objecto dado em comodato pode resolver o
contrato com fundamento em ‘justa causa’ nos termos do citado art. 1140”.
XII. Sobre os efeitos da morte do mandante ou dominus sobre o mandato ou
procuração irrevogáveis, se pronunciam JANUÁRIO GOMES (idem, p. 37),
aludindo ao «chamado mandatum post mortem exequendum,
entendendo-se por tal o contrato de mandato celebrado em vida do
mandante – mandato inter vivos – e que se destina a ter execução a partir
da sua morte ou em que é expressamente prevista a irrelevância da morte
do mandante para efeitos de extinção do mandato» e também PEDRO
LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS (A Procuração Irrevogável, Almedina,
Coimbra, 2005, pp. 180 ss.), este a propósito da figura da procuração post
mortem (cujos efeitos não divergem, no ponto em apreço, da eficácia post
mortem de uma típica procuração naturalmente irrevogável – i.e., de
procuração cuja irrevogabilidade resulte da existência de um interesse do
procurador ou de terceiro, por contraposição à procuração
convencionalmente irrevogável, conforme distinção desse autor, idem, p. 120).

XIII. Segundo o primeiro autor, os mandatos post mortem «serão válidos sempre
que não contendam com as regras que disciplinam a sucessão contratual ou
pactícia» (ibidem), restringindo assim às situações (aliás, excepcionais) de
sucessão contratual as hipóteses de ineficácia post mortem de mandato ou
procuração irrevogável, com o que acaba por admitir essa eficácia quando esse
mandato se confronte, designadamente, com situações de sucessão
testamentária (e, logo, unilateral ou não contratual).

XIV. O segundo autor é ainda mais explícito, quando equaciona a hipótese em que,
munido de uma procuração naturalmente irrevogável, «o procurador, após a
morte do dominus originário, procedesse à distribuição de bens e direitos a
pessoas diferentes dos herdeiros», em contrário à aplicação das normas
sucessórias. Depois de reconhecer que tal consequência «poderia levar à
tendência para não admitir a validade da procuração naturalmente irrevogável
post mortem», considera em seguida ser errada essa perspectiva, em função do
interesse do procurador ou terceiro na procuração. E afirma: «Numa situação
destas, mesmo que a outorga da procuração influa na herança, diminuindo-a,
nem por isso se pode considerar que a procuração viole as regras sucessórias»
(idem, p. 189). Em seguida, concretiza com um exemplo de alienação post
mortem, com base em procuração irrevogável, de imóvel integrante da herança
e remata: «(…) não se pode considerar que se está a violar as regras do direito
sucessório, embora através da procuração se legitime o procurador a celebrar
negócios que irão produzir efeitos após a morte do dominus, provocando
alterações no património da herança» (idem, p. 190). A única ressalva a este
regime que esse autor acaba por estabelecer prende-se com a protecção das
quotas legítimas dos herdeiros legitimários.

XV. Refira-se ainda que idêntica solução foi encontrada, quer no citado Ac. STJ de
3/6/97, quer no Ac. RC de 31/5/2005 (Proc. 462/05, idem), em que se
confrontavam, semelhantemente, um contrato de compra e venda de
determinado bem, celebrado com base em procuração irrevogável (por
conferida no interesse do mandatário ou de terceiro) de mandante entretanto
falecido, e a aquisição por sucessão desse mesmo bem por diferentes titulares.
Neste sentido, veja-se Pedro Albuquerque, A representação voluntária em
direito civil (ensaio de reconstrução dogmática), Almedina, Abril de 2004,
págs. 969 e segs:
a) “[A] competência representativa, em si mesma entendida de forma neutra e
indeterminada, necessita de ser, sempre, completada através de uma causa ou
relação que a determina e suporta” (pág. 973); “[p]ara existir irrevogabilidade
da procuração esta deve desempenhar a função de permitir o cumprimento
ou a execução da relação subjacente. Noutros termos, para a procuratio e o
poder de representação serem insusceptíveis de revogação deve resultar para
o procurator ou tertius, ou eventualmente ambos, uma pretensão cuja
satisfação pressuponha o exercício do poder de representação como um
instrumento ao serviço de uma posição própria destes. […] [A
irrevogabilidade dos poderes de representação…] só pode existir quando em
virtude de um outro acto de autonomia da vontade o constituído possa,
mesmo contra a vontade do constituinte, impor a satisfação ou comprimento
da sua pretensão. Noutros termos, a procuração irrevogável apenas é considerada
admissível quando o representado se vinculou à celebração de um negócio
representativo através do procurador.” (págs. 974/975) “Caso a irrevogabilidade
tenha sido convencionada sem ocorrerem os pressupostos que deveriam estar na
sua base, a communis opinio aceita, em regra […] a manutenção do poder de
representação, mas de forma susceptível de revogação.” (pág. 976) […] “Não basta
um qualquer interesse do procurador ou terceiro para excluir a possibilidade
de o constituinte retirar, ao constituído, os poderes concedidos de forma
irrevogável. A irrevogabilidade da procuração apenas é admitida naqueles
casos nos quais a relação fundamental, justificativa da procuração, imponha
como um seu trecho a manutenção do vínculo procuratório, pois, de outra
maneira, se violaria essa relação fundamental.” (págs. 976/977). E em nota
(1612) acrescenta: “o interesse do procurador, ou do tertius, referido no art. 265/3
do CC, não é, senão, a pretensão ou direito à realização do negócio ou acto ao
serviço de cuja realização a procuratio irrevogável se encontra. Torna-se, assim,
despiciendo procurar ou indagar acerca da existência de quaisquer vantagens ou
proveitos de natureza económica ou outra, a serem alcançados se os poderes
concedidos fossem de facto exercitados”. E mais à frente, noutra nota (1615, pág.
977/978) diz: “Não nos parece, por exemplo, poder considerar-se irrevogável uma
procuração para realização de uma doação a favor do procurador ou de terceiro,
pelo simples facto de este ter nisso um interesse económico ou jurídico se, ao
mesmo tempo, o donatário não tiver de facto o direito de exigir o cumprimento
da doação. A procuração não equivale ao negócio definitivo. Ver em hipóteses
como esta um interesse do procurador ou do terceiro de molde a tornar a
procuração irrevogável é um claro atentado à autonomia privada do
representado. Este não deve ficar vinculado à realização de uma liberalidade
pelo simples facto de outrem ter um mero interesse económico ou jurídico no
resultado de uma procuração, mas a cujo cumprimento não tem direito”.
No mesmo sentido, na parte que interessa, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos,
Contratos atípicos, Almedina, 1995:
b) “[A] procuração irrevogável está sempre ligada a um contrato, que lhe constitui a
relação subjacente […]” (pág. 301); “a procuração, como simples acto de outorga
de poderes de representação, pressupõe uma relação fundamental que lhe dá
causa […]” (pág. 302); “É perante a relação subjacente que vai ser apurado se a
procuração é outorgada no exclusivo interesse do representado […] ou no
interesse do procurador ou de terceiro, casos em que não é livremente revogável”
(pág. 303); “a irrevogabilidade da procuração só é admissível quando esta
desempenhe a função de possibilitar o cumprimento ou a execução da relação
subjacente, e dessa relação subjacente resulte para o procurador ou para o
terceiro, ou para ambos, uma pretensão cuja satisfação implique o exercício do
poder representativo do procurador, como um poder próprio, mesmo contra o
representado e contra a sua vontade” (pág. 305); “A irrevogabilidade […] tem de
resultar do relacionamento da procuração com a relação subjacente, sendo
ineficaz a nua estipulação de uma irrevogabilidade que não tenha fundamento
numa relação subjacente lícita” (pág. 306). Vai no mesmo sentido, no essencial,
para o que interessa, Januário Gomes, obra citada, págs. 145 a 152 e 169 a 186,
embora a propósito do nº. 2 do art. 1170 do CC, pelo que tem de ser lido com as
devidas adaptações. E ainda Luís Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos, A cessão
de créditos em garantia e a insolvência, em particular da posição do cessionário
na insolvência do cedente, Coimbra Editora, Outubro de 2007, págs. 72 a 77,
especialmente pág. 75)

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