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'

O DIREITO
DA LIBERDADE
A leitura moral da
Constituição norte-americana

11
Ronald Dworkin
li

Tradução
MARCELO BRANDÃO OPOLLA

Revisão técnica
,, ALBERTO ALONSO MUNOZ

Martins Fontes
São Paulo 2006
[I
1:
Introdução: A leitura moral
e a premissa majoritária

Uma confusão constitucional Úc..~> ft"'-h~..s


Ll Os diversos capítulos deste livro foram publicados se-
lV paradamente no decorrer de vários anos e tratam de várias
questões constitucionais. A maíoria foi esclita no contexto
de amargas controvérsias sobre a Constituição. Na verdade,
o livro discute quase todos os grandes problemas constitu-
cionais dos últimos vinte anos, entre os quais o aborto, a
ação afirmativa, a pornografia, as questões raciais, a homos-
sexualidade, a eutanásia e a liberdade de expressão. Alguns
capítulos tratam de decisões particulares da Suprema Corte
norte-americana, inclusive de decisões famosas, como as do
caso Roe vs. Wade, no qual a Corte pela primeira vez reco-
nheceu um direito ao aborto, do caso Cruzan, no qual teve
de decidir se os cidadãos têm o direito constitucional de op -
tar pela própria morte em determinadas circunstâncias, e do
caso New York Times vs. Sullivan, no qual mudou drastica -
mente o sentido da liberdade de expressão nos Estados
Unidos. Outros capítulos tratam de assuntos mais gerais. O
Capítulo 3, por exemplo, avalia a famosa alegação de que
muitos dos /1 direitos" constitucionais que a Suprema Corte
identilicou nas últimas décadas, inclusive o direito ao abor-
to, não estão na verdade /1 enumerados" na Constituição,
mas foram inventados pelos próplios juízes.
2 O D.IREITO 011. Ulll:ImJ\OC
INTRODUçAO 3

americano atual, essa autoridade cabe aos juízes e, em últi- ~ v<."" li.:"'
@ O livro como um todo tem um objetivo maior e rnais
ma instância, aos juízes da Suprema Corte. Por isso, os críti-f}{~f~":..
~.~ ~eral. Ilustra um método particular de ler e executa r urna
cos da leitura moral da Constituição dizem que essa leitura te,.~ ~ '·
~ L~t'"""ê~nstituíção política, método esse que chamo de leitlll:a mo- dá aos juízes o poder absoluto de impor suas convicções ,Y;
. ,. ~ · ral. A maioria das constituições contemporâneas expõo os
/"! ~bt>do f( direitos do indivíduo perante o governo numa li nguagem morais ao grande público. Em síntese, procurarei explicarc.:i Ji4"t...,
1
!t-./ ~ t<'.~'J. extremamente ampla e abstrata, como a Primeira Emenda à por que essa grosseira acusação não tem fundamen to. Mas,~V"lf,1 .N\_<Ni;:;5
t-"" " ' · Constituição norte-americana, que estabelece que o Con- antes, pretendo esclarecer que, na prática, a leitura moral ~!:.\?
gresso não pode fazer nenhuma lei que d iminua a "Jibcrdo· não tem nada de revolucionária.Na mesma medida em que
de de expressão". A leitura moral propõe que todos nós - os juristas e juízes norte-americanos seguem uma estraté-
juízes, advogados e cidadãos - in terpretemos e a pliquemos gia coerente qnalquer para interpretar a Constituição, eles
esses dispositivos abstratos considerando que eles foic rT\ já fazem uso da leitura moral. Espero que este livro deixe
referência a princípios morais de decência e jt.rs liça. A Pri isso bem claro.
meira Emen da, por exemplo, reconhece um princípio morol Isso explica por que os acadêmicos e jornalist as têm
- o princípio de que é errado que o gover110 cens ure ou con- tanta facilidade para rotular os juízes de "liberais" ou 11con-
trole o que os cidadãos individuais dizem ou p ublica m - e o servadores": a melh or explicação das diferenças entre seus .
incorpora ao direito norte-americano. Assim, toda vez que padrões de decisão está na diferente compreensão que eles ' <1< ",..,,,., •
surge uma questão constitucional nova ou controversa - a têm dos grandes valores morais inseridos no texto da Cons-V>"°IJet·k J,,." '' ·
de saber, por exemplo, se a Primeira Emenda a utoriza q ~1 c tituição. Os juízes cujas convicções políticas são conserva-
se elaborem leis contra a pornografia-, as pessoas e ncarre- doras naturalmente interpretam os princípios constitucio-
gadas de formar uma opinião sobre o ass unto devem deci- nais abstratos de maneira conservadora, como fizeram nos
dir qual a melhor maneira de compreender aquele princípio primeiros anos deste século, quando supunham, erronea-
moral abstrato. Devem decidir se o fundam ento verdadeiro mente, que certos direitos reais e contratuais são fundamen-
do princípio moral de condenação da censura, na forma crn tais para a liberdade. Os juízes cujas convicções são mais li-
que esse princípio foi incorporado ao direito norte-ame rica - berais tendem naturalmente a interpretar os mesmos prin-
7,;;\ no, se aplica também ao caso da pornografia. cípios de maneira liberal, como fizeram nos anos de ouro da
'0 A leitura morat assim, insere a moralidade polítka no corte Warren. A leitura moral, em si mesma, não é um pro-
próprio âmago do direito constitucional'. Mas a m.ora li dade grama ou estratégia intrinsecamente liberal nem in trinse-
política é intrinsecamente incerta e controversa; por isso, camente conservadora. É verdade que, em décadas recen-
todo sistema de governo que incorpora tais princíp.los a tes, mais juízes liberais do que conservadores consideraram
suas leis tem de decidir quem terá a autoridade s uprema inconstitucionais determinadas leis ou atos normativos.
para compreendê-los e interpretá-los. No sis terna norte Mas isso aconteceu porque os princípios políticos conserva-
dores em geral favoreciam ou pelo menos não condenavam
1. Algumas correntes do pensamento jurídico, como os ir1ovl11w1ü os peremptoriamente as medidas que, nessas décadas, pude-
"realista" e de "estudos criticos do direito" surgidos nas últimas d6cl1d,1~. dilo
ênfase ao papel da política, mas por u m motivo cético: afirmam CilU.', Nl' o dlt oi
ram, dentro dos limites da sensatez, ser acusadas de incons-
to depende da moralidade política, não pode reivindicar para si 1w11liutn11 w 1· titucionalidade. Essa generalização tem suas exceções. Os
dade, validade ou força "objetivas". Rejeito essa afirmaç5.o c61ico t• Ili P<OrLtl\'I conservadores, em virtude de seus princípios morais, desa-
refutá-la em outros escritos.Ver, por exemplo, Law's E111plra O[nrvt1l'd IJ nlVCrflity provam fortemente os programas de ação afirmativa descri-
Press, 1986) [trad. bras. O império do direito, São Paulo, Martins Po11 1c~, 111991.
4 O DIREITO DA LlBERDADE INTRODUÇÃO 5

tos no Capítulo 6, que garantem certas vantagens para os Mas quase nunca chega a ser reconhecida como uma in-
membros de minorias que se candidatam a uma vaga na fluência, nem mesmo por especialistas em constituição, e
universidade ou a um emprego; e os juízes conservadores quase nunca é abertamente defendida pelos juízes cujos ar-
não hesitaram em seguir seu entendimento sobre o que a gumentos seriam incompreensíveis de qualquer outro pon-
leitura moral exige em casos como esse2 • Essa leitura nos to de vista. Muito pelo contrário, a leitura moral costuma ser
ajuda a identificar e explicar, além disso, não só esses pa- descartada como uma corrente " radical" que não seria ado-
drões de grande escala, mas também certas diferenças mais tada por nenhum constitucionalista sensato. É evidente que
. sutis de interpretação constitucional que se aplicam tanto as opiniões dos juízes sobre a moralidade política influen-
para os conservadores quanto para os liberais. Os juízes ciam suas decisões constitucionais; e, embora fosse fácil
conservadores que atribuem wn valor particular à liberdade para eles explicar essa influência pelo fato de a Constituição
de expressão, ou consideram-na particularmente Lmportan- exigir uma leitura moral, eles nunca o fazem. Antes, indo
te para a democracia, tendem, mais do que os conservado- contra toda evidência, eles negam a influência e procuram
res em geral, a estender a proteção oferecida pela Primeira explicar suas decisões de outras maneiras, aliás constrange-
Emenda também aos atos de protesto político, mesmo para doramente insatisfatórias. Dizem, por exemplo, que estão
causas com as quais não concordam, como demonstra a de- dando eficácia a obscmas 1'intenções" históricas ou apenas
cisão da Suprema Corte que protege cidadãos que queima- expressando uma "estrutura" constitucional geral porém
ram a bandeira norte-americana3• inexplicada, que supostan1ente seria compreensível de ma-
Repito, pois, que a leitura moral não é revolucionária neira não-moral.
na prática. Em seu trabalho cotidiano, advogados e juízes ff\. Não é difícil explicar esse descompasso entre o papel
instintivamente partem do princípio de que a Constituição ~ real e a reputação. A leitura moral está tão profundamente
, v expressa exigências morais abstratas que só podem ser apli- arraigada na prática constitucional e é, dos pontos de vista
VllJ< ((,.. ôf\<Ul cadas aos casos concretos através de juízos morais específi- político e jmidico, tão mais sedutora do que as alternativas
C: ci t.. itJlc,. cos. Mais adiante, vou tentar deixar claro que essa é a única coeren tes que a ela se apresentam, que não pode ser aban-
VIA.e-1 " ( opção que eles têm. Mas se um juiz reconhecesse aberta- donada de uma hora para a outra, sobretudo quando estão
mente a leitura moral ou admitisse que é essa a sua estratégia .\ em jogo importantes princípios constitucionais. Por outro
de interpretação constitucional, esse seria wn fato revolu- y / lado, a leitura moral é desairosa dos pontos de vista intelec-
cionário; e até mesmo os juristas e juízes que quase a reco- tual e político. Ela parece eliminar a importantíssima distin-
nhecem não chegam efetivamente a fazê-lo e tentam en- ção entre direito e moral, pondo o direito na dependência-fo { ~CAJº
contrar outras definições - geralmente metafóricas - para dos princípios morais que por acaso são adotados pelos juí-
sua prática. Por isso, existe uma diferença notável entre o zes de determinada época. Parece ainda constranger de modo
papel efetivo da leitura moral na vida constitucional norte- grotesco a soberania moral do povo - parece tirar das mãos
americana, por um lado, e sua reputação, por outro. Foi ela do povo e entregar a uma elite profissional as grandes ques-
que inspirou todas as grandes decisões constitucionais da tões que definem a moralidade política e que o povo teria o

B
Suprema Corte, e também algumas de suas piores decisões. direito e o dever de avaliar e decidir por si mesmo.
É essa a origem da paradoxal contraposição entre a prá-
2.Adamnd Constructurs, Inc. vs Pena, 115 S. Ct. 2097 (1995). tica constitucional corren te nos Estados Unidos, que depen-
3. Texas vs. Johnwn, 491U.S. 397 (1989). de quase exclusivamente da leitura moral da Constituição, e a
6 O Dll<l:ITO /)/\ / 111/!l<t)/\I)/; INTRODUÇÃO 7
teoria constitucional corrente, que rejeita por comple to cs~o
leitura. Essa confusão teve graves efeitos na poHlkíl . OH pnlf
@ A confusão, porém, arrasta também os políticos. Estes
prometem indicar e confirmar juízes que respeitem os devi-
ticos conservadores buscam convencer o público clr qul' l1S dos limites de sua autoridade e deixem a Constituição em
grandes casos constitucionais não giram e m torno dr rwofun- paz, mas como essa idéia não representa de modo acertado
das questões de moralidade política (e eles giram, Hltn), mas as escolhas com que os juízes têm de se defrontar na práti-
em tomo de uma questão muito mais simples: ~i.: os juf1.CS ca, os políticos freqüentemente se decepcionam. Ao deixar a
0 ~ J f'U.-"') )&,,- de"..em mudar a Constituição .r~r decre~o ou dc.ix6 ln co.mo presidência em 1961, Dwíght Eisenhower, que havia conde- '· (l,1\•H;:,w~
11~ ,.,._,dA'f esta4 . Por algum tempo, essa v1sao das d1vcrgênc1as co11slltu- nado o que chamou de /1 ativismo judicial", declarou a um.:i.JhiA,, 1 "
fu4,f<i 1 ~ oJ ~ cionais foi aparentemente aceita até mesmo pot' ol11uns llbc- jornalista que, na presidência da república, só havia cometi- [;. ?e-"' luvJt-1
d.;:1><.tAG. <t......o rais. Estes diziam que a Constituição é um documcnlTl "vivo" do dois grandes erros - e ambos estavam na Suprema Cor- 1"1 1 J.
~j\-c' 1 que tem de ser /1 atualizado" para faze r frente o novas ci rcLtns- te. Referia-se ao Presidente da Suprema Corte, Earl Warren,
'}ú:;,, \~"' tâncias e sensibilidades. Diziam que tomavarn umo nlHlrdo que era um político do Part ido Republicano quando Eisen- Wc..-<J1.-Y)
"ativa" perante a Constituição, o que sugeria uma tc ndôncia hower o indicou mas que depois presidiu a um dos perío-
1 de reforma, e aceitavam a caracterização que John rny dovn dos mais "ativistas" da história daquela, e ao jlúz vV'Jlliam \JJ i" 1~" '·>
/dilo AI& &:'Lt-·-'Cle sua posição: caracterizava-a ele como uma posição "nõu- Brennan, outro político que era juiz de um tribunal estadual f>'jt"'"" '<'fl
~ ~~~~~ J" mterpretativa", o que dava a entender que se pte (crio . a ir'l· quando Eisenh ower o indicou e que se tomou, na época
venção de um novo documento à interpretação do anligd. moderna, um dos adeptos mais liberais e explícitos da leitu-
Na verdade, como veremos, esse entencUmcnto da divcrgl!n ra moral da Constituição.
eia nunca foi aceitado. Nunca houve um debate teórico para {cjl O s presidentes Ronald Reagan e George Bush mostra- f~r e..~ ~'.k. L
se saber se os juízes devem int erpretar a Consti tuição Oll mo- \!/ ram-se ambos profundamente escandalizados com o fato de rj.;<:>\}i.
dificá-la - quase ninguém, na realidade, adotava este úllimo a Suprema Corte "usurpar" os privilégios do povo. Afirma-
ponto de vista; debatia-se, isto sim, como ela devia ser inter- ram-se determinados a só indicar para a Suprema Corte juí-
pretada. Porém, os políticos conservadores explora rarn 11ql.1 C zes que não desafiassem a vontade popular, m as a respeitas-
le entendimento simplificado da questão e não obtiveram de sem. Junto com os que os apoiaram na corrida à presidência,
seus adversários uma resposta à altura. condenaram específicamente a decisão do caso Roe vs. Wade,
tomada pela Corte em 1973, que protegia o direito ao aborto,
e prometeram -que os juízes que incUcassem a reverteriam.
4. Ver Antonin Scalia, "Originalism: The Lesser Evil", Tire University 11f
Cindnati La:-.v Review, vol 57 (1989), pp. 849-65.
Mas surpreendentemente (como explicamos no Capítulo 4),
5. Ver John Hart Ely, Democracy and Distrus/: A Theory of furlicinl Ré11iew quando chegou a oportunidade para tal, três dos juízes que
(Harvard University Press, 1980). O livro de Ely teve larga inAuência, não ern Reagan e Bush haviam indicado votaram não só para confir-
virtude de sua distinção éntre as atitudes interpretativa e não-interpretativa mar a dita decisão como também para fornecer-lhe novos
perante a Constituição, que felizmente já não é muito utilizada, mas porf(Ue
ele foi um dos pioneiros da idéia de que certas restrições constitucionais não fundamentos jurídicos que se baseavam de modo ainda
devem ser ententüdas como lLrn prejuízo, mas sim como um auxílio à demo- mais evidente na leit ura moral da Constituição. É comum
cracia. Creio que ele estava errado em limitar essa categoria aos direi1·os cons- que as expectativas dos políticos que indkam juízes sejam
titucionais que podem ser entendidos como adju tórios dos procedimentos
constitucionais e não como direitos mais substantivos. Ver meu artigo "The Fo- frustradas dessa maneira, pois os políticos não compreen-
rnm of Principie", em A Matter of Principie (Harvard Universily Press, 1985) dem o quão profundamente a leitura moral, por eles deplo-
[trad. bras. Uma questão de princípio, São Paulo, Martins Fontes, 2000]. rada, está de fato inserida n a prática do direito constihicio-
8 O DfREITO DA UBERVl\OC INTRODllÇÃO 9
nal. Seu papel fica eclipsado quando as convicções pessoais ato de swcídio por parte do indicado e um motivo de emba-
do juiz concordam com a legislação cuja constitucionalidade raço para os que lhe fazem perguntas. Nos últimos anos, só
/.IM.._ a. está em causa - quando um jwz considera moralmcnlc ad- as sabatinas (discutidas na Parte III) que culminaram na der-
Ft"""" ~" -tl1S.. missível que a maioria da população tome o aborto um cri rota de Robert Bork exploraram a fundo as questões consti- (v, ,_,.,,.,_y-rf:
1<'>1 (...:-'<;e, e' me, por exemplo. Mas é possível se perceber com evidência tucionais de princípio, e só o fizeram porque as opiniões do rM"l""'h·~ d-<.--
't1.m~\ o quanto a leitura moral é difundida quando as convicções juiz Bork sobre o direito constitucional eram tão evidente- ~e-t K l
de princípios de algum juiz - identificadas, postas n pmva e mente influenciadas por uma moralidade política radical f\ld,,.:;~d:~~
1
talvez modificadas pela experiência e pelo diálogo se incli- que suas convicções simplesmente não podiam ser ignora- -pr
nam num sentido oposto, uma vez que então, parn Dquclc das. Nos procedimentos para a confirmação dos atuais mi-
\~~~ juiz, garantir a Constitllição significa dizer à maioria da po nistros Anthony Kennedy, David Souter, Thomas, Ruth Ba-
pulação que ela não pode ter o que quer. der Ginsburg e Stephen Breyer, entretanto, a antiga ficção foi
(1~ As audiências do Senado que se seguem à indicação de posta novamente num vergonhoso lugar de honra.
um jtúz para a Suprema Corte tendem à mesma coníusão.
Atualmente, esses acontecimentos são minuciosam ente
acompanhados e amplamente divulgados pelos mciol! de
8 Mas o resultado mais grave dessa confusão está no fato
de o público norte-americano não compreender o verda-
deiro caráter e importância de seu sistema constitucional.
comunicação, e muitas vezes são transmitidos pela televisão. Como já afirmei em outros textos, o ideal norte-americano -O 1d"-"
Oferecem ao público uma excelente oportunidade para par de um governo sujeito não somente à lei, mas também a r~'·~(÷'''-c­
ticipar dos procedimentos constitucionais. Porém, a disso- princfpios, é a contribuição mais importante que nossa his-\ . . ihJ í:
nância entre a prática real e a teoria convencional rouba da tória já deu à teoria política. Outros países e culturas sabem Jl:i-tAAf• J.{)
ocasião boa parte do valor que poderia ter. (As sabatinas disso, e o ideal norte-americano tem sido cada vez mais o~ :. '" «: ~
realizadas depois que o presidente Bush indicou o juiz Cln adotado e imitado de forma consciente em outras partes do b r í\A!.
rence Thomas para a Suprema Corte, discuti.das no Capítulo globo. Mas nós mesmos não somos capazes de reconhecer
15, são um exemplo bem claro disso.) Tanto os indicados nossa contribuição, de orgulhar-nos dela e de cuidar dela
quanto os legisladores fingem que casos constitucionais difí- M como devíamos.
ceis podem ser decididos de maneira moralmente neutra ~ Esse juízo parecerá extravagante e até perverso para
J>J muitos juristas e cientistas políticos. Para eles, o entusias- Á / //'-'"
(f (.
1 pela simples obediência ao "texto" do documento, d e tal
~ i\.c. modo que seria descabido propor ao indicado q uaisquer mo pela leitura moral dentro de uma estrutura política que- :;1 "''d"i'V.
~~e.\ ~el.... perguntas acerca de sua moralidade política. (lronicamcnte, atribui aos jufaes a suprema autoridade cm matéria de in- r . , , •,,e.,,.
t"t.~~t:e.. J. nos anos que antecederam a sua indicação, o juiz Thomas terpretação é elitista, anti populista, anti -republicano e an - 1
•.. ,\,1Lc.OA deu mais apoio explícito à leitura moral do que praticamen- tidemocrático. Como veremos, essa idéia se baseia num Vr v-
te qualquer outro jurista constitucional; como explicamos no pressuposto bastante difundido, mas pouco estudado, (~ w ki
, 1 . .. d . ~' •Ç G
Capítulo 15, ele insistia em que os conservadores adotassem acerca d e um vmcu o que eXIsttna entre a emocrac1a e a 1: N-0-U (._
essa estratégia de interpretação e a pusessem a serviço de vontade da maioria, pressuposto esse que, aliás, a história e; ./,,,.r- (,,ç;J,{,
uma moral conservadora.) Qualquer reconhecimento públi- dos Estados Unidos sempre rejeitou. Quando compreen- tJ.. ,. ;rµ(.f <i
co da leitura moral - qualquer sinal de simpatia pela idéia de demos melhor a democracia, vemos que a leitura moral de
que os dispositivos constitucionais são princípios morais que uma constituição política não só não é antidemocrática
devem ser aplicados por meio de um juízo moral - seria um como também, pelo contrário, é praticamente indispensá-
10 O nJRf.1'10 /1A 11/11 HPAm . INTRODUÇÂO 11

vel para a democracia. Não quero dizer qut: 11 dL·111ou uda É claro que existem discordâncias· sobre a maneira cor-
só existe quando os juízes têm poder para dcix.11 dl• l.1do ;1s reta p~la qual esses princípios morais abstratos devem ser
idéias que a maioria das pesso~s têm acerca dt> ljlll' l' bom reenunciados a fim de tomar o seu sentido mais claro para
e justo. Muitos arranjos institucionais são comp.lt1w1<; com nós e de nos ajudar a apliê:á-los a controvérsias políticas
a leitura moral, inclusive alguns que não dão nn:-i Jlllí'l''l o mais concretas. Eu, particularmente, sou favorável a uma !:-N r
t\.IA '-'
,..,J

poder que têm na estrutura norte-americana. M.1s m•"hum determinada maneira de enunciar os princípios constitudo- -O) ~o\cff~
desses diversos arranjos é, em princípio, mai~ thm1m·1,1tico nais num ·nível o mais geral possível, e, no decorrer de todo"-"" J"' -4\
do que os outros. A democracia não faz qucstuo d • l flll' os este livro, tento d efender essa maneira de concebê-los.(o ~~ r~ !
juízes tenham a última palavra, mas também nõo fui qm•s Creio. que os princípios estabelecidos na Declaração de Di- &~~...rtl
tão de que não a tenham. Estou avançando muito t•m nwu reitos, tomados em seu conjun to, comprometem o~stados
argumento, porém. Antes de voltar à questão de po1 llLll' o Unidos com os seguintes ideais políticos e jurídicosfo Esta-
leitura moral tem sido tão mal interpretada, tenho dl' fo lar do deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu qomínio como
um pouco mais sobre o que ela é. dotadas do mesmo status moral e político/~ve tentar, de
boa-~~ tratar a todas com a mesma consideração (equal con-
cern}I~ deve respeitar todas e quaisquer liberdades indivi- '1~trJ(,<,
A leitura moral l\.,.b ~ d.. i.\J O 'r 1'~ 1 ( J.iu1 '~ duais que forem indispensáveis para esses fins, entre asCts til) •,J.',f.
f &. </, quais (mas não somen te) as liberdades mais especificamen-1 't . '"'
•'1,..;
te declaradas no documento, como a.liberdade de expressão~ 1t' ~f;
1
(';;:) Os dispositivos da Constituição norte-amcricnliil qut'
V protegem os individuas e as minorias da ação do IMudo e a liberdade de religiã<yMas outros jur:istas e doutrinado-Vº C" . <M •
encontram-se sobretudo na chamada Declaração de Dird res que também são favoráveis à leitura moral podem for-
tos - as primeiras emendas apostas ao documento e 11,111 mular os princípios constitucionais, mesmo num nível mui-
emendas acrescentadas depois da Guerra Civil. (Vou LIHilr íls to geral, de maneira diferente e mais Limitada; e embora b.
vezes, de modo pouco preciso, a expressão "Occlnrnçno de este capítulo introdutório tenha o objetivo de explicar e de- V
Direitos" para me referir a todos os dispositivos da Consti fender a leitura moral, e não as minhas interpretações feitas~"""1Ô ~kl'
tuição que estabelecem os direitos individuais, como as par
A · · tes da Décima Quarta Emenda que protegem as prcrrogati
~~? vas e imunidades dos cidadãos e garantem-lhes o devido
a partir dela, tenho de dizer algo sobre como escolher entreÓj
as fo~mulações concorrentes.
E evidente que a leitura moral não é adequada para a #- .
r1 .":v
fÚ·>"< '"""
, ._Jl.6f

e~~ \ fAiokk.Rroces~~ e a i~a ldade de proteç~o da lei.) Muitos desses interpretação de tudo quanto uma constituição contém. A
aispos1t1vos estao vazados numa Linguagem moral cxccs!:ii Constituição norte-americana inclui muitos artigos e dispo-
vamente abstrata. A Primeira Emenda se refere ao "direito" sitivos que não são nem especialmente abstratos nem vaza-
1 de liberdade de expressão, por exemplo; a Quinta Emenda, dos na linguagem dos princípios morais. O Artigo II, por
ao processo "devido" aos cidadãos; e a Décima QLiorta, n exemplo, especifica que o President~ deve ter pelo menos
uma proteção "igual". Segundo a leitura moral, esses di$pü· trinta e cinco anos de idade; e a Terceira Emenda estabelece
sitivos elevem ser com reendidos da~n ais nalLlCO I que o Estado não pode aquartelar soldados nas residências
.~~·da or sua i~ggm.: referem -se a princípios de civis em tempo de paz. Este último dispositivo pode até
morais abstratos e, por referência, incorporam-nos como li ter sido inspirado por u m princípio moral: os q ue o escreve-
mites aos poderes do Estado. ram e homologaram podem, por exemplo, ter querido dar
12 O DIRT:I'('() IM 1Ili/ Nl IAI )[; INTRODUÇÃO 13
efeito a um princípio que protegesse o dirclto do:; d d11dfíoa acerca de quais seriam as conseqüências legais e jurídicas
à privacidade. Mas a Terceira Emenda não é c m i;i n11•1·Hfül da Décima Quarta Emenda. Queriam que esta pusesse fim
um princípio moral: seu conteúdo não é um prlndpln gP1nl a algumas das mais chocantes práticas discriminatórias
de privacidade. Assim, o primeiro questiona m~ n to dn mi contra os negros do período da Reconstrução. É certo que
nha interpretação dos dispositivos abstratos podL• 'll'I f0 1 não esperavam que ela proibisse a segregação racial oficial
mulado deste modo: de que provas ou argumen to:; dliipo nas escolas - muito pelo contrário, o mesmo congresso que
nho para afirmar que o dispositivo de iguaJdadc ck p1<>IL'ÇÜO adotou o dispositivo de igualdade de proteção conservou a
da Décima Quarta Emenda (por exemplo), que clcclora q L1 C segregação no sistema escolar d o D istrito de Colúmbia.
nenhum estado pode negar a nenhuma pessoa u 1fü•<Jrno Mas os autores não disseram nada acerca das leis discrimi-
(equaQ proteção da lei, tem como conteúdo um p1ind plo natórias contra os negros, da segregação nas escolas, da ho-

®
moral, embora a Terceira Emenda não tenha? mossexualidade ou da igualdad e entre os sexos - não disse-
Trata-se de uma questão de interpretação ou, se pn:ÍC' ram nada, nem contra nem a favor. Disseram apenas que a
rir, de tradução. Temos de procurar encontrar uma linguagem "igual proteção da lei" era necessária, o que evidentemente
nossa que capte da melhor maneira possível e em lermos configura um princípio muito geral e não uma qualquer
que nos pareçam claros o con teúdo do que os "aut·orcs" aplicação concreta deste.
quiserru.n dizer. (Os estudiosos da Constituição usam a po Os autores quiseram, pois, pôr em vigor um princípio éJ~ o-:?~L<,.
lavra "autores" (framers] para designar, de maneira um lan geral. Mas que princípio é esse? Para responder a essa ou-J:;: H <:-·"'t;'.. /
V ...-t.,.;°"'•"'li
to ambígua, as diversas pessoas que redigiram e aprovar am tra pergunta, é preciso elaborar diversas in terpretações daJ... "')"' m.
um artigo ou dispositivo constitucional.) A história t~ um expressão "igual proteção da lei", cada uma das quais pos-t"' • ...~<i~,
elemento essencial para esse projeto porque, paro saber o sa ser reconhecida como um princípio de moralidade polí-""1~-t " 11...:-
que uma pessoa quis dizer quando disse algumo cotsa, te h.ca que tena. . daque1es autores. ·oe -f.~
merect'd o o respeito flV~SH-w'\
fã.·~ ... "-' ~
mos de saber algo acerca das circunstâncias cm que cio se pois, temos de nos perguntar qual dessas interpretações é.<'. ~Cfi.;tí.
encontrava quando disse aquilo. Porém, não encont ramos pode mais sensatamente ser atribuída a eles, dado tudo o hr/r.,(c.ÁltrJ
. ~ d 1 t;,,••,J;.....
nada na história que nos permita ter dúvidas acerca do que que sa b emos. A d eterrrunaçao e que ca d a uma dessas é.. li'...
'!)~ -.-0w1:.
jso.:..,, '-<. ~t-os autores da Terceira Emenda quiseram dizer. Dadas as pa- possibilidad es possa ser reconhecida como um princípio ::-J.,. ;;.,-
;.J~?~~t lavras que utilizaram, não podemos, se~ f;igir da scnsatct, político é absolutamente essencial. A fim de entender os ~. '1' # o/·
,.11.-.f:fc.oA pensar que eles estabeleceram um pnnc1pto moral qual- esforços de um estadista para estabelecer um princípio
rN.7l{ quer, mesmo que acreditemos que foram inspirados por um constitucional geral, não podemos atribuir a ele algo que
tal princípio. Eles disseram o que as palavras que uso ram nem ele nem nós reconheceríamos como um pri ncípio
normaJmente serviriam para comunicar: não que a privaci- possível. Mas mesmo essa restrição ainda nos deixa com -r; b ..-
e
·1

dade deve ser protegida, mas que os soldados não devem .


muitas poss1 'bili.d d b d b
a es em a erto. erta vez se e ateu, pory,.,hjtjl'tll(r;ç
'~
ser aquartelados em residências em tempo de paz. O mes- exemplo, se no dispositivo de igualdade de proteção os au-·-<t. U\
mo processo de raciocínio, porém - a idéia de o que os au- tores só pretendiam estipular o princípio político fraco de rf(. 1
que as leis devem ser impostas de acordo com sua formula- ~ 4hc..f\ t'"
1
tores supostamente quiseram dizer quando usaram tais e
tais palavras -, nos faz chegar a uma conclusão oposta acer- ção, de tal modo que os benefícios legais conferidos a qual-
ca dos autores do dispositivo da igualdade de proteção. Sem quer pessoa, inclusive um negro, não pudessem. ser negados,
dúvida, a maioria deles tinha expectativas bastante claras na prática, para ninguém.
14 O DIREJ'T'O DA 1.1/Jl:RtWJT;
INTRODUÇÃO .. i t\fl::ICi J.ic~ /o ~1 15
/
C0;'i Porém, a história aparentemente nos leva n concl uir de Por isso, sem dúvida alguma,f I:istória é um fator perti~e~­
~ maneira decisiva que os autores da Décima Quarta Fmt•nda te. Mas só o é num sentido p~cltlar. Consultamos a hLSto-
não tiveram a intenção de estabelecer um princípio tão í1 aco ria para saber o que eles pretendiam dizer, e não quais outras
quanto esse, que daria aos estados liberdade para discrimi intenções eles tinham, o que é uma questão muito diferen-
g ~ !.>:> nar os negros como bem entendessem, desde que o ft:tl!S te. Não temos necessidade de saber, por exemplo, o que
~~~11cd 1 .a> sem abertamente. Seria muito improvável que os cong1l'S eles previam ou queriam que acontecesse em decorrência
~':1;t_J:,sistas da nação vitoriosa, procurando entender as conquistas de terem dito o que disseram; nesse sentido, o objetivo de-
J.':'. f"·~~C-""'> e as lições dadas por uma guerra terrível, se contcnta'lst•m les não faz parte do nosso estudo. Como veremos no Capí-
riFt>·
l04 •·· com algo tão limitado e insípido; e não devemos pensar que tulo 3 e em outros, essa é uma distinção importantíssima.
eles o fizeram, a menos que a linguagem não nos fa culte nc Somos governados pelo que nossos legisladores djsseram -
\ nhurna outra interpretação plausível. De qualquer modo, a pelos princípios que declararam - e não por quaisquer in- /) kx tiJ
1. ~ interpretação da Conslituição não deve levar em conta so formações acerca de como eles mesmos teriam h1terpretado::oi\M) fio h.
t.k:JC..-1 t""1 , . dº diz
úv.o1~iM.-il-{ 1 mente o que os propnos autores preten iam • er, n"I OS om
t
esses princípios ou os teriam aplicado em casos concretos. fr.., fi i<:.
ºr
1rí ''°"f. bérn a prática jurídica e política _do pas~ad?; e já se cs~nb; J7
(NJ"-'t~6"'-' 1 ceu por meio de precedentes mevogave1s que o pnnc;1p10
@ Em segundo_lugar, mas ~a mesma or~em de irnpo;iâ.n - z.J ("fct -
cia, a interpretaçao constttuc1onal sob a leitura moral e d1s- ~J.Á:·,
~~~.:C~à. político incorporado na Décima Quarta Em~nda não 6 esse ciplinada pela exigência de integridade constitucional discu-
d.o fc.?~k princípio extremamente fraco, mas algo mats ~obusto. Ui.n a tida em diversos trechos deste livro e exemplificada, por /,,t.."< ~J ç>
vez admitida essa idéia, porém, deve-se condwr que o pnn exemplo, no Capítulo 46 . Os juízes não podem dizer que a ft;.:i'l'(.~ 5 f
cípio é algo muito mais robusto, pois a única allcrnaliva de Constituição expressa suas próprias convicções. Não po- flS J..Asfi',,J
tradução para o que os autores efetívamente disseram no dis- dem pensar que os dispositivos morais abstratos expressam ~<;µ~ "'~'~
positivo de igualdade de proteção é um princípio de abnm um juízo moral particular qualquer, por mais que esse juízo ·h~ 7 t:~>r..<
-1t::1â.i;Jt,~ \') gência e força surpreendentes/o princípio de que o 12stado ., . t VMJJ·l"1""-t·
lhes ~areça correto, a menos que tal JUIZO seja :o~:n e, em •<\\ ~~' u "-v
~\"\cM> ~ 8i.eve tratar todos, sem exceção, como dotados do mesmo principio, com o desenho estrutural da Constituíçao como
~~"' P'~ ~.status, e deve tratá -los com a mesma consideração/ um Lodo e também com a linha de interpretação constitu-
;r.h"I Os exemplos substantivos d~dos em c~pí~los subs<; cional predominantemente seguida por outros juízes no
\.2Y qüentes detalham um pouco mais essa explicaçao sumária passado. Têm de considerar que fazem um trabalho de
do papel da história e da linguagem para se entender _os equipe junto com os demais funàonários da justiça dopas-
'' ·J , significados da Constituição. Mas mesmo nesta breve d1s- sado e do futuro, que elaboram juntos uma moralidade
u..u..1 e.~ io.o5
cussão ja, mencionamos d uas restnço:s
· - ·unpor tai~ t es que 1·1 constitucional coerente; e devem cuidar para que suas con-
3j Í"V.:j. mitam agudamente a liberdade de açao que a leitura moral
r,< "" 1-·
( r...<1 ,·

'.iK°""h"<t:.l confere aos juízes enquanto indivíduos. Em primeiro lugar,


ct.. ~·>l.,, «fll'\ de acordo com essa leitura, a interpretação constitucional
t tribuições se harmonizem com todas as outras. (Em outro
texto, eu disse que os juízes são como escritores que criam
Y juntos um romance-em-cadeia no qual cada um escreve um
~ ~\ tem de partir do que os autores disseram; e, do mesmo 1 capítulo que tem sentido no contexto global da história'.)
J.c 1~ modo que nossos juízos sobre as palavras de amigos e des- Mesmo um juiz que acredita que a igualdade econômica é
conhecidos têm de basear-se em informações específicas
sobre eles e sobre o contexto em que foram ditas, o mesmo
6. FUra uma discussão geral da intcgridilde no e.li.Leito, ver L11w's Empíre.
vale para nosso entendimento do que os autores disseram. 7. Ver Law's 'Empire, p. 228.
16 o DIREJTO DA u ntR/JA()E ' . INTRODUÇÃO 17
uma exigência da justiça abstrata não pode, em seu trabalho que a leitura moral dá aos juízes um poder absoluto para
de interpretação, concluir que o dispositivo de igualdade de impor a todos nós suas próprias convicções morais. Macau-
i:,r: 1 rºf~J proteção significa que a igualdade de riqueza ou a propric lay estava errado quando disse que a Constituição norte-
1 ?-1"'~ (\raJ'i.dade coletiva dos meios de produção são exigências da americana tem uma grande vela mas não tem âncora', e es-
~(;. t, •Jc, Constituíção, pois essa interpretação simplesmente não se
harmoniza com a história dos Estados Unidos, com a práti-
,t;/\ ca norte-americana e com o restante da Constituição.
tão errados também os críticos que afirmam que a leitura,. /
moral transforma os juízes em reis-filósofos. Nossa Consti- V k.
,,,

tuição é uma lei e, como toda lei, está ancorada na história, ~~,t,." . ,
·i 'i
1fJ; O juiz também não pode, sem fugir à plausibilidade, na prática e na integridade. A maioria dos processos judi- r.r. (r(~f._u.
pensar q ue a estrutura constitucional deixa a seus cuidados ciais - até mesmo a maioria dos processos constitucionais - ~~.
1
mais do que certos direitos políticos básicos e estruturais. O não é difícil. A arte comum do juiz lhe dita a resposta e não '
, juiz pode até ser de opinião de que uma sociedade vcrdadci- deixa espaço algum para os caprichos das convicções mo-
~,}~\~ ramente comprometida com a igualdade de consideração rais pessoais. Mesmo assim, não devemos exagerar o peso
~:.~_fi~ 1 · f~i.'fomeceria recursos especiais aos deficientes, ou ga.rantLria a dessa âncora. Entendimentos muito diferentes, ou mesmo
P"'.." ,, todos um acesso segtu:o a parques recreatwos, ou ainda pro- contrários, de u m único princípio constitucional - de o que
\-t.JG."" . porcionaria tra tamentos médicos heróicos e expcrimcnl·nis, realmente significa tratar hom ens e mulheres como iguais,
<!> M"º"1 por mais caros ou incertos que fossem, para qualquer pessoa por exemplo - podem se harmonizar com a linguagem, os
cuja vida tivesse a múúma possibilidade de ser salva . Mas o precedentes e a história, e ambos podem atender a esse cri-
juiz violaria a integridade constitucional se tratasse essas de tério; os juízes sensatos devem então decidir por si mesmos
termi nações como elementos do direito constitucional. Os qual das concepções mais honra o seu país. Por isso, embo-
juízes devem submeter-se à opinião geral e estabelecida ra seja hiperbólica a queixa comum de que a leitura moral
acerca do caráter do poder que a Constituição lhes confe re. A dá um poder ilimitado aos juízes, ela é verdadeira o sufi-
leitura moral lhes pede que encontrem a melhor concepção cien te para deixar de cabelos em pé os que crêem que esse
dos princípios morais constitucionais - a melhor comprecn tipo de poder judiciário é incompatível com uma forma re-
são, por exemplo, de o que realmente significa a igualdade publicana de Estado. A vela da Constituição é bem grande,
moral dos homens e das mulheres - que se encaixe no con e muitos tem em que seja grande demais para um navio
junto da história norte-americana. Não lhes pede que sigam democrático.
os ditames de sua própria consciência ou as tradjçõcs de sua
< própria classe ou partido, caso esses ditames ou trad ições não
se encaixem nesse conjunto histórico. É claro que os juízes Qual é a alternativa?
podem abusar de seu poder - podem fingir observar a inte
gridade constitucional e na verdade infringi-la . Mas o fri to é {!) Por causa disso, juristas e constitucionalistas, tanto os
práticos quanto os que se dedicam à teoria, vivem ansiosos
que os generais, presidentes e sacerdotes também podem
abusar de seu poder. A leitura moral é uma estratégia aplicá- para encontrar outras estratégias de interpretação constitu-
vel por advogados e juízes que ajam de boa-fé, e nenhuma cional que dêem menos poder aos juízes. Já exploraram
estratégia de interpretação pode ser mais do que isso.
Saliento as restrições da história e da integridade por- 8. Thomas Babington, Lorde Macauley, carta a H. S. Randa ll, 23 de maio
que elas mostram o quanto é exagerada a queixa comun1 de de 1857.
18 o DTRE.ITO D/\ u111:1m/\1JE TNTRODUÇÃO 19
~Ítiut,';. duas possibilidades diferentes, as quais serão ambos discu- o que decidiu no famoso caso Brown, de 1954: que o dispo-
\1) tidas mais adiante. A primeira e a mais franca ad mite que a sitivo de igualdade de proteção torna ilegal a segregação ra-
t> j>Ji~5 1 leitura moral é correta - que a Declaração de Direit os só
cial nas escolas públicas. Em 1958, evidentemente arrepen-
~a-Jr~;- pode ser compreendida como um conjunto de princípios dido, Hand disse que tinha de considerar errada a decisão
J;}::ú~'i.r~{ morais. Mas nega aos juízes a autoridade suprema de fozer do caso Brown, e teria de ter a mesma opinião acerca das
~r,y ~ a leitura moral-não admite que eles tenham a últ.i mo po la- decisões posteriores da Suprema Corte que expandiram a
{.x;:rt1isk}"1'?:'- vra, por exemplo, para dizer se a mulher tem o direito cons- igualdade racial, a independência religiosa e as liberdades
~"' ~Y<>; "< tt"' ·
/,"- tituciona1 de optar pelo aborto ou se a ação afirmal·iva trata pessoais, como a liberdade de adquirir e usar contracepti-
V todas as raças com mesma consideração. Deixa resc1vada vos. Hoje em dia, quase todos consideram que essas deci-
)e ~d· ~ t tt para o povo essa autoridade de interpretação. Não se lrnta, sões não só estão corretas do ponto de vista legal como
~ctl ·J ,; de modo algum, de uma combinação de duas idéias contra- também constituem exemplos brilhantes da nossa estrutura
cJrv1c; fo~·Gi ·ditórias. Como eu disse, a leitura moral é rnna teoria acerca constitucional funcionando em sua melhor forma. {fJ,
.;' t',.. t tr.; de o que a Constituição significa, e não acerca de q ucm Q Como eu disse, a primeira estratégia alternativa aceita a -s(i'G ~i
: 1~~;~~eve nos dizer o que ela significa. tJI leitura moral. A segunda alternativa, a chamada estratégia ~,/$.i/e.
!Ít'1~ !'::u& º'1' Essa primeira alternativa nos dá uma ch ave pora a "originalista" ou da "in tenção original", não aceita.Aleitu- 1 e\ "'&:.1«.
lf~ ?/' • ""- compreensão dos argumentos de um gra nde juiz norte- ra moral insiste em que a Constituição significa o que seus ~,·}vd,.;. l'M>}
® americano, Learned Hand, de quem falo no Ca pftu lo 17.
Hand pensava que os tribunais só devem tom ar para si a
autores quiseram dizer. O originalismo insiste em que ela '<0.1 ~CM ·
significa o que eles queriam que sua linguagem fizesse, e
autoridade suprema na interpretação da Cons tituição isso, como eu já disse, é uma coisa completamente diferen-
quando isso é absolutamente necessário para a sobrevivên- t e. (Mas existem alguns originalistas, entre os quaisAntonin
cia do Estado-quando os tribunais devem servir de árbitros Scalia, um dos juízes mais conservadores que atualmente
entre os outros poderes do Estado, sob pena de cair-se no compõem a Suprema Corte, que não têm certeza dessa dis-
caos das divergências sobre competência e jurisdição. Ne- tinção1º.) Segundo o originalismo, os grandes dispositivos
nhuma necessidade desse tipo obriga os tribunais a compa-
rar os atos do legislativo com os princípios morais da Cons- 10. O juiz Scalia, da Suprema Corte, insiste em que as leis sejam impos-
tituição, e por isso Hand pensava que os juízes não devem tas de acordo com o significado de suas palavras, e não com aquilo que, segun-
do os dados históricos, os legisladores esperavam ou queriam que fossem as
reivindicar para si essa autoridade. Embora essa idéia tenha con seqüências legais con cretas da lei que elaboraram.Ver Scalia, "Originalism".
sido, em outra época, uma possibilidade em aberto, hoje já Mas ele também insiste em lirrútar tada um dos dispositivos abstratos da De-
faz tempo que a história a septtltoui a prática já estabeleceu claração de Direitos ao sen tido que eles supostamente teriam quando de s ua
que os tribunais têm a responsabilidade de decla ra r a st1a p romulgação, de tal modo que, por exemplo, a proibição de "castigos cruéis e
incomWls" da Oitava En1en da, adeguadam.ente in terpretada, não p roibiria a
melhor compreensão daquilo que a Constituição proíbe e flagelação pública, urna vez que esse tipo de castigo era usual na época em que
agir segundo essa compreensão9 • Se a concepção de Hand a Oitava Emenda foi adotada . Scalia admite que os juízes co ntemporâneos não
tivesse sido aceita, a Suprema Corte não poderia ter decidido devem considerar a flagelação constitucional, uma vez que isso seria escanda-
loso atualmente, mas faz questão de afirmar que os dispo~itivos de devido pro-
cesso e de igualdade de proteçâo não devem ser usados para derrubar leis gue
eram comWlS na época em que os mesmos dispositivos foram postos em vigor.
~ 9. Para uma boa discussão sobre a evolução da idéia de revisão judicial
Suas opin iões sobre o dire ito constitucional só se coadunam com sua teoria
"\ das normas nos Estados Unidos, ve r Gordon Wood, "The Origins of Judícial Re-
geral da interpre tação das leis se partirmos do pressuposto de que a melhor
view", Suffolk Univers:ity La.w Revíew, vol. 22 (1988), p. 1293.
tradução contemporânea daqu ilo que foi dito pelos autores
20 O DIRElTO DA UBl!RDADE INTRODUÇÃO 21

da Declaração de Direitos não devem ser interpretados restringiu seu apoio a ela durante a sabatina do Senado que
como exposições dos princípios morais abstratos que eles se seguiu à sua indicação para a Suprema Corte - admitiu
descrevem de fato, mas como referências, em códjgo ou dis- que a decisão do caso Brown tinha sido correta e disse que
farçadas, aos pressupostos e expectativas que os próprios até mesmo a decisão que a Corte tomou em 1965, garantin-
autores tinham acerca da correta aplicação daqueles princí- do o direito de uso de .contraceptivos, estava correta quanto
pios. Assim, não se deve entender que o dispositivo de a seus resultados, embora não tenh amos motivo algum
igualdade de proteção exige a igualdade de s tatus em si, para pensar que os autores de qualquer dispositivo consti-
mas sim que ele exige aquilo que os próprios a utores pe nsa- tucional correlato a quisessem ou aprovassem. Além disso,
vam ser a igualdade de status, e isso tudo a pesar de que, a estratégia originalista é tão indefensável em princípio
como eu cüsse, os autores evidentemente pretendiam decla- quanto é indigesta em seus resultados. A substituição da
rar o primeiro critério e não o segundo. A decisão do caso linguagem .abstrata do dispositivo de igualdade de proteção
Brown que acabo de mencionar ilustra claramente essa dis- por uma cláusula legal concreta e detalhada seria tão ilegíti-
tinção. A decisão da Corte era claramente exigida pela leitu - ma quanto a substituição dos termos concretos da Terceira
ra moral, pois hoje em dia é óbvio que a segregação ofi cial Emenda por um princípio abstrato de privacidade, ou quan-
nas escolas não é compatível com a igualdade de status e a to a int erpretação da determinação da idade mínima do
igualdade de zelo para com todas as raças. Mas a es tratégia Pr€sidente como expressão de um princípio geral de inca-
originalist a, se aplicada com coerência, teria exigido a con- pacidade das pessoas com menos de trinta e cinco anos.
clusão oposta, porque, como eu disse, os autores do dispo- Por isso, embora muitos políticos e juízes conservado-
sitivo de igualdade de proteção não acredi tavam que a se- res tenham apoiado o originalismo, e alguns, como Hand,
gregação escolar, que eles mesmos praticavam, era uma tenham sido tentados a pôr em dúvida a idéia de que os juí-
negação da igualdade de status, e não esperavam que um zes devem ter a última palavra sobre as exigências da Cons-
dia ela viesse a ser vista como tal. A leihLra moral insiste em tituição, a verdade é que tanto uma estratégia quanto a
que eles não chegaram a compreender plenamente o prin- outra têm pouquíssimo apoio na prática. Não obstante, a
cípio moral que eles mesmos puseram em forma de lei. A leitura moral quase nunca é explicitamente defendida e
estratégia originalista traduziria essa falta de compreensão m uitas vezes é explicitamente condenada. Se nenhuma das
numa lei constitucional permanente. duas alternativas que descrevi é efetivamente adotada pelos
Essa estratégia, como também a primeira alternativa, que desprezam a leitura moral, qual é a alternativa que eles
condenaria não só a decisão do caso Brown como também têm em mente? A surpreendente resposta é: nenhuma. Os
diversas out ras decisões da Suprema Corte que hoje são constitucionalistas costum am dizer que t emos de evitar
vistas por muitos como pararugmas de boa interpretação dois enganos opostos: o da leitura moral, que dá um poder
constitucional. Por isso, hoje em dia quase ninguém adota a demasiado aos juízes, e o do originalismo, que faz da Cons-
estratégia originalista em sua forma pura. O próprio Robert tituição contemporânea uma extensão morta do passado.
Bork, que ainda é um dos seus mais aguerridos defe nsores, Segundo eles, o método correto está numa espécie de via
do meio que opere um justo equilíbrio entre a proteção dos
·da Oitava Emenda não é que os castigos cruéis e incomuns são proibidos - direitos individuais essenciais e a obediência à vontade po-
sendo que é isso que sua linguagem claramente dá a entender -, mas que os pular. Mas eles não nos dizem quai é esse justo equilibrio
castigos que na época eram considerados cruéis e incomuns eram proibidos, nem qual a balança que devemos usar para encontrá-lo.A"'>-
uma interpretação que não temos motivo absolutamente nenhu m para aceitar.
22 O DIREI m /)/\/IH/ RllAVli INTRODUÇÃO 23

severam que a interpretação constitucional dcw lt•vnt t.'m (§) Já respondi a essa pergunta. Os juristas partem do pres-
suposto de que as restrições que a Constituição impõe aos
conta não só a filosofia moral ou política, mas tnmbem n
história e a estrutura geral da Constituição. Mas nl'io diz1..•m processos políticos majoritários são antidemocráticas, pelo
por que a história ou a estrutura - que, como já aflrnwl, sao menos nos casos em que essas restrições são impostas pelos
pressupostas pela leitura moral - devem figurar ncs!>l' mé juízes; e a leitura moral parece tomar essa afronta ainda pior.
todo de uma maneira diferente ou adicional; não ulzcm Se, porém, não existe na prática nenhuma alternativa real à
também qual é essa maneira diferente nem qual dcw st'r a leitura moral, e se fracassaram os esforços para se encontrar
até mesmo a formulação teórica de uma alternativa aceitá-
meta ou critério geral de interpretação consliluci()na l que
vel, seria bom reexaminar esse pressuposto. Como já disse,
nos deve conduzir na busca de uma estratégia ele int1..•rprc-
~rocurarei mostrar que ele não tem fundamento.
tação difercnte11 •
Por isso, embora se ouça muitas vezes o apelo a uma
·ô / Afirmei que o debate entre os constitucionalistas e os
juízes nunca teve o objetivo de d ecidir se os juízes devem
estratégia constitucional intermediária, esse apelo oind a
mudar a Constituição ou se devem deixá- la em paz. Sempre
não foi atendido, exceto através de inúteis m etáforas sobre girou em tomo de como a Constituição deve ser interpreta- ' .1,... ,,r.;
equilíbrio e estrutura. Isso é extraordinário, sobrcludo 0m
da. Felizmente, e apesar da retórica dos políticos, esse fato é r, ~·t~ 0
vista do tamanho e do ritmo de cresdmento da bibliografia hoje reconhecido pela maioria dos constitucionalistas; eles , tt ,; ~
sobre a teoria constitucional norte-americana. Se é tão difí- reconhecem também que a própria questão da interpreta- · L•
cil criar uma alternativa à leitura mora l, por que se esforça r ção depende de uma controvérsia política, pois a única ob - ·,,. 1.-
para isso? Numa conferência, um famoso constitucionalista jeção substantiva à leitura moral é a de que ela ofende a ,, . _ ·
que insiste na suposta existência de wna estratégia inlcr- democracia. Assim, pensa -se em geral que o debate acadê- ·
pretativa in termediária entre o originalismo e a leitura mo- mico tem por objeto o quanto a democracia pode ser com-
ral anunciou que, embora não houvesse ainda descoberto prometida para que outros valores, entre os quais os direitos
essa estratégia, passaria o restante de sua vida a procurá- la. individuais, sejam protegidos. Um dos lados se declara ar-
Por quê? doroso defensor da democracia e ansioso para protegê-la,
ao passo que o outro se considera mais sensível às injustiças
.•. ; 1. Alguns doutrinadores procuraram defender uma estratégia "lnterme- que a democracia às vezes produz. Em muitos sentidos, po-
diana que'.. segundo esperam, não exige uma resposta a essas perguntns. Oi rém, a nova visão do debate é tão confusa quanto a antiga.
zem que nao devemos olhar nem para as opiniões ou expectativas concrcllls P rocurarei convencer você de que o debate constitucional
dos aL:torcs, ~mo f~ o originalismo, nem para os pri~cípios muito abstrntoo a deve ser visto sob uma luz completamente diferente: não
que da atençao a leitura moral, mas para algo situado num nível intermediário
de abstração. O juiz Bork, por exemplo, ao explicar por que a decisão do caso como uin debate acerca do grau em que a democracia deve
Brown estava corret~ apesar de tudo, disse que os autores do dispositivo ele curvar-se perante outros valores, mas sim acerca do que a •
igualdade de proteçao adotaram um princípio geral o suficiente para condenar democracia.realmente é.
a segregação oficial nas escolas, independentemente do que os próprios auto-
res pensa~um a esse respeito, m.as não geral o suficiente para proteger os ho-
mossexuais. Porém, como digo no Capítulo 14, não há nenhuma maneira n5o-
arbitrária de escolher um nível particular de abstração para a formulação de um A premissa majoritár ia
principio constitucional que não o próprio nível declarado pelo texto. Por que, 1 (
por exempl.o, dcv?ó":'.1os e~colher como princípio intermediário um que proíbu .. D~mocracia significa· ~ov:rno do_ ~ovo. Mas o que sig.f<) :,c~J°'>/Q.) .k
qualquer d1scnrnmaçao racial em vez de w11 que permita uma ação afirmativa nif1ca isso? Nenhuma defimçao expltc1ta de democracia se ('w.., ·.
em favor de um grupo anteriormente em desvantagem? Ou vice-versa?
is-1{rL~
24 INTRODUÇÃO 25

estabeleceu em definitivo entre os cientistas políticos ou no idéias da maioria sobre quais são esses direitos individuais e •Vl.c.> 1 v"" \{.; ' -
dicionário. Muito. pelo contrário, a realidade da democracia sobre o melhor modo de respeitá-los e garanti-los. Às vezes ; N'' I ~ ·
é objeto ~~profundas controvérsias. As pessoas dJscordam se diz que o Reino Unido não tem constituição, mas isso é , ,; ' 1
1)Gw«ú ~i"""'_acerca deiquais técnicas de representaçãõ; quais modos de um erro. O Reino Unido tem uma constituição escrita e ou- · • '•
_;';'.:i ~ '1\i.....,-distribuição do poder entre as esfer~unicipal, estaduaJ e tra não escrita, e esta última consiste, em parte, numa com- ', ' 'f " '
')~.~ :::._ ,!11 federal, ~ai periodicidade eleitoral~uais modaUdades de preensão tácita de quais são as leis que o Parlamento não
t'..L&·~ "'' 'ti-Gl eleição #quais outros arranjos institucionais constituem a pode aprovar. Faz parte da Constituição britânica, por exem-
r • • "'"~ \'Mf\ll,melhor versão possível da democracia. Porém, por trás des- pio, a proteção da liberdade de expressão. Mas até há pouco
0) ~~1 ·.~. rf es conhecidos debates sobre a estrutura da democracia, exis-
'{I: tempo parecia natural para os juristas britânicos que ne-
' / , • ,< t!, JG te, na minha Opinião, Uffia profunda disputa filOSÓfiCa acer- nhum outro grupo senão uma maioria política, agindo atra-
.t.,) (il.J~\ <i ~ -ca do valor ou do objetivo fundamental da democracia; e uma vés do Parlamento, decidisse o que essa proteção significa e
'"iJ":~~ J.~
7 determinada questão abstrata é ollcial para essa disputa,
~~:.. ,.l a·J: 0~mbora isso nem sempre seja reconhecido. Devemos acei-
se ela deve ser alterada ou rejeitada, de tal modo que, quan-
do é clara a intenção do Parlamento britânico de impor res-
1., . tarou rejeitar o que vou chamar de premissa majoritária? trições à expressão, os tribunais britânicos não têm poder
' ·, (jJ;)A premissa majoritária é uma tese a respeito dos res!-'l- para invalidar o que o Parlamento fez. Isso porque a premis-
;l( ~ircfos justos de um processo político: insiste em que os pro- sa majoritária e a concepção majoritária de democracia por
~~)~~ (;~edimentos políticos sejam projetados de tal modo que, ela produzida têm sido elementos mais ou menos tacita-
cb)'k/.:i (-.>•J;t.• pelo menos nos· assuntos importantes, a decisão a que se mente aceitos da moralidade política britânica desde há
,Ir. ~w,)&ic.i chega seja a decisão favorecida pela maioria dos cidadãos mais de cem anos.
ou por muitos entre eles, ou seja, pelo menos a decisão que Nos Estados Unidos, porém, a m aior parte dos que ,.Jo,> f....V-A,
eles favoreceriam se dispusessem de informações adequa- pensam que a premissa majoritária traz em si a definição e a i i. ,.~..,,~lc. rf
das e de tempo suficiente para refletir. Esse objetivo parece justificação últimas da democracia aceitam mesmo assim «;~:.,";õ~,: .
perfeitamente razoável, e muita gente, talvez sem refletir o que em certas ocasiões a vontade da maioria não deve pre- 1~,,, <; 11:-_ 1(
• ,. te.'\ f4J' e r ...,,,..,"-
bastante, tomou-o como expressão da própria essência da dominar. Concordam em que a maioria não deve ser sem- 1 - . ,
democracia. Essas pessoas acreditam que os complexos ar- pre a juíza suprema de quando o seu próprio poder deve ser
ranjos políticos que constituem o processo democrático de- limitado para protegerem-se os direitos individuais, e acei-
vem direcionar-se para essa meta e tomá-la como critério: a tam que pelo menos algumas das decisões da Suprema
·~ ~ meta de que as leis geradas pelo complexo processo demo- Corte que repudiaram leis populares, como aconteceu com
. (-..b..,V crático e os cursos de ação por ele seguidos sejam, no fim, a decisão do caso Brown, foram corretas. A premissa m ajori- L fc. ~e< ;:-Js.
:}1 os aprovados pela maioria dos cidadãos. tária não exclui exceções desse tipo, mas insiste em que,\~ " ' U:',
~ "" 1~ ,, ... , \f~.t·
<
,f} \t. 1 t '' v ~.\llj~ - A premissa majoritária não nega que os indivíduos têm nesses casos, mesmo que uma atenuação do governo da l' 1 •• d
'\ ~1 ., ' ''. . importantes direitos morais que devem ser respeitados pela maioria se justifique de maneira global, essa atenuação é (t( ·f ,(v•'
1 1
' t l ~ T· llf 1' maioria. Não está necessariamente amarrada a uma teoria algo lamen tável do ponto de vista moral. Em outras pala-
t! ·
~', ~,, '<'.''êoletivista ou utilitarista segundo a qual esses direitos não vras, a premissa supõe que, quando uma maioria política
Ai ~ ~t têm sentido. Em algumas comunidades políticas, porém - não pode fazer o que quiser, isso é sempre injusto, de tal
. ~J'\ c;,d.\i\ no Reino Unido, por exemplo-, considerou-se que apre- modo que a injustiça permanece mesmo quando existem
i'.c»
1 ~\ -~ G. missa majoritária exige que a comunidade se submeta às fortes razões que a justifiquem.

·i; '(~
\ dr:rJ..~'11. (,~(ij.l"\'«1'<::
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'1 1),'f!,
26 O DfREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 27

(:§> Se rejeitarmos a premissa majoritária, precis~em?s de tram -se deficientes, não se pode fazer objeção alguma, em
uma explicação diferente, e melhor, do valor e da finalidade nome da democracia, a outros procedimentos que garan-
da democracia. Vou defender agora uma explicação - que tam e respeitem as condições democráticas. Entre essas~.k- e-;-;,
chamo de concepção constitucional da democracia - que efe- condições incluem-se /
sem dúvida, por exemplo, a exigência~' r.. ··••.;((,'-; ·~·
,- )
~
/ ~ tivamente rejeita a premissa majoritária. Segundo essa ex- de que os cargos publicos devem, em prinópio, ser acessí- · ,, •" J
:;,;_u. fC. (úl}'\'.lplicação, o fato de as decisões coletivas serem sempre, ou veis em igualdade de condições às pessoas de todas as raças ª í (..,, (\)
' clk '-'º"'" 11<t normalmente, as d eclSoes
f !" Ju,,,(·/ . - que a ma1ona . . d os c1"dad-aos t o- e grupos. Se existisse uma lei pela qual só os membros de . '. ~-..,'J ~ '
1>-~ maria se fossem plenamente informados e racionais não é uma detem1inada raça pudessem se candidatar aos cargos '
1
l\'J_::\t0JCo ' "Wem uma meta nem uma definição da democracia. O obje- públicos, não caberia nenhum custo moral - não haveria
' ? \111.rV\ <\ -
~...... ~< ç J,~ tivo que define a democracia tem e ser
• d diferen te: que as motivo algum para arrependimento moral - se um tribunal
d"l\fv decisões coletivas sejam tomadas por instit~ções políticas que gozasse do poder constitucional de fazê-lo derrubasse
M'V , cuja estrutura, composição e modo de operaçao dediquem a essa lei por ser inconstitucional. Nessa ocasião, provavel-
A-~ ~("~-,,·(i;it..\-_ todos os membros da comunidade, en~uanto indivíduos, a mente a premissa majoritária seria comprometida; mas em-
1iw de:. l~ mesma consideração e o mesmo respeito. É certo que essa bora isso seja motivo de arrependimento pela concepção
i·'~ir;i G' 'I· explicação alternativa do objetivo da democracia exige uma maj oritá~ria de democracia, não o é pela concepção constitu-
J. 1 d1~.l-..;, r.: . ll ' . . :i 1
'1., o., Vh •.'~ estrutura de Estado muito seme 1ante a exigic a pe a pre- cional. E claro que pode haver desacordo quanto a saber
,, •\V.~ilr"-: - missa majoritária. Exige que as decisões políticas do dia -a- quais são, na realidade, as condições democráticas, e quan-
·
~~~::.0/ '.~' dia sejam tomadas por agentes políticos escolhidos nas to a saber se uma determinada norma as ofende ou não .
.:\, eleições populares. Porém, a concepção constitucional re- Mas, de acordo com a concepção constitucional, não teria
"' k quer esses procedimentos majoritários em virtude de uma cabimento levantar-se objeções, sob a alegação de que tal
l:l,_t~~~k~\ preocupação com a igualdade dos cidadãos, e não por_ cau- prática seria antidemocrática, a que a decisão final acerca
1. ~,.t1-c; ·~ ~ sa de uT co~1pro~isso :om ~s ~etas da soberama da dessas questões fosse reservada a um tribunal; isso não teria
M ~<te.. ~ maioria/Por tsso, nao opoe obieçao alguma ao emprego cabimento porque essa objeção parte do princípio de que as
~f .~'1,I 0 ~ deste ou daquele procedimento n_ão-majoritári? em oca- leis cm questão respeitam as condições democráticas, e é
J'll .._.ç H,, w.1r.vsiões especiais nas quais tal procedimento poderia pr~te~er exatamente esse o assunto que está em questão.
<• ;) ~ u . ." ou promover a igualdade que, segundo essa concepçao, e a ~ Espero que agora esteja claro que a premissa majoritá-
b lcV·.i.i - 1 própria essência da democracia; e não aceita que essas ex-
...,... ,,t>-1' ...,.()_ . 1/
ria tem exercido uma influência poderosa - ainda que fre-
f/V!º~4\,. tt-:: ceções sejam causa de arrependunento mora . . qüentemente discreta - sobre a imaginação dos constitucio-
1 hf>. Em suma, a concepção constitucional de democracia nalistas e advogados constitucionais nos Estados Unidos da
~ssume cm relação ao governo majoritário a atitude descri- América. Só esse diagt1Óstico pode explicar a quase unani-
J_..f ·. A ~úJ. ta a seguir. A democracia é um governo sujeito às condições midade da opinião de que falei há pouco: a idéia de que a
(. 0.~ ~r~.1 - podemos chamá-las de condições "democráticas" - de revisão judicial das normas compromete a democracia, a tal

.:;t, fv,
1

1~~,1·r..>1•l1"' ,,
~1... igualdade de status para todos os cidadãos. Quando as ins-
, .
:s
~t<.-N> pj tituições. majoritarias. g~rantem e re~pe1~a1'.1 .co.n 1. çoes
, v.d.t.JJ@5. democráticas, os veredictos d~ssas mstitu1çoes, por esse
d" -
ponto que a questão central da teoria constitucional tem de
ser a de saber se e quando esse comprometimento é justifi-
cado. Essa opinião é fil ha de uma concepção majoritária da

f
1
motivo mesmo, devem ser aceitos ~or todos. Mas. quando
não o fazem, ou quando essa garantia e esse respeito mos-
democracia e, portanto, é neta da premissa majoritária. É ela
que motiva a já mencionada busca sem fin.1 por uma estra -
28 O DlREJTO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 29
tégia interpretativa "intermediária" entre a leitura moral e o enqu~to, porém, não vou examinar a fundo, mas apenas kv'y••M"'\ h
originalismo, e é ela que exerce seu poder de tentação e leva menaonar, um argumento evidentemente medíocre a seu ah (À rc:.""' Q

grandes teóricos a construir uma série de epiciclos ptolo- favor, argumento esse que, segundo temo, adquiriu ampla <X l~o::M.t._-.~\
maicos na tentativa de reconciliar a prática constitucional circulação. Ele parte de uma fonna vanguardista de ceticis- ""\Ml.~t~""" 4
r _,~ com os princípios majoritários. mo moral se~~º a qual os valores e princípios morais não t» ("''"C.:f. ..
~ Assim, existe uma questão complexa de moralidade podem ser objetivamente verdadeiros, mas limitam-se are- ~-"'1~ f~
- . 4>11 ~ k r"IO-'·
política - a validade da premissa majoritária - no âmago presen t ar pod erasas concatenaçoes de gosto ou mteresse
dessas antigas discussões sobre a constitucionalidade. As próprio, ou dos interesses de urna classe, raça ou sexo. Nes-
discussões permanecerão confusas até o momento em que se caso, segundo o mesmo argumento, os juízes que afir-
essa questão for identificada e analisada. Podemos, de pas- m~ t:r desc~b~rto uma verdad; .mo.ral estão mergulhados
sagem, observar o quanto a premissa majoritária tem exer- na ilusao, e o urnco processo polttico JUSto é aquele que en-
cido sua influência também em outros importantes debates trega todo o poder nas mãos do povo. Esse argumento é du -
políticos, entre os quais a urgente discussão nacional sobre plamente falacioso. Em primeiro lugar, uma vez que a sua
~-(<w't+fl... 4~a reforma das campan!ias eleitorais. Até agora, essa discus- concl usão, favorável à premissa majoritária, é em si mesma ·i

<.c:'W\f"~ são tem sido dominada pela idéia de que a democracia é urna afirmação.moral, ele é autocontraditório. Em segundo
{.. V...'\/~&'('°"'j melhor quando atende melhor à premissa majoritária - lugar, por motivos gue tentei explicar cm outros esc1itos
quando é projetada de modo que garanta cada vez mais a l \ meus, essa forma vanguardista de ceticismo é incoerente.
~fti) Na verdade, os argumentos mais poderosos cm favor
produção de decisões coletivas que reflitam as preferências
da premissa majoritária são eles mesmos baseados numa
1
da maioria. A infeliz decisão da Suprema Corte em Buckley
rnora~dade po~tica. Podem ser d istinguidos e agrupados
vs. Valeo, por exemplo, que derrubou leis que limitam os
em tres categonas que correspondem às três virtudes revo-
modos pelos quais os ricos podem gastar seu dinheiro em
lucionárias do século XVIII - igualdade, liberdade e comu-
campanhas políticas, baseou-se numa teoria da liberdade
~e -, e são essas idéias pÔlíticas mais básicas quéteã\os
de expressão que tem suas origens nessa concepção de de-
de explorar agora. Se a premissa se sustentar, é porque é
mocracia12. Na verdade, a degeneração da democracia que
corroborada pela melhor concepção possível de pelo menos
se tem feito sentir de modo tão patente nas últimas eleições um desses três ideais, talvez dos três. Temos de examinar o
não poderá ser sustada até desenvolvermos uma concepção que está por trás da democracia a fim de considerar, à luz
1 ~ mais sofisticada de o que a democracia realmente significa. dessas virtu~es e valores mais profundos, qual concepção
1

\.2SI a maior parte do restante deste capítulo, avaliarei ar- d~ democ.ra~1~ -:- a concepção majoritária, baseada na pre-
gumentos contrários e favoráveis à premissa majoritária. Por ~-1ssa ~aiont~a~ ?u a concepção constitucional que a re-
jeita - e a mru.s solida. Mas primeiro precisamos fazer uma
12. Buckley vs. Valeo, 424 U.S. 1 (1976). Mais à frente na Introdução, vou outra distinção importante, e a faremos agora.
afirmar que o autO!]OVCmo democrático só pode se realizar por meio de um pro-
cesso político deliberativo que não pode acontecer quando não se impõem limi-
tes aos gastos das campanhas polfricas, especialmente os gastos com propagan- Nós, o povo
da política na televisão. Num artigo a ser publicado, intitulado "Television and
Democrncy", afirmo que a decisão Bucklcy deve, portanto, ser reconsiderada, por
ser incompatível com a melhor interpretação de o que é a democracia norte- . Costumamos dizer que, n uma democracia, o governo é
americana. feito pelo povo; queremos dizer que o povo coletivamente
30 O DlREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 31

faz certas coisas - eleger seus líderes, por exemplo - que ne- tocar uma sinfonia, coisa que nenhum músico isolado pode tsi'rt:.Jk<:
nhum indivíduo sozinho faz ou pode fazer. Existem, porém, fazer; mas o que temos aí não é mera ação coletiva estatísti-
";) ~ ~ dois tipos de ação coletiva, a estatística e a commlitária; e ca, pois para que o desempenho da orquestra seja bem-su-
\?
a.._ e. {-::.c.o nossa opinião a respeito da premissa majoritária pode vir a cedido é essencial não só que cada músico toque de acordo
~.(e. :°' ser determinada por nossas conclusões acerca de qual é o com sua partitura, acompanhando o rihno determinado
r.
<() i-'<"<i };'~ u;._ ~o de ação coletiva que o governo democrático exige.
pelo regente, mas que também os músicos toquem corno
uma orquestra, tendo cada qual a inlenção de contribuir
~ o tJ:> INJ ~.t ~ f•Ç A ação coletiva é estatística quando aquilo que o grupo
faz é uma função, geral ou específica, de algo que os mem- para o desempenho do grupo e assLLmindo cada qual uma
A( ÇP1"[·Ni<. bros individuais do grupo faze~ sozi~os, ou seja, daquilo parte da responsabilidade coletiva por esse desempenho. A 1 wW<- dk
~src,.h'~r Ú'\. que fazem sem pensar que estao agmdo enquanto grupo. atuação de um time de futebol também pode ser uma ação ~..ikl,..11 l
i:;-t ~úA~ Podemos dizer, por exemplo, que ontem o mercado de '[)p, coletiva comunitária semelhante a essa.
moedas estrangeiras derrubou o preço do dólar. Trata-se aí, 't!.:J !á dis?n~i _duas conce~çõe_s de democracia: a demo-
sem dúvida, de LILT\ tipo de ação coletiva: só a ação conjunta cracta maiontan a e a constitucional. A primeira aceita a
de um grande grupo de banqueiros e especuladores pode premissa majoritária e a segunda a rejeita. A diferença en-
tre a ação coletiva estatística e a comunitária nos permite ú4->'1'.-0Cl<'l5-"-"
afetar de modo substancial o câmbio monetário. Mas quan-
do nos rcfc1imos a uma entidade coletiva, como o mercado
. · - d
t raçar ~ff\a s~~~d a d1stmçao, esta vez entre duas inter- Jio
pretaçoes da ideia de que a democracia é um governo "do fe
"°·
\"A.....0 'J"Vl!:f./"-0

de moedas, não esta mos nos referindo a uma entidade que


existe de fato . Sem mudar em absoluto o sentido de nossas povo". (Em breve vou tratar do vínculo que une as duas
palavras, poderíamos fazer uma afirmação declaradamente distinções.) A primeira interpretação é estatística: numa
estatística: poderíamos dizer que a combinação dos efeitos democracia, as decisões políticas são tomadas de acordo
~ das diversas transações em moeda estrangeira fizeram cair com os votos ou desejos de wna função - uma maioria ou
W o preço do dólar no último pregão. uma pluralidade - de cidadãos individuais. A segunda in-
P-.l t.J; ~ 1J, Mas a ação coletiva é comunitária quando não pode ser terpretação é comunitária: numa democracia, as decisões
~ ...JJ rir.t<1reduzida a mera função estatística das ações individuais, políticas são tomadas por uma entidade distinta - o povo
quando pressupõe um agente coletivo especial e distinto. Ela enquanto tal - e não por um conjunto qualquer de indiví-
fl G.. ~ (,"NI ~ acontece quando os indivíduos agem juJltos de forma que duos encarados um a um. A idéia de Rousseau do governo t.r-.f~1tc... Al::-
<.o-\. . ,'t.· d-.A fundam suas ações separadas num ato ulterior unificado pela vontade geral é um exemplo da concepção comunitá- /"'"~ \ UJ~"ft
.-,J~ J.M \1.:..S, que, encarado em seu conjunto, é um ato deles. O exemplo ria de democracia. A interpretação estatística do govemo~~­
da culpa coletiva, bastante batido mas ainda e mocional- do povo é muito mais comum na teoria política norte-ame- e..~..;.•..,.-.~
mente forte, nos proporciona uma ilustração útil. Muitos ricana. A interpretação comunitária nos parece misteriosa e
alemães (inclusive entre os nascidos depois de J 945) sen- pode até assumir ares de um perigoso totalitarismo. Nesse
tem-se responsáveis pelo que a Alemanha fez, e não so- caso, minha referência a Rousseau não terá contribuído
mente pelo que outros alemães fizeram. Essa sensação de para afastar essas suspeitas. Nas duas seções seguintes, po-
responsabilidade parte do pressuposto de que eles mesmos rém, vou defender a idéia de que os dois argwnentos su-
estão ligados de alguma forma ao terror nazista, uma vez postamente mais fortes em favor da premissa majoritária
que pertencen\ ao país que cometeu esses crimes. Mas va- pressupõem a interpretação comunitária. Pressupõem-na,
mos dar um exemplo mais agradável. Uma orquestra pode mas apunhalam-na pelas costas.
32 O DlREITO DA LTBERDADE INTRODUÇÃO 33
"povo", mas numa interpretação comunitária deste. Segun- fn . ~
~t:rpreta~o contr~le 0"'\."'h~~
Acaso o constitucionalismo põe em risco a liberdade?
do a estatística, o d_o indivíduo sobre G
~ Segundo a premissa majoritária, uma virtude moral as dec1soes coletivas que afetam sua VJda e medido pelo seu ~ 1·11,6.V.
poder de, sozinho, influenciar de algum modo o resultado; f'r, :C.. > ~r
importante se perde ou se compromete quando uma deci-
são polftica contradiz aquilo que a maioria dos cidadãos numa grande democracia, o poder de qualquer indivíduo bl.; ' 1
sobre as decisões nacionais é tão pequeno que não se pode

preferiria ou julgaria correto se todos pudessem refletir ba-
seados em informações suficientes. Precisamos procurar dizer que as restrições constitucionais chegam a diminuí-lo
D<;\" .~1. ~Jk identificar qual é esse preço moral. O que é que se perde ou num grau objetável. Muito pelo contrário, as restrições im-
<-o.M- 4 k~....-se compromete? Muita gente acha que a resposta é: a igual- postas à vontade da maioria podem até aumentar o contro-
', &.o ~ dade. Daqui a pouco vou tratar dessa resposta aparente- le que cada irldivíduo tem sobre o próprio destino. Segundo
(J-r ti/';("' V,;-. mente natural, mas vou começar com urna idéia diferente: a a interpretação comunitária, porém, a liberdade não depen-
~~º"''~'"7· idéia de que, quando determinados dispositivos constitu- de de uma relação entre o governo e os cidadãos considera-
~\b:. 1 danais (como os contidos na Declaração de Direitos) limi- dos separadamente, mas da relação entre o governo e todo
tam os poderes de ação de uma maioria, é a liberdade da o conjunto de cidadãos considerados em sua coletividade.
commiidade que fica comprometida13. Nessa concepção, a liberdade positíva é aquela que vigora
Evidentemente, essa idéia faz apelo ao que Isaiah Ber- quando o "povo" controla aqueles que o governam, pelo
lin e outros ch amaram de distinção entre liberdade positiva menos em última análise, e não o contrário; e é essa a liber-
e liberdade negativa, e àquilo que Benjamin Constant cha- dade que se afirma comprometida quando se impede que a
maioria faça valer a sua vontade.
mou de liberdade dos antigos, distinguindo-a da dos mo-
dernos. É o tipo de liberdade que os estadistas, revolucioná-
rios, terroristas e humanitaristas têm em mente quando
{i) . . ~!scuto em prim~iro lu~ar essa defesa da premissa ma-
ion tana porque ela e a mais poderosa do ponto de vista
/1
insistem em que a liberdade deve incluir o direito de auto- emocional. A autodeterminação é a idéia política mais po-
determinação" ou o direito do "povo" de governar a si mes- derosa - e perigosa - da nossa época. As pessoas querem
mo. Uma vez que a idéia de que os direitos constitucionais com todas as suas forças ser governadas por um grupo ao
comprometem a liberdade faz apelo à liberdade positiva, e qual pertencem, e não só isso: deve ser também um grupo
kk . não à negativa, pode-se dizer que ele põe os dois tipos de li- com o qual possam identificar-se de modo particular. Que-
~~ll ':<.~-herdade um contra o outro. Segundo esse ponto de vista, o rem ser governadas por membros da mesma religião, raça,
... ~~~· } constitucionalismo protege as liberdades "negativas", como nacionalidade ou comunidaçie lingüística, e não por um ou-
o. ..."Nc.. ~ . \ a liberdade de expressão e a "privacidade", à custa da liber- tro grupo qualquer; e vêem como tirania qualquer comuni-
f.a1l'i.._ olkl da de "positiva" da autodeterminação. dade política que não atenda a esse pré-requisito, por mais
ovJ ~.......-"\'lç: Isso significa, no en tanto, que esse argumento de que que essa comunidade seja jus ta e satisfat6da de outros pon-
~ agora tratamos, o qual gira em tomo de idéia de liberdade, tos de vista.
baseia-se não numa interpretação estatística do governo do
<9 Trata-se, em parte, de u ma mesquinha questão de inte-
resse próprio. As pessoas pensam que as decisões tornadas
por um grupo que em sua maioria partilha dos seus pontos·
13.Vcr, p. ex., Jt'u:gen Habermas, "Reconc:Lliation through the Publíc Use de vista serão melhores para elas. Mas o grande poder des 7
of Reason: Remarks OI\ John Rawls'Political Liberalism", ]oumal of Philosophy,
li vol. 92 (mnrço de 1995), p. 109. se ideal esconde-se num nível mais profundo. Reside na
li
34 O DIREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 35

convicção semi-inconsciente de que as pessoas são livres cepção comunitária de ação coletiva. Se sou um membro C<.t, r..i k~ .
quando governam a si mesmas, apesar d o fato de que, num real de uma comunidade política, o ato dessa comunidade '°''""·""'h'' ~
, .d . VI) /)./ \)~(.(;~
sentido estatístico e na qualidade de indivíduos, elas não e, num sen~ o pertme~te, um ato meu, mesmo que eu te- cJ)_ ~~<..,tt'l<J..
são livres de maneira alguma, pois têm de curvar-se com nha defendido o contrario e votado contra ele; do mesmo
freqüência à vontade alheia. Para nós, modernos, a chave modo, a vitória ou derrota de um time do qual faço parte é
dessa liberdade dos antigos está na democracia. Como djs- uma vitória ou derrota minha, mesmo que minha contribui-
se John Kenneth Galbraith: "Quando as pessoas põem a ção individual não tenha influenciado o resultado. Essa é a
cédula na urna, ficam ipso facto vacinadas contra a sensação única concepção que nos permite pensar que, na qualidade
de que o governo não pertence a elas. Passam então a acei- de membros de uma democracia plena, nos governamos a
tar, em alguma medida, que os erros do governo são seus nós mesmos.
próprios erros, que as aberrações do governo são suas pró- Entretanto, pode-se pensar que essa explicação só faz
prias aberrações, que qualquer revolta será u ma revolta tornar ainda mais misteriosa a idéia de autogoverno coleti-
con tra elas mesmas."14 Pensamos que somos livres quando vo, uma vez que ela faz apelo a duas outras idéias que em si
trocamos nossa própria vontade pela von tade de um a mesmas parecem obscuras. O que significa ser um membro o'\- t;f u::.. ~
maioria, m.as não quando nos curvamos perante um mo- ' - - real de uma comunidade política? E em que sentido o ato v""' '"("'·,,..,.....,'>()
. d d ' {~\ <V ~)...vi;
narca ou o ukase de qualquer aristocracia baseada no san- coletivo e um grupo po e ser tambem tun ato de cada um~~J. .
gue, na fé ou no mérito. Não é difícil ver o poder judiciário dos membros? Trata-se de questões morais, e não metaffsi - f()Vh<t;, 7_
como uma aristocracia que reclama para si a dominação. casou psicológicas: para respondê-las, não temos de desco-
Leamed Hand comparou os juízes adeptos da leitura moral brir os elementos fundamentais da realidade nem saber dis-
Ctt)tCG-<t-.t.,o._ da Constituição a "um bando de guardiães platônicos" e tintamente por gue as pessoas se sentem responsáveis por
disse que não toleraria ser governado por um tal corpo de um ato do grupo ao qual pertencem. Temos de identificar um
elite nem mesmo se fosse perfeitamente capaz de escolher vínculo entre um indivíduo e um grupo pelo qual seja i.J±sto
~ ·;(,\\ os mais aptos para a tarefa15• que o indivíduo seja considerado responsável pelos atos do
© Mas, por mais poderosa que seja a idéia do autogover-
no democrático, ela também é profundamente misteriosa.
grupo, e pelo qual o próprio indivíduo possa coerentemen-
te se considerar como tal. Vamos juntar todas essas idéias no (7.,_.A, 1to:fr.r
Em que medida sou livre - ou seja, em que medida se pode conceito de participação moral, pelo qual nos referimos ao ~o..l.
afirmar que governo a mim mesmo - quando tenho de obe- tipo de participação numa comunidade política que acarre-
decer às decisões de outras pessoas, mesmo que pense que ta o autogoverno. Se a verdadeira democracia é o governo
essas decisões são erradas ou injustas para mim e para mi- do povo, então, no sentido comunitário de autogoverno, a
nha família? O que importa que muitas pessoas considerem (,.,.">- verdadeira democracia é baseada na participação moral.
essas decisões corretas, sábias e justas se eu não necessaria- ~ Nesta seção, estamos tratando do argumento segundo
mente as considero como tais? Que espécie de liberdade é o qual o preço moral que temos de pagar quando a premis-
essa? A resposta a essas dificílimas perguntas parte da con- sa majoritária é transgredida é um preço de liberdade. Já
lançamos luz sobre esse argumento: segundo ele, o povo
governa a si mesmo quando a premissa majoritária é obe-
14. John Kcn11eth Galbraith, Tlie Age of Uncerl.ainty (Houghto11 Mifflin, decida, e qualquer comprometimento dessa premissa é um
1977), cap. 12.
15. Lcarncd Hand, The Bill ofRights (Harvard University Press, 1958), p. 73. comprometimento do autogovem.o. Porém, esse "rnajori ta-
36 O DIRErfO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 37

f'\
'1 ~- 'S4" rismo" só garante o autogoverno quando todos os membros não no estéril sentido estatístico), precisamos de uma con-
<}:."'"-""\'"' e da comunidade em questão são seus membros morais; e a cepção de democracia segundo a qual a democracia só ex:is-
i:W\'07f"""·...opremissa majoritária não admite uma tal restrição. Os ju- te quando essas condições são atendidas.
[<4 ..f? o:, · deus alemães não eram membros morais da comunidade
~).~ política que tentou exterminá-los, muito embora tenham
~~ :-Nt~&svotado nas eleições em que Hitler chegou à chancelaria; as-
® Q uais são as condições de participação moral, e por- ·
tanto de liberdade positiva, e portanto da democracia se-
gundo a concepção constitucional? Já procurei descrevê-las
~c..J'i. . sim, o Holocausto não foi um ato de autogoverno por parte em outra publicação e aqtú vou me limitar a resumir rninhas
r.t:fi.J &.o~~v~eles, mesmo que a maioria dos alemães o tenha aprovado. conclusões16. Existem dois tipos de condições. O primeiro
t
1
~...: ~ ~ Os católicos da Irlanda do Norte, os nacionalistas do Cáu-
l·-t-i ·~t caso e os separatistas do Québec acreditam que não são li-
tipo é estrutural: são condições que determinam o caráter
que a comunidade como um todo tem de ter para que pos-
vres porque não são ffiembros morais da comunidade polí- sa ser considerada uma verdadeira comunidade política.
' tica correta. Não quero dizer que as pessoas que negam a Algumas dessas condições estruturais são essencialmente
tvb ~ própria participação moral em sua comunidade política históricas. A comunidade política não pode ser somente
nominal: tem de ter sido estabelecida no decorrer de um
O _ ~ . sempre estejam certas. Como eu já disse1 o teste é moral e
~-~~~"t4 não psicológico. Mas elas não estão erradas pelo simples processo histórico que tenha produzido fronteiras territo-
riais suficientemente reconhecidas e estáveis. Muitos políti-
V".&. (l\êol.P- fato de teren: º. ~1~smo p~de,r de voto que as outras numa
(::;. """" '"" 1 (7

~~rutura maiontana const1tu1da. cos, sociólogos e cientistas políticos acrescentariam outras


fiY Quando descrevi a concepção constitucional de demo- condições estruturais a essa condição bastante limitada: fa-
ª'
~.JOt(~ ,S- cracia, contrapondo-a à concepção majoritária que reflete a riam questão, por exemplo, de que os membros da comuni-
dade política partilhassem a mesma cultura e a rnesma his-
UJ"\N ( ~premissa majoritária, disse que a concepção constitucional
tória política; de que falassem a mesma língua, tivessem os
õJ[h~:!. pressupõe certas condições democráticas. São essas as con-
mesmos valores etc. Alguns exigiriam também certas condi-
tlic.fw <lições que têm de ser atendidas para que a tomada de deci-
ções psicológicas: que os membros da comunidade tives-
Rio~J"f': ~ ~ sões pela maioria possa reivindicar para si um privilégio sem a tendência predominante de confiar uns nos outros,
~ ' . moral automático diante de outros procedimentos de deci-
por exemplo17 • Não vou tratar agora das interessantes ques-
são coletiva. Acabamos de chegar à mesma idéia por um
tões levantadas por esse rol de condições, pois é o segundo
outro caminho. As condições democráticas são as condições k\. conjunto de condições que mais nos interessa a esta altura.
de participação moral numa detenninada comunidade polí- Ô Esse conjunto é o das condições de relação: elas deter-
tica. Nesse caso, podemos afirmar agora uma conclusão minam como um indivíduo deve ser tratado por uma comu-
bast;mte importante: a liberdade positiva não é sacrificada nidade política verdadeira para que possa ser um membro
de modo algum quando a premissa majoritária é ignorada. moral dessa comunidade. Uma comunidade política não pode
E mais ainda: a Liberdade positiva aumenta na medida mes- fazer de nenhum indivíduo um membro moral se não der a
ma em que a premissa majoritária é rejeitada em favor da essa pessoa u ma particípação em qualquer decisão coletiva,
concepção constitucional de democracia. Se é verdade que
o autogoverno só é possível dentro de uma comunidade
que atenda às condições de participação moral (uma vez 16. Ver l..aw's Empire e "Equality, Democracy, and Constitution: We the
People in Court",A.lbe1ta l.aw Review, vol. 28 (1990), p. 324.
que só nesse caso é que temos o direito de falar de um go- 17. Ver Robert Putnam, Making Democraci; Work: Civic Traditions in Mo-
verno "do povo" num sentido plenamente comunitário, e dem ltaly (Princeton University Press, 1993).
38 O DIREITO DA UBERDllDE INTRODUÇÃO 39
1
um interesse nessa decisão e uma independência em relação à uma sociedade em que a maioria despreza as necessidades e
'
mesma decisão. Em primeiro lugar, toda pessoa deve ter a (:;:t\perspectivas de um~não só injusta como ilegítima/
oportunidade de modificar de algum modo as decisões co- \:Y A terceira condição - a independência moral - deve ser
letivas, e a magnitude do seu papel - a magnitude das mo- mais conh·oversa do que as duas primeiras. Em minha opi-
dificações que ela pode operar - não deve ser estrutural- nião, porém, ela é essencial para expressar um aspecto da
mente fixa ou limitada na suposta proporção do valor, do participação moral que pode não fjcar explícito numa deter-
talento ou da capacidade da pessoa, i~em da suposta inte- minada interpretação das duas primeiras condições. A idéia
gridade de suas convicções ou gostos. E essa a condição que fundam.ental que agora exploramos - de que a liberdade in-
insiste no sufrágio universal, em eleições efetivas e na re- dividual é promovida pelo autogoverno coletivo - parte do
presentação, embora não esti pule que sejam esses os únicos princípio de que os membros de uma comunidade política
li meios de decisão coletiva. A mesma condição insiste, como podem encarar uns aos outros como sócios num empreen-
sustentam vários capítulos da Parte Ili, na liberdade de ma- dimento conjunto, como os membros de uma orquestra ou
nifestação e de expressão para todas as opiniões, não so- de uma equipe de futebot todos os quais partilham o mes-
mente nas ocasiões políticas formais, mas também na vida mo trabalho e o mesmo destino, ainda que o empreendi -
· formal da comunidade. mento como um todo seja conduzido de uma maneira com
Prescreve, além disso, uma interpretação da liberdade a qual nem todos concordem . O regente da orquestra pode
e manifestação e de expressão que se centra na participa- decidir, por exemplo, como a orquestra vai interpretar uma
ção dessa liberdade nos processos de autogoverno, partici- peça em particular: é preciso que a aceitação dessa decisão
pação essa que gera, para diversas questões - entre as quais seja obrigatória para todos, e o regente é o único que se en-
a questão de saber se os gastos excessivos com campanhas contra na posição adequada para tomar a decisão. Ao acei-
eleitorais são uma violação dessa mesma liberdade -, res- tar que uma outra pessoa tenha essa responsabilidade, os ~
postas muito diferentes das gue seriam produzidas no con- músicos não sacrificam nenhum elemento essencial do f"'I\. e; • :i
1

:
exto de uma concepção majoritátia de democracia. controle que têm sobre a própria vida; mas isso já não seria '1'°1Jtf.v;vv
Em segundo lugar, o processo político de uma comuni- assim se o regente quisesse determinar, por exemplo, não
dade política verdadeira deve expressar algum.a concepção só como os violinistas devem tocar sob o seu comando, mas
de igualdade de consideração para com os interesses de to- também o padrão de gosto musical que devem cultivar em
dos os membros da comunidade, o que significa que as de- sua vida particular. Ninguém que aceitasse a responsabilida-
cisões políticas que afetam a distribuição de renda, de bene- de de decidir por si mesmo suas questões de gosto musical
fícios e de encargos devem ser compatíveis com uma tal poderia considerar- se sócio de um empreendimento con-
igualdade de consideração. A participação moral acarreta _.:J
rS: junto que se propusesse a decidir essas questões para ele.
uma reciprocidade: um indivíduo não pode ser un1 membro '<]/
9 Isso também é verdade, e de modo mais evidente a.in-
a menos que seja tratado pelos outros como tal, ou seja, a da, para as questões políticas. Na Parte I, em que discu tire-
menos que as conseqüências de qualquer decisão coletiva mos questões fundamentais de vida, morte e responsabili-
para sua vida sejam consideradas tão impo1tantes quanto as dade pessoal, tentaremos demonstrar por guê. As pessoas
conseqüências da mesma decisão para a vida de todas as que assumem a responsabilidade pessoal por decidir qual o
outras pessoas. Assim, a concepção comunitária de demo- tipo de vida que mais prezam podem mesmo assim aceitar
1 cracia explica uma intuição que muitos têm:Á idéia de que que as questões de justiça - acerca de como equilibrar os in-

il
40 O DIREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 41
teresses de todos os cidadãos, que são diferentes e às vezes verdade que, se a estrutura de uma sociedade é piramidal
conflituosos - sejam decididas coletivamente, de modo que (ou seja, se a proporção de pessoas aumenta à medida que
uma w1ica decisão possa ser encarada por todos como do- se desce na escala econômica), o sufrágio universal e as de-
tada de autoridade. Não há nada nessa idéia que ponha em cisões majoritárias podem até promover uma igualdade
xeque a responsabilidade do indivíduo de decidir por si econômica maior. Mas nos Estados Unidos e em outros paí-
mesmo que vida viver, dados os recursos e oportunidades ses capitalistas avançados, onde o perfil de distribuição da
que lhe restam depois de tomadas as decisões coletivas. As- população por renda é hoje muito diferente, as pessoas que
sim, mesmo quando seus pontos de vista são derrotados, fazem paite da maioria costumam votar para proteger sua
ele pode considerar-se unido aos outros num esforço con- própria riqueza contra as exigências dos que se encontram
junto para resolver essas questões/Seria diferente, porém, em pior situação.
se a maioria se arrogasse o direito de decidir o que ele deve- Assim, o argumento de que a igualdade fica comprome-
ria pensar ou dizer acerca dessas decisões, ou quais deve- tida quando a premissa majoritária é ignorada tem de fazer
riam ser os ideais ou valores a orientá-lo na hora de votar apelo a um conceito qualquer de igualdade política. Mas que
ou de decidir o que fazer com os recursos que lhe foram conceito seria esse? Isso depende de qual das duas interpre-
atribuídos/A pessoa que acredita deter a responsabilidade tações de ação coletiva nós escolhemos. Se consideramos o
pelos valores centrais de sua vida não pode entregar essa governo "do povo11 como mera questão estatística, a igual-
responsabilidade a um grupo, mesmo que disponha de um dade em questão é a igualdade política dos cidadãos consi-
voto igual aos outros nas deliberações desse grupo. Portan- derados um a um. Essa igualdade certamente não existia na
to, a comunidade política verdadeira é uma comunidade época em que as mulheres não podiam votar e era posta em
feita de agentes morais independentes. Ela não pode deter- xeque pelo sistema eleitoral da Inglaterra vitoriana, que na
minar o que seus cidadãos devem pensar a respeito de polí- prática dava mais votos a quem havia feito a universidade.@. _,
tica ou ética, mas deve, por outro lado, propiciar circunstân- ".'1~s qual é a ~étrica que usa~1os quando :i:nitimos esses _"<'<f ·(;, ~-
cias que lhes permitam chegar a crenças firmes em matéria JWZos? O que e, na verdade, a igualdade pohhca segundo o f 4 1-. ..,,,
de ética e política através de sua própria reflexão e, por fim, de conceito estatístico de ação política coletiva? ~ ~1:~-~~ 't
"-;:lr<ti< j r1Z&.
sua convicção individual. Talvez nos surpreendamos ao constatar que a igualda- ·
de política não pode ser adequadamente definida como
uma igualdade de poder político, pois não dispomos de ne-
Igualdade? nhuma definição de "poder" que possa tornar a igualdade

@ Embora o argumento da liberdade seja, do ponto de


vista emocional, o argumento mais forte que pode ser apre-
de poder um ideal desejável, quanto mais realizável1ª. Supo-
nhamos que o poder político seja compreendido como uma
medida do impacto político, entendido este do seguinte modo:
sentado em favor da premissa majoritária, o argumento da meu impacto político, enquanto cidadão norte-americano,
igualdade é mais conhecido. A dimensão de igualdade que depende de quanto o fato de eu ser favorável a uma deter-
aí está em questão é provavelmente a da igualdade política,
pois no majoritarismo não há nada que possa promover au-
18. O argumento apresentado nos parágrafos seguintes é um resumo de
tomaticamente qualquer outra forma de igualdade - em es- um argumento mais longo tirado de um artigo que não faz parte desta coletâ-
pecial1 não há nada que favoreça a igualdade econômica. É nea: "Equali ty, Democracy, and Constitutio n: We the People in Court."
~ "Uo - ----,-__,--- ---

42 O DlREITO DA LIBERDADE /NTRODUçAO 43


minada decisão política faz aumentar a probabilidade pré- exclusivamente masculino e os votos universitários não
via de ser essa a decisão coletiva, sem levar em conta as opi- eram igualitários porque pressupunham que certas pessoas
niões que os outros cidadãos têm ou possam vir a ter. Numa tinham mais condições ou mais direito do que outras de
democracia representativa, o impacto simplesmente não participar das decisões coletivas. Mas a mera autoridade po-
pode ser igual para todos: a probabilidade prévia de que lítica - o poder ligado aos cargos políticos para os quais to-
uma medida comercial seja aprovada tem de ser mais sensí- dos são, em princípio, elegíveis - não está ligada a nenhum
vel às opiniões de um senador qualquer do que às minhas. pressuposto desse tipo. É por isso que o poder especial dos
De qualquer modo, a idéia de impacto não abarca nenhum ocupantes de cargos públicos não destrói a verdadeira
conceito de poder político que tenha apelo intuitivo, pois o igualdade política (e, quanto a isso, não faz diferença que
impacto não depende de algo que na verdade é o fator mais esses ocupantes sejam eleitos diretamente ou não). Muitos
importante de desigualdade de poder político nas democra- políticos que não são eleitos, mas nomeados, dispõem ainda
cias modernas: a desigualdade de riqueza, que dá a certas assim de grande poder. Um embaixador norte-americano
pessoas imensas oportunidades de influenciar a opinião no Iraque pode criar uma Guerra do Golfo, e o presidente
pública. Ross Perot e eu só temos um voto cada um, mas el.c do Banco Central Norte-Americano pode deixar a econo-
pode. comprar horas e h oras de programação de TV para mia de joelhos. Não há nen huma premissa de status não-
persuadir os outros de suas opiniões, ao passo que eu não iguaJitária - nenhuma concepção de cidadãos de p1imeira e
posso comprar nem um minuto. de segunda classe - nos arranjos que produ:tem esse poder.
/' ~ /( Isso nos sugere u1na idéia melhor: o poder político não Também não existe nenhuma premissa não-igualitáiia nos
:J:
1''~ J.. ~ é uma pledida doJrnEac_!.9, mas sim da influência política, arranjos que dão a certos juízes norte-americanos, nomea-
l."'1 ~,,,.~ compreendida como o meu poder de afetar as opiniões dos dos e aprovados por políticos eleitos, a autoridade última
,.l.u ~ . outros. Mas a igualdade de influência é evidentemente um
\o..J sobre a jurisdição constitucional.
'i'rlt' ~n<-l~ objetivo que não tem atrativo nenhum -além de ser irreali- Assim, a interpretação estatística da ação política cole- 1
0 ;., l.4 zável. Não queremos que a riqueza afete as decisões políti- tiva não justifica a idéia de que a igualdade política fica
' cas, mas não queremos isso porque a riqueza é distribuída comprometida toda vez que a vontade da maioria é frustra-
de maneira injusta e desigual. Quanto à influência, quere- da. E, quando temos em mente a interpretação estatística,
M """'<-!h..,y0 m os sim que ela seja desigual na política, e por outros moti- essa idéia é tola de qualquer modo. Num país democrático
otv" ~~; h vos: queremos que as pessoas que têm as melhores opi- de dimensões continentais, o poder político de cada cida-~ P. I{ e/'
'Íb"'\ r~'t;. niõcs, ou que são capazes de apresentar suas opiniões de dão é microscópico de qualquer ponto de vista, e a diminui- t ~ br ( 'J~
1 ~ :"11 ~"''-'« maneira mais eloqüente, detenham mais influência. Não
'\ ção desse poder que pode ser atribuída às restrições que a , :t1 ~"
0
poderíamos eliminar essas fontes da desigualdade de in- Constituição impõe à maioria é ainda mais insignificante. :,Ju~} r.
I•
fluência sem transformar grotescamente nossa sociedade, e Mas o argumento igualitário em favor da premissa majori- / '· ,,. , , . r
I
uma tal transformação significaria o fim, e não a vitória, da tária parece inicialmente mais promissor quando o desvin-
t.J 4 Wl~lA> deliberação em nossa vi.da política. culamos da interpretação estatística da ação coletiva e o
1 IM4J ~°"" . -;
Temos de começar de novo. Pelo modelo estatístico de
'~ ~ 'ii-là 1 ação coletiva, a igualdade política não pode ser definida em
reformulamos do ponto de vista da interpretação comw-ütá-
i:ia. Desse ponto de vista, a igualdade não depende de ne-
~~ ((J;f·
função do poder, mas sim do status de que falei quando h·a- nhuma relação existente entre os cidadãos considerados um
~),,J ,w.~ tei das condições do autogoverno democrático. O sufrágio por um, mas de uma relação entre os cidadãos em seu con-
r)-0 { ft.,}(vS

••
1

44 O DIREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 45


'I
junto, considerados coletivamente como o povo", e seus /1
usada com muitos sentidos diferentes e pode se referir a
governantes. A igualdade política é aquele estado de coisas emoções, práticas e ideais diversos; é importante, por isso,
em que, em última análise, é o povo que governa os gover- saber qual destes está em jogo neste tipo de argumento.
nantes, e não o contrário. Apresenta -se assim um argumen- Como vêm dizendo os filósofos desde a época de Aristóte-
to menos tolo em favor da idéia de que a revisão judicial das les, é uma verdade evidente que as pessoas gostam de ter
normas ou qualquer outro enfraquecimento da premissa em comum com as outras seus projetos, sua língua, suas di-
majoritária prejudica a igualdade política. Pode-se dizer versões, suas idéias e suas ambições. É claro que uma boa
que, quando os jtúzes aplicam dispositivos constitucionais comunidade política vai atender a esse interesse 20, mas mui-
para derrubar normas que o povo criou através de seus re- tos interesses que as pessoas têm podem ser mais bem
presen tantes, já não é o povo quem governa. atendidos por comunidades não-políticas, como grupos re-
Porém, esse argumento é idêntico ao que consideramos ligiosos, profissionais e sociais. Os dispositivos restritivos da
na última seção: ele apela de novo aos ideais da autodeter- Constituição norte-americana não limitam nem tolhem o
minação política. A liberdade positiva e o senso de igualda- poder do povo de formar comunidades como essas; muito
de que extraímos da interpretação comunitária de "nós, o pelo contrário, alguns dispositivos aumentam esse poder. É
povo" são exatamente as m.esmas virtudes. (E isso não sur- o caso da proteção do direito de associação e da proibição
preende, uma vez que a liberdade e a igualdade são, em ge- da discriminação religiosa contidas na Primeira Emenda.
ral, dois aspectos do mesmo ideal, e não, como se costuma / Mas os comunitaristas e outros que fazem apelo à idéia de
pensar, dois ideais opostosl9 .) As objeções que levantei na comunidade para defender a premissa majoritária têm outra
última seção, e que são fatais para toda e qualquer tentativa coisa em mente/ Não estão pensando nos ben efícios gerais
de fundamentar a premissa majoritária na Jfüerdade positi- de relações humanas próximas, que podem ser garan tidos
va, são igualmente decisivas contra o mesmo argumento em muitas formas comunitárias diferentes, mas sim nos be-
1 quando, em vez da liberdade, ele brada pela igualdade. nefícios especiais que exi.stiriam - tanto para as pessoas en-
. f quanto indivíduos quanto para a sociedade política como
um todo - quando os cidadãos, movidos por um determina-
Comunidade? do espírito, se dedicam deliberadamente à atividade política.
Não estamos falando aí do espírito recomendado por
Em anos recentes, os adversários da leitura moral co- uma outra tradição de cientistas políticos que vêem a políti-
meçaram a fazer apelo à terceira virtude revolucionária - a ca como o comércio por outros meios, ou seja, corno uma
comunidade (ou fraternidade) - e não mais à liberdade ou à gigantesca arena na qual os cidadãos isolados buscam van-
igualdade. Afirmam que, como a leitura moral deixa as deci - tagens para si próprios através de grupos de ação política
sões políticas mais fundamentais a cargo de uma elite de que defendem interesses especiais. Na opinião dos comuni-
profissionais de direito, ela enfraquece a n oção de comuni- taristas, esse /1 republicanismo dos grupos de interesses" é
dade perante o povo e rouba deste a noção de que todos es- uma perversão do ideal republicano. Eles querem que as
tão juntos no mesmo barco. Mas a palavra 11 comunidade" é pessoas participem da p olítica na qualidade de agentes mo-

19. Ver meu artigo "What is Equality? Par t 3: Thc Place of Liberly". Iowa 20. Ver meu artigo "Liberal Community", California Law Rf:Oiew, vol. 77
Law Review, vol. 73 (1987), pp.1-54. (1990), p. 479.

1 1

1 ~
46 O DIREITO DA LIBERDADE JN7'RODUÇÃO 47
,,....
é> 4'IU..\1.,1,. rais que promovem não os seus interesses específicos, mas uma questão empírica complexa. Como acabei de dizer, em
-{ ., h '. o? sim suas diversas concepçoes
(üH-.J.t... ,...-
1
-
o . em ~om~. supoern
db - que, certas circunstâncias os cidadãos podem ser mais capazes
(.,.. J..... ..J,'J...J4S caso possa existir uma demGl.éracia deltberatlva nesses rnol- de exercer as responsabilidades morais da cidadania quan-
f;:i.·.~;k;. des, não só as decisões coletiva~ serão melhores como ta~- do as decisões fin ais saem do âmbito da política comum e
·'• ~~ )r oém os cidadãos levarão uma Vlda melhor - uma vida mais
11
t·, ."'>•N fi.cam a cargo dos tribunais, cujas decisões supostamente
e-·~ ·,<~4"' éo:J virtuosa, plena e satisfatória. dependem de princípios e não do peso dos números nem
ff-<'.Ç ,/ ;f. '? > Os comunitaristas afirmam com insistência que esse do equilíbrio da balança política. No Capítulo 17, vou falar
~~J.:f( J.J objetivo é posto em risco pela revisão judicial das normas, mais extensamente sobre os motivos disso, e por isso vou
~,,.,_ l.:)wJ•jl especialmente quando essa revisão é tão extensa quanto a me limitar a resumi-los aqui. Embora o processo político
leitura moral quer que ela seja. Mas os mesmos comunita- que conduz a uma decisão legislativa possa até ser um pro-
{\'«YvJf'}0ristas baseiam. -se para _tanto ~um pressu~?sto duvido~o, cesso de alta qualidade, muitas vezes isso não acontece, o
'º~ 1)J. · ~ - embora quase nunca seja questionado: a ideia de que a d1s- que é aliás comprovado pelos recentes debates sobre a re-
l; .,:~], ~~J cussão pública da justiça constitucional ganha em qualida-
1
.1 forma do sistema de saúde e o controle de armamentos
1
ríti\, ..e, d.o. de e as pessoas ficam mais mobilizadas para o debate deli - ocorridos nos Estados Unidos. Mas, m esmo quando o de-
J...1; i. ~e.. ·~~· A:>erati vo quando essas questões não são decididas pelos bate é esclarecedor, o processo majoritário estimula a ado-
·, tf \:J,""·· ,.tribunais judiciais, 1:1as sim _relo l~gislativo. Es~e ~ressu­ ção de soluções de meio-termo que põem em segundo pla-
; _'~ ~1~;. ,; posto pode ser considerado 11nprec1so pelos mrus diversos no importantes questões de princípio. Já os processos legais
:,"' • .:! • motivos. Evidentemente, não existe um vínculo necessário constitucionais, por sua vez, podem provocar e de fato já
~ entre o impacto político que o processo majoritário atribui provocaram uma discussão pública generalizada sobre a
. 11~ a cada eleitor en1 potencial, por um lado, e a influência que moralidade política. O caráter deliberativo do grande deba-
esse eleitor pode ter sobre cada decisão política, por outro. te norte-americano sobre os direitos civis e a ação afirmati-
Alguns cidadãos, por meio de sua contribuição para a dis- va, que começou na década de 1950 e continua até hoje,
cussão pública do assunto, podem ter mais influência sobre pode ter sido determinado em parte pelo fato de as ques-
uma decisão judicial do que teriam sobre uma decisão le- tões terem sido objeto de decisão judicial; e a discussão so-
gislativa por meio de seu voto solitário. E, mais importante bre Roe vs. Wade, de que trataremos na Parte I, pode, apesar
ainda, não existe um vínculo necessário entre o impacto ou da amargura e da violência que a cercam, ter produzido um
a influência política de um cidadão e o benefício ético que entendimento ma~s profundo da complexidade das ques-
ele garante para si através de sua participação na discussão tões morais - um entendimento mais profundo do que
ou deliberação pública. No debate público generalizado aquele que a política por si só teria facultado. ..,. .
que precede ou sucede uma decisão judicial, a qualidade da Quanto a mim, afirmo qu e a revisão judicial das nor-Jk.vis •J"'°!""·
discussão pode ser melhor e a contribuição do cidadão mas pode ser um modo superior de deliberação republicanab"!fa~~ :(,~
pode ser mais cuidadosa e mais genuinamente movida · t;'-1 h' ~<li~
sobre aJ guns assuntos - mas o afirmo com urna certa h es1-,t :l<°JI "'

' pela idéia de bem público do que na guerra política que 1


tação, como uma possibilidade, pois não creio que dispo- !ti!&pi1&~c.
culmina com uma votação do legislativo ou mesmo com rnos de informações suficientes para afirmar categorica-
um plebiscito. mente quer isso, quer o contrário disso. Não obstante, dou
A interação entre todos esses fenômenos - impacto, in- ênfase a essa possibilidade porque o argumento comunita-
fluência e uma participação pública dotada de valor ético - é rista simplesmente a ignora, e pressupõe, sem nenhuma
1

1
48 O DIREITO DA UBERDADE INTRODUÇÃO 49

prova a seu favor, que o único tipo de "participação" política coerente de o que é a verdadeira democracia, e certamente
que existe, ou o tipo mais benéfic~, é a eleição de represen - não é a concepção norte-americana.
tantes que depois fazem as leis. O caráter das últimas elei-
ções norte-americanas e dos debates e deliberações no le-
gislativo nacional e nos legislativos estaduais nestes último~ E agora?
tempos está longe de ser uma comprovação dessa idéia. E
claro que temos de ter o objetivo de melhorar a política co- Numa democracia decente e operante, como é o caso
mum, pois uma atividade política de base ampla é essencial dos Estados Unidos, as condições democráticas estabeleci-
não só para a justiça como também para a dignidade. das na Constituição se realizam suficientemente na prática
(Como eu disse, o ato de repensar o que é a democracia é para que não haja injustiça em se atribuir aos legislativos lo-
uma parte essencial desse processo.) Mas, para avaliar os cais e ao nacional os poderes de que efetivamente dispõem
efeitos da revisão judicial das normas sobre a democracia na estrutura atual. Antes, a democracia seria inviabilizada
deliberativa, não podemos fingir que o que deveria aconte- por qualquer mudança constitucional que desse a uma oli-
cer realmente aconteceu. De qualquer modo, porém, como garquia de especialistas não-eleitos o poder de derrubar e
deixo claro no Capitulo 17, o fato de as grandes questões substituir qualquer lei que lhes parecesse insensata ou in-
constitucionais despertarem e orientarem a deliberação pú- justa. Mesmo que os especialistas sempre melhorassem a
blica depende, ao lado de muitas outras coisas, também do legislação rejeitada - sempre estipu lassem, por exemplo, A r~·I j~ 1
modo pelo qual essas questões são concebidas e tratadas um imposto de renda mais justo do que o aprovado pelo le--,;0 .·... ;:,,, f"°"
,, gislativo - , haveria uma perda de autogoverno, e tal perda4GJ;: r~;)
pelos advogados e juízes. É dificílimo acontecer um debate
t
nacional útil sobre princípios constitucionais quando as de- não seria compensada pelos méritos das decisões deles. •tv -1- "'> ·
j
, cisões constitucionais são consideradas exercícios técnicos Mas a situação é completamente diferente quando existem
1 de uma arte misteriosa e altamente conceitual. Seria mais motivos plausíveis para se querer saber se uma detenninada
1
fácil tal debate acontecer se a leitura moral da Constituição lei, regulamento ou programa de governo solapa ou enfra-
fosse reconhecida de modo mais aberto pelas opiniões jurí- quece o caráter democrático da comunidade, e a estrutura
dicas e dentro dessas opiniões. constitucional propõe~ questão a um tribunal de justiça.
Obviamente, não quero dizer que só os juízes devem Suponhamos que o legislativo aprove uma lei que conside-
<; ,, discutir os mais elevados princípios políticos. Também o po- re crime alguém queimar a sua própria bandeira dos Esta-
·J der legislativo é um guardião dos princípios, inclusive dos dos Unidos como sinal de protesto22 • Suponhamos que essa
princípios constitucionais21 • O argumento apresentado nes- mesma lei seja contestada sob a acusação de tolher o auto-
ta seção só pretende demonstrar que o ideal de comunida- governo democrático na medida em que restringe a liberda-
de não corrobora a premissa majoritária nem refuta a leitu- de de manifestação, e que um tribunal aceite a acusação e
ra moral; não mais do que a liberdade e a igualdade, os dois derrube a lei. Se a decisão do tribunal estiver correta - se a
membros mais velhos da brigada revolucionária. Temos de lei que proíbe a queima da bandeira efetivamente viola as
deixar de lado a premissa majoritária e, com ela, a concep- condições democráticas estabelecidas na Constituição, se-
çã.o majoritária de democracia. Ela não é uma concepção gundo a formação e a interpretação que foram dadas a essas

21. Vt:r Law's E111pire, cap. 6. 22. Ver Texas vs. fohnson.

li li
50 O DTREITO DA l.IBERDADE INTRODUÇÃO 51
condições no decorrer da história dos Estados Unidos - , ela possam digladiar-se, livres de qualquer faJha ou pre~supos- A\
não é antidemocrática de modo algum, mas, pelo contrário, to. A dificuldade verdadeira e profunda da democracia, pos- t!l:J
faz prevalecer a democracia. Nenhum valor moral se per- ta a :nu pelas discussões constitucionais, é que ela é um es- A cl.<.-""'ó ;:::.
deu, pois ninguém, nem individual nem coletivamente, fi- quema de governo incompleto do ponto de vista de seus . ç,fqv..<:.. "'"J...
cou em pior situaç~o em n~nhuma das dimensões que ~ca­ processos. Nao- pode prescrever os processos pel os quais . , se
, J'3
, " l.ôv"'l
~'Kl (lA.-m
J.t:,-
bamos de esboçarl!N"inguem perdeu o poder de participar poderia saber se as condições que ela exige para os proces- "' )h• dk .;t"5
:IJ.ü.~ ·"1'·~ . da comunidade autogove~_ante, pois na verdade esse po- sos que de fato prescreve estão sendo atendidas. fJ.h1.A.~t-0"õ
ÓA. hc.... ,."~' i~der aumentou para todo#:Ninguém teve a sua igualdade Como a comunidade política que tem por meta a de-
~ 1 .,i~<' ~ comprometida, pois a igualdade, no único sen~o cabível mocracia deve fazer para saber se as condições democráti-
fc... 0 i:J que podemos dar a essa palavra, se fortaleceu. Ninguém cas existem ou não? D eve ter por lei fundamental uma
perdeu as vantagens éticas conferidas pela sua participação constituição escrita? E essa constituição, deve ela descrever
no p rocesso deliberativo, pois todos tiveram a oportunidade uma concepção a mais detalhada possível das condições
de participar da discussão pública sobre os méritos e demé- democráticas, procurando assim an tecipar, num código
ritos da decisão. Se o tribunal não tivesse cumprido seu pa- constitucional, todas as questões que poderiam surgir? Ou
~ e., 1,.,-1 pel - se a lei continuasse em vigor-, todos estariam em pior deve estabelecer concepções m uito abstratas das condições
kJ\'.l"" .,_J.o situação em todas as dimensões da democracia, e ser~a uma democráticas, como fazem a Constituição norte -americana
.t'i(v;e..dc / perve rsão ver isso como uma vitória democrática. E claro e muitas outras constituições contemporâneas, deixando a
j ' ~ ~ ~; "'"que, no momento mesmo em que chegamos à conclusã~ de
1
cargo das instituições, de geração em geração, a interpreta-
~ ~~áls que a decisão do tribunal foi errada, tudo º. que acabei de ção desse texto? Neste último caso, quais devem ser essas
j dizer se torna falso . A democracia de fato fica pre1ud1cada instituições? Devem ser as instituições parlamentares ordi-
@ quando um tribunal dotado de autoridade torna a decisão nárias e majori.tár:ias, como há tanto tempo insis te a Consti-
r:
0 U'l\t> errada a respeito das exigências das condições democráticas tuição britânica? Ou devem ser câmaras constitucionais es-
': r)fll;?, - mas não fica mais p rejudicada do que quando uma legis- peciais, cujos membros são eleitos para mandatos talvez
latura majoritária torna uma decisão constitucional errada muito mais compridos do que os mandatos parlamentares,
que continua de pé. A possibilidade de erro é simétrica. As- ou são eleitos de maneira diferente? Ou será que devem
sim, a premissa majoritária é confusa e deve ser abandonada. consistir numa hierarquia de tribunais, sistema que John
Estas conclusões são importantes. Elas demonstram o Marshall considerou natural em Marbury vs. Madison 7
quanto é falacioso o argumento popular de que, um.a vez A comunidade pode combinar essas várias respostas
que a revisão judicial das n ormas é antidemocrática, a leitu- de diferentes maneiras. A Constituição norte -americana,
ra moral, que toma ainda pior o dano infligido à democra- como notamos, associa certos dispositivos muito específicos
cia, deve ser rejeitada. Porém, é essencial termos em mente (como o que proíbe o aquartelamento de soldados nas resi-
os limites de nossas conclusões. Não dispomos ainda de um dências de civis em tempos de paz, por exemplo) com os
1 argumento positivo a favor da revisão judicial das normas, dispositivos majestosarnente abstratos que são o principal
\ quer n a forma que essa instituição assumiu nos Estados objeto de discussão deste livro. Nos Estados Unidos já é

'
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Unidos, quer em outras formas. Simplesmente desenhamos
um quadro equilibrado dentro do qual as diversas estrutu-
ras institucionais de interpretação das condições democráticas
ponto pacífico que a Suprema Corte tem autoridade para
tornar uma lei inválida se esta for considerada inconstitu-
cional. Mas é claro que isso não nega a responsabilidade
52 O DIREITO DA LIBERDADE JNTRODUÇÃO 53
paralela dos legisladores de fazer os seus próprios juízos dem favorecer fortemente a idéia de que a própria legislatura
constitucionais e recusar-se a aprovar leis que não lhes pa- eleita decida quais são os limites morais do seu poder. Po-
reçam conformes à Constituição. E, se os tribunais têm o rém, outras considerações podem favorecer a conclusão
poder de fazer valer determinados direitos constitucionais, oposta; entre elas, podemos mencionar o fato de que os le-
isso não significa que possam impor todos esses direitos. gisladores são vulneráveis a pressões politicas dos mais va-
Algu ns constitucionalistas norte-americanos, que primam riados tipos, tanto pelo lado financeiro quanto pelo lado po- (O f• l..-1
pelo excesso de imaginação, afirmam, por exemplo, que o lítico propriamente dito, de tal modo que o poder legislativo--:k""r'S !tJ, v::;
poder dos tribunais federais de declarar os atos de outras não é o veículo mais seguro para a proteção dos direitos de /~1 l <> Ji;/i,,.,~
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instituições inválidos por serem inconstitucionais é limita- grupos pouco populares. E de se esperar que as pessoas dis- I
do: segundo essa concepção, os tribunais teriam poder para cordem quanto a qual é, no todo, a melhor estrutura, e por
dar eficácia a vários direitos, princípios e critérios criados isso, em certas circunstâncias, precisem de um procedimen-
pela Constituição, mas não todos23• to de decisão para resolver essa questão; mas é exatamente
A leitura moral é compatível com todas essas solL1ções esse procedime~to que não pode ser fornecido pela teoria
instih1cionais ao problema das condições democrát.icas. Ela da democracia. E por isso que a concepção inicial de uma
d,, 1 q , é uma teolia que trata de como certos dispositivos constítu- constituição política é um assunto tão misterioso; e é por
'-#''<l-Jc. ~l('"ê• . d . isso também que parece natural insistir na idéia de que tudo
''" v,v .. ,., 1ona1s evern ser interpretados ou "lidos" - de quais per-
'.:i ~; ~ }.1. J, guntas devem ser feitas e respondidas para que possamos foi decidido por uma maioria absoluta ou mesmo por quase
r.•.t , d~. saber o que esses dispositivos significam e exigem. Não é unanimidade. Essa insistência não nasce de uma concepção
1
11 , '· ~~ruma teoria sobre quem deve fazer essas perguntas ou quem qualquer de justiça procedimental, mas da noção empírica·
:.1 ·.,., - deve dar a resposta a ser aceita por todos. Por isso, a leitura de que, de outro modo, não poderia haver estabilidade.
!'~ 4 r•r,J.'ºral é só um~ ~arte - uma parte importante - de uma teo- A situação é muito diferente quando não estamos fun -
~-1.,f ir. i~r~ na geral da pratica constitucional. O que diremos sobre as dando uma nova prática constitucional, mas sim interpre-
demais questões, aquelas questões institucionais acerca das tando uma prática estabelecida. Nesse caso, a autoridade já
quais a leitura moral não tem nada a dizer? foi distribuída pela história e os detalhes da responsabilida-
Para decidi-las, não vejo outra alternativa senão a de de institucional dependem de uma interpretação e não de
j usar um cálculo de resultados em vez de um critér' ) proce-
dimental. A melhor estrutura instituciona l é aquela que
uma criação a partir do nada. Nessas circunstâncias, arejei-
ção da premissa majoritária nos liberta para procurar a m.e-
1 produz as melhores respostas para a pergunta (de caráter lhor interpretação com a mente mais aberta: não temos
essencialmente moral) de quais são efetivamente as condi- nenhuma razão de princípio que nos obrigue a encaixar
ções democráticas e que melhor garante uma obediência nossas práticas num molde majoritário qualquer. Se a inter-
estável a essas condições. É necessário levar em conta um pretação mais direta da prática constituciona l norte-ameri-
sem-número de considerações práticas, e muitas delas po- cana mostra que nossos juízes são dotados da autoridade
interpretativa final e que eles, em sua maioria, compreen-
dem a Declaração de Direitos como uma constituição de
23.Ver Lawrence C. Sagcr, "Fair Measure:The Legal Status of Undercn- pri~cjpi os - ~e é essa a melhor explicação das decisões que
forced Constitutional Norms", Harvard I..t1w Rcview, vol. 91 (1978), p. 1212, e
Chistopher L. F.isgi:uber e Lawrence G. Sager, "Why the Religious Freedom
os 1mzes efetivamente tomam e que o público em sua maio-
Restoralion Act is Unconstitutional", N.Y.U. Lnw Review, vol. 69 (1994). ria aceita - , não temos motivo algum para resistir a essa lei-
1 1-
11

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1 1

54 O VIR.EITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 55


li

tura e nos esforçar para encontrar outra que pareça mais porém, resistem a uma tal disciplina, e os conceitos técnicos
compatível com a filosofia majoritária. 10m uma vida bibliográfica limitada - e, em geral, muito
curta. Cada um deles começa como uma estratégia útil e
modesta que demonstra as conseqüências de certos princí-
Comentários e avisos pios gerais para um conjunto limitado de problemas. Po-
1ém, alguns criam vida própria e se tornam tiranos senis
1 Não revisei os ensaios que compõem o restante deste nijos cuidados de saúde vão criando mais problemas do
livro, exceto para corrigir alguns erros de referência. É tenta- que soluções até o momento em que são finalmente man-
dor falar das coisas depois que elas já aconteceram, e em dados para o túmulo - sans teeth, sans everything" - por um
vários casos eu mudaria agora meus argumentos e especial- jLliz criativo que encontrou um novo conceito. O esquema
mente minhas previsões. Uma revisão substancial também de três "níveis de atenção" - "rigoroso", "relaxado" e "in -
teria evitado a repetição constante que inevitavelmente ca- lc1mediário" - que a Suprema Corte usou por décadas em
ractetiza as coletâneas de ensaios. Os argumentos e exem- Huas decisões sobre a igualdade de proteção, por exemplo,
plos são às vezes apresen tados em mais de um ensaio (em - fo ram muito úteis no passado por oferecer pressupostos
li bora tomem formas diferentes e, segundo espero, tenham operantes sobre a discriminação, pressupostos que aponta-
melhorado no decorrer do tempo) . Mas a m aioria dos en- vam, ou não, para prováveis lacunas na observância dessa
saios originais foi objeto de comentários de outros autores igualdade. Mas ele já não fu nciona. Este livro deixa de lado
e, se eu os modificasse agora, isso poderia causar confusão. essas construções doutrinárias e se concentra nos princípios
1 Este livro não é, de maneira nenhuma, um manual de subjacentes aos quais eles supostamente servem.
1 direito constitucional. O número de casos discutidos é rela - Gostaria, por fim, de responder a uma objeção que já
tivamente pequeno e não procuro provar minhas afirma- foi contraposta aos meus argumentos e que menciono an-
ções fazendo referência a fontes secundárias. Os constitu - tes que seja levantada novamente. Afirma-se que os resul-
ciona listas e os juristas discordam em matéria de teoria tados que derivo da leitura moral nos casos constitucionais
constitucional não pelo fato de alguns terem lido mais casos particulares coincidem magicamente com minhas prefe-
do que os outros ou por terem-nos lido com mais cuidado, rências políticas pessoais. Como disse um comentador,
mas porque discordam acerca das questões de filosofia e meus argumentos sempre parecem ter um final feliz. Ou
(
teoria do direito para as quais chamo a atenção aqui. Por pelo menos um final liberal - meus argumentos tendem a
ísso, os poucos casos discutidos são apresentados mais ratificar as decisões da Suprema Corte que são geralmente
como exemplos de certos princípios do que como uma ten- consideradas decisões Liberais e a rejeitar como errôneas
tativa de se derivar um princípio de um grande número de aquelas que são geralmente vistas como conservadoras.
casos concretos. Isso parece suspeito, pois costumo ínsistir na idéia de que
Também não discuto de modo aprofundado a doutrina direito e moral são duas coisas diferentes e que a integrida-
técn ica do direito, a não ser quando isso é absolutamente de jurídica muitas vezes impede um jurista de encontrar o

~1 I necessário. Todos os ramos do direito, o direito constitucio-


nal inclusive, fazem uso de mecanísrnos e categorias espe-
direito onde ele gostaria de encontrá- lo. Nesse caso, por
que a Constituição norte-americana, segundo o meu su-
~
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cialmente inventados para disciplinar os princípios jurídicos posto entendimento, é um triunfo tão uniforme do pensa-
1
abstratos dentro de um vocabulátio técnico. Os princípios, mento liberal contemporâneo?
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56 O DIREITO DA LIBERDADE IN/'RODUÇÃO 57

Em primeiro lugar, devo deixar claro que nem sempre 1•slão sempre mais dispostos do que os liberais a usar a lin-
meus argumentos são favoráveis a pessoas, atos e institui- guogem moral abstrata da Décima Quarta Emenda para
ções que aprovo ou adrrtiro. Na Parte II, defendo os pornó- dt•rrubar programas de ação afirmativa; e a visão radical da
grafos, os queimadores de bandeira e os neonazistas, e na Primeira Emenda discutida na Parte II não é menos movida
Parte Tdefendo um direito geral ao aborto, muito embora por instintos políticos do que minha própria visão liberal.
creia, por razões de que já falei num outro livro, que mesmo Não só admito como afirmo categoricamente que as
o aborto nos primeiros meses de gravidez é muitas vezes um opiniões constitucionais são sensíveis às convicções políti-
-erro ético2~. Também não vejo na Constituição todos os prin- t'l'lS. Se não fossem, como eu já disse, não poderíamos clas-
cípios importantes do liberalismo político. Em outros textos, "iíicar os juristas como conservadores, moderados, Jiberrus
por exemplo, defendo uma teoria da justiça econômica que ou radicais, nem mesmo aproximadamente como fazemos
exigiria Ltma rectistri.buição substancial da riqueza nas socie- hoje. O que queremos saber, antes, é se essa influência é in-
dades economicamente desenvolvidas25 • Algumas constiti.ú- dt•vida.A política constitucional tem sido atrapalhada e cor-
ções nacionais de fato procuram estipular um certo grau de rompida pela idéia falsa de que os juízes (se não fossem tão
igua ldade econômica corno um direito constitucional, e cer- Hl.!dentos de poder) poderiam usar estratégias de interpreta-
tos juristas norte -amelicanos procuraran-i demonstrar que i,;rfo constitucional politicamente neutras. Os jtúzes que fa-
também a nossa Constituição pode ser entendida desse mo- i'.L'm eco a essa idéia faJsa procuram ocultar até de si pró-
1,
do26. Mas eu não fiz isso; pelo contrário, fiz questão de afü- prios a inevitável influência de suas próprias convicções, e o
mar que a integridade exclui qualquer tentativa de deduzir que resulta daí é uma suntuosa mendacidade. Os motivos
tal resultado dos dispositivos morais abstratos da Declaração ieajs das decisões ficam ocultos tanto de uma legítima ins-
r
1 de Direitos ou de qualquer outra parte da Constituição. peção pública quanto de um utilíssimo debate público. Já a
Porém, embora a objeção esteja errada ao supor que, na ll'itura moral prega uma coisa diferente. Ela explica por que
1 minha opinião, a Constituição diz exatamente o que eu ,, fidelidade à Constituição e ao direito exige que os juízes
1 quero ouvir, devo sobretudo me opor à outra premissa que foçam juízos atuais de moralidade política e encoraja assim
ela afirma - de que a leitura moral deve se envergonhar ,, franca demonstração das verdadeiras bases desses juízos,
quando aqueles que a aceitam chegam a um final feliz em na esperança de que os juízes elaborem argumentos mais
sua interpretação constitucional. É claro que minhas opi- 11inceros, fundamentados em princípios, que permitam ao
niões constitucionais são influenciadas por minhas convic- público participar da discussão.
ções de moralidade política. O mesmo acontece com as opi- Por isso, é claro que a leitura moral encoraja juristas e
niões de juristas mais conservadores e mais radicais do que juízes a interpretar uma constituição abstrata à luz de sua
eu. Como demonstra o Capítulo 6, os juízes conservadores rnncepção de justiça. De que outro modo poderiam respon-
der às perguntas morais que essa constituição abstrata lhes
dirige? Se uma teoria constitucional reflete dctem1inada pos-
24. Ver meu livro Life's Dominion: An Argwnent about Abortion and Ettt/Ja-
nnsia (Knopf, 1993) [trad. bras. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades in- Lura moral, isso não é motivo nem de surpresa, nem de ridí-
1 dividrmis, São Paulo, Martins Fontes, 2003). culo, nem de suspeita. Seria uma surpresa - e seria ridículo
25. Ver "Whal's Equality?'' partes 1 e 2, em Philosophy and Publíc Affaírs se não refletisse. Só uma forma inacreditavelmente tosca
' ~ 11
(1981).
26. Ve r Frank Michelman, "On Protecting the Poor thro ugh thc Four-
de positivismo jurídico - uma forma que aliás foi repudiada
teenth Ammendment", Harvard Law Review, vol. 83 (1969). por Herbert Hart, o maior positivista de nosso século - po-
58 O DIREITO DA LIBERDADE INTRODUÇÃO 59
deria produzir esse tipo de isolamento27• É certo que o texto A busca de finais felizes faz parte da natureza da inter-
e a integridade impõem restrições importantes, que tenho pretação jurídica em si, e especialmente da interpretação
sublinhado no decorrer de toda esta discussão. Mas embora constituciona[lS. A única alternativa seria a busca de um fi-
essas restrições conformem e limitem os efeitos das convic- nal infeliz, pois, uma vez rejeitado o originalismo em sua
ções de justiça, elas não podem simplesmente eliminar es- forma pura, já não existe uma precisão neutra. Dizer como
ses efeitos. A leitura moral faz questão de afirmar que essa ,is coisas são significa, até certo ponto, dizer como elas de-
influência não é maléfica na medida em que é abertamente vem ser. E que ponto é esse? Afinal de contas, a história da
reconhecida e em que as mesmas convicções são identifica- Interpretação da Constituição norte-americana inclui a la-
das e defendidas honestamente, ou seja, através de argu- mentável decisão Dred Scott da Suprema Corte, que tratava
mentos baseados em princípios e não de slogans superficiais os escravos como uma espécie de propriedade, e as decisões
ou metáforas batidas. de "direitos de propriedade" do século XX, que quase puse-
Este Uvro de fato apresenta uma visão liberal da Cons- 1nm abaixo o New Deal de Roosevelt. Quão feliz é a história
tituição norte-americana. Apresenta argumentos baseados que se conta? Essa pergunta serii proposta cm muitos capí-
nos princípios liberais e afirma que são eles que proporcio- tulos deste livro e só pode ser respondida por argumentos
nam a melhor interpretação da tradição constitucional que l11tcrpretativos detalhados, como os oferecidos nesses mes-
herdamos e que hoje está depositada sob a nossa guarda. mos capítulos. Porém, a responsabilidade política e intelec-
Creio, e procuro demonstrar, que é a opinião liberal a que tual, além da pura e simples alegria, são fatores que favore-
melhor se enquadra em nossa estrutura constitucional, a t'l'tn o otimismo. A Constituição é a vela moral do barco
qual, afinal de contas, foi construída na era dourada do pen- norte-americano e temos de nos ater à coragem da convic-
samento liberal. Não que meus argumentos sejam irresisti- \OO que enche essa vela: a convicção de que todos nós po-
veis; mas espero que, se alguém quiser resistir a eles, o faça demos ser cidadãos de uma república moral. Trata-se de
da maneira correta: apontando-lhes as falácias ou desen- uma fé nobre, e só o otimismo pode fazê-la valer.
volvendo princípios diferentes - mais conservadores ou
mais radicais - e mostrando que esses princípios são me-
lhores por estarem fundamentados numa moralidade supe-
rior ou mais praticável, ou por serem de algum outro modo
mais justos ou mais sábios. Já é tarde demais para ouvir de
novo a antiga arenga dos covardes: a de que os juízes não
são responsáveis pela produção de argumentos como esses,
ou não são competentes para produzi-los, ou que a tentati-
va de fazê-lo vai contra a democracia, ou que a tarefa deles
é fazer cumprir a lei e não especular sobre moral. Essa velha
arenga também é filosofia, mas é má filosofia. Quem. a de-
fende faz apelo a conceitos - de direito e de democracia -
dos quais não tem nem sequer a mínima compreensão.

27. H. L. A. Hart, The Omcept of Law, "Pós-escrito" à edição de 1994 (Ox-


ford Univcrsity Prcss, 1994). 28. Ver Law's Empire.

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