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“Veja especial com

vídeos de receitas
da culinária goiana.
É só abrir a câmera
do seu celular
e apontar para
o código”
Memória Poesia Tradição
Desbravadores que Doces típicos da Cidade Regimes de mutirão,
romperam estes sertões de Goiás revelam tradições tão presentes em algumas
300 anos atrás ajudaram familiares e sociais que, das tradições culinárias
a moldar uma culinária alem de falar em nossas goianas, têm uma história
repleta de mesclas, origens, emprestam um antiga, sobrevivendo até
em que a Europa... charme especial... nossos dias...
Trilhas e encontros
do sabor de Goiás

Q
Desbravadores uando Ela é, sobretudo, cultura.
que romperam Bartolomeu Era um primeiro passo
estes sertões 300 anos Bueno da para a ocupação
Silva, o denitiva do território e
atrás ajudaram a primeiro nele os aventureiros do
moldar uma culinária Anhanguera, chegou aos sertão traziam em suas
repleta de mesclas, sertões do interior matulas alimentos que já
em que Europa e brasileiro, em 1682, ele demonstravam uma
trazia mais que a ambição fusão de culturas. O
África se depararam de encontrar minas de amendoim e a
com os ritos alimentares metais preciosos, ampliar mandioca, por exemplo,
do Cerrado terras, capturar mão de eram produtos que os
obra e explorar a colonizadores haviam
natureza. Em sua aprendido a cultivar com
caravana – além do lho os indígenas, que os
de 12 anos de idade que tinham como
viria a ser, em 1722, o ingredientes constantes
homem que fundaria o em sua dieta. O milho,
Arraial de Sant'Anna, muito apreciado pelos
núcleo embrionário de Vila povos pré-colombianos,
Boa de Goiás –, aquele também passou a ser
bandeirante vindo de elemento quase
terras paulistas carregava obrigatório na culinária
seu sustento, um tipo nacional logo nas
especíco de comida. E primeiras décadas de
comida não é só alimento. ocupação das Américas.
3
Bolinho de milho

incipientes de alimentos
Alimentos básicos.
Salgados Uma lei de 1707
Segundo o sociólogo e obrigava que os
historiador Sérgio Buarque bandeirantes formassem
de Holanda, quando as lavouras, ainda que
bandeiras paulistas temporárias, nessas idas ao
rumaram Goiás e Mato sertão para que pudessem
Uma lei de Grosso adentro, a principal se sustentar durante as
1707 obrigava preocupação era com jornadas. Isso estimulou
que os maneiras de garantir o que muitos grãos fossem
bandeirantes abastecimento. Os introduzidos nessas regiões,
alimentos eram salgados como o feijão e o arroz (a
formassem
para suportar grandes dupla dinâmica de nossa
lavouras, viagens. Além da carne - mesa cotidiana). Paralelo
ainda que preparada previamente a isso, porcos e galinhas
temporárias, em locais em que já existia foram trazidos para servir
nessas idas ao alguma atividade de alimento e formar
agropecuária e utilizada plantéis nos aglomerados
sertão para
em pratos que incluíam iniciais dos exploradores.
que pudessem feijão, esses exploradores No livro História de Goiás,
se sustentar caçavam durante suas Zoroastro Artiaga diz que
durante as jornadas. Foram animais silvestres, peixes e
jornadas. montados, ainda, pontos palmitos ajudavam a
de apoio e pouso, onde completar essa dieta um
cultivavam roças tanto improvisada.
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marcas. Esse rendado de
A História que referências era acrescido
nos explica com o desenvolvimento
Abrindo picadas, da navegação pelo litoral
enfrentando onças, brasileiro.
atravessando rios bravios, Junte-se a isso o tráco
guerreando com povos de escravos da África,
indígenas nunca iniciado ainda no século
contactados, os 15. Calcula-se que até 6
exploradores sobreviviam milhões de cativos
da forma como podiam. E chegaram ao Brasil vindos
isso não era nada fácil. de várias regiões do
Essas bandeiras realizadas continente (Moçambique,
pelo interior brasileiro Congo, Angola, Nigéria),
integravam uma decisão incrementando, de forma
política e econômica. denitiva, todos os setores
Jazidas de ouro e de nossa cultura, incluindo
Calcula-se que diamantes estavam sendo a alimentação. No m do
até 6 milhões encontradas em Minas século 17, também já
de cativos Gerais e Bahia e as havia uma relação
colônias espanholas a (pacíca ou hostil) dos
chegaram ao colonizadores com muitos
Brasil vindos de oeste eram notoriamente
ricas em metais e pedras povos indígenas que se
várias regiões preciosas. O vácuo entre localizavam nas regiões
do continente as duas regiões, os sertões litorâneas. É com esse
(Moçambique, divididos pelo Tratado de cenário – e essa bagagem
Tordesilhas, de 1494, – que os bandeirantes
Congo, Angola, chegaram por aqui.
Nigéria), precisavam ser ocupados.
incrementando
Tudo junto
, de forma Rendados e misturado
denitiva, todos
os setores de da história Manga com leite faz
No tempo em que os mal? De acordo com a
nossa cultura, bandeirantes rumaram sabedoria popular, sim!
incluindo a para o interior, a cultura Não come isso não,
alimentação. nacional já era o resultado menino! Mas na formação
de intensas misturas. A de nossa gastronomia, os
imigração europeia para estômagos eram menos
cá, principalmente a sensíveis. A manga, que
portuguesa, estava veio da África e se
consolidada. Incursões de adaptou tão bem ao
outros povos da Europa, nosso clima tropical, e o
como os franceses no leite, produzido a partir de
Maranhão e os holandeses pequenos rebanhos de
em Pernambuco, além da gado criados inicialmente
ocupação do Rio de em mosteiros de religiosos
Janeiro no século 16 por fundados nas profundezas
tropas da França – do sertão, eram apenas
auxiliadas por indígenas, uma das possibilidades. O
no episódio conhecido Cerrado fornecia frutos,
como Confederação dos castanhas, folhas que
Tamoios – deixaram foram incorporados a
5
Matula

outras tradições culinárias. desde seus primórdios. Se


Uma espécie de “junta o bandeirante trouxe a
tudo e come”. técnica da carne salgada
Isso explica, em parte, o e de pedaços embebidos
fato de algumas de nossas em banha para sua
receitas mais tradicionais conservação, os
serem resultados dessas indígenas caçavam e
experiências menos comiam o alimento ainda
ortodoxas na cozinha. O fresco. Junte essas duas
amendoim e a mandioca inuências e temos
são ingredientes que, verdadeiros emblemas de
tomados aos indígenas, nossa boa mesa. Quem é
harmonizaram bem com de fora costuma brincar
outros elementos. que no empadão goiano
Castanhas, como o baru, vão vários animais
Junta emprestaram sabores diferentes: lingüiça de
tudo peculiares a determinadas porco, frango, carne
e come receitas, enquanto a bovina... Tudo isso junto e
mandioca – seja cozida, misturado com produtos
seja com a farinha que do Cerrado, como a
dela se extrai – forneceu à guariroba, e até
nossa gastronomia pratos europeus, como a batata.
como a matula, receita Fazer pratos com
em que a massa deste muitos ingredientes é a
alimento ajuda a lógica de nossas
engrossar um caldo com panelinhas, mexidões em
vários tipos de carne. que sempre cabe mais
Misturar a carne de alguma coisa. Elas
diversos animais é outra reúnem ingredientes de
tendência de nossa incontáveis origens e com
gastronomia e que vem preparos versáteis.
6
Pequi

Pé na roça,
pé na aldeia

N
A comida típica o fogão de empregados e que
goiana tem, entre suas lenha, a brasa ajudam a resgatar
características está acesa. tradições culinárias que
No amplo Goiás criou, mas que foi,
principais, a criação ambiente da aos poucos, perdendo na
de pratos e outras cozinha, os cheiros maior parte dos lugares.
delícias que adaptam inebriantes já podem ser “Vamos tomar um
sabores e texturas, sentidos. No varandão em café”, convida Telma
frente dá para ver o gado Lopes Machado,
de preferência com
pastando. Uma galinha proprietária da Fazenda
muita fartura escandalosa anuncia ao Babilônia, uma das
longe que botou mais um propriedades rurais mais
ovo e um leitão zanza pelo emblemáticas de um
cercado, bisbilhotando tempo em que Goiás viu
cada palmo de chão. Um nascer considerável parte
sol manso ilumina a longa de sua gastronomia típica.
mesa de madeira de lei, O lugar próximo a
de tempos antigos como Pirenópolis, cuja sede é um
muitos dos métodos ali casarão secular que já foi
7
Telma Lopes

cenário até de novela, Telma é uma


carrega a missão de não pesquisadora curiosa.
deixar certas receitas Primeiro aprendeu os
morrerem. “Eu comecei atalhos da cozinha com
este trabalho há 20 anos. É sua família. Depois quis
um turismo pedagógico. saber como eles foram
Vêm muitas escolas para traçados. “Toda nossa
visitar e aprender”, culinária tem um pé na
detalha a dona, uma aldeia, um pé na senzala”,
Eu comecei cozinheira de mão cheia, enfatiza. E, pelo jeito, os
este trabalho bisneta do homem que dois pés na roça. “Sim,
comprou a propriedade, aqui todos os pratos são
há 20 anos. É na época com comidas de roça mesmo,
um turismo inacreditáveis 11 mil com suas inuências de
pedagógico. alqueires, do comendador europeus, africanos e
Joaquim Alves de Oliveira, muito dos indígenas.”
Vêm muitas em 1864. Nessa conta, Telma
escolas para A fazenda, que tem 220 calcula que metade de
visitar e anos de existência, guarda nossa matriz alimentar
muitos segredos que são típica advenha das tribos
aprender verdadeiros tesouros de indígenas que habitavam
nosso jeito de fazer Goiás antes e durante a
comida – e de inventá-la colonização. A outra
também. Leitora de metade ca dividida entre
Câmara Cascudo e sua as inuências europeias –
História da Alimentação, majoritariamente
8
portuguesa – e algo dos gastronomia”, aponta. No
africanos, que têm uma cardápio da Fazenda
menor participação nessa Babilônia, essas variantes
equação porque não estão muito presentes.
ncaram raízes mais “Temos cerca de 30 itens
profundas por aqui. “Os muito especícos aqui e
escravos negros vieram todos vêm do nosso bioma
com a corrida do ouro, Cerrado, preparados com
mas quando as minas aqui ingredientes daqui.”
se exauriram, e isso Esse contato direto com
aconteceu num prazo os elementos mais básicos
curto, de cerca de 50 anos, é um dos predicados mais
eles voltaram para as festejados por Telma em
jazidas de Minas Gerais.” nossa gastronomia.
O modelo de ocupação “Muitas das receitas são
territorial do interior embrulhadas em folhas de
brasileiro ajuda, na opinião bananeira e palhas de
Muitas das da fazendeira, a entender milho porque não havia
o que comemos embalagens. Os índios
receitas são atualmente. “Goiás era sempre zeram isso com os
embrulhadas muito isolado, antes e peixes e nós aprendemos
em folhas de depois da exploração do com eles. É o mesmo
ouro. Isso impediu que processo da pamonha.
bananeira e outras culturas tivessem Muito melhor a comida
palhas de milho uma força muito grande car com gosto do milho e
porque não em nossa culinária. Daqui da bananeira do que do
até o litoral, a viagem alumínio ou do plástico”,
havia demorava meses. Os argumenta. “Essas eram as
embalagens. alimentos se perdiam, a marmitas dos viajantes,
Os índios farinha apodrecia. Isso das pessoas que moravam
tudo moldou nossa em zonas isoladas.
sempre zeram alimentação”, pondera. E aqui lutamos para
isso com os “Outro efeito é que resgatar isso.”
peixes e nós algumas receitas, por esse
isolamento todo, foram
aprendemos preservadas, graças a Correr atrás
com eles. Deus”, acrescenta.
Em sua visão, o extenso da galinha
uso da mandioca e até o Sucos, geleias,
emprego de palhas de sobremesas e pratos
milho e folhas de salgados integram essa
bananeira em pratos e lista de sabores da terra
quitutes variados são na Fazenda Babilônia.
consequências desse Telma Lopes cita a matula
contexto. “Goiás sempre de galinha. “O preparo
teve uma cultura desse prato é bem
extrativista quanto à goiano. Primeiro, você
alimentação e isso pode precisa correr atrás da
ser visto, por exemplo, no galinha caipira no
emprego desses materiais quintal”, brinca. “E tem
e também na importância que ser galinha velha, que
que os frutos do Cerrado tem banha na carne. Dá
têm em nossa outro gosto.” Depois que o
9
Produtos Fazenda Babilônia

Pão de mandioca,
geleia de mexirica,
pasta de jabuticaba

tem glúten”, ressalta. “Nós


aqui da Babilônia somos
roceiros e essa comida é
muito saudável. Tenho
quase 70 anos e não tenho
nem colesterol alterado.
Minha mãe morreu com 92
anos e a vida inteira comeu
carne de lata.” Até seus
utensílios são quase todos
feitos de barro ou madeira.
O interesse por essa
animal é desossado ainda gastronomia mais,
cru, mói-se a carne junto digamos, “raiz” tem
com alho, toicinho, farinha aumentado. A cada m
de milho, açafrão e 2 ou 3 semana, a Babilônia
ovos. “Para assar no recebe até uma centena
borralho (as cinzas de pessoas para apreciar
incandescentes que cam seu café da manhã e seu
Nós aqui da no fogareiro e que é uma almoço típicos. Gente que
Babilônia somos herança indígena) faço chega em busca de
roceiros e essa uma trouxinha com palha experiências gastronômicas
de milho seca, o que me diferentes, como degustar
comida é muito obriga a ter um paiol. Veja o cavaco de queijo,
saudável. Tenho que é tudo muito preparado com banha de
quase 70 anos e tradicional”, salienta. porco, polvilho, queijo
O porco, para Telma, ralado e erva doce,
não tenho nem também tem que ser embrulhado em folha de
colesterol caipira, criado solto no bananeira; ou então a
alterado. Minha quintal. O leite para fazer broa da casa, feita com
queijo, requeijão e doces fubá de canjica moído em
mãe morreu deve ser preparado em um moinho de pedra. Já o
com 92 anos e seu coalhar natural. A pão de mandioca pode ser
a vida inteira mandioca boa é aquela acompanhado com uma
arrancada no braço, lá pasta de jabuticaba ou
comeu carne nos fundos da casa. “A com uma geleia de
de lata. base alimentar de antes mexerica. Tudo com um
era a mandioca, da qual café sertanejo, servido em
fazemos também farinha e bule e xícaras de esmalte.
pão. E ainda por cima não Ê, Goiás!
10
Restaurante do Padre Rosa
Não pode
faltar comida
Era impossível passar em
frente à casa de Ranulfo
Jayme Sobrinho na Rua
Aurora, em Pirenópolis, e
não ouvir sua voz ou sentir
o odor de comida que
emana de lá. Na frente,
uma placa em madeira
avisava: é o restaurante
do Padre Rosa (sob o
comando de Ranulfo até
2020, e depois vendido).
Uma casa goiana, com
certeza. "Aqui não falta
comida de jeito nenhum"
garantia, em altos brados,
o ex-proprietário. "Essa é
uma promessa que z ao
meu pai. Se o bufê furar,
fecho o restaurante na
hora". O pai de Ranulfo
era João Jayme Joaneto
homem valente e que
chegou a trilhar o
caminho da política, mas
que gostava mesmo era
de cozinhar.
"Meu pai cozinhou para
Juscelino Kubitschek e
para Pedro Ludovico. Ele e
Pedro chegaram a brigar,
mas depois morreram
amigos. Conheço a família
de Pedro inteira", dizia o
ex-proprietário, enquanto,
num tacho generoso à sua
frente, ia preparando uma
ambrosia, justamente o
doce dos poderosos em
Goiás. "Aqui eu faço
muitos doces e pratos
salgados, todos da
Meu pai cozinhou para Juscelino cozinha típica goiana São
Kubitschek e para Pedro Ludovico. mais de 40 doces, a
maioria com frutos do
Ele e Pedro chegaram a brigar, Cerrado", anunciava,
mas depois morreram amigos. apontando para outro
Conheço a família do Pedro inteira panelão, este cheio de
cajuzinhos em calda, já
11
nunca pagaria a conta".
A promessa foi cumprida
em 1952, já depois da
morte do padre, quando a
casa foi aberta. "E eu
mantenho a palavra: padre
aqui não paga, não
importa quantos sejam. Um
dia teve uma conferência e
vieram comer uns 50 padres
aqui. Ninguém pagou",
contou, quando ainda era
dono do restaurante. A
família numerosa também
era bem-vinda. "Meu pai
teve 23 lhos com 11
mulheres diferentes. Nesse
Natal deve vir umas 50
pessoas comer aqui
durante três dias. Já estou
preparando as leitoas, os
perus, tudo", anunciou
Ranulfo na véspera da
festa, em 2017. Ele tem em
sua esposa, Marilena Fleury
Gomes, uma companheira
de cozinha. "Ela cozinha
Ranulfo
bem demais", elogia.
Jayme
Esta fartura é uma
marca que, segundo Telma
Lopes, da Fazenda
prontos para consumo. Babilônia, dene o jeito
O Padre Rosa era famoso goiano de lidar com a
pela quantidade abundante comida. "Antes passavam
de comida servida. E as tropas e pediam pouso
E eu mantenho também por outras nas fazendas. Ali era
a palavra: padre particularidades, a começar oferecida uma janta. Por
pelo nome do restaurante. isso as cozinhas mais
aqui não paga, Tratava-se de uma tradicionais têm sempre
não importa homenagem a um clérigo alguma coisa mais ou
quantos sejam. nascido em São João Del menos pronta para servir",
Rey Minas Gerais, que teve explica. "Aqui eu faço
Um dia teve uma um nal trágico, mas que comida para 10, mas a
conferência e antes salvou algumas almas, quantidade dá para comer
vieram comer entre elas a do pai de 15. Não pode faltar. Uma
Ranulfo. "Meu pai enfrentou das primeiras perguntas que
uns 50 padres 11 júris. Em um deles, em que fazemos a uma visita é se já
aqui. Ninguém havia matado um sujeito, ele almoçou", exemplica. E
pagou. fez uma promessa a Padre não falta. O bolo sobre a
Rosa. Se absolvido fosse, mesa, a panela quente no
nunca mais andaria fogão, o doce na
armado, abriria um geladeira. Fome, ninguém
restaurante e nele padre há de passar.

12
Doçura em cada porta

V
Doces típicos da isitar a Cidade virou grife. Agora ela é a
Cidade de Goiás de Goiás é um Rita do Pastelinho.
passeio doce. O pastelinho de Goiás é
revelam tradições Literalmente. feito com uma massa
familiares e sociais Em suas ruas preparada com farinha
que, além de falar calçadas com pedras, de trigo, banha,
de nossas origens, pequenas placas na manteiga, leite morno,
entrada de casas com que depois é recheado
emprestam um fachadas estreitas e com doce de leite e um
charme especial quintais intermináveis toque nal de canela. “Eu
à antiga Vila Boa avisam que algumas fui adaptando. Tirei o ovo
delícias podem ser e troquei a manteiga
encontradas naqueles normal por manteiga
imóveis antigos e vegetal.” Há semanas em
charmosos. É assim na que Rita produz alguns
residência aconchegante milhares desse quitutes
de Rita de Cássia de (encomendas para
Barros, dona das mãos Goiânia e Brasília não
hábeis que preparam um faltam), colaborando
dos mais irresistíveis para manter uma das
convites a ir à cidade mais saborosas tradições
histórica. “Faço os da antiga Vila Boa. Este é
pastelinhos de Goiás há 27 um doce-símbolo da
anos. Eles me fazem voltar cidade. “O segredo é
à infância, ao cheiro que encontrar o ponto certo
eu sentia naqueles da massa. Para isso, só
tempos”, arma, sentindo na mão mesmo”,
sorridente, esta mulher que ensina Rita.
13
Rita de Cássia,
ou Rita do
pastelinho

Esta e outras tentações


falam muito sobre como a
mesa goiana foi formada.
E a sobremesa também. O
pastelinho foi criado
quando mais produtos
chegaram ao interior do
Brasil e eram servidos em
ocasiões especiais.
Cidades como Goiás e
Pirenópolis, as principais
do Estado nos séculos 18 e
19, receberam essas
inuências mais
intensamente. Ao lado de
outras gostosuras, ele foi se
instituindo como marca da
culinária local, sendo
remodelado, reinventado,
incorporando elementos.
O mesmo pode ser dito de
Pastelinho quase todos os doces
goianos, sobretudo dos
tradicionais da Cidade
de Goiás.
14
Augusta Soares

Na casa de dona horas ao lado das panelas


Augusta Soares – que está e tachos e outro bom
“beirando os 80”, como tempo recebendo os
ela mesma diz –, a mesa turistas, ávidos para
da sala está sempre experimentar seu trabalho.
servida com verdadeiros “Vem muita gente de
tesouros para o paladar. O Brasília. Os paulistas
doce de limão recheado, compram bastante. Já
em que limõezinhos recebi até grupos de
Vem muita galegos são abertos e japoneses.” Uma de suas
gente de preenchidos com doce de especialidades é a or de
leite, é um dos destaques. coco, pequena obra de
Brasília. Os “Demoro até três dias para artesanato montada com
paulistas fazer”, informa a doceira. tiras de coco coladas com
compram Quando se aposentou calda açucarada. “Eu
como professora de faço de várias cores.
bastante. Já português, ela decidiu que Derreto a anilina e pinto
recebi até não caria parada. Foi com pincel”, revela. Dá
grupos de fazer, de maneira mais até dó de comer esse
séria, o que era um hobby. docinho bonito e
japoneses “É um jeito de matar o delicado. Mas não tenha!
tempo. Eu sempre z doce. É bom demais!
Via minha irmã fazer e Com qualquer doceira
aprendi.” que se converse em
Há 15 anos ela mantém Goiás, a resposta é
essa rotina, passando sempre a mesma: “eu
15
Eu faço de
várias cores.
Derreto a
anilina e pinto
com pincelo

aprendi porque minha


família toda fazia”.
Segundo dona Sílvia
Curado, que faz os
delicados alfenins (outro
doce muito representativo
da antiga capital goiana),
há uma tradição na área
que passa de geração
para geração. “Minha avó
dizia que são bens da
terra. A gente sabe fazer”,
resume. Doces que
podem incluir os traços
mais marcantes da
cozinha lusitana, como
também a mistura de
referências que
caracteriza a gastronomia
goiana. A junção de
sabores, porém, é
perceptível e bem
trabalhada.
16
Silvia Curado

Dona Augusta Soares, Cora, doceira e poeta.


Rita de Cássia e a até “Não sou uma ex-
mesmo a doceira mais doceira. Sou uma doceira
famosa da Cidade de e considero melhores
Goiás, a poeta Cora meus doces do que os
Coralina, têm algo em meus versos.” Na cozinha
comum: aprenderam da antiga casa da poeta
Jamais ociosas. vendo, experimentando, às margens do Rio
criando opções para seus Vermelho, na Cidade de
Focadas, próprios métodos de lidar Goiás, esta frase dá a
imensas, com os ingredientes. “Eu dimensão da importância
ocupadas adoro fazer doce, mas daquele cômodo. “Era
não como muito”, aqui que ela passava a
Mãos laboriosas confessa Augusta. “Se maior parte do tempo”,
Abertas sempre bem que quando quei diz Marlene Velasco,
para dar, diabética, passei a comer diretora do Museu Casa
mais doce.” Opa! O quê? de Cora, responsável pela
ajudar, unir e “Minha diabetes é administração do imóvel
abençoar. camarada”, disfarça. É secular da Rua do Rosário
mesmo difícil resistir a e que se transformou num
Trecho do poema Estas tantos sabores únicos, verdadeiro chamariz de
Mãos, de Meu Livro de tantos odores visitas da antiga capital
Cordel, de Cora Coralina convidativos, tantas goiana. Ali, doces e versos
texturas sedutoras. Em se confundem, como
termos de doces, Goiás é Cora Coralina gostava
uma perdição. que fosse.
17
Marlene Gomes

Os manjares Depois que cou


preparados pela escritora famosa, sendo publicada
são tão famosos quanto por uma grande editora e
suas estrofes. Ambos arrancando elogios de
criados com a gente do quilate de Carlos
autenticidade e com a Drummond de Andrade, a
Quando ela carga de vivências que rotina de doceira de Cora
ajudam a compor o estilo Coralina só fez aumentar.
voltou à Cidade da poeta, sem fórmulas, Quem chegasse à porta
de Goiás em mas com enorme de sua casa, poderia vê-la
1956, depois de participação de sua sentada em uma poltrona,
intuição. Os doces, no recortada pela luz que
passar 45 anos cotidiano dessa mulher vinha de seu amplo
fora daqui, quem que lançou seu primeiro quintal, fornecendo o
lhe deu sustento livro já com 66 anos de perl clássico de uma
idade, têm papel ainda senhora do interior à
foi sua produção mais fundamental que sua espera de visitas. E
de doces. Ela criação literária. “Quando nenhuma delas saía de
viveu só disso por ela voltou à Cidade de mãos abanando. Dados
Goiás em 1956, depois de ou vendidos, seus doces
15 anos. passar 45 anos fora daqui, se espalhavam pela
quem lhe deu sustento foi Cidade de Goiás, por
sua produção de doces. todo o Estado e, depois
Ela viveu só disso por 15 da notoriedade, por várias
anos”, informa Marlene. partes do País.

18
Casa de Cora

“Tudo está mantido mais ali. Por enquanto...


como ela deixou”, “Em janeiro vamos
garante Marlene. Lá está inaugurar o Café Cora no
a poltrona onde Cora se quintal aqui da casa, que
sentava, com a muleta vai servir docinhos e
que passou a usar na quitandas tradicionais da
Em janeiro vamos velhice encostada ao Cidade de Goiás. Os
lado. Lá estão os doces cristalizados vão
inaugurar o Café caprichados e singelos seguir as receitas que
Cora no quintal aparelhos de jantar de seu Cora deixou”, comemora
aqui da casa, casarão herdado dos pais. Marlene. Esses pequenos
Na cozinha, o fogão a segredos foram passados
que vai servir lenha, com as panelas e pela poeta a um de seus
docinhos e os tachos com os quais bisnetos, que hoje vive em
quitandas dava vazão ao seu São Paulo. As receitas
talento de doceira. estão contidas no livro
tradicionais da Também estão em seus Cora Coralina, Doceira e
Cidade de Goiás. cantos o pilão de arroz, o Poeta, editado sob os
Os doces moedor de café, as cuidados de sua única
conchas, a geladeira lha viva, Vicência Bretas,
cristalizados vão antiga. Até as manchas que hoje tem mais de 90
seguir as receitas nas paredes causadas anos de idade. A ideia é
que Cora deixou pela fumaça fazer da parte externa do
permanecem. Os doces museu um outro polo de
da poeta é que não estão atração cultural.

19
Marlene Velasco se
empolga com esse
projeto, já que ele
estabelece uma ponte
entre o passado e o futuro.
Os doces de Cora Coralina
desaam quem tenta
reproduzi-los. “Não eram
apenas cristalizados, eram
grasnados. O açúcar que
havia neles vinha muito
mais das próprias frutas”,
aponta a diretora do
museu. Frutas colhidas nos
fundos da casa. Cajus,
laranjas da terra, gos,
limões, mamões. “Ela
começou fazendo doces
em calda, que são para
consumo mais rápido.
Depois que passou a
comercializar, precisou
fazer cristalizados, mais
apropriados para viagens.”
O uso que Cora Coralina
fazia de seu imenso quintal
também é uma tradição
na Cidade de Goiás. “Eles
são divididos em três
partes”, ensina Marlene. “A
primeira parte é das ores,
a segunda é das hortaliças
e a terceira é a do pomar,
das árvores frutíferas.”
Depois de preparados os
doces, a poeta fazia
Casa de Cora questão de pesá-los em
uma balança de precisão
e embalá-los em caixas,
com papel celofane. “Meu
Deus, ainda me lembro do
cheiro daqueles doces
maravilhosos”, assegura
Marlene, que desde
Não eram apenas cristalizados, criança conviveu com
eram grasnados. O açúcar que Cora. Seus pais eram
vizinhos de porta da
havia neles vinha muito mais escritora. “Eu vinha aqui e
das próprias frutas roubava uns docinhos
dela. E ela sabia disso”,
diverte-se. E quem não
faria o mesmo, hein?
20
mais utilizados era a
Mel e rapadura rapadura, que adoçava e
A chegada das dava energia.
bandeiras paulistas ao Os indígenas já eram
sertão goiano abriu outras peritos no uso do mel de
Os indígenas possibilidades agridoces abelhas. As matas virgens
para a região. O melado do Cerradão do Planalto
já eram peritos
da cana-de-açúcar, já Central eram pródigas em
no uso do mel bastante cultivada no colmeias. As duas formas
de abelhas. As Nordeste e um produto de extrair doçura da
matas virgens popular em todo o litoral natureza conviveram e não
do Cerradão brasileiro, ajuda a contar se excluíram no decorrer do
um pouco a história desse tempo. A rapadura sempre
do Planalto
contato. O sociólogo foi muito popular nos
Central eram Gilberto Freyre, no livro fazendões do interior
pródigas em Açúcar, lista 108 doces goiano, muitas delas com
colmeias preparados com o produção própria, mesmo
ingrediente. Nada menos que artesanal. O mel
que 95 deles trazem batizou até feira nas ruas
técnicas de preparo de Goiânia. Não é possível
herdadas, vejam vocês, de pensar uma gastronomia
povos indígenas. Para as com tantos doces sem que
grandes viagens pelos haja fontes de onde se tirar
sertões, um dos produtos esses sabores.
21
A união faz a comida

Q
Regimes de mutirão, uem já esteve Depois de descascado,
tão presentes em em uma vem aquele momento
pamonhada? meio chato, que
algumas das tradições Aqueles que geralmente sobra para a
culinárias goianas, viveram a garotada: “Vamos tirar o
têm uma história experiência de ver amigos cabelo do milho!” E haja
antiga, sobrevivendo se reunirem em um paciência para encontrar
domingo ensolarado para aqueles os grudados
até nossos dias colocar, literalmente, a entre os grãos.
mão na massa, sabem do E alguns são resistentes,
que estou falando. Os chatos, se recusam a sair
homens vão para a roça de seus esconderijos! A
pegar as espigas e encher espiga, porém, precisa
sacos e mais sacos delas, estar limpinha para poder
que são entregues na área ser ralada. “Cuidado
dos fundos da casa – sim, a para não cortar o
residência tem que ter ao dedo no ralo”, avisa
menos um quintal ou um alguém mais velho.
alpendre; melhor mesmo é Com os ralos dentro de
fazer em uma chácara ou vasilhas, a massa
fazenda. Aí é a hora de começa a escorrer, a
tirar a palha verde do cheirar, a tomar forma.
milho, o que deve ser feito Por m, uma raspada
com o devido cuidado, já na espiga com uma
que serão elas que colher para tirar o restante
embrulharão o quitute. do produto.
22
gastronomia pode conter.
Com aquele monte de Esse regime de mutirão
vasilhas cheias de massa, no preparo dos alimentos
entram em cena as é uma das heranças que
cozinheiras experientes. devemos aos que viviam
Enquanto o resto do aqui quando os
pessoal se esfalfava com colonizadores
as espigas, elas apareceram. Os indígenas
preparavam o recheio e o utilizavam
arrumavam corriqueiramente,
diligentemente as palhas sobretudo em uma
para embalar. Parte da organização social em
massa ganha açúcar, a que o conceito de
outra, sal. Recheios como propriedade não era
queijos, lingüiça, cheiro empregado. Os alimentos
verde, pimenta, frango e o eram da comunidade,
As pamonhas, que mais se puder colhidos em uma terra que
na verdade, imaginar são colocados não pertencia a alguns
dentro de trouxinhas de indivíduos e sim a todos. E
são pretextos palha de milho. todos tinham o direito de
para um dia Preenchidas com a massa, prepará-los, fazendo isso
em que se são fechadas e também em comunhão,
coloca a amarradas com ligas ou para que novamente
conversa em cordões de cores todos pudessem se nutrir,
diferentes, para distinguir sem que houvesse a
dia, atualizam- as pamonhas doces das preocupação de
se as fofocas salgadas. diferenciar quem fazia e
familiares, No fogão (de quem comia.
encontra-se os preferência a lenha), O sociólogo Gilberto
primos, as tias, panelões de água Freyre destaca esse
fervente aguardam o aspecto quando fala dos
os avós, mergulho das pamonhas contatos entre os homens
chama-se os que, alguns minutos brancos e os indígenas,
vizinhos para depois, estarão saindo, salientando que o ritual da
confraternizar. incandescentes, alimentação entre os
deliciosas, prontas para povos nativos brasileiros
recompensar com seu era comunitário, mas com
sabor todo mundo que algumas divisões de
passou o dia inteiro tarefas. Preparar a comida
envolvido em seu preparo. que seria servida era uma
As pamonhas, na tarefa eminentemente
verdade, são pretextos feminina. Os homens
para um dia em que se traziam os produtos e as
coloca a conversa em mulheres se reuniam para
dia, atualizam-se as manuseá-los. Os laços
fofocas familiares, familiares e de
encontra-se os primos, as pertencimento a um único
tias, os avós, chama-se os povo se estreitavam,
vizinhos para vínculos de conança
confraternizar. Em Goiás, cavam mais fortes e isso
essas reuniões dava maior segurança
demonstram, com clareza, alimentar a todos.
o caráter social que a Os colonizadores, em
23
alguma medida, alimentos, ainda que
mantiveram essa lógica Câmara Cascudo saliente
em situações especícas. a pobreza desse cardápio.
Segundo Freyre, essa “Aos indígenas falta tudo.
“miscigenação culinária” Falta óleo, doces, sal,
entre portugueses e acompanhamentos, ovos,
indígenas se deu por leite, frituras,
alguns motivos: comensalidades etc.” O
casamentos entre homens antropólogo Claude Lévi-
brancos e mulheres índias, Strauss veio ao Brasil nos
que levaram seus modos anos 1930 e pesquisou os
de cozinhar para dentro povos Bororo e Kayapó,
da casa desses europeus; que viviam do Vale do
total ausência de Araguaia até o Pantanal
condições de armazenar matogrossense, do Norte
determinados produtos, de Mato Grosso ao sul do
sobretudo os perecíveis, o Pará. Na clássica obra O
Antigamente, que fez os colonizadores Cru e o Cozido, o
os homens não aprenderem com os pesquisador francês conta
indígenas soluções para mitos que ajudam a
possuíam fogo. lidar com alimentos que entender a dinâmica
Quando muitas vezes sequer alimentar dos indígenas.
matavam um conheciam e podiam até Ele relata como esses
povos contavam a
animal, descoberta do elemento
cortavam a O cru e o cozido fundamental do ato de
carne em tiras Com O folclorista cozinhar. “Antigamente,
Câmara Cascudo, no livro os homens não possuíam
nas e as História da Alimentação, fogo. Quando matavam
estendiam enfatiza que uma das um animal, cortavam a
sobre pedras, nossas principais heranças carne em tiras nas e as
culinárias legadas pelos estendiam sobre pedras,
para secá-las indígenas é o habito de para secá-las ao sol. Eles
ao sol. Eles comer produtos quentes. comiam também madeira
comiam “A comida tinha outro podre”, escreve Lévi-
sabor pela continuidade Strauss, descrevendo
também com que os alimentos alguns desses mitos, que
madeira sofriam a ebulição têm variações entre uma
podres. constante”, escreve. Eis a aldeia e outra. Até que
mesma lógica do fogão a um herói, “morto de fome
lenha, em que a brasa não e de sede” e que “é
é apagada, conservando obrigado a comer os
as chapas de ferro próprios excrementos”,
incandescentes e as encontra um jaguar que
panelas próximas a vinha de uma caça e
temperaturas altas. O acaba sendo levado para
próprio modelo desse a casa do felino.
fogão caipira vem de Na toca do jaguar – a
fogareiros rústicos, com três nossa onça pintada –, ele
apoios e uma entrada é mantido para ser
para a brasa. alimentado e engordado,
Os indígenas, de certa sob as ameaças da fêmea
forma, cozinhavam seus do animal. Até que, em
24
uma oportunidade, o ribeirinhos, que viviam da
guerreiro consegue pesca e sabiam prepará-
escapar, matando a felina la bem.
que o vigiava e levando
consigo “bens do jaguar:
algodão ado, carne, Os aparatos
brasas”. Ao ver os
produtos, sua tribo decide da cozinha
Em Goiás, as que precisa possuir esse Outra herança daqueles
panelas de conhecimento e cada tempos recai nos utensílios
membro se disfarça de um empregados. Neste ponto,
barro e as de há, de fato, uma mescla
animal. Eles levam um
ferro se uniram tronco para poder, nele, de inuências, que une o
em nossa transportar o fogo. É o fogo arcaico e o moderno.
cozinha mais a lenha que vai permitir Vasilhames fabricados
tradicional, que a carne seja comida artesanalmente com barro
cozida, que os homens e até pedras são sinais de
emprestando como a culinária goiana
não mais passem fome na
sabores oresta. descende de certos
especiais aos Esses mitos recolhidos métodos indígenas. Em
alimentos. por Lévi-Strauss têm Goiás, as panelas de barro
Muitas receitas variações de povo para e as de ferro se uniram em
povo, mas denotam a nossa cozinha mais
tradicionais tradicional, emprestando
primazia do fogo nas
recomendam sociedades indígenas, o sabores especiais aos
esses que é algo em comum alimentos. Muitas receitas
recipientes em com os hábitos alimentares tradicionais recomendam
seu preparo, do colonizador. Tanto os esses recipientes em seu
bandeirantes quanto os preparo, com seus tempos
com seus de cozimento e fervura.
nativos do Planalto Central
tempos de comungavam os hábitos As cuias, feitas a partir
cozimento de comerem alimentos de cabaças, e os balaios,
e fervura. crus (frutos, ervas, trançados com bras
verduras) e cozidos vegetais e propícios para
(sobretudo caça e pesca). transportar alimentos nas
As receitas de peixes na andanças dos indígenas
brasa ainda nos remetem por seus amplos territórios,
àqueles tempos em que o são outros elementos que
sertão profundo do Brasil chegaram até nossa
era habitado por formação culinária. Esses
indígenas, muitos deles recipientes, em
determinado período,
foram adotados até como
unidades de medida. Mais
um traço que nos chegou
desse uso de materiais
rústicos para utensílios
domésticos é a moringa,
espécie de vaso de barro
que tem o mágico poder
de manter a água fresca
para consumo durante
todo o dia.
25
Paladar em mutação
Eventos históricos são fundamentais para compreender as
razões pelas quais comemos o que comemos hoje em dia

A
alimentação é passaram por
elemento de transformações. Uma
estudos em delas ocorreu cerca de
algumas 100 anos depois da
Em 1808, ciências, como chegada dos
com a vinda Antropologia e Sociologia, exploradores de ouro por
da Família Real mas também pode nos aqui.
Portuguesa ajudar a entender um Em 1808, com a vinda
pouco mais a História. As da Família Real
para o Brasil, mudanças pelas quais a Portuguesa para o Brasil,
após fugir das culinária goiana passou após fugir das tropas de
tropas de nesses mais de 300 anos Napoleão que haviam
Napoleão que desde que ela começou a tomado Lisboa, a
haviam se formar são provas disso. alimentação no agora
Primeiro com os Império foi modicada.
tomado Lisboa, bandeirantes, que Esse fenômeno ocorreu
a alimentação trouxeram inuências com mais força no litoral,
no agora europeias e africanas; onde estavam as maiores
Império foi depois com a cidades e por onde
modicada. incorporação de alimentos entravam as levas e mais
indígenas, os pratos e levas de escravos
sabores da região tracados da África. O Rio

26
de Janeiro, agora sede do tendência de misturar
poder português, passou a inuências. Isso foi mais
ser uma metrópole forte no Rio de Janeiro,
internacional. Isso cou Salvador e Recife, mas as
ainda mais evidente capitanias mais afastadas
quando o imperador D. também foram afetadas.
João VI, como parte do Goiás recebia, ainda
acordo que possibilitou sua que indireta e
fuga de Napoleão, abriu modestamente, os reexos
os portos às “nações desses fenômenos.
amigas”. Funcionários do Império
Naquele início do século faziam a rota entre o
19, a Inglaterra, em guerra interior e o litoral. Isso foi
com a França, aproveitou- possível com o surgimento
se da medida para de núcleos urbanos. O
O Arraial de ampliar seu predomínio Arraial de Sant'Anna,
comercial. O Rio de fundado pelo segundo
Sant'Anna,
Janeiro tornou-se um dos Anhanguera em 1722,
fundado pelo portos mais movimentados transformou-se em Vila
segundo do mundo e toda sorte de Boa, nossa atual Cidade
Anhanguera produtos alimentícios, de Goiás. No século 18, o
em 1722, antes luxos inalcançáveis, lugar conheceu o auge
começaram a chegar às da febre do ouro, que
transformou-se
mesas dos mais abastados. brotava em aluvião na
em Vila Boa, Isso aconteceu com bacia do Rio Vermelho, e
nossa atual especiarias mais nobres da também seu declínio. Esse
Cidade de cozinha lusitana, anal, período foi suciente para
Goiás. No tratava-se de abastecer a o estabelecimento de um
Corte. Os nobres aparato administrativo,
século 18, o
importavam azeitonas, que copiava as modas da
lugar conheceu azeites, queijos, embutidos capital do Império.
o auge da febre e maior quantidade de Goiás e o antigo Arraial
do ouro, que farinha de trigo. E também de Meia Ponte, atual
brotava em um produto bem inglês: a Pirenópolis, eram os pontos
batata. onde as novidades
aluvião na
Essas deliciosas gastronômicas
bacia do Rio novidades começaram a penetravam em território
Vermelho, e ser apreciadas, em goiano. A mesma lógica
também seu primeiro lugar, pelos de exclusividade de certos
declínio. poucos que podiam arcar ingredientes para
com seus preços. Mas determinada casta
quem preparava os pratos abastada e da
e experimentava com as criatividade no preparo
receitas que incluíam tais das receitas com esses
produtos? Geralmente produtos por parte dos
cabia aos escravos lidar serviçais – por aqui, negros,
com esses alimentos, indígenas e mestiços – se
inserindo toques africanos repetiu em Goiás. Isso
nesse processo. E a levou a verdadeiras
gastronomia brasileira criações. A carne passou a
dava um novo salto, ser misturada a outros
cando mais complexa sabores. A massa feita
mas mantendo a com farinha de trigo
27
substituiu, em algumas subalternidade de Goiás à
receitas típicas, a de Capitana de São Paulo
mandioca e de milho. moldaram parte de nossos
As massas, aliás, gostos culinários.
sofreram uma revolução Uma outra mudança,
após esse período. Os esta já ocorrida no século
quitutes, doces, bolos e 20, marca novo momento
pães caram mais de transformação de
delicados, trocando os nossa gastronomia.
preparos rústicos por Quando a Cidade de
métodos culinários de Goiás deixou de ser a
maior sosticação. Ainda capital goiana e Goiânia
que muitos ingredientes surgiu, nos anos 1930,
nativos permanecessem, nossa forma de comer
eles foram paulatinamente também integrou a onda
remodelados. Outra mudancista. Pesquisadoras
mudança expressiva é que do curso de Nutrição da
Goiás, após algumas Universidade Federal de
décadas de colonização, Goiás, Christiane Ayumi
já contava com rebanhos Kuwae, Estelamaris Tronco
Essa mistura, bovinos. Além de carne Monego e Joana
mais fresca, esses animais Aparecida Fernandes
óbvio que
forneciam leite, dedicaram-se a entender
existe. Mas ela fundamental na esse fenômeno, mostrando
é reicada por preparação do pão e do que a construção da nova
biscoito de queijo, de sede do poder estadual
uma ideologia
bolos e sobremesas, como interferiu na maneira como
que prega a canjicas e arroz-doce. muita gente se alimenta.
democracia Em artigo cientíco, as
pesquisadoras situam
racial. Nesse
caso, como
Viradas Goiânia, uma cidade com
mais interlocuções para
pensar os outros de mesa fora do Estado, em um
E quem disse que a processo de
europeus e suas política não interfere na modernização da
inuências? E a gastronomia? Em Goiás, gastronomia, que é
globalização? essa relação é direta. A mundial. Falta de tempo
vinda dos bandeirantes para as refeições, acesso
para esta região é a livre a informações
primeira prova disso. culinárias, chegada de
Estimular a vinda desses pessoas de todas as partes
homens rústicos – alguns à do mundo trazendo suas
beira da indigência – para receitas nativas são alguns
cá servia ao objetivo de dos fatores considerados.
ocupar o máximo de Elas destacam um estudo
território da poderosa que mostra que entre os
colônia e retirar dela a alimentos mais consumidos
maior quantidade possível em Goiânia no nal do
de recursos naturais. A século 20 estavam pão
vinda de funcionários de francês, macarrão e óleo
Portugal e Rio de Janeiro de soja, além do fubá de
para a administração da milho, da carne bovina e
província e a de aves e do feijão.
28
Professora de inuências? E a
Antropologia da globalização?”, pergunta.
Universidade Federal de O pesquisador Carlos
Goiás, Janice Colaço Roberto Brandão, em
lembra que quando se estudo que se tornou
fala de inuências clássico chamado Plantar,
alimentares, é preciso Colher, Comer, investiga
haver uma essas mudanças de
contextualização hábitos alimentares em
cuidadosa. “Uma comida Goiás a partir de uma
doméstica ou cotidiana é comunidade na cidade
muito presente, mas de Mossâmedes nos anos
convive com uma imensa 1980. Nessa região, não
variedade de sabores que, muito longe de onde os
além da própria indústria, primeiros bandeirantes se
é acessível no comer fora estabeleceram por aqui,
de casa”, assinala. “Essa as transformações passam
mistura, óbvio que existe. pela diminuição da coleta
Mas ela é reicada por de frutos (caju, pequi,
uma ideologia que prega mangaba) e pela
a democracia racial. introdução de lavouras
Nesse caso, como pensar que diminuíram a área do
os outros europeus e suas Cerrado. Há também a
entrada de produtos
industrializados e outros
alimentos, como a batata
inglesa.
Política e economia
têm, assim, interferência
importante nos hábitos
alimentares. No decorrer
das décadas, novas
situações migratórias e de
ocupação repercutiram
na gastronomia do
Estado. A Estrada de Ferro
Goyaz, que ingressou no
Estado em 1912, trouxe
várias culturas, como a
árabe, a italiana, a
japonesa, e contribuições
a nosso cardápio. A
construção de Brasília,
entre 1956 e 1960, fez com
que mais nordestinos
viessem para Goiás, nos
dando outros paladares. A
expansão do
agronegócio propiciou a
vinda de levas de
gaúchos. E cá estamos
apreciando um bom
churrasco.
29
A difícil missão de mapear
o sabor de Goiás
É possível fazer um
mapa gastronômico
de Goiás? Essa é uma
missão complicada,
ainda que haja
pratos que são mais
associados a
determinadas cidades
ou regiões. Boa parte
de nossa culinária,
porém, é
democraticamente
espalhada por todo
o Estado. Veja a seguir
alguns pratos típicos
e onde eles costumam com que a carne seca ou
Matula charque seja popular no
ser mais apreciados. Alto Paraíso Nordeste goiano, mas não
Este é um prato antigo, só lá. Se a inuência
que antes era sinônimo das nordestina conta muito no
marmitas e refeições que apreço a essa carne
os viajantes de grandes salgada e preparada para
distâncias levavam na viagens, os mineiros e
jornada. Pode ser feita paulistas, na longa história
com carne de boi, porco de contatos com o
ou frango e geralmente território goiano, também
leva algum tipo de farinha, não a dispensavam. Hoje
de mandioca ou milho. em dia, a carne seca é
Com o tempo, foi usada no preparo de
passando por adaptações. pratos como o delicioso
Antes era alimento dos escondidinho.
colonizadores, depois dos
tropeiros e boiadeiros. A Empadão
região de Alto Paraíso e da Pirenópolis
Chapada dos Veadeiros
tem uma matula famosa. Verdadeira instituição
da culinária goiana, o
empadão, com tudo o
Carne seca que se tem direito em seu
Posse e Nordeste goiano recheio cremoso e
A maior proximidade da calórico, é disputado.
fronteira com a Bahia faz Várias cidades históricas

30
conhecida como Chica
Doida. Ela foi criada
depois que a cozinheira,
fazendo pamonha com o
marido, percebeu que a
palha havia acabado.
Decidiram, então, assar a
massa de milho.
Acrescentaram manteiga,
queijo, guariroba,
requeijão, cebola, alho,
linguiça caipira, mais milho
e pimenta. Nascia mais um
prato tipicamente goiano.
garantem fazer o melhor
do Estado, mas a fama
maior é o de Pirenópolis. Galinhada
Na cidade, a Rua Direita é
uma espécie de alameda e arroz com
do empadão. “Coloca
frango desado, batata,
pequi Estado todo
linguiça, queijo, azeitonas, Essas duas receitas
guariroba e um miolo de estão disseminadas em
pão no fundo para não todo o Estado. Em ambas,
vazar”, ensina a cozinheira o arroz está presente, mas
Cleide dos Santos, que há em nenhuma ele é o
15 anos prepara protagonista. Na
empadões em Pirenópolis. galinhada, ele funciona
Uma verdadeira refeição. como uma espécie de
suporte para a carne da
Chica Doida ave e todos os seus muitos
Quirinópolis acompanhamentos
possíveis, que incluem
Foi em uma fazenda em verduras e legumes. Já no
Quirinópolis que dona arroz com pequi, a fruta
Petronilha Oliveira, há do Cerrado monopoliza o
quase 60 anos, criou uma sabor e a cor do prato. Em
receita que cou ambos, o hábito de
promover misturas da
gastronomia goiana ca
evidente.

Pamonha e
cural Goiânia
Clássicos de nossa
mesa, a pamonha e o
cural – geralmente feitos
no mesmo mutirão – são
preparados e comidos em
todo o Estado. Goiânia,
porém, é notória por

31
Doces
Cidade de Goiás
Pastelinho de Goiás,
alfenim, doce de
cajuzinho, de laranja da
terra, de mamão, de
banana, go em calda e
cristalizado, doce de limão
com leite, arroz-doce, A
variedade é grande e na
Cidade de Goiás eles
parecem ser ainda mais
saborosos. A tradição
familiar ensina geração
após geração os
moradores da antiga
capital a elaborar receitas
que até vão passando por
abrigar dezenas de certas adaptações, mas
pamonharias, que deram que mantêm um gosto
outro status a tais alimentos insuperável.
feitos com milho. Casas
que ajudaram a sosticar
receitas, incluindo
Peixes
Aruanã e Vale
ingredientes mais exóticos.
do Araguaia
Assim, a pamonha doce e
Os rios goianos,
de sal tiveram que dividir
sobretudo os mais
seu reinado com a
importantes, como o
pamonha à moda, com
Araguaia, sempre deram
queijo, linguiça e pimenta.
aos habitantes da região
uma grande variedade de
pescados. Piraíba, jaú,
pirarara, dourado, pintado,
todos esses peixes, maiores
ou menores, são muito
apreciados pelo paladar
goiano e nas receitas mais
tradicionais, aquelas
preparadas ainda nas
margens dos rios, é muito
comum enrolarem os
animais sgados em folhas
de bananeiras. Já na
cidade, alguns modos de
fazer o peixe diferiram.
Uma das receitas mais
conhecidas é o peixe na
telha, criada pelo
folclorista Bariani Ortencio,
em que o pescado é
levado ao forno sobre uma
telha de barro.
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Produção digital
Arenusa Goulart
Aline Marques
Edição multiplataforma
Silvana Bittencourt
Fabrício Cardoso
Michel Victor
Frank Martins
Rodrigo Alves
Capa
Ramon Madeira
Kleverton Carvalho
Edição de arte
André Rodrigues
Edição de imagens
Weimer Carvalho
Reportagem
Rogério Borges
Fotografias
Diomício Gomes
Weimer Carvalho
Projeto gráfico digital
Ramon Madeira
Marco Aurélio Soares
Audiovisual
Ana Helena
Rubens Renato Júnior
Diomício Gomes
Tratamento de imagens
Deivison Moura
Front-end
Bruno Kratka
Euler Lobo
Jordão Barros
Ra ael Oliveira
Design e Ilustração
Marco Aurélio Soares
Ramon Madeira
Projeto de e-book
Lúcio Rodrigues da Silveira

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