Você está na página 1de 10

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .

º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

(In)Sucessos da Escola Normal da Corte:


Dos relatos oficiais às crônicas estudantis (1880-1881)
Sonia de Castro Lopes
sm.lopes@globo.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, Brasil

Resumo:
Este artigo1 procura recuperar a história do primeiro núcleo escolarizado para formar
professores na cidade do Rio de Janeiro: a Escola Normal da Corte (1880-1889). Busca-se
aqui focalizar o momento da criação e o início das atividades dessa escola (1880-1881) por
meio das notícias veiculadas no jornal estudantil Pharol. Por entender que a maioria das
pesquisas sobre essa temática tem concentrado suas análises prioritariamente sobre os re-
gistros oficiais, este trabalho propõe deslocar o foco de análise para o pólo receptor dessas
iniciativas, procurando entender de que forma as estratégias de ação do poder instituído
eram apropriadas por seus destinatários — os alunos normalistas. Inferiu-se, pelo cruza-
mento das fontes que houve resistência dos estudantes à cultura escolar que se impunha
como estratégia do Estado para promover a instrução do povo e superar a situação de
atraso do país.

Palavras-chave:
Profissão docente, Formação de professores, Escola Normal da Corte, Jornal Pharol.

Lopes, Sonia de Castro (2010). (In) Sucessos da Escola Normal da Corte: Dos relatos oficiais às crô-
nicas estudantis (1880-1881). Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 75-84.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

75
O processo de modernização que caracterizou o vem despertando o interesse de pesquisadores que
Brasil no último quartel do século XIX demandou se dedicam a investigar instituições de ensino des-
esforços no sentido de se construir uma nação civi- tinadas à formação docente. Entretanto, na maior
lizada, condição que só seria alcançada se houvesse parte dos trabalhos sobre a história do magistério
um investimento prioritário na instrução do povo. carioca, este primeiro modelo escolarizado é quase
Na ânsia de perseguir a passos largos a concretiza- sempre retratado em linhas gerais, servindo de pre-
ção desse ideal, adquire centralidade a preocupação âmbulo a análises sobre períodos mais prestigiados,
com a formação do magistério. É nesse contexto que especialmente quando se dá a transformação da Es-
se verifica a emergência de uma instituição destinada cola Normal em Instituto de Educação, sob a ação
à formação de professores para atuar nas escolas pri- dos educadores ligados ao movimento da Educação
márias da cidade do Rio de Janeiro: a Escola Normal Nova (Accácio, 1993; Castro, 1986).
da Corte, solenemente inaugurada em abril de 1880. De outro lado, as recentes pesquisas que se de-
Por entender que o aspecto formativo é parte bruçam sobre a Escola Normal da Corte (Mancini,
integrante da temática profissão docente, adota-se 2005; Uekane, 2004) têm concentrado suas análises,
como um dos pressupostos teóricos a matriz in- prioritariamente, sobre os registros oficiais: decre-
terpretativa construída por António Nóvoa (1987), tos, regulamentos, relatórios e programas de ensino.
para quem a demanda social por educação acaba Minha proposta, nos limites deste artigo, será
impondo, no século XIX, um modelo escolarizado focalizar o momento inicial das atividades desta
para essa formação. Para este autor, o processo de escola, demarcado cronologicamente pelo biênio
profissionalização do magistério envolve o domínio 1880-1881, na tentativa de discutir uma questão já
de um corpo de saberes adquirido através de uma for- levantada em trabalhos anteriores (Lopes, 2008;
mação específica, especializada e longa que deve ser Lopes & Martínez, 2007). Por que uma escola re-
oferecida no interior de um quadro acadêmico e ins- conhecidamente necessária, propagada de forma re-
titucionalizado. As escolas normais transformam-se corrente nos discursos parlamentares e que acabou
em espaços de produção e reprodução de saberes e por se estabelecer tardiamente na capital do país,
de sistemas de normas próprias à profissão docen- apresentou resultados iniciais tão desanimadores?
te e acabarão por favorecer o desenvolvimento do Se levarmos em conta o impacto causado por sua
campo profissional do magistério, que será cada vez inauguração, que atraiu quase trezentos candidatos
mais controlado por parte do Estado, impulsiona- à matrícula questiona-se por que tão poucos alunos
dor da obra civilizadora. prestaram exames e prosseguiram seus estudos com
Por muito tempo secundarizada pela produção o intento de concluir o curso. Ao examinar a relação
acadêmica, a história do ensino normal no Brasil de alunos aprovados até o ano letivo 1883, em pelo

76 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
menos três matérias da primeira série, constam os capazes de explicar as escolhas realizadas no inte-
nomes de apenas 43 estudantes, dos quais 42 eram rior do campo de possibilidades de uma determina-
moças e um único rapaz2. da configuração social.
Para alcançar o objetivo proposto, optei por tra- Nesse sentido, tomamos por objeto de análise
balhar com duas espécies de fontes: a primeira, de a produção discursiva de um professor, legitima-
caráter oficial, refere-se ao “relatório dos sucessos mente autorizado pela Congregação da Escola, bem
notáveis da Escola Normal no ano de 1880” do pro- como de um aluno que transita por esse espaço ins-
fessor Carlos Pimenta de Laet, encarregado desta titucional e cujas normas critica através de um jornal
tarefa pela Congregação da Escola Normal. Num onde desenvolve suas práticas, tece suas relações e
segundo momento, tento deslocar o foco de análise faz circular informações às quais confere sentido e
para o pólo receptor da iniciativa, procurando en- lógica particulares.
tender de que forma as estratégias de ação do poder O exame deste documento permitiu levantar
instituído eram apropriadas (Chartier, 1990) por questões relevantes que dizem respeito à profissão
seus destinatários — os alunos normalistas. docente no final do século XIX. Uma delas refere-
Nesse sentido, foram selecionados alguns núme- -se ao processo de feminização do magistério, já
ros do jornal Pharol publicado por alunos da Escola em franca ascensão; outra se relaciona ao impacto
Normal. Por meio desse impresso, o redator Militi- provocado pela implantação de um modelo esco-
no Pinto tece comentários e registra, quase sempre larizado que busca suplantar a forma usual de re-
com críticas ácidas, suas impressões sobre a insti- crutamento de docentes para a rede escolar pública.
tuição. Evidentemente, a representação estudantil A emergência e valorização das escolas normais nes-
acerca da escola contrastava com o tom otimista te momento têm como características marcantes o
dos relatórios oficiais encaminhados ao Ministro enriquecimento de seu currículo, especialmente no
dos Negócios do Império, nos quais se procurava que se refere ao incremento de disciplinas científi-
destacar os “sucessos” da Escola Normal, ainda que cas, além de uma prática mais sistemática e exigente
reconhecessem as dificuldades iniciais do empreen- em relação às formas de avaliação. Em função dessa
dimento. O cruzamento destas fontes permitiu in- realidade, repleta de prescrições emanadas do poder
ferir que houve resistência dos estudantes à cultura legalmente instituído, os estudantes se posicionam,
escolar (Julià, 2001) que se impunha como estraté- construindo um contradiscurso que se materializa
gia do Estado para promover a instrução do povo e por meio de crônicas publicadas no Pharol.
superar a situação de atraso do país.
As referências teóricas do presente estudo incor-
poram as categorias de estratégia e tática, segundo DOS RELATOS OFICIAIS
visão de Michel de Certeau (1994). Em seu entender,
a estratégia seria o resultado das relações de forças É oportuno observar que a consulta às fontes ofi-
que se estruturam a partir do momento em que um ciais, especialmente os relatórios produzidos por
indivíduo ou grupo detém o poder e passa a ocu- autoridades escolares, nem sempre foram suficien-
par um espaço próprio. Já a tática configura a ação tes para responder às questões colocadas. Após exa-
de quem não pode contar com esse espaço próprio, minar a legislação e boa parte das obras consagradas
mas se insinua através das brechas, “jogando com sobre o assunto, selecionei o relatório do professor
os acontecimentos para transformá-los em situações Carlos de Laet, que narra os “sucessos notáveis” da
de oportunidade” (De Certeau, 1994, pp. 46-47). Escola Normal em seu primeiro ano de funciona-
A perspectiva da micro-análise proposta por Ja- mento (1880-1881)3.
cques Revel (1998) também nos ajuda a compreen- Neste documento destaca-se a preocupação do
der a complexidade e as contradições da realidade autor com o fato de até aquela data não haver na
social examinada, pela tentativa de perceber o com- capital do país uma escola na qual “fossem conve-
portamento dos indivíduos nas relações com seus nientemente doutrinados (…) os professores pri-
semelhantes, as experiências vividas e as práticas mários”, responsáveis pelas bases sólidas nas quais
culturais por eles desenvolvidas como situações deveria “firmar-se a instrucção popular” (p.  1).

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 77
Acima de tudo, defendia a responsabilidade do go- iniciais, Laet aponta para a necessidade de mudan-
verno em formar bons professores como a única solu- ças no currículo, como por exemplo, o encurtamen-
ção para elevar o nível da instrução primária no país. to do curso de seis para quatro séries, a supressão de
Em razão da demanda reprimida por uma escola algumas disciplinas e a transformação de outras em
desta natureza na capital, houve enorme afluência matérias facultativas, bem como um maior destaque
de candidatos ao curso. Inscreveram-se 282 candi- para aquelas de teor científico8. Segundo o parecer,
datos para o ano letivo de 1880, dos quais 105 ra-
pazes e 177 moças. Destes, cerca de 200 obtiveram um curso por demais longo, pouco a pouco despo-
dispensa das provas de admissão; alguns por já ocu- voará a Escola, à medida que se for patenteando a
parem cargos de professores adjuntos nas escolas desigualdade entre os sacrifícios para a obtenção
primárias da cidade, outros por exibirem atestados do diploma e as vantagens, tão poucas e minguadas
que comprovavam a escolaridade mínima exigida4. (…) de uma profissão tão modesta e mal remunerada
De acordo com o relator, os exames foram bran- como é entre nós o magistério primário (p. 9).
dos e a escola acabou sendo franqueada a todos com
o objetivo de “apanhar as inteligências menos cul- Para se ter uma ideia do mau resultado das pro-
tivadas” (p. 4). Assim, matricularam-se 281 alunos5 vas, dos 25 alunos inscritos para o exame de por-
nas matérias da primeira série e devido à grande de- tuguês, apenas três tiveram êxito e dos 19 inscritos
manda foi impossível reuni-los nas salas que o Ex- em aritmética, somente cinco lograram aprovação.
ternato Pedro II cedera à Escola Normal. Em pouco Contudo, na visão oficial “professores e mestres
menos de um mês a nova instituição foi transferida desempenharam suas funções com o máximo de
para o edifício da Escola Politécnica, no Largo de dedicação e assiduidade” (p. 11) sugerindo que a
São Francisco6. falta de compromisso dos estudantes e a fragilidade
Na opinião do professor Laet diversas razões do sistema de instrução pública da capital foram as
justificariam tamanha procura. Em primeiro lugar, principais razões do insucesso.
o “louvável desejo de aprender” por parte dos as- A Escola Normal, como outros estabelecimentos
pirantes ao magistério, além da adequação do ho- de instrução secundária, eram regidos pelos estatu-
rário noturno que facilitaria o estudo aos alunos tos da reforma Leôncio de Carvalho (1879), que de-
trabalhadores. De outra parte, o renomado profes- fendia a livre frequência às aulas. Para o relator, essa
sor atribuía o grande movimento à novidade que tal seria uma das prováveis causas do insucesso de seus
empreitada despertava entre os jovens por ser esta a alunos. Acrescentava a esse fato o mau preparo inte-
primeira escola mista da capital, além da curiosida- lectual destes, viciados em decorar as lições, hábito
de do público para “ver como se desempenhariam inculcado desde cedo pelas escolas primárias que
do seu encargo os professores interinos, recém no- frequentaram. Assim, em nome da Congregação da
meados pelo governo”7. Na opinião do autor: Escola, por quem fora incumbido de relatar os “su-
cessos notáveis do ano de 1880”, o professor Laet
(…) a Escola Normal saiu-se bem desta prova, pois eximia a instituição de qualquer responsabilidade
a quase totalidade dos alunos e assistentes demons- e reafirmava o profissionalismo do corpo docente,
trou educação esmerada; manteve-se o professorado verdadeiros “operários” que haviam colaborado
na altura de sua missão e mui sensatamente se houve para “elevar, formando bons professores, o nível da
o Sr. Diretor, sabendo aliar, em certas emergências, instrução primária no município da Corte, e talvez,
a maior prudência e energia (…) Firmou-se então a em todo o Império” (p. 13).
mais severa disciplina e a experiência demonstra a Percebe-se neste discurso a retórica dos discur-
possibilidade de uma escola normal mista, noturna e sos institucionais, ou seja, a fala autorizada que se
tão concorrida (p. 6). exprime em situação solene e que dispõe da legiti-
midade que lhe foi conferida pela própria institui-
Mas diante do pífio resultado apresentado pelos ção. De acordo com Bourdieu (1996), o porta-voz
alunos nos exames de final de ano e do esvaziamento assume relevância em relação a outros agentes e age
que já se fazia sentir após cessarem as “novidades” com palavras “na medida em que sua fala concentra

78 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe família. Nesse sentido, o ideário positivista defendia
conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o ensino das moças para que estas incorporassem as
o procurador” (p. 89). O discurso da autoridade não contribuições da ciência às funções de mãe, esposa e
precisa ser claro e compreensível, bastando o reco- dona de casa (Louro, 1997).
nhecimento de seus receptores para que se torne le- O debate em torno da questão não passaria des-
gítimo. Em contrapartida, qualquer outro discurso percebido aos estudantes. A edição de setembro
estará condenado ao fracasso se pronunciado por al- (1880) reproduz declaração feita pelo ministro do
guém que não disponha de poder para pronunciá-lo. Império, Barão Homem de Mello, de que a Escola
Normal estaria prestando “bons serviços a muitas
moças” (Pharol, nº 7, p. 2). Ao comentar a baixa fre-
A LÓGICA ESTUDANTIL quência dos alunos às lições, devido ao escasso nú-
mero de aulas semanais ou mesmo pelo expressivo
Na contramão desse discurso há outro, de nature- número de estudantes que desistiam da empreitada,
za diversa, produzido pelos alunos9. Trata-se do a pena ferina do editor atinge mais uma vez as cole-
jornal estudantil Pharol, um pequeno tablóide de gas: “a aula de maior frequência é a da 1ª turma, por-
quatro páginas, cuja redação cabia ao jovem nor- que é somente do sexo feminino”. Mais adiante, ao
malista Militino Pinto, com a colaboração de outros comentar o grande número de inscrições femininas
dois colegas10. Em meio a uma produção literária para os primeiros exames, volta à carga: “vê-se que
de qualidade duvidosa, destaca-se uma coluna fixa, as nossas colegas querem ter o gosto da maioria en-
cujo objetivo era registrar notícias da recém-criada tre os alunos (…) elas que se emendem e não sirvam
Escola Normal (Pharol, nº 1, p. 4). de pretexto a que os professores digam das suas,
Os comentários sobre a instituição despertariam ofendendo a uns e a outros” (Pharol, nº 9, p. 2).
preocupações na Congregação da Escola. Em ofício A revolta crescia e os rapazes, visivelmente deslo-
ao Ministro e Secretário de Estado, o diretor Ben- cados no espaço escolar, passaram a queixar-se que
jamin Constant reconhece o mau procedimento do os professores “lhes davam as costas”. Levando-se
aluno ao fazer circular o jornal dentro da escola e em conta o contexto e a época dos fatos acima men-
indaga sobre a possibilidade de aplicar-lhe a respec- cionados, que outras vozes, além das masculinas,
tiva pena disciplinar11. teriam condições de se erguer para criticar a ordem
As crônicas irreverentes de Militino eram espe- instituída? Em tempos de maior controle do Esta-
cialmente dirigidas às colegas que, apesar de mais do sobre a atividade docente, fato que por si só já
assíduas às aulas, entretinham-se em conversas “ab- justificaria a resistência dos alunos em relação às in-
solutamente fúteis”, ao contrário dos rapazes que tervenções do novo modelo formativo, arriscamos a
circulavam em grupos, dedicando-se a debater as- hipótese de que dificilmente as vozes femininas se
suntos “reconhecidamente úteis” (Pharol, nº 2, p. 1). fariam ouvir, porque mesmo majoritárias, respeita-
Vale observar que o momento de criação da Esco- vam os limites que lhes eram impostos. Talvez por
la Normal coincidiu com a deflagração do processo isso, as jovens, apesar de “fúteis e faladeiras”, ame-
de feminização do magistério, fenômeno atribuído ao açassem os rapazes, por se mostrarem predispostas
alargamento do setor industrial e à conseqüente urba- a acatar as normas escolares, correspondendo as-
nização que, por ampliar a oportunidade de trabalho sim ao investimento nelas depositado pelo Estado.
para os homens, deixaria às mulheres os ofícios menos Dessa forma, pode-se entender o apelo à educação
rentáveis. Erguiam-se também muitas vozes a promo- feminina e os “bons serviços” prestados às moças
ver a identificação da mulher com a atividade docen- naquele estabelecimento, enquanto os rapazes, por
te, defendendo a ideia de que elas possuíam “por sua maior capacidade de mobilização, não passa-
natureza” uma inclinação para o ofício, pela maior vam de “perturbadores da ordem”.
delicadeza no trato com crianças e por entenderem Em maio de 1880 foram publicadas as Instru-
o magistério como “extensão da maternidade”. Além ções que regulamentavam a realização dos exames.
disso, a necessidade da educação feminina vinculava- O documento dispunha sobre a organização das
-se à modernização da sociedade e higienização da bancas examinadoras, horários, modalidade das

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 79
provas (escritas, orais e práticas), bem como as pelos livros de sua autoria, indicando, inclusive, a
providências a serem tomadas para a inscrição e loja onde estariam à venda (Pharol, nº 14, p. 2).
para o caso de faltas justificadas. Além disso, de- As irregularidades apontadas, naturalmente, não
terminava os critérios de avaliação das provas, que eram confirmadas pelos dados oficiais encontrados
seriam expressos pelos conceitos “ótima, boa, so- no relatório já examinado. O cotejo entre os dois
frível ou má”12. documentos pode sugerir que a estratégia traçada
Após a correção dos trabalhos, os três membros pelo governo para impor um modelo escolarizado
da banca pronunciavam o resultado final, conside- de formação aos futuros docentes provocava uma
rando aprovado simplesmente o aluno que obtivesse resistência entre os estudantes, captada pelos críti-
pelo menos a aprovação de dois examinadores e re- cos do Pharol. Se levarmos em conta as reprovações
provado em caso contrário. Quando a aprovação era que, inclusive, excediam as aprovações, somos leva-
unânime e o candidato tivesse obtido maior núme- dos a supor que os métodos de ensino e as formas
ro de notas boas, o aluno era considerado aprova- de avaliação tenham, de fato, deixado a desejar, o
do plenamente. Finalmente, seriam aprovados com que justificaria outra observação que não escapou
distinção os que além da unanimidade recebessem ao perspicaz cronista:
notas máximas de todos os examinadores.
Na verdade, todo esse rigor parece justificar-se Não compreendemos a atitude tomada pelos pro-
pelas prerrogativas que os estudos na Escola Nor- fessores em formular programas d’esta natureza,
mal conferiam aos futuros professores, muitos dos quando exigem somente, para matrícula na 1ª serie
quais já eram, na realidade, adjuntos das escolas as quatro operações praticas de aritmética, ler e
primárias da Corte, pois desde a Reforma Couto escrever, atestado de moralidade (coitado do vi-
Ferraz (17/2/1854) os professores adjuntos efetivos gário!), para depois querer, no fim do ano, que o
tinham garantida a sua nomeação sem concurso13. aluno responda em que lugar foi que Judas perdeu
Entretanto, corria o mês de agosto e muitas ques- as botas! (Pharol, nº 14, p. 3).
tões relacionadas aos exames ainda não tinham sido
decididas como, por exemplo, os pontos do progra- Ainda que rotulados de vadios por alguns pro-
ma ou a bibliografia a ser consultada. Este fato ense- fessores, os responsáveis pelo Pharol insistiam nas
jou uma série de críticas estampadas no Pharol, das denúncias sobre “a instituição que teve um resulta-
quais retiro alguns trechos: do infeliz e contrario ás aspirações do governo, tan-
to que já precisou de reforma”. Numa das últimas
Os livros não são pela maior parte a contento do edições, Militino Pinto deseja “pêsames ao profes-
programa de ensino, os próprios professores decla- sorado da escola a ao governo na pessoa do Sr. Mi-
ram. Porém, não se apresenta uma medida que mais nistro do Império” e encerra a questão utilizando-se
garantia ofereça senão aquela restrita obrigação de o do célebre provérbio: “quem semeia ventos, colhe
aluno tomar nota de tudo quanto o professor disser a tempestades” (Pharol, nº 14, p.1).
fim de seguir o seu intento. O aluno tem que se apre-
sentar por esta forma pronto a ser examinado no que
o professor souber e quiser perguntar (…) É assim CONSIDERAÇÕES FINAIS
que há liberdade de ensino? (Pharol, nº 5, p. 1).
Sem desconsiderar a contribuição da Escola Nor-
À medida que o tempo passava, o editor tornava- mal em sua missão de transmitir conhecimentos e
-se mais ousado, denunciando a desorganização da prescrever um repertório de normas que constitui-
escola e a falta de concursos para preencher as vagas riam o saber-fazer distintivo da categoria, este tra-
para docentes. Ainda em relação aos professores, as balho buscou ultrapassar essa perspectiva, ao tentar
acusações se dirigiam tanto aos que “davam poucas demonstrar o jogo de forças presente nos embates
aulas e faltam outras tantas”, deixando os alunos travados entre as ações desempenhadas pelo poder
em completo abandono, quanto aos que obrigavam instituído e as formas de resistência esboçadas por
seus alunos a acompanhar as aulas exclusivamente nossos protagonistas.

80 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
Sabe-se que a Escola Normal recém-criada ain- os alunos. O que aconteceu pode-se imaginar, mas
da teria muitos desafios a enfrentar. Basta examinar ouçamos a voz do cronista:
o relatório oficial sobre o ano letivo de 1880, no
qual o redator, apesar de reconhecer que não havia Repelidos pelos vigilantes da escola, (…) resultou
motivos para “sedutoras esperanças”, tampouco que um dos alunos fosse chamado à secretaria, e re-
via motivos para “tristonhos desalentos” e atribuía ceando os seus colegas que as autoridades o quises-
o desempenho sofrível dos estudantes à crise pela sem responsabilizar isoladamente pelo delito em que
qual a escola passava, justificando ser aquele um di- incorreram, (…) dirigiram-se á secretaria para darem
fícil “momento de transição”. as explicações necessárias. Os alunos, porém, foram
Ao confrontar os dados desse primeiro relatório mal recebidos pelo Sr. Secretário da escola, que lhes
com documentos relativos ao período de 1882-83, dirigiu palavras severas. Ao ilustrado e prudente di-
conclui-se que muitas dificuldades iniciais perma- retor da Escola Normal e ao Governo Imperial pedi-
neciam sem solução e que a escola apresentava, mos as providencias que os fatos reclamam (O Paiz,
desde sua origem, problemas estruturais, como por 22/05/1886, p. 1).
exemplo, a falta de concurso para docentes e a ma-
nutenção do horário noturno que prejudicava as au- Ao que parece, as marolas provocadas pelo reda-
las práticas14. A evidência que mais se destaca diz tor do Pharol transformaram-se em ondas de maior
respeito ao rendimento dos alunos, ainda que pese a impacto. Nada se conseguiu apurar sobre a trajetó-
inadequação dos critérios de avaliação ou a exagera- ria de Militino Pinto, seja como professor ou jor-
da quantidade de pontos a serem estudados. nalista. De concreto, só confirmamos seu nome no
Alguns anos depois, o jornal de maior circula- registro de matrículas da Escola Normal em 1880,
ção na Corte — O Paiz — trazia na primeira página 1881 e 1882, sempre na primeira série15. Entretanto,
uma crítica à Escola Normal. Em meio às denúncias, os vestígios dessa experiência, recuperados por in-
uma, em especial, chama a atenção: devido às fre- termédio dessa “poeira de acontecimentos” (Revel,
quentes faltas de um determinado professor — que, 1998, p. 31), permanecem como indícios da resistên-
na verdade, já era substituto — um grupo de rapazes cia dos normalistas no embate travado com o Esta-
tentou assistir aula na turma feminina, esta sim re- do para que se cumprissem as normas destinadas
gida por professores efetivos, segundo informaram a instruir e civilizar o povo da capital do Império.

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 81
Notas foi localizado na seção de Periódicos Raros da Biblio-
teca Nacional.
1. Este artigo resulta de uma pesquisa sobre a 10. Pharol, ano I, n. 1, p.2. O jornal era publicado
história da profissão docente na cidade do Rio de quinzenalmente e as assinaturas custavam 500 réis
Janeiro (1880-1920) que realizo junto ao Programa por mês ou 1$000 (um conto de réis) por trimestre.
de Estudos e Documentação Educação e Sociedade A redação ficava na Rua General Camara, nº 361 e os
(PROEDES/ UFRJ). O referido estudo integra o serviços de impressão eram realizados na Typogra-
projeto História da Profissão Docente em Portugal e phia do Brazil Catholico, à rua Sete de Setembro, 65.
no Brasil: aproximações e distanciamentos. 11. Pelo disposto no artigo 34 do Regulamento
2. Relatório de José M. Garcia ao Ministro dos anexo ao decreto n. 7.684, o aluno que procedesse mal
Negócios do Império, Conselheiro Pedro Leão Velloso, nas aulas ou no recinto do estabelecimento seria adver-
em 17/03/1883 (Arquivo Nacional, Pasta IE5 30). tido pelo respectivo professor ou pelo diretor, e, em
3. Documento redigido pelo professor Carlos de caso de reincidência, ficaria sujeito a ser por este repre-
Laet ao Ministro dos Negócios do Império, Barão endido publicamente (Arquivo Nacional, pasta IE5 28).
Homem de Mello (Arquivo Nacional, Pasta IE5 29). 12. Artigo 17 das Instruções para a Escola Normal de
4. Conforme artigo 6º do Decreto nº. 7.684 de 12 de maio de 1880 (Arquivo Nacional, pasta IE5 28).
6/3/1880 que cria a Escola Normal da Corte. Coleção 13. Em termos de acesso à carreira, o artigo 86
de Leis do Império Brasileiro. Rio de Janeiro: Typo- do decreto de criação da Escola Normal assegurava
graphia Nacional, 1874. que, aos indivíduos aprovados em todas as matérias
5. Além dos alunos regularmente matriculados do curso, seriam conferidos diplomas de habilitação
frequentavam a Escola cerca de 700 ouvintes e 150 que lhes dariam preferência para ocupar os lugares
pessoas a quem se concedia entrada franca (respon- do magistério primário. Já os que, havendo obtido
sáveis pelas alunas). Relatório dos sucessos mais notá- aprovações plenas em todas as séries, fossem julga-
veis da Escola Normal em 1880, p. 6. dos pela Congregação “distintos por suas habilita-
6. Ofício do Diretor da Escola Normal ao Minis- ções e procedimento moral” teriam direito à nomea-
tro dos Negócios do Império, em 30/04/1880. ção para professores adjuntos efetivos, por ordem de
Arquivo Nacional, pasta IE5 28. Em 1888, houve classificação, independentemente de concurso (art.
nova transferência para a Escola Rivadávia Correia e 87 do decreto n. 7.684/1880).
daí para a Escola Estácio de Sá, onde se manteve até 14. Relatório apresentado ao Congresso de Ins-
1930, quando foi inaugurado o prédio da Rua Mariz trução pelo Dr. Antonio Herculano de Souza Ban-
e Barros, feito especialmente para abrigá-la. deira, Inspetor Geral da Instrução Pública da Capi-
7. O primeiro problema enfrentado pela nova tal do Império, em 1883 (Arquivo Geral da Cidade
instituição foi a carência de pessoal docente espe- do Rio de Janeiro — Inspetoria Geral da Instrução
cializado, sendo então nomeados, em caráter inte- (1874-1893). Códice: 11— 4-22).
rino, professores que se encontravam em disponi- 15. Documento localizado no Centro de Memória
bilidade devido à extinção de várias cadeiras no do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro
Imperial Colégio de Pedro II e no Instituto Comer- (ISERJ). Livro da Porta, n. 55.
cial. Relatório dos sucessos mais notáveis da escola
Normal em 1880, p. 2.
8. Tornam-se disciplinas facultativas Francês e Referências bibliográficas
Instrução Religiosa, esta devido ao Decreto n. 7.247
de 19/04/1879 (reforma Leôncio de Carvalho) que já Accácio, L. (1993). Instituto de Educação do Rio
dispusera sobre a não obrigatoriedade dessa maté- de Janeiro: a história da formação do professor
ria aos “acatholicos”. Sobre um currículo mais primário (1927-37). Dissertação de Mestrado.
científico, proposto pelo Regulamento de 1881, ver Faculdade de Educação, UFRJ.
Uekane (2004). Bourdieu, P.  (1996). A linguagem autorizada. In
9. Há no Arquivo Nacional apenas os três primei- P. Bourdieu, A economia das trocas lingüísticas: o
ros números do citado jornal. O conjunto completo que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, pp. 85-96.

82 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
Castro, L. V. de (1986). Uma escola de professores: Louro, G. L. (1997). Mulheres na sala de aula. In M.
formação de docentes na reforma Anísio Teixeira D. Priore, História das mulheres no Brasil. São
(1931-35). Dissertação de Mestrado. Departa- Paulo: Contexto, pp. 441-463.
mento de Educação, PUC-Rio. Mancini, A. P. G. (2005). Escola Normal da Corte
Chartier, R. (1990). A história cultural entre práti- (1876-89): um estudo por meio de fontes docu-
cas e representações. Lisboa: Difel. mentais. Tese de Doutorado. Marília, SP: Facul-
De Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano dade de Educação, UNESP.
(Artes de fazer). Petrópolis, RJ: Vozes. Nóvoa, António (1987). Le temps des professeurs.
Julià, D. (2001). A cultura escolar como objeto his- Analyse sócio-historique de la profession enseig-
tórico. Revista Brasileira de História da Edu- nante au Portugal (XVIII-XX). 2 volumes. Lisboa:
cação (Campinas: Autores Associados), I, 1, Instituto Nacional de Investigação Científica.
pp. 9-44. Revel, J. (1998). Microanálise e construção do so-
Lopes, S. de C. (2008). Registros sobre a Escola cial. In J. Revel, Jogos de escalas: A experiência
Normal da Corte no jornal estudantil Pharol. In da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Ja-
Anais do VII Congresso Luso-Brasileiro de Histó- neiro: FGV, pp. 15-38.
ria da Educação. Universidade do Porto. Uekane, M. (2004). Saberes prescritos e a profis-
Lopes, S. de C. & Martínez, S. (2007). A emergên- sionalização dos professores — um estudo acer-
cia das escolas normais no século XIX: a Escola ca da episteme da Escola Normal da Corte. In
Normal de Campos e a Escola Normal da Corte. Anais do III Congresso Brasileiro de História da
Revista Brasileira de História da Educação 15 Educação, Curitiba, PR, pp. 1-14.
(set./dez.), pp. 53-78.

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 83
84 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…

Você também pode gostar