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A título de apresentação

Lisete Regina Gomes Arelaro


Universidade de São Paulo

É providencial a decisão da revista EDU- e compromisso político com a educação pública


CAÇÃO E PESQUISA de publicar estes três peque- e com a pesquisa educacional são exemplares e
nos textos escritos pelo professor José Mário um artigo de 2001, “A pedagogia das compe-
Pires Azanha, professor titular de Filosofia da tências e o Enem” — polêmico, como quase tudo
Educação e de Pesquisa Educacional e professor que acreditava e escrevia — mas que coloca no
emérito da Faculdade de Educação da USP, que seu devido lugar, os “rebuliços mudancistas” —
de certa forma “apresentam” o professor e ex- como chamou — que ocorreram na educação bra-
pressam sua linha de pensamento, sua militância sileira, nas duas gestões do presidente Fernando
educacional e a fina ironia do seu estilo de ar- Henrique Cardoso.
gumentar. O primeiro dos artigos aqui transcritos
Os textos traduzem três diferentes mo- traduz uma das maiores ousadias de política
mentos da atuação de José Mário: o primeiro educacional no estado de São Paulo: a ousadia
(A política de educação do Estado de São Paulo, de romper as barreiras administrativas e políti-
uma notícia) — sua atuação junto ao Departa- cas para a ampliação de vagas no ginásio
mento de Educação, depois Coordenadoria de secundário — como era chamado o ciclo final,
Ensino Básico e Normal, da Secretaria de Esta- das 5as às 8as séries do atual ensino fundamen-
do da Educação, na Gestão Abreu Sodré/Ulhôa tal. Naquela ocasião, foi uma verdadeira “ revo-
Cintra, (1967–1970), referência obrigatória nos lução” no ensino, pois para cada dez grupos
estudos históricos pelas ousadas propostas de escolares — escola dos anos iniciais do ensino
políticas educacionais implementadas e pela tur- fundamental — existia somente um ginásio es-
bulência política que o endurecimento da dita- tadual, o que exigia destas escolas, e de cada
dura militar trouxe; o segundo (Documento uma delas, a realização de um processo alta-
Preliminar n.1) — sua atuação como chefe de mente seletivo, pela ausência de vagas para a
gabinete da mesma Secretaria de Educação, com maioria.
Paulo de Tarso Santos como dirigente da mes- Com a unificação dos exames de admis-
ma, na gestão Franco Montoro, em 1983, no são, por meio da centralização da elaboração das
calor do movimento das Diretas-Já e da luta pela provas (facilitadas) pela Secretaria de Estado da
redemocratização da sociedade brasileira; e o Educação, foram aprovados cerca de 80% dos
terceiro (Uma reflexão sobre a formação do alunos concluintes do ensino primário. Isso obri-
professor da escola básica) — em 2000, sua garia, de imediato, a outras providências políticas
atuação como conselheiro, enquanto coerente e administrativas: aceitar o desafio de “arrumar”
defensor da escola pública e proponente de po- vagas para todas as crianças aprovadas em cur-
líticas educacionais, através de seus consistentes to espaço de tempo, entre elas, o funcionamen-
pareceres e indicações, junto ao Conselho Esta- to em todo prédio escolar existente, de novos
dual de Educação de São Paulo. cursos ginasiais.
Muitos outros escritos poderiam ser aqui É importante destacar que, apesar dos
arrolados, dos quais dois em particular não podem obstáculos impostos para toda manifestação
deixar de ser citados: Uma idéia de pesquisa pública naquele momento político, as famílias
educacional — que constituiu sua tese de livre- paulistas, em especial as das grandes cidades,
docência, em 1990, e na qual seu rigor acadêmico reivindicavam o direito de seus filhos ingressa-

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rem num curso ginasial público, em razão do tes prenderam José Mário e parte da equipe do
(novo) processo industrial, que exigia um tra- secretário de Educação, em 1970, alegando que
balhador melhor qualificado. Foi um tumulto! E “a falta de planejamento, na expansão das vagas,
com ele, a expansão decisiva das vagas nas havia gerado desordem incontrolada, favorecen-
escolas públicas — novas oportunidades educa- do desagradáveis manifestações públicas de pro-
cionais, como se chamava. Passou-se, de cerca fessores e pais, e incentivando a baderna”.
de 130 mil vagas na primeira série ginasial para O segundo texto traduz um rico mo-
cerca de 250 mil estudantes, na mesma série, de mento de nossa história educacional e política,
um ano para outro — de 1968 para 1969! em que a reconstrução democrática será a tô-
No final de 1969, o governo militar bai- nica dos discursos, das mobilizações e das
xa o Ato Institucional n. 5, o mais duro ato políticas. José Mário escreve, então, o que se
legal que o Brasil já tivera em todo o período constituiu no chamado “Documento Preliminar
republicano, mediante o qual os direitos indi- n. 1”, um convite ao debate das políticas im-
viduais foram restringidos, e isso repercutiria na plantadas e a ser implantadas, através de um
definição de qualquer política pública que im- diagnóstico vivo da situação educacional. Um
plicasse um mínimo de condição democrática dos assuntos tratados, de maneira inovadora, é
para a sua implementação. No caso, o debate o conceito de autonomia da escola. Afirma o
de idéias, e as necessárias reuniões entre o documento: “a busca da autonomia da escola,
governo e o magistério. Evidentemente, com a não se alcança com a mera definição de uma
garantia do direito de divergir. nova ordenação administrativa mas, essencial-
No mesmo período (1968-1969), houve mente, pela explicitação de um ideal de educa-
uma reorganização do ensino primário paulista ção que permita uma nova e democrática orde-
pelo agrupamento em dois níveis, dos quatro nação pedagógica das relações escolares”.
anos escolares — nível I, 1as e 2as séries e nível Sempre foi um ardoroso defensor da au-
II, 3 as e 4 as séries. Tratava-se, como se poderá tonomia da escola, entendida esta como o di-
constatar, da primeira experiência estadual de reito insubstituível da escola — e de cada esco-
organização do ensino por “ciclos”, uma vez la — de propor e executar o seu próprio proje-
que, pela proposta, não haveria reprovação da to pedagógico.
1a para a 2a série, nem da 3a para a 4a, mas sim O documento é quase um tratado sobre
uma reorganização ou replanejamento do tra- política educacional e suas prioridades, apon-
balho docente, em função da avaliação das tando equívocos na cultura pedagógica sobre
dificuldades e avanços que o grupo–classe “qualidade de ensino” e a conseqüente maciça
conseguira. Junto com esta proposta, deu-se a reprovação de alunos. Fala, também, sobre ava-
reorganização de programas e currículos e a liação — um dos seus temas preferidos — e or-
implantação da orientação pedagógica, como ganização do ensino. Discute o papel e condi-
precondição para a implementação das novas ções de trabalho do magistério, como impor-
políticas e propostas. tantes variáveis da qualidade de ensino.
Estas foram duas — a expansão de vagas Sobre o terceiro documento, a “Indica-
do ensino ginasial e a modificação da seriação do ção n.7/2000 ao Conselho Estadual de Educa-
ensino primário — entre outras diversas providên- ção”, uma reflexão sobre a formação de profes-
cias político-educacionais implementadas pelas sores da escola básica, é um documento polê-
quais José Mário foi considerado “maldito”, tan- mico, que insiste sobre a necessidade de for-
to pelo magistério quanto pelos militares. Aque- mação geral sólida aos professores e de um
les organizaram passeatas contra várias das me- melhor entendimento sobre a natureza da rela-
didas propostas, uma delas sobre os critérios de ção pedagógica, que lhes possibilite efetiva
avaliação de desempenho dos professores, e es- condição de escolha de “métodos e estratégi-

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as de ensino”. José Mário alerta sobre os riscos de avaliação de desempenho dos professores,
que a integração de teoria e prática traz, que segundo a qual a quantidade de publicações de
“seguramente não ocorrerá pelo simples au- artigos e papers, seria a expressão da “produti-
mento exorbitante do número de horas da vidade” acadêmica de cada um de nós.
parte prática do curso”. Insiste ele em que “sem Foi com ele, também, que aprendi a (re)ler
uma revisão conceitual do que se entende por H. Reinchenbach, Henri Lefrève, Thomas Kuhn, R.
‘prática’ o aumento do número de horas pode- Carnap, Ernest Nagel , John Dewey, Henri Wallon,
rá provocar apenas um raleamento da formação Alain/E. Chartier, Wright Mills, Hanna Arendt, Karl
teórica sem nenhum ganho assegurado”. Marx, Anísio Teixeira, Sampaio Dória, Florestan
A prioridade das metodologias sobre as Fernandes, para melhor entender a importância da
disciplinas de formação geral vai ser criticada pesquisa — sua lógica e cuidados na definição do
por ele. Mostrando como este conhecimento do objeto e dos procedimentos —, as condições da
saber fazer, sem uma consistente fundamenta- educação e da democracia no Brasil, aplicando
ção do porquê fazer pode comprometer a boa estes conhecimentos para a necessária democra-
formação de professores. tização do ensino público brasileiro. Em todos os
Mas mais do que isso — neste e em níveis.
outros artigos —, ele enfatiza a importância da E como ele, prazerosamente, gostava de
compreensão do caráter coletivo do trabalho colecionar frases especiais dos autores que lia,
escolar. Diz ele: “A idéia de que uma boa esco- não poderia deixar de recomendar a leitura de
la é mais do que a simples reunião de bons seus textos, em especial os de defesa da radi-
professores tem sido de difícil penetração nas cal expansão de vagas para todos, que muito
práticas escolares. Na verdade, tal como sempre nos ensina sobre democracia, cidadania e edu-
ocorreu nos cursos normal e de licenciatura, cação, alertando com Nietzsche que “a manei-
nem se suspeita que essas práticas possam ser ra mais pérfida de prejudicar uma causa é
algo mais do que ensino do aluno”. defendê-la com más razões”.
Não é instigante? Foi ele, também, que li- Esta pode ser uma boa razão para a leitura
derou movimento contrário à posição da reito- (atenta) dos livros e artigos que ele nos deixou.
ria da USP, no início dos anos 1990, a respeito Até para discordarmos dele, como ele gostava.

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