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Recebido em: 23/03/2020 | Aceito em: 02/06/2020 | E-ISSN 1808-2599 |

Fábulas sem olhos: os roteiros 1

não filmados na historiografia

 E-compós (Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), ISSN 1808-2599, v. 23, jan–dez, publicação contínua, 2020, p. 1–23. https://doi.org/110.30962/ec.2102
do cinema brasileiro
Pablo Gonçalo
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Resumo Introdução
O ensaio propõe uma revisão historiográfica Numa das suas assertivas mais célebres, Paulo
do cinema brasileiro a partir dos roteiros não
filmados. Seguindo uma análise de roteiros Emílio Salles Gomes ressaltava como o cinema
não filmados de Mário Peixoto, Vítor Lima
brasileiro estaria condenado a uma constante
Barreto e Joaquim Pedro de Andrade, sugere-se
captar estilos, projetos e intenções estéticas que e insuperável condição de subdesenvolvi-
anunciaram aspectos históricos não consolidados
mento. Ele referia-se sobretudo aos aconteci-
nos ciclos cinematográficos compreendidos
por esses diretores. Os roteiros não filmados mentos históricos dos cinemas periféricos, que
são analisados a partir de uma metodologia de
seriam incompletos, com produções escassas
uma arqueologia especulativa. Seja no cinema
dos anos vinte, no projeto da Vera Cruz ou e interrompidas. Na sua argumentação, esse
ainda nas relações entre o Cinema Novo e a
Embrafilme, esse conjunto de roteiros revela
“[...] cinema é incapaz de encontrar dentro de
imaginários estéticos potentes que nos permitem si próprio energias que lhe permitem escapar
vislumbrar aspectos contracíclicos dos períodos
cinematográficos que dialogaram e prenunciaram. à condição de subdesenvolvimento” (GOMES,
Palavras-chave: 1996, p. 85). Desprovida de uma autorreferên-
Cinema Brasileiro. Historiografia.
cia tida como legítima, a história do cinema
Roteiros não filmados.
brasileiro tenderia, seguindo sua in� luente
proposição, a ver suas constelações estéticas
como distantes, ou teria no cinema estran-
geiro suas principais referências.

Atualmente, o ensaio de Gomes (1996) já foi


revisto e criticado por um importante grupo
de historiadores (BERNARDET, 2004). Termos
e conceitos como ciclos e subdesenvolvimento
revelam-se mais circunscritos a uma agenda
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econômica e política dos anos setenta, e não brasileiro, os roteiros não filmados carre-
apontam com precisão para outros aconteci- gariam apreensões históricas e estéticas

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mentos culturais caros aos filmes e períodos pertinentes. Nossa intenção, nas próximas
analisados por Gomes. Embora compartilhe- páginas, é de compartilhar um conjunto de
mos dessas críticas, gostaríamos de sugerir, roteiros não filmados que seriam reveladores
nestas linhas, um possível adensamento das dessas facetas arqueológicas, contracíclicas
ideias propostas pelo crítico paulista; ou, por e especulativas de um cinema brasileiro que
outro viés, a abertura de um � lanco paralelo não se consolidou nas telas. Embora sejam
que permitisse tanto levar adiante como des- cinematografias restritas ao papel, decidimos
confiar do alcance das suas proposições. investigar roteiros de três conjuntos, autores,
em períodos consistentes e representativos
Mais do que pensar nos ciclos como aconte- de diferentes períodos do cinema brasileiro.
cimentos interrompidos, pretendemos ali- Seguindo uma ordem cronológica, compar-
nhavar intenções, rastros, anseios e mesmo tilharemos, em primeiro lugar, uma análise
imaginações não engendradas pelos pêndu- do roteiro O Sono Sobre a Areia, de Mário Pei-
los (e olhos) da história. Mais do que acompa- xoto. Esse filme é o segundo da carreira de
nhar, portanto, apenas os filmes realizados Mário Peixoto, cuja gravação ocorreu pouco
e lançados, ensaiaremos jogar algumas luzes tempo após o lançamento de Limite (1931).
em intenções cinematográficas consistentes Cotejado com os demais roteiros de Peixoto,
que não migraram às telas. Não teríamos na O Sono Sobre a Areia ilumina aspectos estéti-
negatividade, no descarte e no abandono de cos que quedaram incompletos num complexo
uma gama de projetos incompletos índices2 universo que abrange o estilo, a carreira, as
de outros cinemas (ainda) possíveis? Não ambições (e frustrações) despontadas pelo
haveria nessa fenda negativa da história uma próprio Peixoto.
arqueologia especulativa (GONÇALO, 2018) que
coligaria imaginários e tradições sugeridas de O segundo cineasta é Vítor Lima Barreto, cuja
cineastas do passado com os olhares do nosso trajetória foi intimamente atrelada ao projeto
tempo atual? industrial da Vera Cruz. Neste ensaio, anali-
saremos duas histórias que permitem vislum-
Esse novelo de perguntas aponta para uma brar as suas ambições estéticas e a sua aposta
possível contribuição dos roteiros não fil- no roteiro como um elemento de transmis-
mados à historiografia do cinema brasileiro. são geracional e, por fim, de cunho literário.
Numa acepção “contracíclica” do cinema O primeiro projeto é O Sertanejo, roteiro que
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se seguiria ao sucesso de O Cangaceiro (1953). Fernando Cony Campos, O Imponderável Bento
Até onde se sabe, esse roteiro seria a primeira contra o Crioulo Voador também dialoga com

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adaptação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, outros roteiros de Joaquim Pedro de Andrade
e, caso realizado nos anos cinquenta, trans- escritos nos anos oitenta, como Vida Mansa
mitiria um conjunto arraigado de um ima- e Casa Grande & Senzala; histórias que seguem
ginário sobre o sertão e o nordeste brasileiro não filmadas e que apontam para uma mescla
muito afim à estética regionalista caracterís- equilibrada entre o humor, que dialoga com
tica do seu período. Além de ter escrito um a pornochanchada, sem se abster dos retra-
minucioso roteiro, ele buscou financiamento, tos alegóricos brasileiros que singularizam
locações, elenco, consultores de roteiro e pes- o cinema novo.
quisadores. Outro projeto que enfatizaremos,
ainda no escopo da obra de Lima Barreto, é o Optamos por realizar uma abordagem pano-
roteiro de Inocência. Conforme averiguamos râmica de uma possível contribuição dos
por meio de pesquisa bibliográfica e de entre- roteiros não filmados na historiografia do
vistas, esse roteiro coliga uma interessante cinema brasileiro. Lado a lado, as histórias
rede de transmissão e reforça um esforço de inéditas de Mário Peixoto, Vítor Lima Barreto
Lima Barreto de gerar um legado cinemato- e Joaquim Pedro de Andrade nos convidam
gráfico a partir do roteiro. a enxergar feixes e fendas históricas deixadas
ao léu e à mercê dos ciclos que cada um des-
Por fim, decidimos analisar O Imponderá- ses diretores carregou consigo. Seja nas par-
vel Bento contra o Crioulo Voador, de Joaquim cerias e nos desentendimentos com Ademar
Pedro de Andrade, que seria realizado em Gonzaga e Carmen Santos, como ocorreu com
1986. Caso filmado, esse roteiro seria um dos Peixoto; seja a contrapelo do fiasco do projeto
melhores retratos do Brasil em tempos de industrial da Vera Cruz ou nas turvas rela-
abertura, após duas décadas de ditadura. Ele ções entre o cinema novo e a ditadura, esses
também elucida sobre caminhos da geração roteiros nos mostram gestos estéticos cio-
do cinema novo, atrelada à Embrafilme, que sos de sedimentarem estilos, obras, gêneros
tecia, nessa história não levada às telas, uma e autorias às telas.
crítica direta e contundente ao regime militar.
Sintomaticamente, a tríade de protagonistas O Sono Sobre a Areia –
são personagens diferentes que compunham Onde a Terra Acaba (1933)
a Aeronáutica desse período de transição. Pas- De todos os roteiros que hoje constam no
sado em Brasília, e escrito em parceria com Arquivo Mário Peixoto, O Sono Sobre a Areia é,
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surge na ilha e apodera-se da vida de Gupi, 4


sem dúvida, o caso mais emblemático. Ele é a
para além dos mormaços que o haviam
versão final, o chamado final dra�t, a orientar subjugado, num perene êxtase diante das

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as filmagens que de fato ocorreram, em 1932, forças da natureza.

e acarretaram, direta ou indiretamente, no MARCO – O todo poderoso da ilha. Senhor


filme Onde a Terra Acaba. Inicialmente diri- de empregados de libré e pés descalços.
Homem que se faz servir em copiosa bai-
gido por Mário Peixoto, esse projeto acabou,
xela de prata, carregada em badejas de
após o embate de Peixoto com a Cinédia e Car- bambú, por seus pretos semi-escravos.
men Santos, com direção assinada por Otávio Seu palácio é coberto de sapé e forrado de
damascos, vindos da longínqua India. Sua
Gabus Mendes1.
alma complexa, sangra pelo segredo que
um dia prendera àquela mulher.
No roteiro original, conta-se a história de Gupi
GUPI – Um homem em rítmo perfeito com
e Eva, que se encontram numa remota franja a natureza. Preza que facinada (sic) pela
praieira, no litoral carioca. Ele é um caiçara, mulher, torna-se seu amante, vingando
após a sua decepção, contra o próprio
um sujeito que está acostumado ao cotidiano
idealismo que, pouco antes, fôra sua reli-
da praia, da pesca e do convívio com as pes- gião .(PEIXOTO, 1931, p. 2)
soas da região. Eva chega de barco, mas pos-
sui vínculos com a cidade, e um passado que Esse roteiro possui muitos tópicos que reper-
será paulatinamente revelado ao longo da nar- cutem em outros vértices da obra fílmica de
rativa. O terceiro personagem essencial para Mário Peixoto, como em Limite ou mesmo
a trama é Marco, que conhece os segredos dos A Alma Segundo Salustre2. O teor trágico dos
dois, Eva e Gupi, que pouco a pouco tornam- personagens, a ênfase num trio – dessa vez
-se amantes. Transcrevo abaixo a caracteri- composto por dois homens, a existência de
zação dos personagens realizada pelo próprio paixões e traições, a onipresença do mar e um
Mário Peixoto, num dos documentos escritos contraste com o mundo urbano, o encontro
para preparar a filmagem: entre caiçaras e sujeitos modernos e como
um dialoga e anula o outro, constroem
EVA – Uma mulher com um passado.
Nome de empré stimo para aquela que

1 Se o filme estivesse disponível, o roteiro que encontramos e analisamos faria um cotejo entre o filme de fato
finalizado por Gabus Mendes e o filme inicialmente idealizado e dirigido, embora incompleto, por Mário Peixoto. O
que torna a situação mais complexa é o fato do filme Onde A Terra Acaba encontrar-se atualmente perdido, o que nos
impossibilita de realizar qualquer ensaio de cotejamento e comparação entre o roteiro de Peixoto e a versão final de
Otávio Gabus Mendes.
2 Sobre uma análise de Alma Segundo Salustre, ver Gonçalo (2018).
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Figura 1: Filmagens de O Sono Sobre a Areia 5

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Fonte: Arquivo Mário Peixoto (1933).

uma esté tica cinematográ fica que com- Peixoto, aliás, evoca o mar e a ambiência lito-
bina paisagens com o retrato das almas dos rânea que coliga, uma vez mais, O Sono Sobre
seus personagens. a Areia a Limite. Ambas as histórias estão atre-
ladas à paisagem, ao local e ao território por
O Sono Sobre a Areia, no entanto, conta princi- onde passam os protagonistas. Subitamente,
palmente o encontro de Eva com Gupi. Caso o ambiente psicológico sofre uma significativa
tivesse sobrevivido, o filme mostraria um mudança. Marco começa a chantagear Eva
pequeno e fugaz paraíso, que pulsou junto e Gupi. Ele detém a história dos seus passa-
aos seus protagonistas. No começo da his- dos, sabe dos seus segredos e foi picado pelo
tória e do idílio, tudo soa pacífico, perfeito, ciúme diante da felicidade daquele casal. Na
e os problemas parecem tão distantes como as sua mala, Eva trouxe uma máquina de escre-
águas que separam a ilha do mundo urbano ver. Ela está inspirada e descreve o que vê:
e da modernidade. Misteriosamente, Eva Gupi, a paisagem litorânea. Numa das cenas,
emerge de um barco que dá na praia e, à pri- Gupi segura um coco, que cai no chão. Ele
meira vista, encontra Gupi. Eva e Gupi apai- está nervoso e quer ler o que Eva está escre-
xonam-se, mas abdicam das palavras para vendo sobre ele. Olhando-o, Eva fuma. Gupi,
viver esse júbilo. Na ilha, eles respiram uma então, lê uma das páginas: “Um sonhador”.
existência silente, uma ambiência poética “Ressureição, vida e morte de um selvagem:
que Peixoto sabe coser com notória destreza, um nativo no nosso século”. “Um romance”,
e que remete a uma precisa continuidade com é uma das palavras que Gupi capta. “Fim”.
a estética silenciosa de Limite. Eva, nessa hora, apaga seu cigarro. Ela fita-o,
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e diz: “Estou pronta” (PEIXOTO, 1933, p. 5). a maioria das histórias escritas por Mário Pei-
Gupi fica furioso, violento e começa a bater xoto, O Sono Sobre a Areia também possui um

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em Eva, de forma agressiva e súbita. Como trágico desfecho.

Figura 2: Filmagens de O Sono Sobre a Areia

Fonte: Arquivo Mário Peixoto (1933).

Essa estranha e impactante história conti- acarretou na sua desistência do projeto. Como
nua na sequência dos seus pontos de virada. ela era a produtora, as filmagens também
No entanto, é importante salientar o papel precisaram ser interrompidas. Embora boa
desempenhado por Carmen Santos – atriz parte do roteiro já tivesse sido, de fato, fil-
e produtora do filme – e relembrar como mada, O Sono Sobre a Areia permaneceu como
O Sono Sobre a Areia foi perdido. De fato, esse uma obra incompleta, e com certo teor eté-
roteiro foi quase integralmente filmado, e as reo. Ademais, Carmen Santos requisitou seus
poucas sequências que sobreviveram podem direitos de produção e decidiu por escrever
ser encontradas no documentário Onde a Terra outra história, aproveitando parte do material
Acaba (2002), de Sérgio Machado. O roteiro, rodado por Peixoto. Ela, contudo, concebeu
num contraste, é o único vestígio histórico do uma narrativa completamente diferente, ins-
filme imaginado, criado e dirigido por Mário pirada numa adaptação de Senhora, romance
Peixoto. Durante o set, Peixoto e Carmen San- de José de Alencar, que acarretou no filme
tos tiveram alguns desentendimentos, o que Onde a Terra Acaba, assinado por Otávio Gabus
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Mendes (PESSOA, 2002). Essa experiência foi o de Eva e Gupi quedam, até o momento, ape-
realmente traumática para o então jovem nas no papel. São beijos ficcionais, mas que

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Mário Peixoto, que nunca mais voltou a diri- convidam à uma imaginação específica, que
gir nenhum dos tantos roteiros que escreveu ora é literária, ora é cinematográfica. No caso
ao longo da sua vida. dos roteiros não filmados, no entanto, e nas
sequências de um conjunto de roteiros escri-
Existe, no entanto, um sutil e intrigante detalhe tos por Peixoto, essas cenas abrem o � lanco de
que chama a atenção desse segundo filme-ro- beijos especulativos ou, em outras palavras,
teiro de Peixoto, sobretudo quando contras- de uma arqueologia especulativa3, que aponta,
tado com Limite. Esses detalhes culminam nos paradoxalmente, tanto para a negatividade
beijos fílmicos. Quando apaixonados, Gupi desses acontecimentos – históricos e cine-
e Eva vivem uma longa e tocante sequência de matográficos – quanto para a sua potência
beijo. Em Limite não encontramos nenhuma e abertura de possibilidades fílmicas em tem-
cena minimamente similar – o que o torna, pos e leituras presentes.
portanto, um filme sem beijos. Quando, por
outro lado, lemos outros roteiros assinados De acordo com esse viés de uma arqueologia
por Peixoto, deparamos com uma interessante especulativa, o roteiro de O Sono Sobre a Areia
pletora de sequências de beijos. São cenas trá- obtém uma outra fresta e relevância histórica.
gicas, como as que ocorrem em A Alma Segundo Sem exagero algum, ele transforma-se em um
Salustre e Outono/Jardim Petrificado, nas quais os único arquivo, um remoto vestígio de um
beijos dos personagens coligam-se, narrativa- filme que foi realizado, radicalmente modi-
mente, às pulsões de morte (GONÇALO, 2018). ficado e, posteriormente, perdido. Como se
fosse uma sombra das primeiras intenções
Tais sequências de beijo situam-se numa intri- de Mário Peixoto, as quais foram diluindo-
gante fronteira interpretativa. Beijos como -se e delindo seus próprios rastros. Casos

3 O conceito de Arqueologia Especulativa (GONÇALO, 2018) inspira-se na arqueologia das mídias e propõe o método
especulativo para lidar com acontecimentos incompletos, fragmentários ou inacessíveis dentro da história do
pensamento, das mídias e, no caso dos roteiros, do cinema. A face arqueológica remete a um passado submerso –
como os roteiros marginais. A vertente especulativa, por sua vez, enfatiza o devir de filmes futuros, que todo roteiro
não filmado sugere. O método especulativo é proveniente de (WHITEHEAD, 1978) e aguçado pela recente guinada
especulativa (HARMAN, 2018; MEILLASSOUX, 2012), a qual convida a filosofia ocidental – diante da “bifurcação
da natureza” e do “co-relacionismo” – a inspirar-se nos exercícios mentais da metafísica supor objetivamente
acontecimentos fugidios à efetiva compreensão humana. O realismo especulativo, por outro lado, fornece os
fundamentos filosóficos para a guinada animal e toda a reflexão não humana ou mais humana, que guia algumas
inquietações do pensamento contemporâneo.
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como o de O Sono Sobre a Areia inserem um como seu principal imaginário. Resguarda-
impasse nas consolidadas formas de análise das as semelhanças, deve-se salientar que

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de roteiros. Eles não são nem o vestígio de um nem mesmo a compreensão do termo roteiro
roteiro blueprint, nem o roteiro não filmado possui mesmo significado histórico. Numa
tout court, ancorado num modelo que privile- palavra, com Lima Barreto pode-se afirmar
gia a especulação. Não propiciam um gesto que o roteiro passa, pouco a pouco, a obter
arqueológico retrospectivo, de reconstrução um reconhecimento profissional.
de um processo que não houve, que não se
encerrou. Tampouco acenariam para uma Num artigo seminal, He�fner (2012) ressalta
arqueologia prospectiva e especulativa, em a centralidade desse período na consolidação
filmes que ainda poderiam ser realizados. Por do roteiro no cinema brasileiro. É quando
enquanto, é fundamental frisar como a obra podemos perceber ao menos uma intenção
fílmica de Mário Peixoto não pode ser, em ter- de tornar o roteiro como um instrumento
mos históricos, delimitada, circunscrita ou autorreferente, seja pela aproximação dos
mesmo fechada ao redor de Limite. escritores freelancers, seja pelo momento em
que o roteiro passa a exercer uma certa expec-
Vítor Lima Barreto e o anseio tativa por parte da indústria cinematográ-
do roteiro como um legado fica. Vale ressaltar que, nos anos cinquenta,
A relação de Vítor Lima Barreto com o roteiro o modelo do roteiro Blueprint já estava conso-
é, em termos pessoais e históricos, bastante lidado em Hollywood e, pela rápida dissemina-
diferente quando contrastada com a de Mário ção de manuais de roteiro, expandia-se pelo
Peixoto. Embora ambos compartilhem da mundo. He�fner (2012) chama a atenção para
importância dada ao ato de escrever detalha- a disseminação feita pelo crítico Alex Vianny,
damente suas cenas e sequências nas páginas, quando, depois de uma temporada nos Esta-
o papel do roteiro para o cinema brasileiro já dos Unidos, traz em sua mala um exemplar de
havia passado por significativas alterações. �eory and thechnique of playwright and screen-
Em comum, Peixoto e Barreto viam o roteiro writing (1960), de John Howard Lawson, uma
a partir de um paradigma literário. Com espécie de bíblia para os roteiristas indepen-
Mário, no entanto, temos um roteiro mais dentes dos anos quarenta.
próximo de um solipsismo lírico. Barreto,
por sua vez, acena para um vínculo com Ao declinarmos para o caso brasileiro, a dra-
a literatura regionalista brasileira dos anos maturgia já vinha esboçando, ao seu modo,
trinta e quarenta, a qual possui o nordeste inquietações similares. No desejável percurso
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de uma história do roteiro no Brasil, é essen- para compreender os caminhos abertos pelo
cial salientar dois anseios paralelos. O pri- roteiro. Um desses escritos é o relatório sobre

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meiro é uma vontade de institucionalizar o cinema brasileiro, o Instituto Nacional de
a prática do roteiro nos estúdios, mas também Cinema, encomendado diretamente por
nessa passagem entre a dramaturgia, a lite- Getúlio Vargas4. Conhecido e já estudado em
ratura e o ímpeto de migrar essa organiza- outras ocasiões (SOUZA, 1998), esse relatório
ção da prática de roteirização para um campo chama a atenção para a sua extensão, o seu
mais profissional. As experiências de Alinor detalhamento e sua ousadia, que era, nada
Azevedo (MELLO, 2005), mais próximas da mais, nada menos, de direcionar uma política
Atlântida e da chanchada, por um lado, coa- estatal para a implementação industrial do
dunam-se ao empreendimento da Vera Cruz. cinema brasileiro.
O segundo refere-se à busca por uma drama-
turgia mais genuinamente brasileira. É pre- O primeiro fato que ressaltamos é o de Alberto
ciso evitar um anacronismo para os aspectos Cavalcanti encontrar-se nas pontas opostas
que envolvem o termo do nacionalismo, mas de dois projetos bem diferentes de industria-
vislumbra-se, nessa intenção, uma inclinação lização do cinema brasileiro. De um lado, um
a buscar narrativas, mitologias, lendas, histó- projeto amplamente privado –“burguês”, se
rias e inspirações literárias que dialogassem seguirmos a canônica leitura de Maria Rita
mais diretamente com o contexto da cultura Galvão – e, de outro, o desejo de colaborar na
brasileira. Na década de trinta, por exemplo, institucionalização de um cinema nacional,
temos o caso de Oduvaldo Viana, que migra totalmente incentivada por uma política esta-
da dramaturgia para buscar um diálogo cria- tal. No meio dessas duas tendências, e com
tivo com a técnica hollywoodiana. uma experiência de fato privilegiada, o rela-
tório compartilha, logo nas suas primeiras pá-
Nesse contexto, é importante destacar o papel ginas a seguinte pergunta: “Como imprimir ao
central, nos anos quarenta, desempenhando público um produto de baixa qualidade téc-
pela figura histórica de Alberto Cavalcanti. nica?” (CAVALCANTI, 1951). A pergunta não é
O diretor brasileiro, até então radicado na fortuita e coincide com uma constante consta-
Inglaterra, elaborou re� lexões essenciais tação do cinema da época: os acontecimentos

4 Esse relatório foi consultado na Cinemateca Brasileira. Ele possui assinatura direta de Alberto Cavalcanti e vem
“acompanhado de projeto de lei que dispõe sobre o Instituto Nacional de Cinema. A comissão é composta por outras
pessoas, dentre as quais destacam-se Vinicius de Moraes e P.F. Gastal.
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no cinema brasileiro possuem pontuais inte- realizar o seu filme O Sertanejo. O primeira
rações com um público ou uma audiência. Em é sobre a originalidade do projeto. O roteiro

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termos econômicos, trata-se de um produto escrito pacientemente por Lima Barreto é uma
predominantemente importado, vindo de adaptação de Os Sertões, de Euclides da Cunha,
outros países, do exterior. Seguindo as pala- que é, até onde temos conhecimento, seria um
vras do relatório: “O que não resta a menor acontecimento sem precedentes5. Durante
dúvida, no entanto, é que um short filmado a série de reportagens que coletamos sobre
sem argumento prévio e sem diretor jamais esse projeto, constatamos como ele de fato
deixará de ser uma simples reportagem. não foi realizado por motivos financeiros e já
E uma reportagem sem o apoio indispensável estava relativamente adiantado.
pode nunca ser uma boa reportagem” (CAVAL-
CANTI, 1951). Nos anos cinquenta, portanto, Com uma versão finalizada do roteiro, Lima
o roteiro passa a ser uma exigência inconteste Barreto buscava elenco, locações, parcerias
para o cinema brasileiro dar um passo rumo e fazia encontros, de acordo com os jornais
à sua autonomia e efetiva industrialização. nordestinos, como uma forma de divulga-
ção das suas filmagens, que estavam por
Parte importante da trajetória profissional vir. O ano de 1953 foi especial na biografia de
de Lima Barreto vai de encontro com essas Lima Barreto. Segundo as reportagens que
inquietações de Cavalcanti (1951). Lima Bar- destacamos neste ensaio, Lima Barreto aca-
reto não apenas foi seu assistente, e realizou bava de casar e era tratado, por onde passava,
sua “formação” sob a sua régia, quando Caval- com uma celebridade, dada a sua recente
canti era o onipotente na Vera Cruz. É sob esse consagração em Cannes com O Cangaceiro.
amplo contexto de uma ânsia por institucio- As reportagens apontam que Lima Barreto
nalização do roteiro que O Sertanejo precisa já tinha alguns cantores escolhidos para
ser compreendido. Ao ler as reportagens, o elenco. Vale destacar a escolha do sambista
podemos destacar três momentos diferentes Adoniran Barbosa para atuar como Antonio
na obstinação do diretor Lima Barreto em Conselheiro. A ênfase no musical era, de uma

5 Apenas no contexto do Cinema Novo, cerca de uma década depois, essa aproximação seria de fato reestabelecida,
sobretudo em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. No seu livro Sertão Mar, Xavier (2002) realiza,
inclusive, uma comparação entre o projeto de representação regional do nordeste no cinema brasileiro, trazendo
à luz o contraste entre O Cangaceiro e o filme de 1964 do cineasta baiano. Embora não tenhamos ainda feito uma
análise minuciosa do roteiro, mais especificamente porque ainda não o encontramos, a sua importância histórica na
compreensão do compasso do cinema brasileiro revela-se essencial.
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Figura 3: Reportagem sobre a leitura pública de O Sertanejo 11
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Fonte: Última Hora (1955).
Figura 4: Trecho publicado de O Sertanejo
Fonte Folha da Manhã (1953).
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forma que ainda não conseguimos decifrar, e de persistir na realização da sua filmagem.
uma sugestão muito forte na condução e dire- O segundo momento são os anúncios das lei-

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ção do filme. turas públicas do roteiro de O Sertanejo, que,
segundo fotos publicadas nos jornais, tinha
Num segundo momento, as reportagens condução, debate e até certos trejeitos de
revelam a frustração de Lima Barreto. Ele palestra realizada por Lima Barreto. Nesse
realmente não consegue recursos para a rea- caso, os roteiros deixam de ser apenas um
lização de O Sertanejo. Seja pela Vera Cruz, aparato técnico e um encaminhamento às
que se encontra com dificuldades financeiras, filmagens. Eles passam a ter, carregar e trans-
seja pela procura de outras fontes de recur- mitir uma certa áurea literária e artística.
sos. Uma reportagem, por exemplo, indica ele
procurando Alzira Vargas, in� luente filha do Paulo Emílio, Alex Viany e outros críticos
então presidente Getúlio Vargas. Lima Bar- e historiadores do cinema brasileiro, fre-
reto convida-a para interpretar um papel no quentaram algumas dessas leituras, que
seu filme, num movimento que talvez denote ocorreram no Rio de Janeiro e em São Paulo,
a vontade de obter recursos oficiais. No seu e eram anunciadas nos jornais dessas cida-
afã grandiloquente, e um tanto curioso, des. Há uma emblemática e famosa frase de
Lima Barreto afirmava que gostaria de filmar Paulo Emílio Salles Gomes que afirma ser
O Sertanejo em esperanto, como uma forma O Sertanejo, de Vítor Lima Barreto, o filme
de expressar a universalidade dessa histó- brasileiro mais comovente que ele “já viu”
ria nordestina. (CALIL, 2018). Ressalto e retenho, momen-
taneamente, as aspas da expressão “já viu”.
Após essas notícias da não realização de Afinal, como se sabe, O Sertanejo, a despeito
O Sertanejo, as reportagens também apontam da incansável obstinação de Lima Barreto,
outros movimentos interessantes. O primeiro nunca alcançou lentes, câmeras e telas – e
é o da publicação de trechos do roteiro em é, desde os anos cinquenta, um dos rotei-
jornais de grande circulação, que seria um ros não filmados mais citados, conhecidos
fato inédito. Anteriormente, as publicações e, por assim dizer, antológicos do cinema
de trechos do roteiro eram restritas a revis- brasileiro. A frase de Paulo Emílio reforça
tas especializadas em cinema, como são os como um dos filmes mais brasileiros “mais
casos da Scena e da Revista de Cinema. O obje- belos” seria uma obra ainda no papel, ainda
tivo de Lima Barreto, nesse contexto, era de a migrar às telas, incompleta, e, portanto,
trazer mais interesse para a sua adaptação não consolidada historicamente.
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Embora depois de O Cangaceiro, Lima Barreto engendrar a sua interpretação, tanto à obra
tenha realizado poucas filmagens, ele perma- original, de Taunay, quanto à estética regio-

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neceu escrevendo roteiros. Em entrevistas rea- nalista de Humberto Mauro.
lizadas com Walter Lima Jr. e Carlos Augusto
Calil, ambos contaram a este autor como, ao Lima Barreto não chega a filmar esse roteiro.
final da vida, Lima Barreto carregava consigo No começo dos anos oitenta, Walter Lima
um velho baú com todas as adaptações e os Jr., que já pensava em adaptar Inocência, vê
roteiros que gostaria de ter filmado. Eles fica- na televisão uma reportagem sobre o caso
vam com ele no quarto do asilo onde morou, de indigência do diretor de O Cangaceiro. Ele
pobre, à margem de qualquer celebração, aborda Carlos Augusto Calil, então diretor
e lá ficou até morrer em 1982. Entre as tantas da Embrafilme, e interpela-o para a empresa
adaptações e projetos depositados no velho governamental adquirir os direitos auto-
baú, estava lá o roteiro de Inocência, caso que rais do famoso cineasta. Walter Lima Jr. fica
melhor ilustra um círculo “virtuoso” de trans- encarregado pelas negociações. Pega um avião
missão de tradições pelo roteiro e sua concisão e vai a encontro de Barreto (MATTOS, 2002).
dramática-imagética às gerações futuras. O cineasta carioca relata que foi uma negocia-
ção difícil, mas ao final conseguiu ter acesso
Walter Lima Jr. narra um pouco dessa história a meia dúzia de roteiros, todos zelosamente
e como o roteiro chegou até ele. Mais do que encadernados6. Pronto: estava feita a trans-
uma obra original de Lima Barreto, esse pro- missão, e traçada a ponte geracional. De
jeto foi fruto de uma interpretação do roteiro Taunay a Mauro, de Mauro a Barreto e deste
de Humberto Mauro, ambos como resultados a Walter Lima Jr., tal como uma preciosa tocha
de uma adaptação do romance homônimo de passada de mãos em mãos, entre décadas,
Visconde de Taunay. Segundo essa narrativa, até alcançar os olhos do espectador no filme
Lima Barreto teve conhecimento da intenção dirigido por Walter Lima Jr., com atuação de
de Mauro de filmar essa obra quando o visi- Edson Celulari e Fernanda Torres. Num dos
tou, durante a sua lua-de-mel, na sua fazenda. desfechos mais interessantes dessa narrativa,
O roteiro de Humberto Mauro tinha pouco Walter Lima Jr. conta que no último dia de set,
mais de duas páginas, era sucinto. Lima coincidentemente, morreu Lima Barreto. Na
Barreto, portanto, parte desse roteiro para cena final do filme, uma borboleta sai da sua

6 Esses roteiros de Vitor Lima Barreto estão depositados nos Arquivos da Biblioteca Nacional.
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crisálida, da sua densa e peculiar hibernação num curta e documentário seminal como
histórica e biológica. Brasília, Contradições de uma Cidade Nova (1967),

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Joaquim Pedro de Andrade mostra fotos dos
À parte dos casos e das coincidências, militares como alguns dos últimos mora-
essa história do roteiro de Inocência elucida dores do Palácio da Alvorada. Vê-se, então,
e reforça vários gestos e intenções que foram uma montagem que intercala imagens de João
caros a Vitor Lima Barreto. Em primeiro lugar, Goulart, Jango, num close, e cercado por gene-
há a compreensão do roteiro como uma peça rais; em seguida, após o golpe de 64, fotos dos
fundamental, seja para a filmagem, seja para Generais Castelo Branco e Costa e Silva. Todas
uma migração histórica que transcendem as essas fotos seguem acompanhadas ao som de
limitações da produção cinematográfica. No passarinhos, conotando uma discreta ironia.
papel, seus filmes possuem uma aura literária
no sentido de apostarem numa sobrevivên- Realizado às vésperas do AI-5, e posterior-
cia estética para além da sua circunscrição mente censurado, o curta anunciava o colapso
histórica. Num caso como o de Inocência, os do projeto modernista, que colocava Brasília
roteiros não filmados adentram, por assim nos holofotes das vanguardas mundiais. De
dizer, certo “círculo virtuoso”, que permite forma amarga, o documentário reconhece que
saltos cronológicos de uma tradição dramá- o projeto de Brasília fracassou justamente por
tica cinematográfica. Trata-se, obviamente, de não universalizar as linhas de Lúcio Costa
uma tradição inventada, que coliga escritores e Niemeyer para além das fronteiras do Plano
e cineastas de tão diferentes cepas. Os rotei- Piloto. Dentro da cinematografia de Joaquim
ros não filmados de Lima Barreto apontam, Pedro de Andrade, Brasília, os militares
de forma veemente, para esse desejo, no qual e certos fracassos brasileiros eram frequen-
a vontade de migrar as palavras nas páginas temente entrelaçados.
para as cenas na tela também perpassem, tal
como numa peça de teatro, diferentes tempos, Essa assertiva é corroborada por um dos
leitores, públicos ou mesmo espectadores. melhores roteiros não filmados do diretor
carioca. O Imponderável Bento contra o Crioulo
Os roteiros não filmados a Voador chama a atenção, inicialmente, por
contrapelo da história assumir um retrato frontal dos militares.
Na cinematografia brasileira, – e mesmo na Escrito em 1986, e, portanto, nos anos que hoje
sua literatura – costumam ser escassas as chamamos como os de “abertura” democrá-
representações mais diretas de militares. Já tica, Joaquim Pedro de Andrade não hesita em
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aproximar os militares de personagens cari- Bento e � lerta com Larroque, que impulsiona
catos, como se fosse típicas figuras oriundas sua carreira de colunista social do Correio de

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da (porno)chanchada. Brasília. Mais do que amante, Taís concentra
o jogo de chantagem e boicotes envolvendo os
Os protagonistas desse roteiro são todos da interesseiros personagens que passeiam entre
Aeronáutica. Eles chamam-se Mauro, Bento porões, voos, sessões de reza mística, almoços
e Larroque – este último o comandante da na churrascaria do lago Paranoá, champanhes
base aérea e manda-chuva na corporação e vernissages. Paulatinamente, o roteiro ruma
que comprou O Correio de Brasília, in� luente para um crescente desvario, que remete aos
jornal da capital federal. O início do roteiro melhores trechos de Macunaíma (1969), tam-
é permeado por perseguições e paranoias. bém de Joaquim Pedro. Algumas cenas pare-
Subitamente, Mauro é convocado no seu cem absurdas, mas também tecem a alegoria
apartamento funcional para uma “ação ins- de uma geração. Súbitas levitações, delibera-
trutiva”. Enquanto dirige, Larroque metra- damente inspiradas em Simão no Deserto (1965),
lha aos ouvidos do subalterno: “Nós estamos de Luis Buñel; orgias kitsch e pretensamente
vivendo uma época grave de nossa história. sofisticadas combinam-se com a ganância
Perigosa, muito perigosa. A subversão está cara à capital do país, com reuniões regadas
infiltrada por todo lado. Nos colégios, na uni- a uísque e cocaína, intrigas e baixarias nas
versidade, na Igreja, na imprensa, e até, o que redações de jornais, fotógrafos fabricando
é mais grave, nas próprias forças armadas. imagens para as capas das fake news da época.
E você, Mauro, anda se reunindo com essa
gente” (ANDRADE, 1990, p. 16). Em seguida, Sobrevivente de um desastre de avião, Bento,
Larroque leva Mauro a uma sessão de tor- o “imponderável”, cai de paraquedas (lite-
tura que resulta num assassinato diante dos ralmente) no meio de uma comunidade de
olhos de vários colegas de farda. Mauro entra anacoretas e ermitões místicos que vive no
em pânico, mas Larroque quer apenas a sua cerrado. Uma pedra levanta-se do chão e de
cumplicidade. Implicitamente, sugere-se que dentro do buraco sai Isidoro, que agradece,
o comandante esteja diretamente envolvido aos prantos, a pouca comida de que dispõe.
com os agentes que tocavam os porões da tor- No sítio desses eremitas, está o “pensatório”,
tura durante a ditadura. cenário de sermões, levitações, auto� lage-
lações e uma tensa e ambígua negação dos
Taís é a sedutora jornalista que enlaça a tríade prazeres carnais. Depois de um árduo trei-
fardada. Casada com Mauro, ela é amante de namento, Bento passa a � lutuar e regressa
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a Brasília, a capital vigiada pelos milicos. Ele trai o amigo e colega, descamba para o misti-
torna-se uma irônica ameaça àquela estraté- cismo como se representasse o desbunde ou

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gica zona aérea. o abandono de qualquer perspectiva política.
Camaleônica, Taís trai a todos e é por todos
O melhor do roteiro está na forma como seus traída, transita por conchavos e oportunis-
chistes são harmonizados com re� lexões his- mos, é cínica, vingativa, abusada por Lar-
tóricas e políticas. Numa das suas sequências roque, mas também dócil nos seus afagos
mais próximas da pornochanchada dos anos protetores quando está junto de Bento. Na his-
setenta, Taís vai com uma trupe de mulhe- tória, ela só alcança autonomia quando passa
res e amigos gays à Soceila, misto de salão de a exercer o sujo jogo das chantagens machis-
beleza com prostíbulo, na Ceilândia. De lá elas tas que a cerca por todos os lados. É por trás
vão importunar a abstinência sexual de Bento dessa trama de traições que Larroque circula,
e sua seita, pois reza a lenda que esses homens sedento por manter-se no poder e por contro-
santos, depois de tanta sublimação, suscitam lar os ares de Brasília. Ele comete atos ilegais,
orgasmos únicos às mulheres que transam. tortura, mata, abusa, estupra e não é repreen-
O resultado é uma memorável sequência de dido por instituição alguma. Apita, manda
vaginas falantes, mulheres rasgando as vestes e desmanda na base, nas ruas, nas capas
dos monges, algo caro a um poder do matriar- de jornais, nos conglomerados econômicos
cado que Joaquim Pedro de Andrade repre- e exige suas recompensas entre as paredes do
sentou em O Homem do Pau-Brasil (1981), seu quarto dezoito do motel Três Poderes.
lendário filme, que adapta parte da obra de
Oswald de Andrade. São várias as temporalidades históricas arti-
culadas pelo roteiro de Joaquim Pedro, que
Dependendo de como seja lido (ou filmado), foi escrito em parceria com Fernando Cony
O Imponderável Bento contra o Crioulo Voador Campos e Eloá Jacobina. A primeira dobra
pode não passar de uma comédia de costumes histórica remete à anistia, instrumento jurí-
do Brasil dos anos oitenta. Num olhar mais dico que possibilitou brechas aos julgamentos
minucioso, contudo, seus personagens nos dos crimes de Estado cometidos por milita-
dizem muito sobre hábitos e comportamen- res e às formas de resistência, armada e civil,
tos comuns após décadas de autoritarismo que os contestaram. Embora o filme pareça
militar no Brasil. Mauro é um “traidor” das ocorrer entre os últimos anos de ditadura e os
forças armadas e acaba sucumbindo à cruel- primeiros de abertura, os militares circulam
dade dessa instituição – é o tipo suicida. Bento livres, leves, soltos e à vontade, como se ainda
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permanecessem no comando da capital – e do peculiares roteiros não filmados da história
país. Os demais personagens estão acuados. do cinema brasileiro. Primeiro, ele permite

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Ora são perseguidos, ora precisam entrar no acessar o ímpar imaginário geracional do país
jogo de favores do comandante. nos idos dos anos oitenta. Voa-se junto com
a empatia dos seus personagens pelos ares que
O roteiro também acena para uma revisão aglutinam a ficção fílmica com a imaginação
crítica do Cinema Novo. Além de � lertar com de uma época. Todo roteiro não filmado,
a pornochanchada – e fazer chacota política como argumentamos nessas linhas, expõe
com tiradas sexuais – inclui-se o misticismo uma fratura temporal, genuinamente espe-
como um elemento bem diferente dos pri- culativa, e torna-se o sintoma de uma história
meiros filmes da geração do cinema novo, nos cindida. São filmes que ainda repousam no
quais a religião era comumente representada papel, que não migraram para telas, não obti-
como uma alienação popular que impediria veram sessões nem contato com um público.
uma transformação política. Levitando, os
personagens trazem pitadas de humor e enfa- Embora O Imponderável Bento Contra o Crioulo
tizam um misticismo vago, híbrido, distinto Voador seja o roteiro mais ilustrativo da
das religiões mais tradicionais; � lertam com carreira não filmada de Joaquim Pedro de
um realismo mágico que consegue comentar Andrade, ele dialoga com outros dois projetos
criticamente os costumes sem se afastar dos seus, também não filmados, e ambos escritos
paradoxos da nossa complexidade cultural. nos anos oitenta. O primeiro roteiro é Casa-
Com diálogos envolventes e uma linguagem -Grande & Senzala, que estava pronto para ocor-
atenta a expressões populares, corriqueiras, rer pouco antes da morte do diretor carioca.
coliga-se a antropofagia oswaldiana com Publicado pela editora Aeroplano, o roteiro
a tragédia do cotidiano à Nelson Rodrigues. de Casa-Grande & Senzala é acompanhado por
O filme, no entanto, não consegue se afastar um amplo material, como fotos, decupagens,
dos pontos de vista do racismo cordial. É o que entrevistas, relatos de viagens, de visitas
ocorre com o crioulo do título, que como perso- a locações e uma introdução que traduz bem
nagem revela-se apático, e acaba sendo repre- ao leitor o espírito do projeto que estava sendo
sentado de forma estereotipada pelos autores, conduzido por Joaquim Pedro de Andrade.
sem subjetividade nem protagonismo.
O roteiro não segue exatamente a clássica
Num último estrato histórico, O Imponderável obra de Gilberto Freyre. Tenta, ao contrário,
Bento contra o Crioulo revela-se um dos mais alinhavar a formação histórica (e íntima) do
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Brasil. Se fosse filmado, certamente seria distante do marido. Tinha, enfim, decidido
a obra mais alegórica e mais próxima de uma pela separação.

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interpretação direta do país, equivalente,
talvez, à Macunaíma (1969), no arroubo de ver Se compararmos com os filmes de Joaquim
pela história – ou pela alegoria, rastros da Pedro contemporâneos à Vida Mansa, como
totalidade da nação. Na sua história do Bra- Crise Conjugal (1975) e A Mulher do Pau-Brasil
sil, tendo Freyre como guia, Joaquim Pedro (1982), constata-se que o diretor carioca pri-
retorna ao encontro entre Pero Vaz de Cami- mava por construir um ritmo dramático que
nha com os habitantes ameríndios, enfatiza tinha o cômico, o chiste e as aventuras sexuais
a violência sexual, a chegada dos escravos dos seus protagonistas como algumas das suas
e um início de socialização que são salpica- principais inquietações. Com Inês não foi dife-
dos por casos os mais diversos. Em seguida, rente. Ao encontrar Marina, já no Rio, ambas
tece uma linha cronológica até chegar à ins- as suas amigas saem em direção aos bares de
talação da Casa-Grande. Dentro dessa ampla paquera no subúrbio da cidade. Entrementes,
perspectiva histórica, Joaquim Pedro opta, Eduardo, o marido abandonado, passa a ligar
no roteiro, por iluminar as microficções, os insistentemente para Marina, que disfarça e,
casos passageiros que passam de forma afim cúmplice de Inês, diz ao ex não saber nada da
e similar nas páginas mais conhecidas do amiga. São falas cômicas que apontam para
clássico dos anos trinta, escrito pelo antro- certos vetores ridículos que tenderiam a acom-
pólogo pernambucano. panhar as comédias de separação brasileiras
nos anos oitenta. Depois de desligar o telefone,
Vida Mansa (1980) é o terceiro roteiro de por exemplo, Eduardo comenta o episódio com
Joaquim Pedro de Andrade que resumire- a mãe, que está ao seu lado e diz: “Coitado do
mos nestas linhas. As cenas iniciais ocor- meu filho.... um corno”. Ao que Eduardo, irri-
rem em Belo Horizonte, no contexto de um tado, replica: “Corno é o caralho, mãe! Corno é
apartamento de classe média. Inês acorda o caralho” (ANDRADE, 1980, p. 20).
e percebe que ela é casada. Inês, no entanto,
deixa seu apartamento, encaminha-se a um Marina e Inês, contudo, conhecem Xavier, num
telefone e avisa Marina, sua amiga que dos botecos que frequentavam. O que ocorre
mora no Rio de Janeiro, que está tomando daí em diante é um puro desvario. Xavier pos-
uma decisão. Abandona tudo e todos da sua sui uma namorada, mas Marina e Inês acabam
família – mesmo a sua filha, e vai mudar indo visitá-lo no Sítio Três Corações e vivem
de vida. Pede um abrigo. Precisa f icar intensos momentos de orgia e libertação.
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A namorada de Xavier, no entanto, conti- Considerações finais 19

nua a ir lá. Numa das cenas mais inusitadas, Qual seria a contribuição dessa arqueolo-

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Marina e Inês matam Xavier e sua compa- gia especulativa dos roteiros não filmados
nheira e passam a morar, calmamente, no de Mário Peixoto, Lima Barreto e Joaquim
sítio. Embora cadenciado por um plot que apa- Pedro de Andrade? Nas linhas acima, tenta-
rentemente soa clássico e coadunado à comé- mos salientar diferentes vértices que aqueles
dia ligeira e de costumes, ao final, Joaquim roteiros permitem vislumbrar dessas obras.
Pedro de Andrade esboça um retorno a temas No caso de Peixoto, os roteiros não filmados
caros da sua pesquisa estética, de in� luência revelam feixes de uma obra submersa e que
modernista e de Oswald de Andrade, como quantitativamente ultrapassam o caso único
o matriarcado e a antropofagia. de Limite. Nos seus textos fílmicos, Peixoto
acena para uma possível completude de uma
O que o contraponto desses três roteiros obra fílmica, que talvez possua tanto ou mais
de Joaquim Pedro de Andrade poderia nos relevância do que seu projeto finalizado.
dizer? Inserido em contraste e no conjunto Nesse sentido, descobrir o cineasta Peixoto
com outros filmes do Cinema Novo dos anos passaria por lidar frontalmente com seus
oitenta, percebe-se como Joaquim Pedro de roteiros não filmados. Para além desse legado
Andrade estava afinado às inquietações esté- estético de uma obra, o caso de O Sono sobre
ticas e políticas da sua geração. Há, em Vida a Areia também revela como um roteiro é um
Mansa, uma representação de uma liberta- potente índice de resgate e arquivo de proces-
ção violenta, levada a cabo pelas personagens sos históricos diluídos, apagados, e de futuras
Inês e Marina. Já em O Imponderável Bento con- apropriações das suas proposições cinemato-
tra o Crioulo, a violência ganha contornos de gráficas. Com esse roteiro, inclusive, torna-se
uma representação bem ácida das heranças possível rever as intenções de Mário Peixoto,
do regime militar e ditatorial, mas é também a despeito dos acontecimentos engendrados
uma coação institucionalizada, cotidiana por Carmen Santos.
e que conduz a população a um tipo bem espe-
cífico de delírio. Pode-se afirmar, nessa linha O caso de O Sertanejo enseja uma série de
interpretativa, que a obra não filmada dos procedimentos de visualização da história
anos oitenta de Joaquim Pedro de Andrade do cinema para além de uma história dos
adensa e complementa o seu mordaz retrato filmes que alcançaram as telas. Se toda lei-
dos costumes e da violência historicamente tura pública e dramática de um roteiro acena
instalados no seio da sociedade brasileira. para uma potente imaginação histórica,
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despertada por um texto já tido como com- roteiro, Joaquim Pedro de Andrade e Fernando
pleto, O Sertanejo nos dá pistas de fortes Cony Campos inovam na representação de

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anseios geracionais, estéticos e políticos, que figuras militares, captam o imaginário da
faziam bastante sentido para quem estivesse abertura e consolidam essa peculiar dialética
diretamente envolvido com a indústria cine- entre os costumes, um imaginário íntimo e as
matográfica brasileira dos anos cinquenta. alegorias da “grande história”. Creio que esses
Como se fossem cenas possíveis de filmes roteiros auxiliam, inclusive, para uma reava-
não vistos, pois não filmados. Indo além de liação historiográfica do Cinema Novo, na sua
ser a ponta de iceberg de uma obra submersa, faceta dos anos oitenta e sua revisão crítica
tal como acontece com a obra de roteiros não aos seus períodos anteriores. Trata-se de uma
filmados de Mário Peixoto, casos como os de obra que engendra vários estratos históricos,
O Sertanejo e outros roteiros de Vitor Lima cuja interpretação no âmbito cinematográfico
Barreto apontam para histórias que tiveram brasileiro ainda está por ser detalhada.
endosso, desejos, imaginários, repercussões
e acontecimentos sociais bastante consis- Somados e contrastados, os seis roteiros que
tentes para o momento histórico preciso que analisamos neste ensaio permitem seguirmos
poderiam ter deslindado. Nessa sismogra- mais adiante numa agenda ou possível con-
fia de acontecimentos históricos incomple- tribuição dos roteiros não filmados dentro da
tos, nesses devires interrompidos, inerentes historiografia do cinema brasileiro. Mais do
à arqueologia especulativa, é preciso reconhe- que pensar em ciclos cinematográficos ou em
cer, por ora, que esses roteiros de Lima Bar- linhas de coerência e outras periodizações, os
reto sedimentavam, em si, uma vontade de roteiros não filmados gesticulam uma possível
diálogo histórico entre gerações e tradições. contribuição da (in)completude dentro da his-
toriografia mais clássica do cinema brasileiro.
Por fim, os roteiros de Joaquim Pedro de Por esse viés, os roteiros não filmados conci-
Andrade sugerem uma importante síntese de liam obras autorais incompletas – sobretudo
duas vertentes estéticas distintas de sua obra, nos casos de Peixoto e Barreto, dadas suas
que não estão totalmente evidentes nos seus escassas produções para as telas – como revela
filmes realizados. Os vetores de um retrato as forças e intenções estéticas dos seus cineas-
íntimo e histórico-alegórico brasileiro, tidos tas ultrapassando as condições históricas
como traços em Vida Mansa e Casa-Grande & e econômicas que faziam parte dos seus con-
Senzala, culminam com raro vigor em O Impon- textos. Roteiros não filmados revelam inquie-
drável Bento Contra o Crioulo Voador. Com esse tações contracíclicas, que não sucumbiram aos
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“colapsos”, às quedas ou, ainda, às linhas de filmados teriam mais a dizer dos imaginários
coerência de e entre períodos. São forças caras cinematográficos de sua época, da possível

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às arqueologias especulativas, pois revelam completude das obras de autores tidos como
acontecimentos tão incompletos como as cenas seminais, assim como de forças contracíclicas
restritas às páginas, às suas fábulas e cenas dos períodos que cada diretor-roteirista par-
sem telas ou aos olhos históricos. ticipou. Como arquivos históricos, os roteiros
não filmados em contextos periféricos apon-
Num contraste que subjaz a essas linhas con- tam para, especulações e arqueologias mais
clusivas, é proveitoso comparar o papel que os potentes e podem, com certeza, convergir
roteiros não filmados possuem em cinemato- vetores de futuras revisões historiográficas,
grafias consolidadas ou com uma significativa dialogar e contribuir com as novas agendas
produção permeada por um forte ritmo indus- de escritura de outras histórias do cinema
trial. Na Hollywood clássica, como um pri- brasileiro. Onde havia escassez, encontra-se
meiro parâmetro, embora haja muitos roteiros abundância – focar nos roteiros não filmados,
não filmados, os conjuntos de roteiros não portanto, impele a compreender uma história
filmados não é significativo o suficiente para do cinema que aposte em ultrapassar a hege-
vislumbrarmos outros rumos estéticos muito monia do paradigma da produção, e da recep-
diferentes do que ocorreu nas telas. É possí- ção de público no seu tempo presente imediato.
vel, sim, entender melhor e com mais precisão, Uma forma de dar vista (parcial) a uma história
por exemplo, aspectos autorais de roteiristas que é tida como (integralmente) invisível.
importantes como Ben Hecht, Billy Wilder,
Frances Marion e Herman Mankwiecz. Mesmo Referências
assim, esses roteiristas estavam inseridos num ANDRADE, Joaquim Pedro. O imponderável
molde de trabalho tão frenético que consegui- Bento contra o crioulo voador. São Paulo:
Marco Zero, 1990.
ram disseminar seus anseios, ideias e propo-
sições estéticas num conjunto, muitas vezes, ANDRADE, Joaquim Pedro. Casa-Grande,
Senzala & Cia: Roteiro e Diário. Rio de Janeiro:
próximo da centena de filmes.
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ANDRADE, Joaquim Pedro. Vida Mansa. São


Num argumento econômico, os roteiros não fil-
Paulo: Arquivo Cinemateca Brasileira, 1980.
mados possibilitam apontamentos marginais
BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia
da cinematografia Hollywoodiana. Em países
clássica do cinema brasileiro. São Paulo:
“subdesenvolvidos”, numa síntese que retoma Annablume, 2004.
a expressão de Salles Gomes, os roteiros não
ID 2102 www.e-compos.org.br
Fábulas sem olhos: os roteiros não filmados na historiografia do cinema brasileiro | E-ISSN 1808-2599 |

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Informações sobre o artigo


Resultado de projeto de pesquisa: O artigo é resultado da pesquisa de pós-doutorado intitulada Uma Arqueologia
Especulativa: rastros dos roteiros não filmados na história do cinema, a qual foi realizada no programa de Pós-Graduação
da Escola de Comunicação e Artes, ECA, na Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 2019. A pesquisa também
contou com um levantamento de pesquisa e material na Cinemateca Brasileira, no Arquivo Mário Peixoto.
Fontes de financiamento: Não se aplica.
Considerações éticas: Não se aplica.
Declaração de conflito de interesses: Não se aplica.
Apresentação anterior: Não se aplica.
Agradecimentos/Contribuições adicionais: Agradecimentos a Eduardo Morettin, Ayla Pereira de Mello, Carlos Augusto
Calil, Lila Foster, Fillippi Fernandes, Ismail Xavier, Hernani Heffner, Inácio Araújo, Carlos Roberto Souza, Marcos Napolitano,
Denilson Lopes, Walter Lima Jr., aos colegas do Departamento de Audiovisual e Publicidade da UnB e do grupo de pesquisa
História e Audiovisual: Circularidades e Formas de Comunicação.
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Pablo Gonçalo | E-ISSN 1808-2599 |

Film dreaming: unfilmed Fábulas sin ojos: los guiones no 23

scripts in Brazilian cinema filmados en la historiografía del


cine brasileño

 E-compós (Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), ISSN 1808-2599, v. 23, jan–dez, publicação contínua, 2020, p. 1–23. https://doi.org/110.30962/ec.2102
Abstract: Resumen:
�e essay proposes a historiographical review El ensayo propone una revisión historiográfica
of Brazilian cinema based on unfilmed scripts. del cine brasileño basada en guiones no
Following an analysis of unfilmed scripts filmados. Después de un análisis de guiones
written by Mário Peixoto, Vítor Lima Barreto no filmados por Mário Peixoto, Vítor Lima
and Joaquim Pedro de Andrade the author Barreto y Joaquim Pedro de Andrade, se sugiere
suggests to understand styles, projects and capturar estilos, proyectos e intenciones
aesthetic intentions that, though announced, estéticas que anunciaron aspectos históricos
were incomplete historical aspects in the no consolidados en los ciclos cinematográficos
cinematic cycles took part by these directors. comprendidos por estos directores. Estos
�ese unfilmed scripts are analysed using guiones no filmados se analizan utilizando una
a speculative archeology methodology. Whether metodología de arqueologia especulativa. Ya
in the cinema of the twenties, in the Vera Cruz sea en el cine de los años veinte, en el proyecto
project or in the relationship between Cinema Vera Cruz o en la relación entre Cinema Novo
Novo and Embrafilme, this set of scripts allow us y Embrafilme, este conjunto de guiones revela
to to glimpse counter-cycle aspects the cinematic poderosas imágenes estéticas que nos permiten
periods that they had dialogued and promoted. vislumbrar aspectos anticíclicos de los periodos
Keywords: cinematográficos que dialogaron y presagiaron.
Brazilian Cinema. Film History. Unfilmed Scripts Palabras clave:
Cine brasileño. Historia del ine.
Guiones no filmados

Pablo Gonçalo
Doutor em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, com passagem pela Universidade Livre de Berlim,
quando foi bolsista do DAAD. Professor da Faculdade de
Comunicação da Universidade de Brasília.
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil.
E-mail: pablogoncalo@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3745-161X

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