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Peter G.

Gow, 1958-2021

O PPGAS lamenta profundamente o falecimento, dia 18 de maio, de nosso colega e amigo


querido Peter Gow (Edinburgo, 1958), após uma longa doença. Peter foi um dos mais importantes
etnólogos de sua geração; seus trabalhos sobre o povo Yine (Piro) da Amazônia peruana foram e
permanecem sendo uma referência fundamental para toda a antropologia amazônica posterior, tanto
do ponto de vista de suas contribuições etnográficas e teóricas como de sua elegância estilística.

Peter Gow ensinou antropologia nas universidades de East Anglia, Manchester, London
School of Economics, e finalmente St Andrews, onde foi nomeado Professor em 2003. Peter foi
professor-visitante no PPGAS do Museu Nacional em 1996-97, mas estava entre nós praticamente
todos os anos, desde pelo menos 1992, em visitas mais curtas, quando sempre era convidado a dar
palestras que atraíam muitos colegas e estudantes. Sua última visita ao Rio de Janeiro se deu em
setembro de 2018, para participar de um seminário internacional sobre povos indígenas em
isolamento voluntário, realizado no campus da Praia Vermelha da UFRJ. Peter tinha inúmeros amigos
e admiradores no Brasil, país a que se afeiçoou, entre eles diversos professores, alunos e ex-alunos do
PPGAS e instituições congêneres, com quem manteve uma interlocução constante, como se pode
constatar na quantidade de referências recíprocas entre seus trabalhos e os de pesquisadores
brasileiros.

Peter obteve seu doutorado na London School of Economics (1988), sob a supervisão de
Joanna Overing, com uma tese sobre os povos indígenas do Baixo Urubamba. A tese veio a se
transformar em sua primeira monografia publicada, Of Mixed Blood: Kinship and History in Western
Amazonia (1991), seguida, dez anos mais tarde, por seu segundo livro, An Amazonian Myth and its
History. Estes dois estudos, ao lado de uma boa dezena de artigos seminais,    — sobre economia,
organização social, cultura material, estética, escrita, conversão religiosa —, mudaram os termos de
descrição e análise de temas como o parentesco, a mitologia e a história da região, que Peter Gow
soube entrelaçar de um modo radicalmente original, em que a história se declina no idioma do
parentesco, a narrativa mítica se desdobra em interpretação da história, e o parentesco se torna
contexto pragmático e condição de possibilidade da narração mítica. Acrescente-se que Peter era um
mestre da prosa antropológica de língua inglesa, um exemplo de sutileza e originalidade
argumentativas.

Combinando os registros do acontecimento e da estrutura, o detalhe etnográfico e a


generalização audaciosa, uma disciplina etnográfica “malinowskiana” e uma sensibilidade intelectual
“lévi-straussiana”, Peter nos legou uma descrição fenomenológica memorável do mundo vivido das
comunidades piro contemporâneas, mostrando ao mesmo tempo a profunda inserção deste mundo nas
grandes matrizes mitocosmológicas ameríndias. Ao reconstruir minuciosamente a história do
colonialismo branco naquela parte da Amazônia ocidental, Gow revelou toda uma dinâmica de
reinvenção das formas de socialidade nativas, identificando, de um lado, uma sofisticada teoria
indígena da mudança histórica (tornando assim obsoletos o conteúdo e a forma das teorias da
aculturação e seus avatares sociológicos) e, de outro lado, uma não menos sofisticada prática da
mudança, isto é, a capacidade dos povos nativos de inovarem e renovarem sua forma de vida. Ao
mesmo tempo, demonstrou a continuidade imanente entre essa forma de vida e aquelas dos povos
indígenas ostensivamente mais distantes dos dispositivos de captura existencial empregados pelos
estados nacionais de origem europeia.

Peter Gow era um conversador fascinante, com uma memória prodigiosa e uma enorme
erudição em diversos campos. Era dono de uma verve infatigável, de um anedotário estruturado como
as Mitológicas, em que múltiplas versões da “mesma” história se iam transformando constantemente,
entretendo seus ouvintes por horas a fio. Era um grande companheiro de copo e de papo. Um grande
intelectual, um homem gentil, um amigo generoso. Sua perda é irreparável.

Eduardo Viveiros de Castro

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