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br/edu-o-publica-carta-aos-bipedes/
30 de junho de 2020
Acesso em 08 de agosto de 2020

“Carta aos bípedes,

Você, talvez, não se dê conta, mas você é bípede. Sim, se você não
possui nenhuma deficiência e é parte da categoria de pessoas
construídas dentro de padrões normativos de corpo que consideram as
experiências da deficiência como patologia, se nos olha com sentimento
de pena, compaixão, se considera a pessoa com deficiência menos
capaz, menos bela e improdutiva, se considera a deficiência como se
fosse uma experiência única que se repete da mesma maneira para
todas as pessoas e desconsidera a grande diversidade das deficiências e
suas especificidades, além dos contextos pessoais, você é bípede.
Se a sua inclusão quiser nos colocar nos cercadinhos específicos que
mais excluem, sim, você é bípede. Se entende que o corpo sem
deficiência é a única possibilidade de normalidade, sem dúvida, você é
bípede.

Você é bípede, se a sua Dança desconsidera as possibilidades de


diversos corpos e não se dá conta das limitações da própria bipedia
(essa estrutura sócio-economica-cultural-política que determina o que é
normal e o que é anormal. O que apresento como bipedia não se trata da
maneira de andar, é sobre sistemas de opressão pautados na
normalidade construída historicamente), se nas suas escolhas estéticas,
artísticas e, portanto, políticas, você mantém e reproduz espaços de
invisibilidade e não reconhecimento da produção de artistas com
deficiência, se na sua curadoria você não se dá conta de que o tema
secular da Dança é o corpo branco-cisgênero-bípede e não faz a mínima
questão de transformar isso e nos mantém na programação como extras,
se em suas aulas você nem pensa nas pessoas com deficiência e se
aparecer alguma… ela que se vire/adapte porque “meu grand jeté é lindo
demais para eu não mostrar”.

Sem dúvida não conseguimos desconstruir e destruir estruturas tão fixas


assim, mas o fato de vocês terem nos acompanhado nesse curso e
suportado tantas provocações, já indica um vento que vem de longe para
soprar – quem sabe – alguma mudança. Nós mudamos quando
entramos em contato com o outro, nos perturbamos com o desconhecido
ou nem tão desconhecido assim, mas justamente por ser tão conhecido
nem nos damos conta. O encontro… o contato… transformam.
Durante essa semana entendemos juntos, esse “corpo intruso” que nos
instiga, coça o meio das costas, essas bolhas que furamos para afirmar o
que somos e rejeitar padrões impostos. Jamais esquecer de que quando
entramos nos espaços os transformamos. Experiência vivida não se
apaga. Ninguém fala por ninguém, mas podemos compreender o
universo do outro e tentar criar junto com ele. Hoje, saberemos que
voar… é do homem! (Djvan)

Se já havia passado da hora da mudança, não será este o momento para


transformarmos nossos hábitos de consumo, romper padrões que
criamos, repetimos e nos determinam o que é belo, o que é produtivo e
capaz? Quando sairmos desse isolamento que vocês bípedes estão
experimentando pela primeira vez, mas que para nós – pessoas com
deficiência – é uma condição imposta pela falta de acessibilidade e
oportunidades, o que vai importar? Quais vidas importam? Umas mais
outras menos?
O corpo com deficiência é futuro. Tenho repetido isso incansavelmente.
A experiência da deficiência é um porvir constante, se não por alguma
surpresa do destino, pela própria vida. Sim, quando envelhecemos é
porque nos mantemos vivos e o envelhecimento é companheiro da
deficiência. Se você tem problemas com a velhice, não seria esse
também o momento de pensa-la como vida?
Pelo futuro que já é agora, eu quero agradecer a companhia de vocês
durante essa semana.
Ocupar espaços de visibilidade, me entender parte de uma multidão e
tentar quebrar as barreiras impostas pela normatividade, me movem e
me fazem existir e, mesmo com toda insegurança, a aceitar o que nem
me era tão confortável como fazer lives, por exemplo. Mas vocês me
colocaram no colo e me fizeram acreditar que estavam aqui comigo,
neste sofá cinza.
Estar acompanhado de Estela Lapponi, Alexandre Américo, Moira Braga,
Clarissa Costa e Mickaella Dantas foi uma estratégia que encontrei em
fazer ecoar reflexões e discussões que venho alimentando há muito
tempo, buscando não centralizar o discurso, não personalizar essa
história ainda pouco contada e quase nada acessada por grande parte
das pessoas. Pensar num panorama, ainda que restrito, que reflita essas
questões diante de realidades variadas e da diversidade que nos
constitui nos diversos pontos do país: Salvador, São Paulo, Natal, Rio de
Janeiro, Fortaleza, Cruzeta-Ilha da Madeira-Lisboa-Londres. Esse
passado-presente-futuro AQUI.
Que bom ter vocês aqui comigo! Sentirei saudade, mas estarei logo ali
do lado, no insta @eduimpro , caso queiram continuar de mãos dadas.
Até a próxima e que não demore tanto!
Com todo afeto
Edu O.”

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