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Nobre, 2009
Nobre, 2009
AO PROCESSO CIVILIZADOR
Norbert Elias caracteriza a história do Ocidente dos últimos quatro séculos pela
teoria geral do “processo civilizador”, através do qual se delinearam as tendências e os
sentidos principais de estruturação das sociedades modernas, notadamente as européias.
Todavia, embora ele procure apresentar uma perspectiva panorâmica e abrangente e de
longa duração, faz parte da sua proposta entender que “o processo” não se desenvolveu no
mesmo ritmo e com as mesmas efetivações em todos os países. Isso não impede que, em
termos fundamentais, verifique-se a combinação de linhas de desenvolvimento que virão a
prevalecer em todas as nações européias modernas, ao mesmo tempo em que elas serão
exportadas mundo afora. Ao fim e ao cabo, tem-se a teorização de um vasto e longo
processo histórico demarcado por forças convergentes, estando dotado de sentidos bem
definidos, mas formado por tendências e lutas variadas.
Não vou estender-me características do processo civilizador, uma vez que o intento
do texto é abordar o ritmo particular e as especificidades da situação alemã em contraste
com a França e a Inglaterra, nações onde o processo teve a sua rítmica mais firme e as
tendências mais definidas. Em termos sintéticos, enumero alguns dos principais sentidos
que vieram a ser firmar no curso de uma longa cadeia de ações e interações, que percorre
mais de quatro séculos até a contemporaneidade, e que não é de modo algum linear ou
desprovida de tensões e relativos recuos. Tão pouco, os sentidos destacados a seguir
cobrem todos os elementos do processo civilizador, mas certamente eles são fundamentais
e se encontram em relação de reforço mútuo. São eles: a estabilização e pacificação das
relações sociais, que se tornam mais extensas no tempo e no espaço, para o que foi decisiva
a formação de monopólicos de forças, especialmente no campo da política, como Estado-
Nação, mas também concentração econômica e intelectual e jurídica; uma constante e
crescente “economia das pulsões”, inicialmente como regras de civilité e, posteriormente,
como uma exigência dos padrões “externos” de integração aos mais diferentes campos
sociais; forte individualização, o chamado processo de interiorização, o que implica o
aumento da autoconsciência, a exacerbação da dimensão do autocontrole, a maior
reflexividade no processamento da vida social e a adoção de uma perspectiva de vida mais
existencial e pragmática; a declinação dos diferenciais de poder nas relações interpessoais;
e a valorização das liberdades, da privacidade e dos direitos sociais. Esses sentidos
encontram-se reunidos nas duas grandes tendências que definem, em última instância, o
processo civilizador na visão de Elias: o desenvolvimento da “sociogênese” – a
configuração das estruturas “exteriores” de poder e de redes de integração mais extensas –
e a “psicogênese” – a configuração das estruturas “interiores” de personalidade e de
autocontrole. Dentre outras, há a seguinte passagem na obra de Elias que esclarece para a
inexorável convergência de elementos das duas instâncias estruturais:
“O processo ‘civilizador’ visto a partir dos aspectos dos padrões de conduta e de
controle de pulsões aparece como um processo de integração em andamento, um
aumento na diferenciação de funções sociais e na interdependência e como a
formação de unidades ainda maiores de integração, de cuja evolução e fortuna o
indivíduo depende, saiba disso ou não”. 1
Embora o autor compreenda, sociologicamente, que essa sensação é apenas uma vivência
interior, e não a realidade em si – isso porque os indivíduos encontram-se muito mais
interligados do que imaginam, e o que se denomina de coerções sociais sempre são
coerções de “indivíduos” sobre “indivíduos” –, é real e válido o “drama existencial”
vivenciado nas condições civilizatórias do moderno Ocidente. O drama, de recorte
psíquico, reporta a uma efetiva mudança na balança histórica de significação social, de
uma maior referência ao “nós” para a inflação do “eu”. De todo modo, a marca decisiva do
processo é o desenvolvimento de novos padrões de dependência mútua e novas
modalidades de controle. Nisso, pode-se falar em ganhos de liberdades e de privacidade,
mas não em autonomia do indivíduo.
O caso alemão
Bildung é a palavra que expressa a noção de um cultivo do espírito por meio de uma sólida
formação universalista, pela valorização de tudo o que elevava o espírito em virtude e
sabedoria, como as artes, a filosofia e as ciências. Essencialmente um movimento literário
e filosófico, “cujos expoentes incluíam Klopstock, Herder, Lessing, (...) o jovem Goethe, o
jovem Schiller e tantos outros”,4 podendo-se acrescentar Kant e, não sem maiores reservas,
Lutero e Nietzsche. 5 Todos eles buscavam uma qualificação espiritual, compreendida
como abertura para a sensibilidade, o amor à natureza, a entrega às emoções sem os freios
da razão, o lançar-se ao conhecimento das idéias e imagens mais profundas e
3
Elias, N. O processo civilizador v1, p.33-34.
4
Idem, p.41.
5
Embora Elias incluísse Nietzsche no segundo grupo – o da burguesia que valorizava a força e o poder –, ele
sabia da baixa estima do filósofo pela Alemanha ao mesmo tempo em que entendia ter o filósofo operado
uma “romantização do poder (...) em que o poder ganho pela força apresentava-se sob formas embelezadas,
como um valor altamente apreciado”, não exatamente conforme o humanismo da intelligentsia, mas
certamente em “grande estilo” (Os alemães, p.167). Há várias passagens na obra de Nietzsche em que se
verifica a sua oposição radical à noção de Zivilization, não tanto contra a Corte Imperial, mas, sobretudo, em
sua conformação burguesa mais decisiva, ou seja, contra a priorização da política e da economia, tempo
também do individualismo prático e da impessoalidade nas relações. Vê-se a crítica, por exemplo, na
seguinte passagem: “Nenhuma situação política e econômica merece que justamente os mais talentosos de
espírito se ocupem dela: um tal emprego do espírito é, no fundo, pior do que um estado de indigência”
(Aurora, §179, p.129).
fundamentais. O ideal maior era o de que a personalidade formada contemplasse uma
singularidade, uma universalidade e uma totalidade de caráter. 6
A intelligentsia conforma uma camada social que Norbert Elias define como de
“classe média” – portanto, burguesa, citadina - que não pertence diretamente à Corte – não
são amigos do Kaiser -, mas que depende da Corte para sobreviver, executando, sobretudo,
funções administrativas e educacionais. Neste período, as figuras que notabilizam a
intelligentsia são as do clérigo e do professor, “que desempenharam um papel decisivo na
formação e difusão de uma nova língua alemã culta”. 7 A valorização do alemão como
língua culta e fecunda, apropriada para as tarefas do pensamento, colocava a intelligentsia
burguesa em oposição à classe cortesã superior, a qual tinha como principal marca de
distinção a valorização do francês, língua usada no círculo fechado da “boa sociedade”.
Este é um ponto central da nervura que alimentava estratégias de distinção da intelligentsia
frente à Corte. Mas o sentido é mais profundo do que apenas a valorização do alemão. A
grande crítica se dirige contra a conduta e as maneiras de comportamento dos membros da
camada cortesã, avaliadas como “superficiais”, “de fachada” e “insinceras”. “Em 1784,
Kant distinguiu muito claramente civilização de cultura, identificando a primeira com boas
maneiras e amenidades sociais, e a segunda, com arte, saber e moralidade”. 8 Elias resume
sua perspectiva interpretativa dessa luta com as seguintes palavras:
“Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos tais como
‘profundeza’ e ‘superficialidade’, ‘honestidade’ e ‘falsidade’, ‘polidez de fachada’ e
‘autêntica virtude”, e dos quais, dentre outras coisas, brota a antítese Zivilization e
Kultur, descobrimos, em uma fase particular o desenvolvimento alemão, a tensão
entre a intelligentsia de classe média e a aristocracia cortesão”. 9
6
Ringer, F. O declínio dos mandarins alemães, p.95.
7
Elias, N. O processo civilizador v1, p.41.
8
Ringer, F. Op. Cit., p.97.
9
Idem, p.46.
10
Idem, p.47.
O caráter fundamental da luta da intelligentsia alemã indica que a aristocracia do
espírito era vista como superior à elite política e econômica, a cultura era superior à
política e à economia, a universidade e a troca intelectual de ideais eram superiores aos
salões imperiais e às disputas por honra e prestígio, o universal era superior ao
provinciano, a interioridade era superior à exterioridade, as atitudes eram superiores aos
gestos, a moralidade e a integridade eram superiores à honra e as representações de decoro
e decência, a virtude era superior à honra, enfim, a Kultur superior à Zivilization. .Por
conta dessa luta é que, na época áurea de Napoleão, a “cultura” era alemã e a “civilização”
era francesa, sendo que, em contraste com a burguesia alemã cultivadora da Bildung, “o
mais alto objetivo do burguês (francês) enquanto indivíduo era obter para si e sua família
um título aristocrático, com os privilégios que o acompanhavam”. 11
A partir e para além da intelligentsia, pode-se dizer que o sentido último das
bandeiras e valores das camadas burguesas alemãs, entre o século dezoito e primeiras
décadas do século XX, foi o da aristocratização. As camadas burguesas empreenderam
lutas por ascensão, não uma ascensão simplesmente social e muito menos de cunho
prioritariamente material, mas sim uma ascensão cultural, de cunho simbólico: os setores
burgueses, independentemente das suas expressivas diferenças, buscaram principalmente a
autovaloração, quer numa perspectiva de dignificar o indivíduo, o grupo ou a Nação. Como
sugere Nietzsche, uma “alma nobre” “é intolerante” e “tem reverência por si mesma”, 12
com o que, invariavelmente, ela procura se distinguir dos segmentos considerados
medíocres, ignorantes ou alienados em seu modo de vida. Todo aristocratismo é sempre a
estratégia de uma distinção e uma elitização. Assim agiu a nobreza cortesã francesa quando
desenvolveu atitudes e maneiras “civilizadas” de se comportar para se distinguir dos
bárbaros, assim agiu a intelligentsia alemã para se distinguir da Corte, assim agiu a
burguesia nacionalista para se distinguir dos fracos e dos “impuros”.
Quando Elias faz referência ao sentido aristocrático da luta burguesa, isso se aplica,
em acepções distintas, aos dois movimentos das camadas médias por ele destacados: o que
foi conduzido pela intelligentsia, e cujo vigor durou até meados do século XIX, e o que
corresponde à satisfaktionfähige Gesellschaft, “uma expressão de que é impossível dar
uma tradução direta, mas que significa uma sociedade gravitando em torno de um código
de honra em que duelar, e exigir, e dar ‘satisfação’ ocupavam um lugar de arrogante
destaque”. 13 A ascensão dessa camada se dá a partir da unificação, em 1871. Adota-se um
novo código de vida, o qual se rivaliza com o espírito da Intelligentsia, uma vez que “as
realizações culturais e todas as coisas que tinham sido caras á burguesia alemã na segunda
metade do século XVIII, incluindo a humanidade e a moralidade generalizada, tinham uma
classificação inferior, quando não eram positivamente desprezadas”. 14 Uma burguesia
ligada às universidades, ao exército nacional e à administração política, que se orienta pelo
establishment imperial (o Kaiserreich unificado), exatamente o que os cultivadores de um
humanismo literário e filosófico repudiavam. A luta, agora, visa o poder e a afirmação de
um habitus nacional calcado na força e na honra. O código burguês, então,
“(...) estava impregnado mais do que nunca de elementos oriundos do código
monárquico-aristocrático, o qual (...) era orientado por um ethos guerreiro, para a
manutenção da desigualdade entre as pessoas, para julgar que os mais fortes são os
melhores e, assim, para a implacável dureza da vida”. 15
11
Elias, N. O processo civilizador v2, p.152.
12
Nietzsche, F. Além do bem e do mal, §262 e 288, p.177 e 192.
13
Dunning, E. e Mennell, S. “Prefácio” in Elias, N. Os alemães, p.8.
14
Elias, N. Os alemães, p.112.
15
Idem, p.66.
Assim, tem-se posto dois movimentos distintos de aristocratização de setores
médios: um primeiro, prevalecente na segunda metade do século XVIII, sob hegemonia de
escritores, professores, clérigos e literatos em geral, que se dirigia para uma oposição à
Corte, repudiando-se o seu código de honras, suas convenções, suas amenidades, suas
rivalidades e seus espetáculos, tudo isso avaliado como de muito mau gosto. A verdadeira
nobreza era, pois, uma questão de gosto, de estilo, de virtuosismo do espírito; ser superior
era mostrar-se virtuoso. Disso, a paixão quase unânime em meio à intelligentsia pela
cultura clássica dos Gregos. Exigia-se solidão e sensibilidade aguçada. As lutas maiores
diziam respeito ao plano dos valores e eram travadas nos rincões da alma. Uma burguesia
mais renascentista e humanista. O outro movimento burguês, mais expressivo entre os
prussianos no final do século XIX, sob hegemonia de militares e estudantes, inspirava-se
precisamente na cultura da honra guerreira, muita mais próxima, pois, do espírito da “boa
sociedade” 16 da Corte. A grande aristocracia estava na defesa da honra ao ponto do duelo e
da guerra; ser superior era mostrar-se corajoso. O que fascinava na Antiguidade era o Ágon
muito mais do que a Sophya, o Coliseu muito mais do que a Paidéia. Ao invés de solidão,
a participação intensa e comprometida nas confrarias nacionalistas ou nas agremiações
duelistas. As lutas giravam em torno da honra e eram travadas por homens e nações
armados. Uma burguesia mais nacionalista e imperial.
A despeito da antítese, porém, pode-se dizer que, em comum, a Universidade foi,
na Alemanha, um terreno privilegiado de expressão da “classe média” nas duas acepções
sociais classificadas por Elias: a Intelligentsia e a satisfaktionsfähige Gesellschaft. A
Universidade foi o meio no qual se expressaram, em períodos diversos, códigos culturais
muito distintos e, no essencial, antitéticos. A transformação se deu no sentido de uma
inversão de valores, através do que a visão da Universidade como ambiente para cultivo
das Humanidades, para formação erudita e para elevação da História Cultural em sentido
universal tornou-se subordinada a idéia da Universidade como expressão de elitismos
político e como espaço para uma vida social baseada no cultivo da honra e dos jogos de
satisfação. Mais do que a resignação intelectual dos “mandarins modernos” diante da
supremacia dos critérios civilizatórios burgueses anti-aristocráticos, ao reconhecerem a
impossibilidade do cultivo do homem universalista e fáustico em condições civilizadas,
como se vê em Max Weber, o que mais desfigurou a insígnia humanista do antigo e mais
autêntico mandarim alemão foi a adesão política ao culto do anti-semitismo e do
nacionalismo agressivo. A Universidade era o espaço dos mandarins, mas que deixaram de
cultuar os heróis do espírito e estilizar valores para cultuarem os heróis nacionais e
ritualizarem valores. A valorização da Nação e a pertinência a comunidades ritualistas vão-
se sobrepor à importância maior outrora conferida à formação e ao caráter.
Obviamente esses contrastes construídos entre camadas burguesas, inspirado
diretamente nas análises de Elias, são baseados em características típicas que definem
diferentes estruturas de comportamento com vínculos sócio-históricos igualmente distintos.
Isso significa que não se deve desconsiderar a existência de misturas. Há uma interessante
citação de Friedrich Meinecke, bastante esclarecedora da combinação entre a tradição da
Bildung e o novo cenário de Nação alemã unificada, que vale à pena reproduzir, apesar do
seu aspecto tendencioso:
“O mundo alemão do intelecto e do espírito aproximou-se do Estado com uma
simpatia genuína e espontânea. Foram ativados os mananciais que fertilizaram toda a
vida alemã, muito além do objetivo imediato de libertação. O que fora conseguido
antes disso, quando o espírito alemão buscava e desejava somente a si mesmo, pôde
elevar-se mais ainda até alcançar a esfera do eterno; mas, quando o espírito desceu ao
16
Idem, p.56.
Estado, assegurou não apenas a sua própria existência e a existência ameaçada do
Estado, mas também todo um conjunto de valores internos, uma fonte de energia e
felicidade para as gerações futuras”. 17
17
In Ringer, F. Op. Cit., p.121.
18
Idem, p.96.
Referências
ELIAS, Norbert. O processo civilizador v1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
_____________. O processo civilizador v2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ed, 1993.
_____________. Os alemães – a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
_____________. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
___________________. Além do bem e do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
RINGER, Fritz K. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000.