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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

GUILHERME ALESSANDRO LEMOS DA SILVA MOREIRA

General Augusto Heleno: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a demarcação de uma política militar

SÃO CARLOS -SP

2021
GUILHERME ALESSANDRO LEMOS DA SILVA MOREIRA

GENERAL AUGUSTO HELENO: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a demarcação de uma política militar

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento


de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos,
para obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Piero de Camargo Leirner.

São Carlos-SP

2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Folha de aprovação

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Henrique de Toledo

Universidade Federal de São Carlos


À minha família
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar à minha família por todo o apoio e amor que me deram até aqui, em especial
aos meus pais, Marcos e Marúcia, e aos meus queridos irmãos, Laura e Diogo.

Em segundo lugar, deixo aqui meus sinceros agradecimentos aos professores do curso de Ciências Sociais
da Universidade Federal de São Carlos, entre os quais destaco, Gabriel Ávila Casalecchi, que no início de minha
graduação gentilmente convidou recém ingressantes no curso à comporem seu grupo de pesquisa sobre
comportamento político, resultando no meu primeiro contato com a pesquisa acadêmica e posteriormente no
desenvolvimento de minha Iniciação Científica, a qual tenho profundo orgulho de ter realizado. Nesta mesma linha,
não posso deixar também de render meus agradecimentos à Piero Leirner, meu orientador na pesquisa que se segue
e responsável por me introduzir não somente no campo de pesquisas sobre Forças Armadas no Brasil, mas também
em discussões amplas de um contexto político brasileiro marcado por associações de difícil identificação, as quais
impõem desafios diários à pesquisa e à orientação pessoal enquanto cidadãos. Seguem-se a eles Samira Feldman
Marzocchi, que gentilmente me inseriu nas discussões realizadas pelos pesquisadores membros do Núcleo de
Estudos em Ambiente, Cultura e Tecnologia (NAMCULT), no qual pude vivenciar debates teóricos enriquecedores,
bem como colocar em prática outras dimensões do trabalho de pesquisador como a redação e revisão de textos, e a
realização de entrevistas. À professora Samira, mas também à Renato Almeida de Moraes e Lidiane Soares
Rodrigues deixo meu agradecimento pelas diversas oportunidades em que estiveram dispostos a dialogar e orientar
não somente a mim mas também diversos outros alunos do curso, produzindo, entre outras coisas, uma maior
sensação de pertencimento à Universidade. Paralelamente, devo mencionar ainda os nomes de Vera Alves Cepêda,
Svetlana Ruseishvili, Anna Catarina Morawska Vianna e Jacqueline Sinhoretto, as quais devo minha formação e
não deixam de ser minhas fontes de inspiração.

Nestes agradecimentos é necessário mencionar ainda os nomes de Vítor Queiroz Santos, Fábio Henrique
Marques, Renato Candido, Pedro Costa, Jorge Nakase, Luis Gustavo Figueiredo, Lucimara Coelho Giani, Mário
André Sene, Andréa Junqueira, Alexia Marques, João Carlos Veloso, Vanize Quintano Ferreira, Marisa Moreira,
Cecilia Lopes, Diego Barione e Fernanda Santos, a vocês sou eternamente grato.

Integram aos meus agradecimentos meus queridos colegas de discussão diária, Mateus França Holmo,
Melaní Garcia, Talissa Gabriela Rivotrati (Liss), Guilherme de Lima, Rodrigo Souza Alves e Iago Marichi Costa.
Nesta mesma linha, devo dizer ainda que esta pesquisa não seria possível sem o que aprendi com Marcelo Pimentel
Jorge Souza, Romulus Maya e a rede do Duplo Expresso, a eles também devo minha formação.
Agradeço ainda à Caio Bernardo Gomes, Saloma Caique Dal Ri, Guilherme Nogueira, Ana Carolina Tunis
(Karol), Isabela Candido, Thiago Moreira, Arthur Fiorati Faria, Yasmin Camillo, Luana Souza, Erika Fiorentino,
Letícia Dos Passos Rosa e Winnie Simões, sem a amizade de vocês a vida seria mais difícil.

Por fim, deixo meus agradecimentos ao colega Jonas Arjona que me auxiliou na busca dos vídeos que
também compõem o material discutido nesta pesquisa e ao professor Luiz Henrique de Toledo que gentilmente
aceitou ler e redigir o parecer de aprovação da monografia que se segue.
RESUMO

Por ocasião do seminário Brasil, ameaças à sua soberania realizado em abril de 2008, o então comandante militar
da Amazônia, general-de-exército Augusto Heleno Ribeiro Pereira, declarou ser a política indigenista brasileira
“lamentável” e “caótica”, ao mesmo tempo em que contestava a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
(TIRSS) de forma contínua e em faixa de fronteira. Sucedida de tomadas de posição por demais militares, o conteúdo
da declaração colocava em evidência alterações doutrinário-estratégicas e simbólicas centradas na região amazônica
realizadas pelo Exército Brasileiro desde o final do regime militar. Neste contexto de fatos, a referida pesquisa
objetivou identificar e analisar as tomadas de posição do general Heleno e demais militares das Forças Armadas
acerca da TIRSS nos jornais impressos O Globo, A Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo entre setembro de
2007 e maio de 2009. Para atingirmos estes objetivos foram coletadas notícias nos acervos digitais dos três jornais
por meio do uso de palavras-chave, restringindo-se a reportagens com menções nominais ao general Heleno, as quais
foram posteriormente analisadas de forma qualitativa. Ao final da pesquisa pôde-se identificar que a demarcação da
TIRSS se constituiu enquanto um evento de legitimação política da instituição militar a partir de um problema
específico competente ao Exército capaz de produzir significação simbólica e coesão à conduta militar dentro e fora
da cadeia de comando-obediência, contrariando a formulação civil de que eventos como esse expressariam pura e
simplesmente a indisciplina militar.

Palavras-chave: Exército Brasileiro. General Augusto Heleno. Amazônia. Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
ABSTRACT

On the occasion of the seminar Brazil, threats to its sovereignty, which was held in April 2008, the military
commander of the Amazon, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, called the Brazilian indigenist policy
“regrettable” and “chaotic”, at the same time that contested the demarcation of Terra Indígena Raposa Serra do Sol
(TIRSS) on a continuous basis and along the borderland strip. The declaration contents publication, which occured
after other militaries took position, highlighted doctrinal-strategic and symbolic changes centered on the Amazon
region carried out by the Brazilian Army since the end of the military regime. In this context of facts, the research
had as a goal identify and analyze how General Heleno and the other military service members of the Armed Forces
took a position about TIRSS in the newspapers O Globo, A Folha de São Paulo and O Estado de São Paulo between
September 2007 and May 2009. In order to achieve these objectives, the news was collected from the digital archives
of the three newspapers, restricting the search to news with nominal mentions to Heleno, as it was later used in a
qualitative way. At the end of the research, it was possible to identify the demarcation of TIRSS as an event of
political legitimacy by the military institution from a specific problem assigned to the Army that is capable of
producing symbolic meaning and cohesion inside and outside the military command and obedience structure,
contradicting the civilian formulation that events like this are purely and simply military indiscipline.

Keywords: Brazilian Army. General Augusto Heleno. Amazon. Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 GENERAL HELENO NO CLUBE MILITAR ........................................................................ 41


FIGURA 2 GENERAL HELENO APÓS PALESTRA NO CLUBE MILITAR ....................................... 41
FIGURA 3 MANIFESTAÇÃO DE ARROZEIRO NO INTERIOR DO 7º BIS ........................................ 45
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. ..................................................................................................................................... 11

2. O EXÉRCITO BRASILEIRO E A AMAZÔNIA: DO REGIME MILITAR AOS ANOS 90. ...... 13

2.1 O “AMAZÔNIA VOLVER” DOS ANOS 1990. .............................................................................. 17

2.2 AS FORÇAS ARMADAS E A TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. ....................... 22

3 GENERAL AUGUSTO HELENO: A CONSTRUÇÃO DE UMA CARREIRA ESTRELADA.... 26

3.1 HIERARQUIA E DISCIPLINA. ...................................................................................................... 26

3.2 UMA CARREIRA ESTRELADA. ................................................................................................... 28

3.3 OS PAISANOS DO MUNDO DE FORA. ....................................................................................... 34

4. UM “LADO DE FORA” CAÓTICO. .................................................................................................. 37

4.1 COESÃO PARA DENTRO DA CADEIA DE COMANDO-OBEDIÊNCIA. ................................ 43

4.2 ONDE ESTÃO OS CIVIS? ............................................................................................................... 48

CONCLUSÃO. .......................................................................................................................................... 53

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 55
11

1 INTRODUÇÃO.

Este trabalho procura analisar as tomadas de posição do general-de-exército Augusto Heleno Ribeiro
Pereira acerca do processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) no nordeste de Roraima
(RR) entre setembro de 2007 e maio de 2009, período em que este general foi comandante do Comando Militar da
Amazônia (CMA)1. Paralelamente, procurou-se analisar também as reações àquelas declarações por parte de
militares da ativa e da reserva das Forças Armadas2 que foram publicadas por jornais impressos à época. Para
atingirmos estes objetivos foram coletadas notícias nos acervos digitais dos jornais impressos O Globo3, O Estado
de São Paulo4 e Folha de S. Paulo5 por meio do uso de palavras-chave6, restringindo-se à reportagens com menções
nominais ao general Augusto Heleno.

Complementarmente, realizamos coleta de vídeos na plataforma YouTube por meio de palavras-chave de


forma a localizarmos materiais em vídeo que também fizessem referências nominais ao general. Nesta busca não
houve a possibilidade de realizar um levantamento sistemático delimitado temporalmente uma vez que o YouTube
não permite tal seleção em seus mecanismos de busca, o que resultou em alguns materiais que se estendem para
além do período delimitado acima. Desta forma, realizou-se uma seleção dos materiais em vídeo que faziam
referência à temática abordada nesta pesquisa e que pudessem contribuir para nossa discussão.

1
“O Exército Brasileiro conta com sete Comandos Militares: o Comando Militar da Amazônia sediado em Manaus; o Comando
Militar do Oeste sediado em Campo Grande; o Comando Militar do Planalto sediado em Brasília; o Comando Militar do Nordeste sediado
em Recife; o Comando Militar do Leste sediado no Rio de Janeiro; o Comando Militar do Sudeste sediado em São Paulo; e o Comando
Militar do Sul sediado em Por Alegre” (MARQUES, 2007, p. 77).
2
A Lei 6.880 de 9 de dezembro de 1980 estabelece em seu “Art. 3º [...] § 1° Os militares encontram-se em uma das seguintes
situações: a) na ativa: I - os de carreira; II - os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório
ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos; III - os
componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV - os alunos de órgão de
formação de militares da ativa e da reserva; V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças
Armadas; b) na inatividade: I - os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e recebam remuneração da
União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; II - os reformados, quando, tendo
passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber
remuneração da União e III - os da reserva remunerada e, excepcionalmente, os reformados, que estejam executando tarefa por tempo certo,
segundo regulamentação para cada Força Armada”. In:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%206.880%2C%20DE%209%20DE%20DEZEMBRO
%20DE%201980&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20Estatuto%20dos%20Militares.&text=Art.,dos%20membros%20das%20For
%C3%A7as%20Armadas. Acessado em 17 de julho de 2021.
3
https://acervo.oglobo.globo.com/ acessado em 20 de junho de 2021.
4
https://acervo.estadao.com.br/ acessado em 20 de junho de 2021. Neste acervo há a possibilidade de coleta da “edição Brasil”
ou da “edição São Paulo”, em nosso caso preferiu-se coletar as reportagens desta última uma vez que o próprio jornal informa que esta
seria a edição concluída “mais tarde”, isto é, aquela que “[...] a Redação tem mais tempo para concluir a edição, o que permite ainda refinar
mais o noticiário”.
5
https://acervo.folha.com.br/index.do acessado em 20 de junho de 2021.
6
Nos três acervos foram utilizadas as seguintes palavras-chave: “general Augusto Heleno”, “general Heleno”, “general Augusto
Heleno Pereira Ribeiro” e “Augusto Heleno Ribeiro Pereira”.
12

Além da coleta de material nos jornais impressos e no YouTube deve-se mencionar que realizamos um
levantamento não sistemático de entrevistas do general concedidas em outras mídias, as quais também foram
selecionadas segundo sua pertinência à nossa pesquisa.

Desta forma, a referida pesquisa apresenta em seu primeiro capítulo uma descrição e análise do pensamento
militar acerca da Amazônia, neste capítulo procuramos evidenciar os elementos essenciais que compõem a
cosmologia militar7 sobre a região, dando principal enfoque para a questão da demarcação de terras indígenas. O
material utilizado neste capítulo restringe-se à trabalhos acadêmicos que se dedicaram à temática, por meio dos quais
objetivamos situar a região amazônica no pensamento militar a partir do final da década de 1980.

Já no segundo capítulo é apresentado em linhas gerais a carreira militar do general Augusto Heleno, o que
exigiu não somente uma pesquisa biográfica, mas também que explicitássemos o processo de organização interna
do Exército Brasileiro, dando principal foco ao seu sistema de classificação, à atribuição desigual de méritos e à
constituição de lugares de prestígio dentro da instituição como, por exemplo, o próprio Comando Militar da
Amazônia.

Por fim, no terceiro capítulo apresentamos os eventos ocorridos entre setembro de 2007 e maio de 2009,
período no qual a mídia impressa deu especial destaque às diversas tomadas de posição do general Heleno acerca
do processo de demarcação de Raposa Serra do Sol. Nesse processo nos dedicamos especificamente às declarações
daquele general e as reações a ela por parte de militares da ativa e da reserva das Forças Armadas que foram
reproduzidas pelos jornais. O argumento principal deste capítulo é que as tomadas de posição daqueles militares
acerca da demarcação da TIRSS se constitui em um importante fator de coesão, em especial daqueles pertencentes
ao Exército Brasileiro, reiterando a cosmologia militar acerca da região Amazônica apresentada pela aquela
instituição pelo menos desde os anos 1990.

Por meio deste processo, ao final da pesquisa pudemos concluir que a demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol emergiu enquanto um evento privilegiado para a observação da política tal qual praticada pelo Exército
Brasileiro, em um processo no qual uma série de contradições e mediações cotidianas entre a instituição e o “mundo
de fora” (a sociedade) puderam adquirir significações específicas aos militares, colocando em movimento uma
identidade e uma cosmologia propriamente militar.

7
Como empregado em Leirner (1997, p. 20).
13

2. O EXÉRCITO BRASILEIRO E A AMAZÔNIA: DO REGIME MILITAR AOS ANOS 90.

Com o golpe militar de 1964, a Amazônia brasileira passou a estar enquadrada numa estratégia geopolítica
de integração regional baseada tanto numa agressiva política de ocupação demográfica, quanto de desenvolvimento
econômico que se materializaram em sucessivos planos e projetos regionais, tais quais a Operação Amazônia, Plano
de Integração Nacional, POLAMAZÔNIA, PROBOR, PLONOROESTE, Programa Grande Carajás e entre outros
(OLIVEIRA FILHO, 1991, p. 321), os quais sustentados pela doutrina de segurança nacional dos anos 60 e 70
objetivavam desenvolver infraestruturas, “[...] alocar incentivos fiscais e linhas de crédito subsidiado a fim de atrair
empresas na região, abrir programas de colonização pública e, finalmente, implementar grandes projetos
agropastoris, minerais e florestais” (ALBERT, 1991, p. 37-38).

Aos olhos dos militares tornava-se, assim, necessário instituir uma política indigenista para a região
compatível com aquele planejamento de desenvolvimento. Para tanto era de suma importância “[...] liberar os
recursos naturais das terras indígenas à exploração em grande escala e administrar as consequências sociais do
avanço desta nova fronteira econômica” (Ibid, p. 38), processo que acabou se revelando uma verdadeira inoperância
na proteção das populações indígenas e que resultou já em 1967 em denúncias de corrupção e de demais formas de
conivência com o extermínio, a exploração e a expropriação dos índios por parte do Serviço de Proteção aos Índios
(SPI).

Em decorrência daquele processo, o governo militar naquele mesmo ano decidiu extinguir o SPI e criar em
seu lugar a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, posteriormente, promulgou uma nova legislação indigenista
baseada no Estatuto do Índio (Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 19738) que forneceria as orientações gerais da
própria atuação daquele órgão, as quais revelariam um paradoxo de discurso protecionista de terras indígenas e de
assistência a estas populações combinado com dispositivos altamente lesivos aos índios:

[...] disposições discriminatórias de controle político (como a tutela jurídica da FUNAI sobre
os índios considerados “relativamente incapazes”), disposições assimilacionistas (como o
pressuposto da transitoriedade da condição indígena) e disposições expropriativas como o
não reconhecimento da propriedade indígena, a previsão de remoção de grupos por razões
de segurança nacional ou para a realização de obras públicas, a autorização de mineração
por estatais e a tolerância de contratos de arrendamento em terras indígenas) (OLIVEIRA
FILHO 1985 apud ALBERT, 1991, p. 39).

8
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm acessado em 04 de novembro de 2021.
14

Não por acaso, após a publicação do Estatuto os processos de demarcação das terras indígenas passaram a
serem extremamente morosos e realizados quase sempre em situações de emergência. Paralelamente, os próprios
processos de demarcação passaram a estarem cada vez mais envolvidos em tensões fundiárias que envolviam
populações indígenas e seus aliados políticos que exigiam o cumprimento das disposições protecionistas presentes
no Estatuto (Ibid, p. 40).

Como seria de se esperar, o processo passou a preocupar os militares que, a partir de 1980, como forma de
conter tais reivindicações, produziram uma extrapolação dos processos demarcatórios para além da FUNAI. É neste
contexto que a delimitação das terras indígenas passou para um grupo de trabalho interministerial (GTI) de
participação dos Ministérios do Interior (MINTER) e de Assuntos Fundiários (MEAF), sendo este último controlado
pelo Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN). “Este GTI foi instituído com a recomendação
explícita de levar em conta os empreendimentos econômicos de terceiros já existentes nas terras indígenas no
processo de sua delimitação (Carneiro da Cunha, 1984). Abriu-se também a autorização para mineração em terra
indígena às empresas privadas (CPI/SP 1985)” (Ibid, p. 40).

Contudo, ainda que o país já estivesse em vias da abertura política desde pelos menos 1982, e que tal
processo tenha significado um refluxo da tutela militar sobre a política indigenista, em especial na demarcação de
terras, Bruce Albert relata que este refluxo foi momentâneo:

[...] a tutela militar sobre esta questão continuou a manifestar-se, ainda que discretamente,
num processo de quase paralisação dos trabalhos do GTI encarregado de definir as
delimitações de terras indígenas. Assim, entre março de 1983 e março de 1985, o GTI só
havia aprovado 14 das 50 propostas de delimitação recebidas da FUNAI (Olivera Filho &
Almeida 1985). Em meados de 1986, 36 casos aprovados encontravam-se ainda bloqueados
pelo MINTER [...] (ALBERT, 1991, p. 40)

É justamente neste contexto histórico da abertura e de perda de apoio político por parte do governo federal
que se intensificará a atuação daquilo que Eugenio Diniz chamou por “Coalizão de Segurança Nacional na
Amazônia”, isto é, uma “[...] articulação formal e informal estabelecida entre a Secretaria-Geral do Conselho de
Segurança Nacional (SG/CSN), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o sistema CODI-DOI-CIE”, que além
de apresentarem uma forte solidariedade de interesses e laços institucionais entre si também almejavam atuar tanto
nos conflitos fundiários, quanto da política indigenista na região (DINIZ, 1994, p. 97).

Se insere justamente aqui a elaboração do Projeto Calha Norte (PCN), um projeto sigiloso elaborado pela
SG/CSN que foi concluído em 1985, mas que veio a público somente em 1986. Em sua elaboração foram
privilegiados quatro pontos básicos: a) aumento da presença militar na fronteira; b) incremento das relações
15

bilaterais; c) demarcação das fronteiras; d) política indigenista apropriada à região (OLIVEIRA FILHO, 1991, p.
334 e 341).

Em primeiro lugar, deve-se destacar que além de ter sido concebido sem a participação do Congresso
Nacional ou mesmo da sociedade de forma geral, o PCN não apresentava uma estrutura rígida e sistemática de um
programa ou plano, bem como não instituía um grupo ou unidade que atuasse de modo permanente em sua
elaboração e execução – o que o difere radicalmente de todos os programas ou planos até então voltados para a A
Amazônia. “Trata[va]-se da formulação de um conjunto coerente de orientações e metas com as quais deve[riam]
vir a compatibilizar-se todas as iniciativas governamentais voltadas para aquela região”, para as quais “[...]
inexist[ia] um agente claramente responsabilizado, que serv[iria] como um possível interlocutor para as forças
sociais afetadas por suas intenções e decisões”, quem decidia, em última instância, era o Presidente da República
assessorado pela mesma SG/CSN (OLIVEIRA FILHO, 1991, p. 325-326, itálico meu).

Porém, mesmo inexistindo qualquer organização interna rigidamente estipulada, segundo Oliveira Filho o
PCN não parecia apresentar nenhuma paralisia ou casos de confusão administrativa, uma vez que existia a própria
estrutura sólida e poderosa da SG/CSN, que embora tenha realizado a confecção do Projeto, paradoxalmente não
era concebida legalmente como o órgão responsável por sua gestão.

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que o PCN fôra concebido enquanto um projeto predominantemente
militar, prova disso seria a própria destinação das verbas do projeto: “[...] reunidos, os Ministérios Militares
consumiam 78,2% das verbas do Calha Norte. Partes menores cabiam ao Ministério das Relações Exteriores (2,1%),
para diversas finalidades (demarcação de fronteiras, ampliação da rede consular, cooperação técnica e secretaria
pró-tempere do Tratado de Cooperação Amazônica), e à SEPLAN (0,8%) para administração e acompanhamento
financeiro geral”. Boa parte desses recursos destinados aos ministérios militares foram dedicadas à construção e
ampliação de quartéis, aeroportos e bases navais na região (Ibid, p. 327).

Por outro lado, se o PCN significou melhorias estruturais para as Forças Armadas na Amazônia, do ponto
de vista da política indigenista o Projeto emergiu como mais uma tentativa por parte dos militares de exercer poder
sobre a temática. Com o PCN, a política indigenista e seus órgãos passaram a serem geridos também pela norma da
confidencialidade, todas as ações passaram a ser sigilosas haja vista ser um tema de “alta sensibilidade política”,
que teria sido usado anos antes como base de iniciativas para denegrir a “boa imagem do país” (PCN, p. 2 e 4 apud
OLIVEIRA FILHO, 1991, p. 329). No mais, o projeto não alterou em nada a atuação do que a FUNAI já vinha
realizando: uma atuação que privilegiaria seu viés autoritário e burocrático, o seu desconhecimento das necessidades
e das aspirações indígenas e a sua baixa capacidade de conviver com iniciativas e formas de organização que provêm
dessas populações (Ibid, p. 331).
16

Regida por um paradigma militar, a FUNAI passou a privilegiar o controle sobre as populações indígenas
baseadas em uma lógica da ocupação e defesa do território nacional, isto é, estando baseada na instalação e melhoria
de postos indígenas, pistas de pouso e escritórios regionais, e contratação de pessoal em detrimento de investimentos
em áreas como, por exemplo, a identificação de terras indígenas, custeio de demarcações ou de regularização
fundiária (Ibid, p. 332).

Para Oliveira Filho, no PCN a recorrente presença do discurso de que se fazia necessário uma “política
indigenista adequada” revelaria a percepção militar de que as terra indígenas na região seriam entraves à exploração
de grandes riquezas minerais. Em decorrência disto, as revisões de disposições legais e administrativas preconizadas
pelo PCN para a política indigenista brasileira não passavam de aspirações do núcleo militar concentrado na SG/CSN
em controlar toda e qualquer política destinada à região, sobretudo aquelas relacionadas a empreendimentos
econômicos, à revelia de possíveis mudanças ou interferências civis no órgão tutelar desta temática, isto é, a FUNAI
(Ibid, p. 336) ou mesmo no próprio governo federal e demais níveis da administração pública.

Assim, para Oliveira Filho

O Calha Norte foi um balão-de-ensaio para a progressiva retomada da influência do CSN


[Conselho de Segurança Nacional] junto à Presidência da República, com uma temática que
parecia de competência dos militares e prescindindo de consulta ou mobilização das forças
políticas. À medida em que a transição democrática enfrentava maiores obstáculos políticos,
o CSN conseguiu recuperar seu prestígio como órgão de assessoramento direto e de plena
confiança do Presidente, um papel que os intelectuais e técnicos vinculados
aos partidos não perceberam ou não quiseram desempenhar. É essa estrutura, herança de um
outro Brasil e de um outro projeto político (o da "abertura gradual e consentida", não o da
"transição democrática''), alimentada pela ideologia da segurança e por
técnicas pragmáticas de ação social (que vão da negociação à cooptação de lideranças,
passando pela intimidação), que dirige a política governamental para a região de fronteira,
ao mesmo tempo que comanda a atuação da FUNAI e determina os rumos
da política indigenista brasileira (Ibid, p. 346, itálico meu).

Portanto, diante da possibilidade eminente de perda do poder político assegurado até então, as Forças
Armadas, em especial o Exército tratou de localizar a Amazônia enquanto o seu pólo de controle político,
doutrinário-estratégico e ideológico. No caso destes dois últimos, o processo se intensificou a partir de 1990.
17

1.1 O “AMAZÔNIA VOLVER” DOS ANOS 1990.

Pesquisas que procuraram situar o Exército no “Amazônia, volver” (MATOS, 2010, p. 145) do final dos
anos 1980 e início dos anos 1990, evidenciaram que a instituição operou mudanças doutrinário-estratégicas e
simbólicas centradas na Amazônia brasileira. Inicia-se, assim, a partir da década de 90, uma transferência de
Brigadas de Infantaria do Sul e do Sudeste do país para a região (MARQUES, 2007, p. 79 e 80), processo que seria
consagrado oficialmente pela publicação da Política de Defesa Nacional em 1996, reconhecida por ser a primeira
publicação governamental a expor as diretrizes do país nas áreas de segurança e defesa, e a definir em seus objetivos
a necessidade de proteção da Amazônia “[...] com apoio de toda a sociedade e com a valorização da presença
militar” tendo em vista ser uma zona de instabilidade provocada pela ação de bandos armados que atuariam nos
países vizinhos à região e do crime organizado internacional (BRASIL, 1996, p. 6 e 10, itálico meu).

Neste contexto, se a referência às ações externas na Amazônia e a necessidade de ocupar a região


militarmente já estavam presentes desde o PCN, na atualização da PDN em 2005 o discurso será reiterado e acrescido
da necessidade de desenvolver e vivificar a faixa de fronteira, atuar na manutenção do clima de paz e cooperação
nas áreas de fronteira e intensificar o intercâmbio com as Forças Armadas da América do Sul9.

A Amazônia tornava-se, assim, em pouco tempo uma área prioritária para a Defesa Nacional, uma vez que
segundo a reorientação doutrinário-estratégica do Exército, no período pós-Guerra Fria dos anos 1990, os países
centrais, sobretudo, EUA, a União Europeia e o Japão, agora liberados dos constrangimentos ideológicos que
orientavam suas ações militares, se utilizariam de pautas humanitárias e ecológicas como, por exemplo, a proteção
da Amazônia e a proteção das populações indígenas, para camuflarem seus interesses nas riquezas naturais e
minerais da região (MARQUES, 2007, p. 69; MARTINS FILHO, 2002, p. 31).

Paralelamente, os trabalhos acadêmicos acerca daquela reorientação doutrinário-estratégica do Exército


identificaram que outro elemento que passou a chamar a atenção dos militares foram os processos de demarcação
de terras indígenas, sobretudo daquelas realizadas de forma contínua e na faixa de fronteira como, por exemplo, a
Terra Indígena Yanomami homologada em 1991 pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello (ALBERT, 1991).
Segundo os militares, grande parte dessas demarcações seriam realizadas com apoio de missionários e organizações
não governamentais internacionais (sediadas em países do Norte), que incentivariam as populações indígenas a
realizarem pressões sobre o governo federal pela demarcação de seus territórios, objetivando, posteriormente,
obterem junto a estas populações o controle direto ou indireto sobre as riquezas presentes dentro das reservas
(MARQUES, 2007, p. 50; LOURENÇÃO, 2007, p. 208).

9
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5484.htm acessado em 09 de julho de 2021.
18

Não por acaso, tanto a Política de Defesa Nacional de 1996 quanto sua atualização em 2005 davam
principal atenção ao fortalecimento da presença, no pós-Guerra Fria, de “atores não governamentais” ou “não
estatais” no cenário internacional, sendo evidenciado por àquela última PDN que a vivificação e uma “política
indigenista adequada” se constituíam, entre outros elementos, em aspectos essenciais para o desenvolvimento e a
integração da região10, discurso que já vinha sendo difundido desde os estudos para a elaboração do PCN no final
da década de 1980.

Outro elemento identificado pelos trabalhos acadêmicos presente na cosmologia militar sobre terras
indígenas demarcadas de forma contínua e em faixa de fronteira (LEIRNER, 1997, p. 20) seria a possibilidade do
estabelecimento de Estados indígenas independentes (SILVA, 2012, p. 160; MARQUES, 2007, p. 50), argumento
fortemente utilizado contra a demarcação das terras indígenas Yanomami em 1991 e Raposa Serra do Sol em 2005
(MATOS, 2010, p. 70).

É importante destacarmos que esta cosmologia militar se encontra assentada na percepção de que os
processos de demarcação não são fruto de luta dos povos indígenas pela recuperação de suas terras (MARQUES,
2007, p. 64), mas sim de uma cobiça internacional (camuflada na atuação de organizações missionárias e não
governamentais) que objetivaria obter o controle de parcelas do território brasileiro, fazendo com que as próprias
demarcações tornassem-se ameaças à soberania nacional e, consequentemente, objeto de preocupação por parte
das Forças Armadas constitucionalmente destinadas à “defesa da Pátria” (BRASIL, 1988).

Nesse enquadramento, quando o Exército se refere ao vazio demográfico que caracterizaria a Amazônia, a
instituição procura evidenciar não somente o despovoamento, no sentido restrito da palavra, mas também “[...] o
vazio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região” (MARQUES,
2007, p. 49). Será por meio desta cosmologia que os militares explicarão a necessidade crescente de terem mais
efetivos naquela porção no país, explicação que quase sempre apresenta um deslizamento discursivo segundo o qual
apenas as Forças Armadas entre as demais instituições estariam preocupadas com as ameaças constantes à Amazônia
e à própria soberania, mas não só. Para os militares, na Amazônia eles teriam a função de representar a totalidade
do Estado, atuando como verdadeira máquina de domesticação de forças selvagens e exóticas, as quais são
personificadas nas próprias populações indígenas ou mesmo na própria ideia de inimigo externo e cobiça
internacional (LEIRNER, 2012, p. 55-56).

10
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5484.htm acessado em 09 de julho de 2021.
19

Por outro lado, se alguns trabalhos se detiveram nos elementos “externos”, isto é, geopolíticos e doutrinário-
estratégicos do interesse militar pela Amazônia11, demais trabalhos já apontavam a necessidade de se compreender
os elementos simbólicos propriamente militares envolvidos nesse processo12.

Estas últimas pesquisas apontavam que mudanças simbólicas também foram realizadas pelo Exército no
interim dos processos de reformulação doutrinário-estratégicos: à medida que duas comemorações outrora
importantes, a vitória sobre a “Intentona” comunista em 1935 e a “Revolução” de 31 de março de 1964, perderam
importância, fortaleceu-se as comemorações relacionadas à I Batalha dos Guararapes (19 de abril de 1648), a qual,
a partir de 1994, por iniciativa do então ministro do Exército, general Zenildo Zoroastro de Lucena, passou a ser a
data de comemoração do Dia do Exército (CASTRO, 2002; CASTRO e SOUZA, 2012).

Segundo o Exército, naquela Batalha de expulsão das tropas holandesas que ocuparam a região de
Pernambuco entre 1630 e 1654, em que “[...] mesmo inferiorizados numericamente, as tropas locais, compostas por
unidades de brancos, negros e índios, e recorrendo a táticas de guerra irregular (ou de guerrilhas), derrotaram um
inimigo superior em número e mais bem equipado”, estariam as “sementes” de duas instituições permanentes e
indissolúveis: a Nação e o próprio Exército Brasileiro (CASTRO e SOUZA, 2012, p. 222 e 223).

A mensagem implícita na invenção recente da tradição de Guararapes é sua própria associação com a
Amazônia, tanto lá quanto no tempo presente o Exército observaria uma cobiça internacional fruto de atores mais
bem equipados e em maior número que as “forças nacionais”, e que atuariam através de táticas de guerrilha tendo
como foco a dissimulação de seus reais interesses (CASTRO, 2012, p. 223; MARQUES, 2007, p. 100). Procura-se,
assim, por meio de uma invenção, vincular representações de espaços e tempos distintos (CASTRO e SOUZA, 2012,
p. 228), de forma a produzir uma continuidade entre eles, a qual se torna, no limite, a “evidência” da continuidade
da instituição ao longo da história aos olhos dos próprios militares (LEIRNER, 1997, p. 130).

No fio institucional a invenção ao selecionar os pontos nodais de cada “parada histórica” (CASTRO, 2002,
p. 7) selecionou não somente acontecimentos e datas específicas, mas acontecimentos e datas ancoradas em
elementos dotados de permanência, como seria o caso da própria ideia de cobiça internacional pela Amazônia
(LEIRNER, 1995, p. 130). Este processo torna-se evidente quando observamos que nos portões do Comando Militar
da Amazônia encontram-se escritos dizeres que ressaltam o surgimento do Exército durante a Batalha de Guararapes,
a qual é descrita enquanto “uma eficiente luta de emboscadas, foi o expediente usado pelo povo em arma para
derrotar o poderoso invasor. Exemplo e tradição que serão mantidos na defesa da Amazônia” (CASTRO, 2012, p.

11
Tais como João Roberto Martins Filho e Daniel Zirker (2000), João Roberto Martins Filho (2002, 2010), Humberto Lourenção
(2007), Eliézer Rizzo de Oliveira (2009), Érica Winand e Héctor Luis Saint-Pierre (2010) e Luís Alexandre Fuccille (2015),
12
Entre os quais Piero Leirner (1995, 1997, 2012, 2020), Celso Castro (2004 [1990], 2002), Adriana Aparecida Marques (2007)
e Celso Castro e Adriana Barreto de Souza (2012).
20

226, itálico meu). É por meio deste processo que se repete para si e para os outros que se “fizemos ontem… faremos
sempre” (CASTRO, 2002, p. 39), na expectativa de que a repetição deste princípio prevaleça, torne-se imortal e não
mude em face do diacrônico (LEIRNER, 1997, p. 38-39), princípio reiterado não somente pela sua verbalização,
mas pelo chapéu bandeirante que todo guerreiro de selva utiliza, pelas músicas cantadas e, inclusive, pela elaboração
de uma estratégica militar “eminentemente nacional”, a estratégia de resistência, que produzida no interior do
Comando Militar da Amazônia apresenta um deslizamento simbólico que afirma que só se vence uma força
estrangeira superior em equipamento, número e que utiliza-se de táticas e técnicas de guerrilha, utilizando estas
mesmas táticas e técnicas, tal qual em Guararapes (MARQUES, 2007, p. 100).

É neste sentido também que podemos falar de um imbrincamento entre mudanças doutrinário-estratégicas
e simbólicas que colocam em movimento tanto a percepção que os militares tinham de si próprios quanto do Brasil
no pós-Guerra Fria. Nessa circunstância, partindo de uma percepção de que o alinhamento aos Estados Unidos
durante a Guerra Fria não tornou o país uma potência regional na América de Sul e deslocados do núcleo do governo,
agora comandado por civis, os militares das Forças Armadas, em especial do Exército, encontraram na Amazônia a
sua “vocação singular”, a qual, em primeiro lugar, permitia uma identificação da instituição militar não mais
subordinada à um segundo plano geopolítico, no qual seria responsável em combater “[...] um inimigo que vinha de
longe”, tal qual o Comunismo Internacional, mas contra um inimigo “direto” e “nacional”: “[...] o único ponto é a
defesa de uma parte importante de nossa integridade, e não participar de uma guerra por procuração [...]” (LEIRNER,
2020, p. 200).

Em segundo lugar, aquela vocação singular permitiu o deslocamento do corpo ideológico-doutrinário da


guerra revolucionária – marca do regime militar – para a guerra assimétrica, estando esta última expressa na própria
estratégia de resistência, elaborada pelos militares que coincidentemente passaram pelo Comando Militar da
Amazônia, enquanto uma estratégia eminentemente brasileira (MARQUES 2007, p. 100), que se revelou
extremamente importante para a percepção de que o Brasil tornava-se “[...] uma referência no campo da ‘resistência’,
colocando-se no plano de uma ‘potência não-alinhada’, bem de acordo com as necessidades de suprir a frustração
gerada pelos resultados locais da Guerra Fria” (LEIRNER, 2020, p. 200).

Neste processo, o Exército foi capaz de dar uma nova orientação à identidade militar, “[...] galvaniza[ndo]
os próprios militares em torno de um sentimento corporativo” e constituindo a Amazônia como um ponto importante
da formação militar. Não por acaso, “comandar na Amazônia, fazer o curso no Centro de Instrução de Guerra na
Selva (CIGS) etc, passaram a ser elementos de status e prestígio dentro da Força”, e muito mais que isso, “[...] estar
na Amazônia representa também uma espécie de rito de passagem em que todo militar tem a chance de chancelar o
discurso do ‘sacrifício’ pelo bem do Brasil” (Ibid, p. 201). Cabe aqui lembrar que foi justamente enquanto
comandante militar da Amazônia que o general Augusto Heleno realizou suas tomadas de posição acerca da política
indigenista entre 2007 e 2009.
21

Paralelamente, pode-se dizer ainda que a própria “questão amazônica” serve de elaboração simbólica por
meio da qual o Exército se relaciona com a sociedade e se legitima diante desta a partir de um problema específico
competente à Força. Neste contexto, a partir de esforços etnográficos que procuraram analisar o Exército em sua
dimensão “interna” e “cotidiana” (CASTRO, 2004 [1990] e LEIRNER, 1997), dissociados de uma tradição de
pesquisas que procuravam quase sempre analisar os militares durante períodos de intervenção13, pôde-se evidenciar
que por deter o monopólio do uso legítimo da violência e por definir suas funções através da lei, o Exército seria
uma instituição que não buscaria legitimar-se em termos de sua existência efetiva, “[...] mas sim em termos de certos
problemas específicos serem ou não da [sua] competência [...]” (LEIRNER, 1997. p. 19).

Tais pesquisas evidenciaram ainda que se aceitamos que o Exército é uma instituição que socializa os seus
integrantes em relativo isolamento ou autonomia (CASTRO, 2004 [1990], p. 53), produzindo uma identidade militar
contrastiva ao resto, deve-se aceitar o fato de que o elemento “relativo” presente naquela formulação não é de todo
trivial, porque, no limite, revelaria que esta instituição pertenceria à coisa pública e, portanto, estaria envolvida
politicamente em questões próprias da vida pública em nível nacional, exigindo que esta mesma instituição, fechada
em si mesma, negocie e “se abra” para debater, por exemplo, questões nacionais, como a amazônica, com outros
atores sociais e políticos (LEIRNER, 1997, p. 25).

Desta forma, estas pesquisas evidenciaram que há uma cotidiana contradição entre coisa pública e
fechamento institucional, processo que acabou produzindo uma lógica na qual o Exército atua como um grupo
informal de interesses (COEHN, 1978, p. 88-89 apud LEIRNER, 1997, p. 24), isto é, que se “abre” de forma restrita
ou “privada”, com articulações estratégicas e fragmentadas, de grupo a grupo, tentando abarcar setores
representativos da sociedade, processo que em sua face mais evidente aparece discursivamente enquanto a
necessidade de estreitamento de relações.

Como “grupo de interesse”, o Exército sintetiza os dois planos contraditórios de sua


existência e se torna capaz de operacionalizar sua conciliação, através de uma mediação
eficaz, traduzindo a realidade em termos de uma leitura e uma ação políticas. Assim, o
estreitar os laços não é somente parte de uma retórica; é, antes, uma necessidade de
sobrevivência ditada por essa lógica que, no seu horizonte ideal, teria como objetivo a
articulação, pelo Exército, de toda a sociedade, este amontoado de arquipélagos
fragmentados (LEIRNER, 1997, p. 24).

Não por acaso essa operacionalização conciliatória produziu ocasiões determinadas em que a instituição se
“abria” à sociedade e nas quais “[...] os militares punham em evidência — e também à prova — a concepção que

13
De forma mais detalhada em Castro (2004[1990] p. 13-15) e Leirner (1997, p. 10-12).
22

tinham de si mesmos, dos outros e do próprio Brasil” como forma de estabelecerem um projeto comum com os civis,
no qual a Amazônia constituía um dos eixos centrais da relação, sobretudo na década de 1990 (Ibid, p. 37).

Nesse sentido, acreditamos que observar a atuação do Exército em uma “questão nacional” como a
demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), acaba por tornar-se uma oportunidade privilegiada
para observar como a Amazônia torna-se relevante para o processo pelo qual a atuação política do Exército revestiu-
se de significação simbólica e produziu coerência à conduta militar naquela ocasião (LEIRNER, 1995; 1997). Para
tanto, faz-se necessário nos determos brevemente sobre a participação da Forças Armadas na demarcação da TIRSS.

1.2 AS FORÇAS ARMADAS E A TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.

Trabalhos que procuraram identificar e analisar os diferentes atores envolvidos na demarcação da TIRSS
evidenciaram serem as Forças Armadas, em geral, e o Exército, em específico, extremamente relevantes para se
entender a multidimensionalidade de interesses envolvidos na questão14.

Nesse sentido, devemos ressaltar que a participação das Forças Armadas no processo de demarcação da
TIRSS não se circunscreveu apenas às tomadas de posição do general Heleno e demais militares no ano de 2008,
sua participação inicia-se já em 2002, quando é instalado o 6º Pelotão Especial de Fronteira (PEF) de Uiramutã,
município criado em 1995 pelo governo de Roraima por meio da Lei Estadual nº 98, juntamente com o município
de Pacaraima. À época, ambos os territórios já se encontravam inseridos como terras indígenas a serem demarcadas,
uma vez que desde 1993 a FUNAI os reconhecia como integrantes dos 1.678.800 hectares a serem demarcados de
forma contínua (SILVA, 2012, p. 113-114)15.

Já em 07 de outubro de 2002, cinco meses após a criação do Pelotão, é promulgado o Decreto nº 4.412 pelo
então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Este decreto estabelecia que

Art. 1º. No exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia
Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão compreendidas:
I - a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestre, de militares e policiais
para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais
operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à
garantia da lei e da ordem e à segurança pública;

14
Entre estes trabalhos destacam-se: Marcelle Ivie da Costa Silva (2012); Marcio Antonio Destro (2006); Anabelle Santos Lages
(2014); Pedro Fernandes Neto (2006).
15
Não por acaso, a criação de municípios dentro de área indígena objetivava justamente a inviabilização de sua demarcação
(SANTILLI, 2001, p. 122 apud SILVA, 2012, p. 114), uma vez que, posteriormente, tanto os municípios quanto o próprio Pelotão do
Exército, seriam utilizados como justificativas para a demarcação da TIRSS em forma de ilhas.
23

II - a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para


fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais
medidas de infra-estrutura e logística necessárias;
III - a implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira16.

A permissão ao “livre trânsito e acesso” às Forças Armadas dentro de terra indígenas seria reiterada pela
Portaria nº 534 de 13 de abril de 2005 do ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, portaria esta que seria a base
para o decreto de homologação da TIRSS assinado dois dias depois pelo então presidente da República, Luiz Inácio
Lula da Silva. Segundo o decreto, em seu Art. 4, seria assegurado “[...] a ação das Forças Armadas, para a defesa do
território e da soberania nacionais, e do Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, para garantir a
segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas, na Terra Indígena Raposa Serra do
Sol”17.

Porém, mesmo com essas concessões presentes no decreto de homologação, as reclamações das Forças
Armadas continuaram e se materializaram, em um primeiro momento, na recusa em auxiliar a Polícia Federal a
retirar a população não indígena que residia no interior do perímetro demarcado da Terra Indígena e, em um segundo
momento, nas diversas entrevistas e palestra do general Heleno sobre a questão – ambos os processos serão melhor
detalhados no capítulo 3, no entanto, nos interessa aqui ressaltar que mesmo após tais confrontos entre Forças
Armadas e o governo federal, este realizou ainda mais concessões.

Em 22 de julho de 2008, é publicado o Decreto nº 6513 que alteraria trechos do Decreto nº 4.412/2002 – já
mencionados por nós. Com as novas alterações o decreto estabelecia em seu Art. 3-A o dever do Comando do
Exército em instalar “[...] unidades militares permanentes, além das já existentes, nas terras indígenas situadas em
faixa de fronteira [...]”18, que segundo o comandante do Exército à época, general Enzo Martins Peri, garantiria “um
aumento da atividade e da presença do Exército na região” (CLUBE MILITAR, 2008, nº 430, p. 9).

Neste interim, ações contrárias à demarcação da TIRSS continuaram a ser apresentadas ao STF, entre a
quais a Ação Cautelar nº 1.794 ajuizada pelo estado de Roraima contra a União e a Funai em agosto de 2007, que
pedia a suspensão, em parte, da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça e do Decreto Presidencial de 15 de
abril de 2005. Esta Ação começaria a ser julgada somente em agosto de 2008 e concluída em 18 de março de 2009,

16
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4412.htm acessado em 07 de julho de 2021.
17
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/dnn/Dnn10495.htm acessado em 07 de julho de 2021.
18
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6513.htm acessado em 14 de julho de 2021.
24

quando decidiu-se definitivamente pela demarcação em forma contínua19 e em faixa de fronteira20, no entanto, o
acórdão final do processo apresentava 19 condicionantes (DESTRO, 2006; SILVA 2012; LAGES, 2014), entre as
quais

5 – O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política


de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de
cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos
competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados
independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI;
6 – A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas
atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas
envolvidas e à FUNAI21

As 19 condicionantes originalmente surgiram durante o voto do ministro do STF, Carlos Alberto Menezes
Direito, agraciadas posteriormente pelos votos dos ministros Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau,
Cezar Peluso e Ellen Gracie, os quais pediram que tais condicionantes fossem inseridas nas ressalvas de seus votos
parcialmente favoráveis à demarcação (SILVA, 2012, p. 142). É interessante notar que as condicionantes
constituíam “[...] uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro, posto que ultrapassa[ra]m os limites dos pedidos
constantes na petição inicial dos autores populares [...]”, isto é, o STF produziu uma decisão extra petita dotada de
elementos que extrapolavam o que havia sido pedido pelos autores da Ação, ou seja, a revogação parcial da Portaria
534/2005 (LAGES, 2014, p. 177).

Neste contexto, as condicionantes, nas próprias palavras do ministro Menezes Direito, significavam uma
forma “cordial” e “conciliatória” de integrar os direitos das populações indígenas ao “bem comum” e à “ordem
nacional”, na justa medida em que um “tudo pode” para aqueles não significasse um “nada pode” para os “interesses
públicos” (BRASIL, 2008, p. 414 apud LAGES, 2014, p. 184-185). Desta forma, a “tradição brasileira de
cordialidade” que diz o ministro Menezes Direito, parece ter procurado conciliar a demarcação com os interesses de
demais atores, entre os quais as próprias das Forças Armadas, uma vez que reiterou a necessidade de manutenção

19
Segundo parecer do Instituto Socioambiental, demarcações em forma contínua estariam em respeito ao próprio texto da
Constituição de 1988, sendo uma forma de demarcação que ao contrário do uso de ilhas não permitiria a criação ou manutenção de
corredores habitados por populações não indígenas entre as localidades demarcadas. Sendo assim, demarcações em ilhas após a
promulgação da Constituição de 1988 caracterizariam atos inconstitucionais. In:
https://especiais.socioambiental.org/inst/esp/raposa/index5363.html?q=node/260 acessado em 03 de agosto de 2021.
20
Segundo consta no artigo 20, § 2º da Constituição Federal de 1988: “A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura,
ao longo das fronteiras terrestres [...]” (BRASIL, 1988).
21
https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/953976/raposa-serra-do-sol-stf-impoe-19-condicoes-para-demarcacao-de-terras-indigenas
acessado em 14 de julho de 2021.
25

da soberania nacional, especialmente no que se refere à defesa territorial na faixa de fronteira internacional22
(SILVA, 2012, p. 145), de tal forma que, embora não fossem os únicos atores envolvidos, ainda assim foram capazes
de influir no processo de demarcação através de uma atuação de longa duração.

Assim, uma vez situados em relação às elaborações doutrinário-estratégicas e simbólicas das Forças
Armadas em relação à Amazônia, bem como em relação à sua participação no processo demarcatório da TIRSS, no
próximo capítulo nos deteremos à carreira militar do general Augusto Heleno, a qual nos fornecerá a base para
discutirmos não somente suas tomadas de posição enquanto comandante militar da Amazônia, como também do
próprio funcionamento disciplinar e hierárquico do Exército Brasileiro.

22
Segundo consta no artigo 20, § 2º da Constituição Federal de 1988: “A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura,
ao longo das fronteiras terrestres [...]” (BRASIL, 1988).
26

3 GENERAL AUGUSTO HELENO: A CONSTRUÇÃO DE UMA CARREIRA ESTRELADA.

Antes de apresentarmos os pontos principais da carreira militar do general Augusto Heleno, se faz
necessário expormos de forma breve os processos que norteiam a vida militar dentro da instituição, em especial o
sistema de classificação e a atribuição desigual de méritos para cada componente da Força, estaremos assim em
condições de evidenciar a produção de uma “carreira de sucesso” que produz ascensão à postos e lugares de prestígio
dentro da estrutura interna, sendo Heleno uma das expressões desse processo.

3.1 HIERARQUIA E DISCIPLINA.

Enquanto um “fato social total” da vida militar, a hierarquia apresenta o sistema de classificação como um
de seus elementos. É pela classificação que se define “[...] o que foi, o que é e o que vai ser cada indivíduo dentro
da Força. [...] A classificação é uma espécie de pontuação na carreira militar: somam-se a ela notas e conceitos
obtidos em cursos, medalhas, elogios e condecorações, assim como dela se subtraem punições e repreensões”
(LEIRNER, 1997, p. 83).

Neste contexto, o sistema de classificação acaba por emergir enquanto um definidor das trajetórias pessoais
uma vez que se encontra expresso nas notas e nos conceitos em cursos, nas medalhas, elogios e condecorações, tudo
isso em conjunto “[...] forma o mérito que o militar deve possuir para poder prosseguir na escala hierárquica”
(LEIRNER, 1997, p. 83).

É importante destacar que a classificação em notas e conceito militar são considerados fundamentais desde
o momento em que a matrícula é efetivada na AMAN, a partir desse momento a classificação do cadete influirá na
escolha de sua Arma23 e, após a formatura, no local onde irá servir, bem como na ordem de promoção durante toda
a carreira. “Uma [posição] quase mítica é ocupada pelo cadete ‘01’ (‘zero um’) e, em escala decrescente, pelos
outros cadetes ‘zero’: 02, 03... São posições de prestígio” (CASTRO, 2004, p. 57).

Ser uma cadete “zero um” significa que àquele cadete atingiu um bom desempenho em seu “conceito de
aptidão para o oficialato”, fruto de dois conceitos atribuídos semestralmente: o conceito vertical, dado pelos oficiais
a que esteve subordinado, e o horizontal, dado por todos os cadetes componentes de sua respectiva turma de aula

23
No Exército Brasileiro há 7 Armas que devem ser escolhidas no segundo ano do curso na Academia Militar das Agulhas
Negras (AMAN), são elas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Intendência, Comunicações e Material Bélico (CASTRO, 2004,
p. 11).
27

(CASTRO, 2004, p. 57 e 58). Tais conceitos acompanham o militar por toda a sua carreira e é utilizado na definição
das promoções (LEIRNER, 1997, p. 89).

Porém, para além do caráter “objetivo” que tal sistema procura emanar, outro ponto importante de se
considerar é que dentro da segmentação hierárquica entre unidades maiores e unidades menores, bem como entre
líderes e comandantes, há a possibilidade de construção de relações pessoais e carismáticas nas unidades menores
comandadas por “inferiores-líderes”, nas quais há uma maior aproximação entre os círculos-hierárquicos. No
entanto, é importante ressaltar que tais processos ficam restritos a esta parte específica da cadeia de comando-
obediência, na medida em que se dirige para unidades maiores comandadas por “superiores-comandantes”
distanciam-se os círculos e a autoridade encontra-se baseada menos do caráter “carismático” e mais no caráter
“legal”, ou seja, fundada em instrumentos de legitimação coletiva e institucional (LEIRNER, 1997, p. 80 e 81).

Por outro lado, nos interessa aqui ressaltar que, se a segmentação pelo mérito apresenta o sistema de
avaliação de pessoal enquanto seu principal instrumento e este é preenchido pelo superior de cada unidade militar
em relação aos seus subordinados, levando em conta, entre outros fatores, a experiência que este mesmo superior
trava diariamente com estes mesmos subordinados, é de se esperar que os círculos de aproximação hierárquica
produzidos em unidades menores certamente influem na atribuição do mérito, isto é, de uma maneira ou de outra,
as relações pessoais se reproduzem na hora da decisão do mérito pessoal de cada militar (LEIRNER, 1997, p. 93).

[...] nesse processo, formam-se várias “cadeias de proximidade” até se chegar à


decisão final de preenchimento de uma ficha, em que cada círculo de relações pessoais —
também determinado hierarquicamente — constitui uma parte do circuito. Portanto, o que
há é um sistema híbrido, no qual hierarquia e relação pessoal se fundem, o que, tomado
coletivamente, assume a forma de uma cadeia “clânica” de relações pessoais permeada pelo
critério hierárquico de classificação [...].
Concretamente, o resultado dessa dinâmica aparece na formação de círculos de amizade e
influência, geralmente determinados a partir do momento em que um aluno sai de uma escola
militar — com a classificação inicial — e escolhe a primeira instância local de serviço, onde
se formarão suas primeiras relações pessoais fora da escola, num ambiente geralmente menor
que esta, e no qual os laços interpessoais tendem a se estreitar (LEIRNER, 1997, p. 93-94).

Desta forma, é comum a criação de círculos de amizade e influência dentro da instituição que podem levar
à constituição de “lugares de prestígio”, basicamente QGs e escolas, formados por um intricado processo de
indicações, relações pessoais e nomeações que “[...] acaba por estabelecer uma rede de sociabilidade que confere a
certos locais um determinado status, ligado, por sua vez, ao status de quem o frequenta.
28

É senso comum no Exército considerar que tais lugares são meios de ascensão em termos de
status, além de terem, por si sós, um status próprio. Assim, eles não só representam uma
passagem mais rápida e provável para o generalato, como também são vistos a partir de
elementos próprios — no sentido de não constituírem apenas uma subdivisão na burocracia
— sintetizados mediante a elaboração de uma tradição, de uma história própria e,
principalmente, de valores ideais que são representados em termos pictóricos e emotivos [...]
(LEIRNER, 1997, p. 97)

Neste contexto, para além do elemento pictórico de construção do status de cada unidade militar
procuramos ressaltar aqui que tais elementos contribuem também para a construção do status de cada militar e,
portanto, torna-se capaz de integrar as elaborações estratégicas de distinção pessoal. Este e outros processos se
tornarão mais evidentes conforme nos dedicarmos na próxima sessão à carreira militar do general Augusto Heleno
Ribeiro Pereira.

3.2 UMA CARREIRA ESTRELADA.

Inicialmente faremos uma apresentação breve do currículo de Heleno, no entanto tal apresentação será
realizada por intermédio da fala de um outro general, Maynard Marques de Santa Rosa. A escolha por esse
procedimento se tornará evidente mais adiante quando destacarmos o papel de Santa Rosa na tomada de posição de
Heleno em 2008 acerca da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima (RR).

A apresentação do currículo foi realizada por ocasião de uma palestra de Heleno em 31 de março de 2014
na Loja Maçônica do Distrito Federal por ocasião da “data que marca a passagem de 50 anos da Contrarrevolução”
– alusão ao golpe civil-militar de 1964. A palestra intitulada “O movimento de 1964” contou, segundo os
organizadores, com 1.500 pessoas presencialmente e com 3.708 internautas que a assistiram pelo YouTube24.

Passemos para a apresentação do currículo feita por Santa Rosa25:

“Estou honrado com a missão de apresentar [...] nosso ilustre conferencista, agradeço a tarefa e a cumpro
com especial satisfação por ser o general Heleno um particular amigo e destacado componente de armas de mais de
quatro décadas, cujo desempenho profissional conquistou meu respeito e admiração.

O general-de-exército Augusto Heleno Ribeiro Pereira é natural de Curitiba, Paraná. Formou-se pela
Academia Militar das Agulhas Negras em 1969 onde concluiu em primeiro lugar o curso de formação de oficiais

24
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:IXUnfdEKIR8J:www.lojabrasilia.org.br/noticia2.asp%3Findice%3
D303+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br acessado em 07 de maio de 2021.
25
O elementos entre chaves foram acrescentados pelo autor após levantamento biográfico em
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/augusto-heleno-ribeiro-pereira e https://www.gov.br/gsi/pt-
br/ministro/biografia acessados em 07 de maio de 2021.
29

da arma de Cavalaria. Posteriormente, fez o curso de mestrado militar na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais
[1978] e doutorado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército [1985-1986], em ambos sobressaiu-se pelo
seu valor intelectual e liderança.

Inspirado pelo próprio talento, dotado de inteligência brilhante e atleta por aptidão e gosto, especializou-se
nos cursos de paraquedista militar, mestre de salto, educação física e operações na selva. Como Tenente e Capitão
foi instrutor da AMAN, ajudante de ordens do ministro do exército [Sílvio Couto Coelho da Frota em 1977] e adjunto
da Missão Militar Brasileira de Instrução do Paraguai. Como oficial superior chefiou a sessão de planejamento da
brigada paraquedista e foi oficial de ligação com a V Força Aérea. Serviu no gabinete do ministro do exército [1989
– ministro Leônidas Pires Gonçalves] e no [Gabinete Militar da] Presidência da República [durante o governo Collor
de Mello]. Comandou a Escola Preparatória de Cadetes do Exército em Campinas - SP [1994-1996] e foi adido
militar do Brasil na França e na Bélgica. Tive a oportunidade de conhecer o potencial do General Heleno como
aluno da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, passando a admirar o seu discernimento na solução dos
problemas de tática, quando submetido a tensão das provas escolares. Promovido a general de brigada em 1999
comandou a 5ª brigada de Cavalaria Blindada e o Centro de Capacitação Física do Exército e foi chefe do Centro de
Comunicação Social do Exército [2002-2004].

Como general-de-divisão foi organizador e o primeiro Comandante Militar da Missão das Nações Unidas
para Estabilização do Haiti, a MINUSTAH, entre [30 de maio de] 2004 e [31 de agosto de] 2005, destacou-se como
pioneiro daquela importante missão Brasileira na ONU, galvanizadora de crescente prestígio do Brasil no contexto
mundial. Ao retornar do Haiti foi chefe do gabinete do comandante do Exército de 2005 a 2007, nesse cargo
demonstrou a arte de colocar a pessoa certa na função certa, um atributo importante que aumenta a produtividade
institucional e induz a harmonia. Promovido a general de exército em [31 de julho de] 2007, foi Comandante Militar
da Amazônia de 2007 a 2009 onde afirmou a sua posição patriótica e corajosa relativa à questão indígena nacional.
Entre [maio de] 2009 e [maio de 2011] chefiou o departamento de Ciência e Tecnologia do Exército, onde encerrou
a carreira por completar 12 anos de oficial general, após 45 anos de serviço. Atualmente [2014] é o diretor de
comunicação e educação corporativa do Comitê Olímpico Brasileiro (COB)”26.

Complementarmente, Heleno além do cargo no COB (o qual permaneceu até novembro de 2017), já na
reserva foi contratado como consultor de segurança e defesa do Grupo Bandeirantes de Comunicação. Em abril de
2018 filiou-se ao Partido Republicano Progressista (PRP). Com a vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro, foi
nomeado para o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cargo que ocupa desde
201927.

26
https://www.youtube.com/watch?v=jNPGKZQcdVM&t=904s acessado em 07 de maio de 2021
27
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/augusto-heleno-ribeiro-pereira acessado em 06 de maio de
2021.
30

No entanto, para fins de nossa pesquisa vale ressaltar alguns elementos de seu currículo. Em primeiro lugar,
o fato de ter concluído “em primeiro lugar o curso de formação de oficiais na arma de Cavalaria” em sua turma na
AMAN. Resulta deste fato que Heleno era na turma da AMAN de 1969 o cadete “zero um” na ordem de
classificação, a qual como descrita anteriormente, seria uma posição de prestígio, exemplificada pelo fato de ser
“[...] o cadete 01 quem, no dia da formatura final do curso, recebe a espada de oficial das mãos do presidente da
República e abre o portão de ‘saída dos novos aspirantes’” (CASTRO, 2004, p. 57).

Entretanto, outro elemento interessante do currículo de Heleno é que o mesmo não foi somente o “zero um”
na AMAN, mas também na EsAO e ECEME, fato que lhe rendeu “[...] a medalha Marechal Hermes de prata dourada
com três coroas”28. Não por acaso Santa Rosa define a passagem de Heleno por esses cursos por meio da expressão
“em ambos sobressaiu-se pelo seu valor intelectual e liderança”.

Lembremos que as notas, os conceitos obtidos em cursos, medalhas, elogios e condecorações são elementos
que integram o sistema de classificação e, portanto, formam em conjunto o mérito que o militar deve possuir para
poder prosseguir na escala hierárquica (LEIRNER, 1997, p. 83), assim como integram tanto o processo pelo qual as
estratégias de distinção interna são elaboras, quanto a própria constituição de “reconhecimento” pelos demais,
sobretudo, quando nos referimos às grandes unidades e aos postos superiores. Tal fato fica mais evidente num relato
de um capitão da reserva:

[...] Mas como que um coronel é conhecido dos tenentes, dos capitães, dentro da arma dele?
[...] Se é um coronel, por exemplo, conta se tem estado-maior, ou não tem. Se
tem estado-maior, tem mais status. Existem [outros critérios], principalmente nas armas
combatentes, se o oficial é possuidor de alguns cursos, isso também tende a ser relevante, no
seu reconhecimento. Que cursos seriam estes, os valorizados? Se esse oficial tem curso de
para-quedismo, forças especiais, comandos (...). Principalmente os tenentes de armas
combatentes, infantaria e cavalaria, eles tendem a valorizar isto. Se porventura se perceber
que este oficial é muito condecorado, isto também pode servir como uma referência
importante. Muito condecorado, deve ser alguém primeiro de turma, ou alguém que serviu
no exterior” (capitão R/2 apud LEIRNER, 1997, p. 81, itálico meu).

Neste contexto, Heleno não somente apresenta todas as características descritas por aquele capitão como
portadoras de status, como também desempenhou posições de comando no exterior e em lugares de prestígio no

28
Idem.
31

Brasil, entre os quais a de force commander da MINUSTAH e a de comandante do Comando Militar da Amazônia
(CMA), posições caracterizadas por ele como “experiências inigualáveis como oficial general”29, tal processo se
torna mais claro na transcrição a seguir que fazemos de uma de suas palestras sobre a Amazônia realizada na Loja
Maçônica do Estado de São Paulo, quando, como demonstra o conteúdo da fala, o general já chefiava o
Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército e não mais o CMA:

“Quero ressaltar que o que eu disser aqui, primeiro, é da minha inteira responsabilidade, muitas vezes não
será exatamente a opinião do Exército Brasileiro, é a minha opinião e eu assumo inteira responsabilidade por ela.
[Minha opinião] não tem nenhuma conotação político-partidária, meu único partido político é o Exército Brasileiro
e não pretendo ter outro, para isso ficar bem claro, não pretendo ter outro. Eu não farei nenhuma crítica pessoal, o
que eu colocar aqui são críticas institucionais, problemas que eu constatei ao longo dos quase dois anos que passei
tendo a honra e o privilégio de ser comandante do indiscutivelmente mais importante Comando da força terrestre
hoje, eu não tenho nenhuma dúvida... com todo respeito ao Comando Militar do Sudeste [...], com todo respeito a
todos os outros comandos militares de área e a todos os departamentos, mas nada se compara a comandar na
Amazônia, é uma experiência fantástica, é um desafio muito grande e na Amazônia não tem munição de festim, toda
vez que a tropa sai do quartel sai com munição real, então já faz uma diferença.

Eu tive uma experiência que eu achei que jamais poderia ser superada que foi ser force commander da
Missão para Estabilização do Haiti [...], uma experiência fantástica. Quando eu vim do Haiti eu falei ‘pô, o que que
eu vou fazer agora?’, [é a mesma coisa que] o camarada jogar no Flamengo ou Corinthians e depois jogar num time
da várzea. Aí eu tive a sorte de ter aberto a vaga do Comando Militar da Amazônia exatamente na hora em que fui
promovido ao último posto da carreira e como eu era o chefe do gabinete do comandante, ali eu ouvi o general Enzo
[Martins Peri]... claro, eu estava com o pé no Rio Grande do Sul, com o pé no Comando Militar do Sul, porque a
vaga no Comando Militar da Amazônia não estava prevista para abrir, foi um problema de doença da esposa do
general [Raymundo Nonato] Cerqueira [Filho] que acabou precipitando a saída dele de lá. Aí o general Enzo me
chamou e perguntou ‘você quer ir para a Amazônia ou para o Sul?’, sem dúvida o Comando Militar do Sul foi o
comando militar mais importante do Exército durante muito tempo, toda a época em que nós tínhamos a nossa
estratégia voltada para o Cone Sul, o Comando Militar do Sul foi o comando militar mais importante do Exército,
sem nenhuma dúvida... ‘você tem até amanhã para responder’, eu falei ‘não, até amanhã não, está respondido já para
o senhor não se arrepender, quero ir para o Comando Militar da Amazônia! Eu tenho uma dívida à resgatar com o
Comando Militar da Amazônia’ [...] Eu tinha uma dívida com a Amazônia de prestar o meu serviço lá [...]”30.

Em relação ao trecho acima, em primeiro lugar, destacamos que Heleno já havia sido exonerado do cargo
de comandante do CMA por conta de declarações públicas acerca da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra

29
https://www.youtube.com/watch?v=qRWzU3uWbJ4&t=319s acessado em 06 de maio de 2021.
30
https://www.youtube.com/watch?v=qRWzU3uWbJ4&t=319s acessado em 06 de maio 2021.
32

do Sol, processo que será descrito de forma detalhada no próximo capítulo, fato que talvez explique as ressalvas que
Heleno faz acerca de suas opiniões poderem não representar “exatamente a opinião do Exército Brasileiro”, mas que
contraditoriamente suas críticas seriam “críticas institucionais”, isto é, chanceladas pela própria cadeia de comando-
obediência a qual ele estaria submetido, como qualquer outro militar da ativa (LEIRNER, 1997, 52 e 53).

Em segundo lugar, pretendemos destacar aqui o fato de que ter ido para o CMA significou para Heleno um
momento de “sorte” no qual o mesmo estava “próximo” ao comandante do Exército quando possivelmente este foi
informado da necessidade de designar um oficial general para aquele comando. É interessante notar que o fator
“sorte” também é utilizado por Heleno para explicar o processo pelo qual se tornou force commander da
MINUSTAH, outro posto de prestígio no Exército:

Dei sorte de estar ao lado do comandante, o general Albuquerque, quando ele recebeu a
ligação do general [James Thomas] Hill, que era na época o comandante militar Sul do
Exército americano, sediado em Miami, e que era quem tinha essas ligações com os países
centro-americanos, sul-americanos, e vinha sempre ao Brasil, nas reuniões bilaterais e nas
reuniões de exércitos americanos. [...]

Eu estava ao lado do general Albuquerque e, quando terminou a ligação, ele comentou


comigo: “O general Hill, convidando para a gente enviar o force commander ao Haiti”. Aí
eu falei para ele: “Eu sou voluntário”. “Mas você, meu chefe do CComSEx?” Eu falei para
ele: “General, sou médico sem doente. Eu quero um doentinho. Então, eu sou voluntário
desde já”. Aí ele falou: “Está bem. Eu vou reunir os generais do alto-comando que estão aqui
em Brasília, para eles darem uma opinião, confirmarem. Acho que eles não vão querer que
você vá, mas…”. Se reuniram, não me lembro se no mesmo dia ou no dia seguinte, na própria
casa dele. Aí os generais do alto-comando concordaram, e meu nome foi enviado para o
Ministério da Defesa (CASTRO; MARQUES, 2019, p. 18, itálico meu).

Primeiramente, deve-se destacar que dentro de uma instituição militar como o Exército Brasileiro, a
hierarquia

[...] é o princípio primeiro de divisão social de tarefas, papéis e status dentro do Exército,
determinando as condutas e estruturando as relações de comando-obediência, sistematizando
a ação e a elaboração do conhecimento militar e mapeando o modo como as relações de
poder devem estruturar-se. Além disso, ela determina o modo pelo qual o conhecimento e as
33

informações são produzidos e circulados no interior da tropa (LEIRNER, 1997, p. 52,


itálico meu).

Desta forma, o elemento “sorte” exteriorizado por Heleno como a explicação de sua ida para dois postos
de comando prestigiados no Exército nos fornece um ponto privilegiado para a observação da hierarquia militar em
suas diferentes dimensões. Nesse sentido, deve-se ressaltar o fato de que em ambos os momentos Heleno já se
encontrava no posto de oficial general e, portanto, integrava o círculo hierárquico respectivo a este posto. Este fato
é importante pois a partir dos círculos realiza-se uma divisão dos ambientes, salas, refeitórios, banheiros, ou como
ocorre na ECEME, “[...] andares inteiros vão se restringindo a determinadas ocupações, próprias de certas posições,
formando cenários distintos” (LEIRNER, 1997, p. 75). Além disso, levar em conta os círculos hierárquicos em
ambos os momentos se encontra informado pelo fato de que tais círculos tendem a serem mais restritivos quando
falamos em unidades maiores comandadas por “superiores-comandantes”, como seria o caso do QG do Exército em
Brasília onde fica o gabinete do comandante do Exército - ambiente no qual transcorrem os dois eventos –, o qual
sem dúvida constitui um “lugar de prestígio” e status dentro da instituição (LEIRNER, 1997, p. 97). São justamente
nestes lugares que para os demais militares “[...] você fica conhecendo os generais, e tal, amplia o seu leque de
conhecimento, e isso vai ser importante” (capitão R/2 apud LEIRNER, 1997, p. 97), além de serem lugares onde os
mesmos oficiais acabam indo e voltado diversas vezes ao longo do tempo, como demonstra a próprio currículo de
Heleno.

Desta forma, a “sorte” de Heleno na verdade pode ser vista como produto mesmo da hierarquia que opera
como elemento totalizador da instituição, em um processo no qual o status atribuído desde a formatura na AMAN
enquanto “zero um” foi sendo a cada patente, curso, relação com comandantes e com unidades maiores e menores,
e a cada medalha ou condecoração, produzindo mais status, o qual se encontra calcado e legitimado pela instituição
por meio do mérito pessoal atribuído pelo próprio sistema de classificação. Não por acaso, lugares de prestígio o
levaram a outros lugares de prestígio, em especial à MINUSTAH e ao Comando Militar da Amazônia.

Como já descrito no capítulo 2, a centralidade tanto doutrinário-estratégica, quanto simbólica do CMA, se


insere em um processo de longa duração de reorientação do Exército Brasileiro para a região amazônica. Neste
contexto, como afirma o próprio general Heleno, seria de se esperar que o Comando Militar responsável pela região
se tornasse “indiscutivelmente [o] mais importante Comando da força terrestre”, o qual consequentemente acaba
por se constituir enquanto um local de prestígio dentro da Força. Deve-se chamar a atenção que estes locais de
prestígio são meios para a ascensão em termos de status por parte daqueles que o frequentam por serem notadamente
locais portadores de status próprio (LEIRNER, 1997, p. 97).

Por outro lado, é necessário compreender que todos esses processos também integram um outro pilar da
instituição militar: a disciplina.
34

Se a hierarquia é o princípio segmentador dentro da instituição, por meio da qual se atribui níveis distintos
de méritos por meio do sistema de classificação, já a disciplina é o princípio pelo qual se dá “[...] um sentido único
e explícito ao sistema de desigualdades que permeia essa Força de cima a baixo; [...] se trata de fazer todos os
segmentos terem uma percepção igualitária de que pertencem a um universo com a mesma regra primordial, que
define que o pertencimento se dá a partir da segmentação, e que ser militar é estar inserido nessa lógica” (LEIRNER,
1997, p. 107 e 108). Sendo assim, a disciplina é “[...] o elemento capaz de traduzir a noção abstrata de que a
hierarquia une porque segmenta todos igualmente para uma percepção de que todos são devedores e beneficiários
de ‘algo’ totalizante e maior do que cada um na sua condição de membro de uma teia de relações pessoais, seja este
‘algo’ o Exército, a pátria ou o povo brasileiro” (LEIRNER, 1997, p. 107 e 108).

Todavia, se o Exército constrói suas tradições e calca sua própria identidade a partir de elementos como a
“questão amazônica” ou ao anticomunismo (CASTRO, 2002), é de se esperar que a leitura militar de pertencimento
àquele “algo” se dá também por meio destes elementos que acabam por funcionar como catalisadores de coesão
interna (LEIRNER, 1995, p. 129). Desta forma, queremos ressaltar aqui que a carreira militar do general Augusto
Heleno se insere num intrincado processo hierárquico e disciplinar de orientação da conduta, de uma habitus
específico (BOURDIEU, 1983; 2001) calcado em socializações inerentes à instituição militar que definem não
somente os elementos possíveis para distinção pessoal, como também o próprio processo de pertencimento a esta
mesma instituição. A seguir veremos como ambos os processos se materializam na distinção entre civis e militares

3.3 OS PAISANOS DO MUNDO DE FORA.

Um processo não evidente para aqueles que observam instituições militares de um ponto de vista externo,
é o fato de que para além da ideia de uma distribuição piramidal de patentes, a organização interna encontra-se
baseada num princípio básico: aqueles que pertencem à cadeia de comando-obediência e aqueles que não pertencem.
Nesta divisão os primeiros serão identificados como “militares” e os segundo serão os “civis” ou “paisanos”
(CASTRO, 2004; LEIRNER, 1997).

Para além de um simples jogo de palavras e denominações, tal distinção é estabelecida desde o início da
socialização militar nas academias, socialização esta realizada em relativo isolamento e autonomia, contribuindo
para o estabelecimento de diferenciações que caracterizariam o “aqui dentro” e o “lá fora”, de tal forma que a notícia
transmitida pelos próprios cadetes ainda em formação seria clara: “[...] os militares são diferentes dos paisanos. E
não apenas diferentes, mas também melhores. São melhores — nessa visão — não por características singulares que
os militares tenham ou venham a ter individualmente, mas porque eles — enquanto coletividade, corpo — viveriam
da maneira correta” (CASTRO, 2004, p. 53, itálicos do autor).
35

Encontra-se assim embutido na ideia de “viver da maneira correta” a percepção segundo a qual pertencer
ao Exército é fazer parte “de uma coisa muito maior”, “uma coisa grande e importante”, de se preocupar com as
causas “nobres e elevadas”, tais quais a Pátria, o Brasil ou mesmo a Amazônia, que acabam resultando na elaboração
de que o interior da instituição militar é o locus de um Brasil mais autêntico e desconhecido – e por vezes
menosprezado – pelos paisanos (CASTRO, 2004). Não por acaso o “deslizamento simbólico” desses processos
acaba por culminar na seguinte formulação de Heleno em palestra na Maçonaria de São Paulo:

Agora está na moda o politicamente correto, então uma das coisas que eu considero
politicamente incorreta e grave é a tal da história da “sociedade civil”, cada vez que eu escuto
falar em sociedade civil eu me sinto o Bahuan31, o dálite, eu sou uma dálite, porque se tem
uma sociedade civil tem uma sociedade militar e a sociedade militar está excluída... quando
falo em sociedade civil os militares estão excluídos? Eu sou militar porque ando de
uniforme, mas eu pago imposto, IPVA, seguro do carro, caio em buraco na rua... então eu
acho que nós temos que ser considerados como integrantes da sociedade brasileira [...] não
tem esse negócio de “sociedade civil”, é sociedade brasileira! Isso é ranço, isso nada mais é
do que ranço do Regime Militar [...] é a sociedade brasileira que tem que discutir os
problemas, não é a sociedade civil, em sociedade civil os milicos estão todos excluídos, não
tem sentido esse troço32.

É patente que se a distinção entre civis e militares não é necessariamente determinante para esses últimos,
ela sem dúvida é determinante para aqueles, fazendo com que a fala de Heleno se torne uma síntese da construção
da identidade militar em contrate ao “resto” – os paisanos, a qual apresenta o seu lado mais visível justamente em
seu uniforme, de uso exclusivo da Força (LEIRNER, 1997, p. 21), o qual é coincidentemente mencionado pelo
general. Esta distinção pode ainda ser exemplificada por meio do uso de declarações de militares sobre o suposto
controle civil que o Ministério da Defesa exerceria sobre as Forças Armadas. Mais uma vez uma das declarações de
Heleno em 2007 é reveladora do processo. Quando perguntado sobre a relação entre Exército e o então ministro da
Defesa, Nelson Jobim, o general respondeu: “o ministro Jobim tem se preocupado em conhecer profundamente as
Forças Armadas. Ele tem demonstrado uma aplicação muito grande nisso. Ele não é só um visitante, é um visitante
aplicado” (NORONHA, 2007, itálico meu). Mais uma vez a fala cumpre sua função de sintetizar a identidade militar
que acaba por produzir quase sempre uma lógica “semi-integrativa”, “[...] em que o ‘outro’ pode ser um afim mas
jamais chega a ser um dos nossos. Nesse sentido, o civil pode ser considerado um amigo do Exército — alguém que

31
Referência à personagem na novela Caminhos das Índias reproduzida pela Rede Globo na época da fala.
32
https://www.youtube.com/watch?v=qRWzU3uWbJ4&list=PLyeH38I_AwXoT9zXiYBz9vMCR1LHcue6j&index=23&t=297
s acessado em 14 de junho de 2021.
36

pode sobretudo representar a possibilidade de concretização de uma proposta ou um projeto político comum33”, mas
jamais pertencerá de fato à instituição (LEIRNER, 1997, p. 22).

Assim, no próximo capítulo se tornará evidente como a própria distinção entre civis e militares uma vez
preenchida pela “questão Amazônica” — a partir de tomadas de posição em jornais impressos sobre a demarcação
de Raposa Serra do Sol, foi fundamental na construção de um processo que partindo do topo da cadeia de comando-
obediência produziu coesão interna à instituição militar.

Para o caso em questão significava o apoio de Jobim à “[...] uma política de defesa nacional com priorização mais enfática da
33

Amazônia” (NORONHA, 2007).


37

4. UM “LADO DE FORA” CAÓTICO.

Como descrito no primeiro capítulo, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi demarcada pelo ex-presidente
Lula em 15 de abril de 2005, usando como base a Portaria nº 534 de do Ministério da Justiça de 13 de abril de 2005.
Nesta Portaria encontrava-se disposto que:

Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não índios


dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação de autoridades
federais, bem como a de particulares especialmente autorizados, desde que sua atividade não
seja nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao processo de assistência aos índios.
Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes não-índios presentes na área da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um ano, a partir da
data de homologação da demarcação administrativa por decreto presidencial34

Desta forma, uma vez demarcada, a retirada da população não-indígena que habitava o interior da Terra
Indígena deveria ser realizada no prazo de no máximo um ano, isto é, abril de 2006. No entanto, tal prazo somente
foi considerado esgotado pela FUNAI em abril de 2007, em decorrência de uma série de ações ajuizadas ao Supremo
Tribunal Federal que contestavam a demarcação da região e que pediam garantias para que a população não indígena
permanecesse no interior da Terra até que o STF decidisse sobre tais ações (SILVA, 2012, p. 137).

Ainda em maio daquele ano os produtores de arroz que habitavam a região “[...] ganharam no STF o direito
de permanecerem em suas fazendas até que fosse julgado o mérito da ação que determinou a retirada de não índios.
A decisão do STF proibiu a FUNAI de promover a retirada dos produtores ou realizar quaisquer ações intimidatórias,
até que o caso fosse julgado pelo mesmo”. Somente em junho o STF derrubou esta liminar, permitindo que a FUNAI
desse início à remoção (Ibid, p. 137).

O processo de remoção se arrastou até setembro daquele ano (2007), quando a Polícia Federal, encarregada
de realizar a operação, solicitou apoio logístico ao Ministério da Defesa. A ideia seria que a Aeronáutica e o Exército
auxiliassem os mais de 500 agentes da PF a entrarem na reserva e fornecessem apoio logístico como, por exemplo,
no fornecimento de aeronaves, carros, barracas, UTIs terrestres e demais infra-estruturas de campanha. Todavia, o
general Maynard Marques de Santa Rosa, à época secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do

34
É importante lembrar que o exposto na Portaria encontra-se amparado no Art. 4º do Decreto nº 1775/96, que dispõe sobre o
procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e que assegura que uma vez homologada e identificada a ocupação de não
índios no interior da TI “[...] o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo
grupo técnico, observada a legislação pertinente”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1775.htm acessado em 26 de Agosto
de 2021.
38

Ministério da Defesa, por duas vezes, uma em entrevista ao jornal O Globo e outra em uma audiência pública na
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, vocalizou não somente a resistência das Forças
Armadas em dar apoio à operação, como também em relação à própria demarcação da TIRSS (ÉBOLI, 2007a).

Por conta de ambas as declarações, Santa Rosa foi exonerado do cargo que ocupava no Ministério da
Defesa, na oportunidade o general Augusto Heleno, há duas semanas no cargo de comandante do Comando Militar
da Amazônia, aproveitou para afirmar que seus recursos eram “reduzidíssimos” caso precisasse dar auxílio à PF,
bem como comentou a exoneração de seu colega: “respeito profundamente a posição dele (sobre Raposa Serra do
Sol) porque o conheço muito. Ele estuda assunto há muito tempo. É um conhecedor da área” (ÉBOLI, 2007b).

A declaração de Heleno sobre Santa Rosa seria o preambulo de outras, no mês seguinte, em outubro de
2007, Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, e Nelson Jobim, ministro da Defesa, por ocasião de visita ao 5º
Batalhão de Infantaria de Selva (BIS), assistiriam uma palestra de Heleno na qual o general “[...] alertou que ‘o
vazio do poder do Estado’ [seria] a maior ameaça à região. Ele pediu, para 2008, um contingente de 25.000 homens”
(MONTEIRO, 2007).

No entanto, se em 2007 as declarações do general Heleno se restringiram a comentar brevemente sobre


Raposa, sobre a exoneração de Santa Rosa e reclamar o “vazio de Estado” na região amazônica e um efetivo maior,
já no ano de 2008 o general passaria de vez a se dedicar em conceder entrevistas aos jornais impressos. A primeira
daquele ano foi no mês de março, nela o general aproveitou a oportunidade para falar sobre a necessidade de
reequipar as Forças Armadas: “não podemos patrulhar as fronteiras com fuzis de 43 anos de idade e veículos com
média de 20 anos de uso. Precisamos de helicópteros melhores” (GOIS, 2008).

Já no mês seguinte, em entrevista ao jornalista Jailton de Carvalho do O Globo, Heleno falou diretamente
sobre a questão de Raposa: “preocupa a demarcação em terra contínuas, aliada a outras circunstâncias, como chamar
algumas etnias de nações indígenas, bem como o que está descrito na Declaração de Direitos dos Povos indígenas.
No meu ponto de vista, isso começa a ser uma ameaça à integridade nacional e à segurança nacional”
(CARVALHO, 2008, itálico meu).

Como pontuado por nós no capítulo 2, tais elementos presentes na fala de Heleno sobre demarcações de
forma contínua e em faixa de fronteira serem uma ameaça à soberania fazem parte da própria cosmologia militar
sobre a Amazônia, bem como a formulação segundo a qual haveria ameaça à segurança nacional ao se referir às
populações indígenas como “nações” ou “Estados” presente em declarações e instrumentos internacionais. Aqui
cabe um pequeno parênteses.

Heleno e diversos outros militares recorrentemente citam dois documentos internacionais quando tomam
posição sobre a “questão indígena” no país: a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU e a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a elaboração militar, o termo “povos indígenas”
39

presentes nos documentos poderia implicar o “[...] status de sujeito de Direito Internacional e, de acordo com a Carta
das Nações Unidas (artigo 1.2), que reconhece o princípio de autodeterminação dos povos, pôr em risco a integridade
do território” (CUNHA, 2012, p. 130). Isso, na visão militar, poderia desembocar na “formação de vastos enclaves
territoriais pouco povoados e dissociados da comunidade nacional” e, assim, “evoluir em direção à criação de nações
indígenas autônomas” (ALBERT, 1991, p. 53), formulação já presente nos próprios documentos do Projeto Calha
Norte (OLIVEIRA FILHO, 1991, p. 340).

Todavia, a situação revela um manejo e uma interpretação não de toda desinteressada por parte dos militares
dos termos “povos”, “nações” e “Estados” presente nos documentos internacionais, haja vista que estes mesmos
documentos, como no caso do artigo 1º, parágrafo 3º, da Convenção 169 da OIT, fazem questão de pontuar que “a
utilização do termo povos nessa Convenção não deverá ser interpretada como tendo qualquer implicação com
respeito aos direitos que se possa conferir a esse termo no direito internacional”, isto é, não implicando no
reconhecimento à reivindicações separatistas (CUNHA, 2012, p. 130).

Porém, nos interessa aqui ressaltar que esta única declaração de Heleno sobre Raposa foi suficiente para
exigir tomadas de posição do então presidente da Funai, Márcio Meira, bem como do próprio presidente Lula, que
contestou a ideia de haverem “nações indígenas” em território nacional: “Nós queremos resolver os problemas dos
índios, resolver o problema de Roraima e resolver o problema de terra, no Brasil, pacificamente. Não tem nação
indígena. Dentro do território nacional, nós iremos demarcar as terras indígenas, iremos cuidar, mas a soberania
do território é do Estado brasileiro” (CARVALHO e BERLINCK, 2008, itálico meu).

Nesta mesma reportagem em que Lula contesta a ideia de “nação indígena”, Marcio Meira argumentava
que em todas as terras indígenas até então demarcadas fôra garantido o livre-acesso das Forças Armadas ao interior
das terras, haja vista ser uma das recorrentes reclamações utilizadas pelos militares para contestar processos
demarcatórios. Segundo Meira, tal elemento havia sido garantido nos casos das reservas do Alto Rio Negro,
Yanomami, Parque do Tucumate e seria garantida no caso de Raposa Serra do Sol – o que de fato de confirmou. No
entanto, na mesma reportagem tal posição é contestada pelo militar e ex-ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, que
participou do processo demarcatório da Terra Yanomami. Para Passarinho “O [general] Heleno está absolutamente
certo [sobre Raposa ser ameaça à soberania nacional]. É completamente diferente da reserva Ianomami, cuja
demarcação eu ajudei a fazer porque era fronteira morta. Não havia atividade econômica. Serra do Sol não. Existem
fazendas lá de 200 anos. E ela está numa fronteira viva com a Guiana Inglesa” (Ibid). Curiosamente esta não parecia
ser a opinião de Passarinho na década de 1990 quando diante das reclamações sobre a demarcação da Terra
Yanomami, publicou um artigo na Revista do Clube Militar em que dizia que não havia nenhuma ameaça à soberania
no processo demarcatório, haja vista que sendo as terras indígenas de propriedade da União, uma vez se sobrepondo
à faixa de fronteira “[...] a União [seria] duplamente proprietária. Ela exerce sua soberania tanto para com os índios
40

quanto para garantir nossa fronteira, assegurando plenamente a integridade do território brasileiro” (CUNHA,
2012, p. 131, itálico meu).

Contudo, as tomadas de posição de atores civis como a do próprio presidente da República foram
acompanhadas de mais declarações de Heleno reproduzidas por jornais impressos. Numa palestra de abertura de um
curso sobre segurança internacional e defesa promovido pela Fiesp e pela USP em São Paulo, Heleno teria afirmado
que “Roraima está acabando, porque o território indígena é maior do que o Estado”, fala acrescida da declaração de
que a política indigenista brasileira estaria “na contramão da sociedade, conduzida à luz de pessoas e ONGs
estrangeiras” e também de crítica à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela ONU, que para
Heleno significaria uma ameaça à soberania nacional uma vez que o documento garantiria às populações indígenas
a posse e o controle autônomo de territórios por eles ocupados (O ESTADO DE S. PAULO, 2008).

Por outro lado, se desde setembro de 2007 o processo todo era apenas ensaiado, a partir de 16 de abril de
2008 chegaríamos finalmente ao clímax da questão. Por ocasião do seminário “Brasil, ameaças à sua soberania”
realizado na sede do Clube Militar no Rio de Janeiro, para uma plateia de 150 militares da reserva e da ativa, segundo
O Globo (TABAK; MENEZES, 2008), e 600 para o Estadão (MONTEIRO et al, 2008), Heleno afirmou: “a política
indigenista está dissociada da História brasileira e tem de ser revista urgentemente. Não sou contra os órgãos do
setor, quero me associar para rever uma política que não deu certo, é só ir lá para ver que é lamentável, para não
dizer caótica” (TABAK; MENEZES, 2008, itálico meu). Não é preciso dizer que este último trecho foi o que se
tornou a marca do ocorrido, Heleno a partir de então seria para a imprensa e para si próprio – como demonstra suas
palestras já na reserva - o general que havia chamado a política indigenista do governo Lula de “caótica”.

Dentre as palestras que Heleno já realizou durante toda a sua carreira militar, esta no Clube Militar não se
encontra disponível em sua integralidade na internet, desta forma o acesso ao interior das declarações somente pode
ser acessado a partir dos trechos selecionados pelos jornais impressos e demais jornalistas que cobriam a palestra
(ver figuras 1 e 2), o que impõe desde já uma seleção, que embora possa significar uma limitação à análise da palestra
em si, diz muito sobre quais trechos chamaram a atenção dos jornalistas para a composição das reportagens.
41

FIGURA 1 GENERAL HELENO NO CLUBE MILITAR

Fonte: YouTube35

FIGURA 2 GENERAL HELENO APÓS PALESTRA NO CLUBE MILITAR

Fonte: YouTube36

35
https://www.youtube.com/watch?v=yZ3hhRipt30&list=PLyeH38I_AwXoT9zXiYBz9vMCR1LHcue6j&index=35 acessado
em 18 de junho de 2021
36
https://www.youtube.com/watch?v=wDO3z5ejwH8&list=PLC2FJctQNTXywj8zs_XV_8W5FVTuPHktq&index=25&t=1s
acessado em 20 de junho de 2021
42

O trecho da palestra transcrito anteriormente nos parece essencial para expormos aquilo que desejamos
destacar nesse primeiro momento: a distinção entre civis e militares que se encontra ancorada naquela declaração.
Porém, é importante destacarmos que a ideia do trecho “quero me associar para rever uma política que não deu
certo” só pode ser compreendido a partir de outras duas declarações do general, a primeira concedia aos jornalistas
logo após à palestra, segundo ele:

[...] eu tenho recebido muita visita na Amazônia e tenho constatado que muita gente que
tem nas suas mãos decisões envolvendo a Amazônia desconhecem a área, muitas vezes
quando chegam lá para nos visitar é a primeira vez que sobrevoam a Amazônia e tem nas
mãos decisões que interessam a Amazônia. Então a primeira grande preocupação é que
aqueles que estão decidindo sobre a Amazônia vão lá nos conhecer, conhecer a realidade da
Amazônia com o pé no chão e não atrás de uma mesa, porque aí todos os problemas ficam
muito diferentes na realidade (itálico meu)37

E a segunda presente na própria palestra: “não sou da esquerda escocesa, que, atrás de um copo de uísque
12 anos, sentada na Avenida Atlântida, resolve os problemas do Brasil inteiro. Visitei mais de 15 comunidades
indígenas, estou vendo o problema do índio” (MONTEIRO et al, 2008, itálico meu).

Isto é, se lidas em conjunto, as três declarações apontam para a elaboração segundo a qual políticos que não
conhecem a região acabam por produzir uma política indigenista “caótica” e “lamentável”. Desta forma, a “revisão”
proposta por Heleno seria na verdade a seguinte: uma política indigenista ordeira (em contraposição à expressão
“caótica”) só poderá ser produzida por atores que não sejam políticos e que estejam na região, de preferência atores
pertencentes à uma instituição que “serve ao Estado brasileiro e não ao governo” e que antes de seus interesses
políticos e econômicos, defendam o “interesse nacional”: os militares das Forças Armadas. Não por acaso todas as
expressões entre aspas aqui utilizadas são do próprio Heleno na palestra (TABAK; MENEZES, 2008).

Desta forma, fica patente como a distinção entre civis e militares, bem como a atribuição de elementos morais
distintos a ambos forneceu a base na qual as declarações puderam ser feitas, em um processo de clara oposição ao
poder civil. No entanto, deve-se ressaltar que tal processo não se restringiu apenas à Heleno, mas também a demais
militares da ativa e da reserva das Forças Armadas.

Um dos primeiros militares da reserva que logo após a fala de Heleno tomaram posição foi Leônidas Pires
Gonçalves, ex-ministro do Exército, para quem a reserva Raposa Serra do Sol poderia torna-se um caso de “estado
de enclave (quando um território se sobrepõe ao outro)” (TABAK; MENEZES, 2008). Além de Gonçalves, seguiu-

37
https://www.youtube.com/watch?v=yZ3hhRipt30&list=PLyeH38I_AwXoT9zXiYBz9vMCR1LHcue6j&index=35&t=1s
acessado em 14 de junho de 2021.
43

se a publicação de notas do Clube Naval, do Clube Militar e do Clube Aeronáutico (TABAK, 2008), esta última
intitulada “Não recue, general Heleno” e assinada pelo então presidente do Clube, tenente brigadeiro do ar Ivan
Frota, apresentava a seguinte formulação:

Sua palavra representa a síntese do pensamento castrense atual, bem como do segmento
responsável de todo o Povo Brasileiro.
Estamos prontos a apoiá-lo até as últimas consequências, em defesa de sua liberdade de
expressão.
Que o Presidente não se atreva a tentar negar-lhe o sagrado dever de defender a soberania
e a integridade do Estado Brasileiro, cristalizado no juramento solene que, um dia, foi
comprometido diante da Bandeira Nacional.
Caso se realize tal coação, o País conhecerá o maior movimento de solidariedade militar,
partindo de todos os recantos deste imenso País, jamais ocorrido nos tempos moderno de
nossa História38.

É patente nesta carta não somente o fato de que as declarações de Heleno representarem o “pensamento
castrense atual”, mas que este próprio pensamento ao ser articulado na defesa de uma “questão nacional”, como
seria o caso da Amazônia e de suas terras indígenas, representaria o “sagrado dever” de manter a integridade do país,
ou seja, que também nesta questão o que está em jogo é o ideal militar de que cabe às Forças Armadas a articulação
de toda a sociedade, que na percepção militar não passa de um “[...] amontoado de arquipélagos fragmentados”
(LEIRNER, 1997, p. 24).

No entanto, devemos ressaltar que os Clubes Militares são associações de militares da reserva, isto significa
que embora sendo militares e tendo toda a sua formação e socialização em uma das três Forças, uma vez na reserva
encontram-se fora da cadeia de comando-obediência, “[...] não há a quem pedir autorização, não há a quem dever
subordinação, não há um circuito hierárquico que decide, no fim das contas, qual é e qual não é a conduta apropriada
[...]” (LEIRNER, 1997, p. 49). Desta forma, se nesse setor as declarações foram de apoio, a partir de agora
passaremos a analisar as reações dentro da cadeia de comando.

4.1 COESÃO PARA DENTRO DA CADEIA DE COMANDO-OBEDIÊNCIA.

Embora possa se dizer que o Exército Brasileiro se organiza a partir de um circuito hierárquico
multifacetado e que consequentemente nem todas as decisões vão parar no comandante do Exército, ainda assim de

38
https://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1055:2104-mensagem-do-
brigadeiro-ivan-frota&catid=16&Itemid=34 acessado em 15 de junho de 2021.
44

acordo com a natureza do problema, na dúvida, este vai “para cima” e chega nele (LEIRNER, 1997, p. 49). Não por
acaso, à época da repercussão da palestra, o general Mário Madureira, então chefe do Estado-Maior do Comando
Militar do Leste, declarou: “o general [Heleno] foi convidado, como eu, para uma palestra, devidamente autorizado
pelo comandante do Exército, como ele mesmo disse, no início da sua abordagem” e mais adiante, “o que ele
[Heleno] obviamente aqui falou era de conhecimento do comandante da instituição. Talvez no debate, aí, foge um
pouco [...]. Mas o comandante tinha plena consciência de que ele estaria aqui participando de uma aula, ele deu
uma aula [...]. Não vi nada que tenha ferido a hierarquia” (TOSTA, 2008, itálico meu).

No entanto, antes desta declaração, Madureira também havia dito em outra entrevista que estava
“preocupado” com a homologação da TIRSS em faixa contínua, segundo ele, “o risco da soberania é com áreas que
podem ser separadas do território brasileiro. ONGs internacionais e grupos indígenas podem solicitar essa divisão
política. Pode ser a mesma situação que ocorreu no Kosovo. É uma preocupação de todos”. A tomada de posição de
Madureira ainda foi acompanhada por outro general da ativa, Luiz Cesário da Silveira Filho, comandante militar do
Leste, para quem a questão também se tratava de risco à soberania nacional e do cumprimento do artigo 142 da
Constituição, o qual trataria da atuação da Forças Armadas “na defesa da pátria” (TABAK e MENEZES, 2008).

O próprio general Silveira Filho, voltaria novamente aos jornais no mês posterior - maio de 2008. Por
ocasião do aniversário do Colégio Militar sediado na Tijuca, Rio de Janeiro – cerimônia na qual Heleno foi
homenageado por ex-alunos que utilizavam blusas escritas “a Amazônia é nossa” – Silveira Filho aproveitou para
emendar que “não temos dúvida de que a Amazônia é nossa, será sempre nossa”, afirmação acompanhada por outro
general da ativa, Paulo Cesar Castro, chefe do Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército, que também
discursou no evento e disse: “o Brasil vai continuar íntegro no seu território. Brancos, negros, índios e descendentes
de orientais numa única nação, o povo brasileiro” (O GLOBO, 2008a).

Mais uma vez a formulação presente na carta dos clubes militares acerca da manutenção da integralidade
do território é repetida aqui, a qual será acrescida na fala de Silveira Filho de elementos que fazem clara associação
à Batalha Guararapes e à mistura das “três raças” na constituição da Nação e do Exército, associação não de toda
improvisada, uma vez que coincidentemente a palestra de Heleno no Clube Militar foi realizada dois dias antes do
Dia do Exército (19 de abril), data em que se comemora justamente a I Batalha de Guararapes, que para além de ser
uma tradição inventada, procura atualizar em um novo contexto histórico a associação indissolúvel entre Exército
e Nação, tão cara no plano simbólico para aquela instituição (CASTRO, 2002, p. 40).

No entanto, voltando para as tomadas de posição de militares da ativa, os três generais seriam ainda
acompanhados pelo almirante Marcos Martins Torres, chefe do Estado-Maior da Defesa, para quem Heleno não
representaria uma voz isolada dentro das Forças Armadas sobre a questão de Raposa Serra do Sol e a possibilidade
de prejuízo à soberania nacional (MONTEIRO, 2008). Desta forma, observa-se até aqui pelo menos seis declarações
45

de quatro militares da ativa em apoio à Heleno, mas a questão continuaria percorrendo a cadeia de comando-
obediência.

Se pelo menos até aqui todas as declarações se restringiram à concessão de entrevistas, o caso a seguir
parece ter dado um passo à frente nessa lógica. No dia 10 de maio daquele ano, menos de um mês após a palestra de
Heleno no Clube Militar, uma manifestação de arrozeiros, políticos e comerciantes de Roraima contrários à
demarcação de Raposa Serra do Sol terminou em um ato dentro do 7º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS), sendo
acompanhada de uma palestra destinada aos manifestantes realizada pelo comandante do Batalhão, general Eliezer
Monteiro, subordinado direto ao próprio general Heleno (ÉBOLI, 2008a).

Monteiro além de dizer que “o general Heleno falou o que precisava ser falado”, afirmou que o processo
de demarcação significava risco à soberania nacional e deu orientações aos manifestantes: “cobrem respeito à
propriedade e à dignidade de vocês e exijam que possa passar comida, combustível [por dentro da reserva]. A terra
que está lá, ainda que dentro da Raposa, ainda está sob o nome de suas famílias. São dos senhores” e emendou “com
que direito esses índios fazem isso [proibição de entrada de não-índios da reserva]?! Cabe à Funai fazer esse
controle”. Ao final do ato, Monteiro negou que o ocorrido ali tenha sido uma manifestação política, afinal, segundo
o general, uma manifestação desse tipo seria realizada em um palco ou tribuna e ali ele estava recebendo os mais de
30 manifestantes “dentro de uma sala, no [seu] quartel” (ÉBOLI, 2008a) – ver figura a seguir.

FIGURA 3 MANIFESTAÇÃO DE ARROZEIROS NO INTERIOR DO 7º BIS

Fonte: ÉBOLI (2008a)


46

Depois de noticiado o ocorrido, Monteiro concedeu ainda uma entrevista ao O Globo no dia seguinte, na qual
afirmou entre outras coisas:

O CIR [Conselho Indígena de Roraima] prega a segregação. Eles não aceitam nem que
comunidades indígenas recebam benefícios. A gente às vezes passa numa comunidade ligada
ao CIR e oferece a bandeira do Brasil, pergunta se necessitam alguma coisa, oferece serviço
médico e dentista, mas eles dizem que não querem. Recusaram até uma escola do Calha
Norte, que oferecemos para ser construída no lugar de uma que foi queimada. Política
segregacionista não tem vez aqui.
A quem compete administrar as coisas que estão nas terras indígenas? Seria a FUNAI, mas
o órgão não tem capacidade para isso. Esse poder é feito por ONG, que faz o papel que
deveria ser da FUNAI. Isso é a quebra da federação brasileira.
O Estado deveria pensar bem antes de fazer novas demarcações ou fechar os processos. Para
que criar terra indígena e entregar para uma ONG cuidar? (ÉBOLI, 2008b).

Naquele mesmo dia, 11 de maio, o jornalista Gerson Camarotti do O Globo noticiou que as ações de
Monteiro foram recebidas pelo Palácio do Planalto como “um gesto de insubordinação explícita”, no entanto o
ocorrido não recebeu comentários nem por parte de Lula, nem de Nelson Jobim (CAMAROTTI, 2008), mesmo se
caracterizando em ato indisciplinar previsto no Estatuto dos Militares39 e no Regulamento Disciplinar do Exército40.

Mais uma vez as tomadas de posição de Monteiro e de demais militares da ativa atestam os elementos
evidenciados por nós no capítulo 2, tornando-se claro como o discurso sobre a temática amazônica uma vez
preenchida pela questão da demarcação de terras indígenas apresenta alto potencial de coesão no interior da cadeia
de comando-obediência e reforço da ideia de pertencimento ao Exército. Além das tomadas de posição aqui
descritas, um outro elemento que exemplificaria tal potencial de coesão seria justamente um dos relatos do general
Eduardo da Costa Villas Bôas, ex-comandante do Exército (2015-2019), que à época era comandante da Escola de
Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). Segundo Villas Bôas:

39
Em especial no seu art. 45, que prevê que “são proibidos quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores
quanto as de caráter reivindicatório ou político” e no art. 77 § 1º a) “é proibido o uso de uniforme em manifestações de caráter político
partidário”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm acessado em 04 de novembro de 2021

40
Segundo o Estatuto se caracterizam transgressão disciplinar as seguintes atividades: “31. Representar a organização militar ou
a corporação, em qualquer ato, sem estar devidamente autorizado; [...] 56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em
discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa; 57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que
esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária; 58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-
partidária; 59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se
devidamente autorizado”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4346.htm acessado em 04 de novembro de 2021.
47

Na EsAO, vivi um evento ao mesmo tempo sensível e curioso. O general


Heleno, então comandante da Amazônia, no decorrer de uma palestra no Clube Militar,
afirmou que a política indigenista do governo (Lula) era uma catástrofe. A repercussão foi
imediata, transcrita em todos os jornais. Também impactou o governo, gerando uma pequena
crise. Os capitães da EsAO haviam sido alunos de Heleno quando de seu comando da Escola
Preparatória de Cadetes em Campinas e, sobre eles, o Heleno exercia uma sólida liderança.
Numa sexta-feira, o coronel Viana Peres, chefe da Divisão de Ensino, entrou em minha sala
com ar preocupado e me comunicou que os alunos estavam preparando um manifesto em
apoio ao general.
Liguei para o Heleno, contei-lhe o que estava acontecendo e ainda brinquei: ‘Olha o abacaxi
que você me arranjou!’. Riu muito e pediu que os capitães não o fizessem, pois, além de não
contribuir para superar o problema, forneceriam argumentos aos que tentavam acusá-lo de
estimular a indisciplina. Reuni toda a escola – cerca de 500 integrantes – e mostrei-lhes que
um militar tem duas formas de se manifestar. Coletivamente, por intermédio de seu
comandante, e se por escrito, em caráter individual. Comprometi-me a levar ao escalão
superior, bem como a encaminhar os argumentos escritos dos que insistissem em fazê-lo.
Cumpri aquilo com que havia me comprometido, evitando, dessa forma, qualquer tipo de
extrapolação do tema (CASTRO org, 2021, p. 145-146, itálico meu).

Deve-se destacar que a noção de “liderança” dentro do Exército apresenta um significado particular, ao
contrário do “comandante”, tal denominação estaria mais relacionada à uma autoridade carismática (LEIRNER,
1997, p. 80) diante da qual o subordinado “se sente arrastado”. Para os cadetes da AMAN, por exemplo, “[...] os
líderes são aqueles oficiais que despertam confiança. Por um lado, ‘dão o exemplo’, isto é, mantêm uma postura
pessoal em consonância com aquilo que exigem de seus subordinados. Por outro lado, são ‘mais humanos”,
preocupam-se com seus subordinados ‘enquanto pessoas’, e não apenas com a manutenção da obediência devida”
(CASTRO, 2004, p. 28, itálico meu). Fato que torna significativa a expressão de que Heleno exercia sobre os capitães
da EsAO uma “sólida liderança”, a qual parece ter sido revertida em apoio às suas tomadas de posição – mais afrente
veremos como a liderança e prestígio interno ajudaram Heleno a não ser devidamente punido à época pelo ministro
da Defesa, Nelson Jobim.

Torna-se, assim, patente que as declarações de Heleno reverberaram ao longo da cadeia de comando-
obediência, ganhando apoio de cima à baixo e estimulando que demais oficiais tomassem posição sobre a temática,
seja concedendo entrevistas aos jornais impressos ou redigindo manifestos de apoio (processo repetido por aqueles
que já estavam na reserva), seja permitindo que manifestações políticas fossem realizadas dentro de unidade
militares, incorrendo, assim, em transgressão disciplinar. No entanto, é preciso se perguntar sobre o papel do controle
civil neste processo. É sobre ele que nos dedicaremos na próxima sessão.
48

4.2 ONDE ESTÃO OS CIVIS?

Estando subordinado hierarquicamente ao comandante do Exército à época, general Enzo Martins Peri, ao
ministro da Defesa, Nelson Jobim, e ao presidente da República, Lula, seria de se esperar que as tomadas de posição
do general Heleno em sua palestra no Clube Militar fossem sucedidas por punições disciplinares, uma vez que,
apesar de estar autorizado pelo comandante do Exército à realizar a palestra, o general realizou colocações de cunho
político que contrariariam o Estatuto dos Militares41 e o Regulamento Disciplinar do Exército42, em especial no que
tange às normas de conduta relacionadas aos militares da ativa.

No entanto, se observado de perto, mesmo caracterizando um episódio de indisciplina não houve qualquer
punição disciplinar atribuída ao general. O fato foi resolvido em uma curta reunião entre Jobim, Heleno e Enzo Peri.
Após a reunião, Jobim repassou as justificativas do general à Lula, o qual deu o episódio como encerrado
(CARVALHO, 2008). Porém, uma entrevista de Jobim ao Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) em 2013 é reveladora sobre como o prestígio interno de um general influía no
momento de atribuir punições disciplinares.

Abaixo transcrevo um longo trecho em que o ex-ministro relata em um primeiro momento as medidas
tomadas para a punição e exoneração do general Maynard Marques de Santa Rosa, por suas declarações em
setembro de 2007 acerca da recusa das Forças Armadas em auxiliariam a retirada das populações não indígenas do
interior da TIRSS e, em um segundo momento, o relato acerca dos próprios eventos envolvendo o general Heleno
em abril de 2008:

[...] então tive alguns momentos em que, curiosamente... Alguém dirá: ‘Ah, foi crise’. Mas
não foi. Crise não foi. Mas foi um momento em que deu espaço para que eu exercesse a
autoridade. Foi um general de quatro estrelas, da ativa, que estava no Ministério da Defesa
[referência ao general Maynard Santa Rosa] [...]. Ele fez lá uma declaração e saiu
estampado... Eu me acordo de manhã, abro o jornal, estava a declaração desse... que
era um negócio... Acho que era terra indígena. Não me recordo mais o que era, mas era uma
coisa... criticando as decisões do governo. Aí eu me acordei, vi aquilo, sete horas, liguei

41
Em especial no seu art. 45, que prevê que “são proibidos quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores
quanto as de caráter reivindicatório ou político” e no art. 77 § 1º a) “é proibido o uso de uniforme em manifestações de caráter político
partidário”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm acessado em 04 de novembro de 2021

42
Segundo o Estatuto se caracterizam transgressão disciplinar as seguintes atividades: “58. Tomar parte, fardado, em
manifestações de natureza político-partidária; 59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos
políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4346.htm acessado em
04 de novembro de 2021.
49

para o Enzo, “Enzo, vamos remover esse cidadão”. Porque esses cargos eram todos, na
época, do presidente da República. “Ah! O que é que houve?”. Eu disse: “Olha, Enzo,
prepara tudo aí. Eu vou conversar com o presidente, ele vai ser removido. “E você me diz
para onde é que ele vai. Eu vou destituí-lo dessa função.” Aí o Enzo disse: “Está bem. Está
bem”. “Avise ele”. “Está certo, ministro, está correto”. Aí eu fui ao Palácio. Quando eu
estava no Palácio, entra o Lula, furioso. “O que é isso, Jobim?!” Eu disse: “Não, não tem
nada. Pode assinar”. “O que é isso?”. “É o ato destituindo o sujeito”. “O quê? Vai destituir?”.
“Vai, vai destituir”. “Mas e...?”. “Não tem problema, está tudo resolvido. Inclusive já foi lá
para o corredor”. É aquela história: quando você tira o oficial de um cargo de comando,
enfim, de um órgão administrativo ou mesmo de Força, você tem uma forma: você bota à
disposição do comandante do Exército. À disposição do comandante, fica no corredor, não
tem função. Então botamos à disposição... Ficou à disposição do comandante do Exército e
saiu daquela função.
O outro caso, o general Heleno, que era um sujeito muito diferente desse aqui [general Santa
Rosa]... Esse aqui não tinha a liderança que tinha o Heleno dentro do Exército. Aí o
Heleno fez lá umas declarações, que, materialmente, estavam corretas, sobre o negócio de
terra indígena e sobre a forma de a Funai conduzir etc. e tal. Aí eu chamei o Heleno. Aí o
pessoal da Funai, do Ministério da Justiça, enfim, o pessoal... queriam tirar o Heleno. Aí eu
fiz o contrário, eu chamei o Heleno e disse: “Olha, eu só peço que você não fale mais no
assunto. Eu posso contar contigo?”. “Ministro, não tem problema, não falo mais no assunto”.
“Então você vai ficar”. Aí todo mundo vinha para cima de mim. Até que eu disse “Não vou
demitir, não. Ele vai ficar. Ele é importante, ele vai ficar e não vai falar mais no assunto”
(CPDOC/FGV, 2015).

Este relato revela como o prestígio e o status interno acabou por influenciar a decisão do então ministro da
Defesa em cumprir a lei, resultando em atribuição desigual de punições disciplinares para eventos similares. Em um
caso, dado o baixo prestígio interno houve maior celeridade e energia despendia para que o general Santa Rosa fosse
removido de seu cargo no Ministério da Defesa e estivesse à disposição do comandante do Exército, ao passo que
se tratando de Heleno sua “importância” e “liderança” dentro da instituição permitiram uma ação célere, porém
destinada a estabelecer a sua não punição.

Porém, o interessante de se notar é que se o combinado entre Jobim e o general era que este não desse mais
declarações, a análise das reportagens dos jornais impressos nos mostra que isso não foi muito bem o que aconteceu
posteriormente. No dia 20 de abril daquele ano, dois dias depois da conversa com Jobim e Peri, Heleno concedeu
duas entrevistas ao Estadão. Numa o general se dedica a falar sobre a ações das Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (Farc) e seu envolvimento com o tráfico de drogas na fronteira brasileira, bem como da necessidade de
um maior apoio de outros órgãos para o controle deste problema, como no caso da Polícia Federal, uma vez que,
segundo ele, os militares das Forças Armadas não apresentariam treinamento específico no assunto (TOMAZELA,
2008a). No entanto, para a mesma reportagem o general realizou comentários, mais uma vez, sobre os processos
demarcatórios na Amazônia e suas ameaças à soberania nacional. Para o general haveria uma campanha pela
“internacionalização da Amazônia” que estaria focada na questão de denúncias exageradas em relação ao
50

desmatamento da região, processo agravado pela “ausência do Estado”. Além disso se encontra disposto o seguinte
na matéria:

Ele [general Heleno] considera grave, do ponto de vista militar, a transformação de extensas
áreas contíguas de fronteira em reservas indígenas. Nessas áreas proliferam organizações
não-governamentais (ONG) bancada pelo capital internacional que agem fora do controle
brasileiro. A questão indígena está sendo dissociada do processo histórico de conquista e
colonização do território que levou à miscigenação, um traço marcante da cultura
brasileira. ‘Querem isolar os índios nas terras, mas o índio não quer viver isolado. Ele quer
usufruir das benesses da civilização.
Para o general, a cooperação é a tese mais equilibrada: permite que o indígena tenha sua
terra para viver, mas também interaja com o não-índio. Ele se considera no direito de ‘dar
palpite’, pois essa questão afeta a soberania nacional. ‘Enquanto eu for comandante, eu
entro em todas as terras indígenas, quer queiram quer não’ (Ibid, itálico meu)

Torna-se, assim, patente que mesmo após as indisposições com o governo federal geradas por sua palestra
no Clube Militar e o acerto entre ele e o então ministro da defesa para que não fosse punido, o general continuava a
conceder entrevistas sobre a questão para os jornais impressos. Ainda neste mesmo dia, Heleno integra uma outra
reportagem do Estadão na qual mais uma vez faz referências à necessidade de reequipar das Forças Armadas na
região amazônica:

A região é vista como o ponto fraco do sistema brasileiro de defesa e preocupa o chefe do
Comando Militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira. ‘O contingente é
muito pequeno. A distância entre dois pelotões passa de 400 quilômetros sem ligação por
terra’.
O comandante da Amazônia diz que manter guarnições militares na fronteira tem um custo
muito alto. ‘Nossa necessidade não é de mais gente, e sim de meios’. Faltam lanchas,
helicópteros, fuzis modernos, coletes e equipamentos de visão noturna. ‘Usamos armas com
mais de 40 anos’, ressalta. Ele considera essencial o reaparelhamento para aumentar o poder
na fronteira.
‘Se o Brasil não se voltar para o problema da Amazônia, ela vai se transformar no paraíso
dos ilícitos’, adverte. (TOMAZELA, 2008b)

No entanto, os superiores hierárquicos de Heleno não deixaram somente que o general continuasse a dar
entrevistas aos jornais impressos, a permissividade cristalizou-se primeiro em discurso e, posteriormente, na letra
da lei.

Em 8 de maio daquele ano, menos de três semanas após a palestra de Heleno, o então ministro da Justiça,
Tarso Genro, anunciou que o governo federal ampliaria a rede de pelotões de fronteira do Exército em terra indígenas
51

na Amazônia, questão acertada entre Jobim e Enzo Peri, ficando a cargo do Exército definir a quantidade e a
localização dos pelotões. Para o jornalista Jailton Carvalho do O Globo, “a instalação de novos postos em aldeias
seria uma tentativa de diminuir a resistência militar contra a criação de grandes reservas em áreas de fronteira”. Já
para Tarso Genro, a decisão do presidente Lula procurava evidenciar que “[...] a terra indígena não [era] incompatível
com a soberania nacional” (CARVALHO, 2008b).

A iniciativa seria materializada no Decreto nº 6513 de 22 de julho de 2008 – já mencionado por nós no
capítulo 2, o qual estabelecia em seu Art. 3-A o dever do Comando do Exército em instalar “[...] unidades militares
permanentes, além das já existentes, nas terras indígenas situadas em faixa de fronteira [...]”43. Segundo Enzo
Martins Peri, o novo decreto garantiria “um aumento da atividade e da presença do Exército na região” (CLUBE
MILITAR, 2008, nº 430, p. 9).

Em consonância a este decreto, no mês seguinte, Nelson Jobim acompanhado do próprio general Heleno,
afirmou que novos Pelotões Especiais de Fronteira (PEF) seriam instalados em reservas indígenas mesmo “contra a
vontade de ONGs ligadas aos índios”, as quais “poderiam protestar”, mas a decisão já havia sido tomada pelo
presidente (O GLOBO, 2008b). Ao lado de Jobim, Heleno aproveitou a oportunidade para chamar a atenção da
necessidade de “projetar poder” militar na Amazônia, segundo ele, “não adianta aumentar efetivos. Temos que ter
condições de operação com agilidade onde for necessária a presença militar” (O GLOBO, 2008b), pauta que como
evidenciado por nós já era empenhada pelo general desde setembro de 2007 logo após assumir o comando do CMA.

Ainda no interim desses acontecimentos no ano de 2008, outro episódio que deve ser integrado aqui nos
dados apresentados foi a criação da Frente Parlamentar de Apoio às Forças Armadas na Câmara em maio daquele
ano. Segundo os parlamentares que a compunham, em sua maioria contrários à demarcação da TIRSS, a Frente
Parlamentar fôra criada para “tornar mais ampla a atuação da bancada da Amazônia no Congresso”, região prioritária
dos órgãos de defesa (ÉBOLI, 2008c). O mais surpreendente é que em sua primeira reunião, além do fato de estarem
presentes representantes enviados pelos comandantes das três Forças (Marinha, Aeronáutica e Exército) e de
haverem manifestações de apoio ao general Heleno por parte dos deputados, um dos parlamentares formulou que o
cargo de ministro da Defesa não deveria ser ocupado por um civil, mas sim por um “militar, seja da reserva ou da
ativa, que entende[sse] o que é caserna e que [fosse] nacionalista”. A tomada de posição torna-se ainda mais
relevante quando se constata que Nelson Jobim, um ministro da defesa civil (!), segundo ele próprio, havia apoiado
e realizado a articulação política necessária para a criação da Frente Parlamentar, a qual ampliaria a atuação da
bancada da Amazônia no Congresso (ÉBOLI, 2008c).

Parece-nos que, ao fim e ao cabo, o próprio governo Lula acabou por ceder às reivindicações dos militares
– posição não de toda inédita ao longo de seu governo (MARTINS FILHO, 2010; OLIVEIRA, 2009), reiterando

43
http://www.pla,nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6513.htm acessado em 14 de julho de 2021.
52

discursiva e legalmente a visão doutrinário-estratégica e simbólica do Exército sobre a Amazônia, ainda que
procurasse exteriorizar uma posição que rejeitasse serem as terras indígenas demarcadas de forma contínua e em
faixa de fronteira uma ameaça à soberania nacional.

Por outro lado, do ponto de vista da carreira militar de Heleno os episódios de 2008 parecem ter rendido
ganhos pessoais ao general, sobretudo em relação ao aumento de seu prestígio diante da sociedade. Neste contexto,
ainda que o general tenha dito posteriormente que sua exoneração do Comando Militar da Amazônia em 2009 e sua
passagem para o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército tenha sido uma retaliação do governo Lula por
conta de suas tomadas de posição sobre Raposa44, é preciso esclarecer que podendo ou não ser uma punição tal ação
veio tarde: quase um ano após sua palestra no Clube Militar e após o general ter continuado a dar diversas entrevistas
sobre a questão aos jornais impressos, as quais também foram acompanhadas de concessões, sobretudo legais, do
governo Lula, que favoreceram material e simbolicamente o Exército e sua atuação na Amazônia, o que nos faz nos
perguntarmos se a suposta “retaliação de Lula” não seja na verdade uma construção discursiva por parte do general
em estabelecer-se enquanto uma militar que teve a “coragem” de chamar a política indigenista do governo de
“caótica”, se inserindo assim em um intrincado processo de estruturação de distinções pessoais frente aos demais
militares.

44
https://www.youtube.com/watch?v=QjYZXeYhKFc&list=PLyeH38I_AwXoT9zXiYBz9vMCR1LHcue6j&index=65&t=345
8s acessado em 15 de junho de 2021.
53

CONCLUSÃO.

A exposição das reportagens dos jornais impressos apresentadas ao longo desta monografia envolvendo as
tomadas de posição do general Heleno e demais militares sobre o processo de demarcação da TIRSS evidenciam,
em primeiro lugar um exemplo claro de legitimação da instituição militar a partir de um problema específico
competente ao Exército. O Exército por deter o monopólio do uso legítimo da violência e por definir suas funções
por meio da lei, seria uma instituição que não buscaria legitimar-se em termos de sua existência efetiva, “[...] mas
sim em termos de certos problemas específicos serem ou não da competência do Exército — como, por exemplo, a
ocupação nos morros do Rio de Janeiro” (LEIRNER, 1997. p. 19). Acreditamos que Raposa Serra do Sol ao
preencher a “questão Amazônica” possa ter cumprido tal função nos anos de 2007 e 2008.

Em segundo lugar, ao aceitarmos a formulação segundo a qual o Exército é uma instituição que socializa
em relativo isolamento ou autonomia os seus integrantes (CASTRO, 2004, p. 53), produzindo uma identidade militar
contrastiva ao “resto”, necessitamos evidenciar que esta instituição pertence à “coisa pública”, o que a envolve
politicamente em questões próprias da vida pública em nível nacional, exigindo que esta instituição fechada em si
mesma negocie e “se abra” para debater, por exemplo, questões nacionais como a amazônica, com outro atores
sociais e políticos (LEIRNER, 1997, p. 25). Nesta cotidiana contradição entre “coisa pública” e fechamento
institucional, evidenciamos como o Exército atua como um “grupo informal de interesses” (COEHN, 1978, p. 88-
89 apud LEIRNER, 1997, p. 24), que se “abre” de forma restrita ou “privada”, com articulações estratégicas e
fragmentadas, de grupo a grupo, tentando abarcar setores representativos da sociedade e que tal processo
apresentaria um deslizamento simbólico no qual os militares veem a si mesmos com os atores que realizarão a
congregação da sociedade brasileira e seus múltiplos interesses, interpretada por eles enquanto um “amontoado de
arquipélagos fragmentados” (LEIRNER, 1997, p. 24).

Neste contexto, acreditamos que ao analisarmos a atuação do Exército em uma “questão nacional” como a
demarcação de Raposa Serra do Sol por meio de tomadas de posição de seus militares em jornais impressos, tornou-
se uma oportunidade privilegiada para observar a identidade militar sendo posta à prova e mais do que isso, de se
observar o processo mesmo pelo qual a atuação política do Exército adquiriu significação simbólica e produziu
coerência à conduta militar (LEIRNER, 1997, p. 25), contrariando a formulação civil de que eventos como esse
expressam pura e simplesmente a indisciplina militar.

No entanto, ao nos determos especificamente nas declarações de militares, acabamos por deixar de lado um
rico material das tomadas de posição de autoridades civis em relação à Heleno, bem como a percepção da imprensa
sobre os fatos, seja ela impressa ou mesmo as reportagens televisivas produzidas sobre a Amazônia na época dos
eventos.
54

É patente observar o apoio que Heleno recebeu de diversas autoridades, de jornalistas e da própria sociedade
em geral, não por acaso à época uma petição em seu apoio, assinada, por exemplo, pelo jornalista Reinaldo
Azevedo45, chegou a angariar 10.362 assinaturas46, restando nos perguntarmos se nesse caso em específico a “franca
convicção” dos militares sobre a Amazônia não tenha levado também ao “convencimento dos outros” (LEIRNER,
1995, p. 130) que partindo da caserna tenha encontrado uma situação favorável para se alastrar pela sociedade em
geral. Talvez pesquisas futuras possam responder a esta pergunta.

Tais pesquisas poderão ainda evidenciar se a coesão interna encontrada por nós nas declarações públicas
de militares de fato se converteu em processos tais como a formulação de monografias de conclusão de curso sobre
a Amazônia ou mesmo no aprofundamento ou modificação de orientações doutrinárias, isto é, se a questão também
foi politizada para dentro da instituição. Além disso, futuras pesquisas poderão melhor situar os eventos aqui
descritos por nós em um processo de longa duração durante os governos petistas em que o Exército produziu
militares que se indispusessem publicamente com o governo federal, tal qual os eventos que envolveram o general
Maynard Santa Rosa em 2010 e o general Hamilton Martins Mourão em 2015 e 2017 (LEIRNER, 2020, p. 210)

Desta forma, acreditamos que esta pesquisa alcançou seus objetivos e abriu caminhos para que novas
pesquisas possam ser realizadas de forma a enriquecer os estudos sobre militares no Brasil.

45
https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/peticao-de-apoio-ao-general/ acessado em 15 de junho de 2021.
46
http://web.archive.org/web/20080423053857/http://www.petitiononline.com/mod_perl/signed.cgi?xptoxpto acessado em 17
de junho de 2021.
55

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