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INLAND JOUR NAL 22

Daniel Barroca · Editores Eduardo Matos e André Cepeda · inland-journal.com · novembro de 2022

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UM SONHO depois, veio outra vez uma estrada de alcatrão e uma
leve subida que apontou o meu olhar para o céu que
Algum tempo mais tarde, já na cidade e pela mesma naquele momento estava totalmente azul, liberto de
altura do ano, sonhei com flores Kutubala. Sonhei nuvens, livre de texturas. Ao olhar para a esquerda vi
que caiam de uma árvore, embatendo levemente no de novo a copa do poilão, era a única forma que cor-
chão largando pequenas nuvens de pólen à sua volta. tava o azul luminoso do céu com a sua copa reticu-
Amontoavam-se debaixo de um enorme poilão cujas lar como um sistema de vazos sanguíneos a espalhar
raízes entravam no chão como se fossem serpentes energia para o espaço. Os Maias imaginavam a Ceiba
gigantes revolvendo a terra e em cujos ramos, lá muito pentandra como a árvore cósmica que unia a imensi-
no alto, pousavam abutres que olhavam calmamente dão obscura do submundo terrestre à vastidão espacial
cá para baixo. No sonho, eu via as Kutubalas amontoa- do cosmos. A sua raiz parece dar estrutura ao chão, e
Kutubala, espanto e esquecimento rem-se sem parar quase como neve no pico do inverno a sua copa, ao céu, como se fizessem parte do mesmo
de um país nórdico. O sonho mostrava-me um enorme emaranhado espacial pelo qual se dispersam todas
nevão daquelas flores tropicais, com os seus tons dou- as relações humanas. Naquele instante essa visão era
rados, castanhos e ocres reluzentes pairando no ar óbvia. Atravessei uma rua e cheguei à esquina de um
sendo tocadas por finos raios de luz que provocavam hospital. Os táxis passavam de um lado para o outro
estranhos reflexos como pequenas labaredas pairando transportando pacientes para dentro e para fora do
durante um incêndio. A Kutubala é uma das únicas flo- edifício. O passeio era acidentado com buracos que de
res que conheço que é sem dúvida mais bonita quando repente surgiam no meio do caminho e barreiras de
seca. Fresca é apenas branca e verde com os seus protu- betão maciço, normalmente utilizadas para bloquear
berantes emaranhados de pólen amarelo nos estames estradas, atiradas sem explicação para cima do pas-
– é bonita como uma flor de amendoeira, apenas isso. seio. O caminho era uma reta, mas os obstáculos no
Mas, uma vez seca, ganha espantosos matizes doura- percurso complicavam-no em pequenas curvas e con-
Kutubala é a palavra na língua Balanta Kuntohe para a desta, ao absorver os líquidos, indica a sua invisível dos, principalmente nos ditos estames, que jogam com tracurvas transformando-o numa serpente. Tudo em
flor de uma árvore vernacularmente chamada poilão, presença. A existência de um poilão indica sempre a os acastanhados das pétalas que ao secarem adquirem Bissau se transforma em serpente, tudo anda às curvas,
Ceiba pentandra para os botânicos, uma das árvores existência de um terreno rico em água, ou seja, fér- uma suave textura aveludada refletindo sem igual a luz tudo se entrelaça, se comprime e se consome como as
de maior porte nas paisagens tropicais onde cresce til e de onde muitas vezes brotam nascentes potá- de um final de tarde naqueles mangais transformados ficus ficae fazem às árvores por onde trepam e das quais
nas Américas e África Ocidental. Na Guiné-Bissau veis. Como me chamou a atenção um querido amigo em arrozais. É de facto como um floco de neve, mas se alimentam. Os materiais dos quais as coisas são fei-
alguns poilões são balobas. Ou seja, lugares onde (o Dídio Pestana), será talvez por isso que muitos poi- quente, a espalhar calor por onde passa e em tudo o tas são também um entrelaçado diverso que se estende
aqueles que derramam em reverência e agradeci- lões são lugares de culto. A kutubala é a flor que desa- que toca. Um floco de neve a arder. Dá para imaginar? a toda a malha urbana. Tudo naquela cidade parece
mento aos irans1 vão matar animais para lhes oferecer brocha nos longos ramos do poilão e cai no chão entre Não há flor que se compare à Kutubala, é a mais bonita entrelaçado como um enorme e denso querentim que
o seu sangue. É por isso que são conhecidos por derra- o final do mês de janeiro e o início do mês de feve- que eu alguma vez vi. É a única flor que desejei intensa- em vez de ser feito de duas tramas ortogonais entrela-
madores, porque fazem libações aos Irans com o san- reiro. O poilão dá primeiro a sua flor, e só depois o seu mente através de um sonho, e o meu desejo era apenas çadas uma na outra, é orgânico como um ser vivo que
gue de animais e outros líquidos (aguardente de cana fruto do qual sai uma semente muito leve que ao cair apanhá-la do chão, levá-la para casa e ficar só a olhar se estende para todos os lados da paisagem na qual a
e outras bebidas alcoólicas, plantas esmagadas com da árvore é levada pelo vento até encalhar em terreno para ela admirando a sua fascinante complexidade cro- circulação de seres humanos, automóveis, quadrúpe-
água, etc). Um derramador demonstra reverência fértil. Certos botânicos consideram a hipótese de ter mática. “Kutubala!” é neve tropical ao mesmo tempo des, aves, insetos, cursos de água, objetos, imagens,
para com o chão que pisa derramando diariamente, sido assim, com os ventos e as correntes marítimas, que é fogo solidificado. sons e sensações de toda a ordem se dá por ruas tão
semanalmente, mensalmente, anualmente, como que em tempos remotos essa semente viajou do con- Ao acordar anotei tudo o que sonhei num mapa de estranhamente emaranhadas que a cidade mais parece
agradecimento. Estas libações exigem pagamen- tinente americano para o africano. escrita que acabou por formar um desenho no qual um superorganismo povoado por milhões de pequenos
tos em dinheiro, seja para comprar animais ou para Numa pequena aldeia onde vivi algum tempo, encontrei uma abertura, um caminho, que intuiti- organismos cruzando-se uns com os outros dentro de
pagar ao balobeiro, que nalguns casos, pela grande muitas pessoas apanhavam essa flor e preparavam- vamente eu sabia levar-me a encontrar a árvore de uma enorme nuvem de poeira, densamente, parecendo
frequência com que são feitos, levam os derramado- -na para comer. Esmagavam-na em pesados pilões Kutubalas com que tinha sonhado. Olhei pela janela e por vezes tudo muito rápido, outras muito lento, ou
res à ruína financeira. Quando o chão absorve o que até ficar uma pasta a que chamavam “lalo” que depois vi dois poilões que irrompiam da linha do horizonte. uma mistura de velocidades muito rápidas com muito
é derramado, é o Iran a consumir a libação. O Iran cozinhavam como mafé para comerem com o arroz Percebi que devia seguir o da esquerda que era o mais lentas. À medida que caminhava observava a consti-
confunde-se com a própria terra, o comportamento que cultivavam na bolanha. Um dia, ao chegar do alinhado com a rua em que eu vivia. Vesti-me, saí de tuição dos materiais que faziam as ruas, as casas, os
arrozal guiado por Séguna, um dos amigos da aldeia, casa e comecei a andar em linha reta para noroeste carros. Era tudo uma complexa assemblage de placas
vi pela primeira vez esta flor quando ele apontou con- tentando sempre manter a copa do poilão no meu de cimento reforçadas por grossos perfis de ferro oxi-
tundentemente para o chão debaixo de um poilão: campo de visão. A estrada asfaltada depressa deu lugar dado, alcatrões em processo de desagregação, plásticos
1. Para uns os Irans são os seres invisíveis da floresta que vivem “Olha! Esta flor é a Kutubala! Kutubala!” a estradas de terra batida por onde circulavam carros coloridos e ressequidos em acelerada erosão, pesadas
entre Deus (N’hala) e os seres humanos, para outros são figuras semidestruídos, mas surpreendentemente funcio- madeiras da floresta e longas vigas de palmeira, cordas
demoníacas com sede de sangue humano. nais, de onde emanavam nuvens de poeira que esba- feitas de fibras de trepadeiras do mato, chapas impor-
tiam tudo o que parecia nítido à minha volta. Logo tadas batidas e polidas à pressa sobre carroçarias quase

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destruídas pelo uso, por guerras civis, golpes militares, livremente entre campas impedindo por vezes que se olharem para mim. Um deles tinha-se encostado ao verdes pendurados nos galhos castanhos com a luz
cansaço, pobreza, vontade de vencer que descamba em percebesse nitidamente a malha ortogonal da planta murete branco que ladeava o caminho com um braço amarela do sol, e de abutres pousados nos ramos, dis-
morte, economias paralelas, contrafação de coisas ini- do cemitério. Uma das maiores campas, coberta com esticado e o outro agarrando o cotovelo atrás das persos por toda a copa, uns mais acima outros mais
magináveis, fuga de capitais para o estrangeiro, gente uma enorme pedra negra, tinha em cima duas coroas costas. O outro rapaz estava só mesmo no meio do abaixo, uns muito distantes no topo, outros mais perto
muito rica vs. gente muito pobre, políticos corruptos de flores de plástico, uma azul e a outra cor-de-laranja, caminho, olhando para mim com os olhos franzidos pousados nos ramos mais descidos. Alguns desses abu-
assassinados por barões da droga, organizações reli- uma inscrição que dizia “Fiel Amigo” e estava partida na por causa do sol, tencionando a boca de modo a ficar tres pareciam só disfrutar do sol àquela hora do dia,
giosas preenchendo vazios de poder, etc., etc. A rua ia parte superior direita como se o defunto tivesse saído entreaberta revelando a falta de um dente incisivo late- que estava já muito baixinho, irradiando uma luz ama-
dar a um cemitério de onde, por detrás dos altos muros da terra depois de sepultado. Tomei a alameda que ia ral, e amachucando algumas folhas secas com as mãos relo torrada, morna. Fechavam os olhos como quem
brancos saíam as copas de várias árvores, de entre elas, dar ao poilão e que aos poucos foi perdendo o pavi- à frente da barriga. fica só a sentir o calorzinho daquele banho de luz ao
a do poilão que eu via da minha casa. mento, transformando-se num simples trilho amas- Levantei a mão com uma pequena flor entre os dedos sabor do vento que lhes batia nas penas e nos ramos
A porta do cemitério estava semicerrada, mas sado pelo uso. Ao aproximar-me da enorme árvore, e perguntei “Em Balanta isto diz-se Kutubala, não é?” onde estavam pousados fazendo-os oscilar para cima,
aberta. Era um portão velho, mas bem esmaltado, com o caminho começou gradualmente a ficar coberto de E os dois em simultâneo concordaram acenando com para baixo, para a frente, para trás. Tudo muito cal-
muitas camadas de tinta que lhe davam uma textura flores secas que haviam caído da sua copa. Eram as a cabeça ao mesmo tempo que esboçaram um sorriso. mamente. Outros abutres procuravam espaços mais
muito enriquecida incluindo aquele leve toque pega- Kutubalas que havia visto no meu sonho. Eram exata- Um deles retorquiu “Queres isso para quê, para fazer confortáveis na árvore, abrindo as asas para sustenta-
nhento das superfícies esmaltadas. Empurrei-o para mente as mesmas! Agachei-me para apanhar algumas. mesinhas?” e eu respondi “Não, é só para ter em casa. rem o corpo enquanto se movimentavam ligeiramente
dentro e ele fez uma curva sobre a roda de apoio que Fiquei até um pouco nervoso ao tocar aqueles pedaços Mas há pessoas que esmagam estas flores e fazem um mais para um lado ou para outro nos galhos fazendo-os
rolava sobre um trilho de ferro montado no chão para de fogo sólido espalhados, amontoados pelo chão até molho para pôr na comida, não é?” Encolheram os balancear com os seus movimentos. Outros ainda que-
suavizar o movimento. Era pesado, mas bem oleado. ao tronco retorcido da árvore. ombros, baixaram os olhos e disseram que não sabiam. bravam aquela calma com um súbito levantar voo que
Entrei e olhei para um lado e para outro à procura de O tronco da Ceiba tem semelhanças a uma outra Logo de seguida um deles debruçou-se sobre o amon- os levava a cortar o céu até outra árvore. Ver os abu-
alguém. Dois homens estavam sentados lá ao fundo do árvore muito comum na África Ocidental que é a toado de Kutubalas e começou a apanhar algumas des- tres naquele velho poilão, de ramos caóticos dispersos
lado direito. Fiz um gesto a perguntar se podia entrar. Baobab, que na Guiné-Bissau é conhecida por caba- sas flores. Agora já éramos dois a mergulhar naquelas para cima e para baixo como se não tivessem qualquer
Um deles, sentado em cima de um garrafão amarelo ceira por causa da constituição do seu fruto envolto pequenas labaredas vegetais que inundavam o espaço ordem, àquela hora do dia, com aquela luz, naquele
balançando-se para trás, acenou com o braço a dizer por uma casca muito grossa como uma armadura, à nossa volta. O outro rapaz ficou de pé a observar-nos lugar, era uma mistura muito estranha da visão mais
para eu entrar e andar à vontade. Virei à esquerda em tipo cabaça, mas coberta de veludo e que muitas vezes com um sorriso. Eu perguntei os nomes deles e eles idílica da natureza, como se os abutres fossem as mais
direção à árvore. O chão do cemitério era muito irre- se quebra ao cair no chão. Pela grande quantidade de responderam: “Sana e Fonde.” O que estava de cócoras belas aves exóticas, com o vislumbre mais sublime das
gular. Havia partes em que o pavimento estava inteiro água existente no seu tronco, a casca destas árvores é sobre as flores era o Sana, e o outro era o Fonde. “O que portas do inferno.
e lisinho e outras em que se desfazia até ficar só a terra. algo borrachosa, quase maleável à pressão do toque. é que fazem aqui?” perguntei. “Cuidamos do cemitério,
Havia zonas só de sepulturas e outras também com O que em comparação com a habitual secura da maio- limpamos as folhas secas do chão, mantemos as cam-
mausoléus. Havia uma zona quadrada com uma espé- ria das outras árvores lhes dá uma aparência única no pas asseadas,” respondeu um deles. Sana apanhava as VOZES
cie de marco/obelisco no meio para onde confluíam mundo vegetal. Com a luz do sol, a superfície da casca flores uma a uma, com uma enorme delicadeza, obser-
quatro caminhos perpendiculares. Nessa zona estava da Ceiba reflete um misto de tons de dourado e cin- vando cada uma bem de perto, aproximando-a dos Com as mãos em concha em frente ao meu corpo,
tudo pintado de branco. Chão, sepulturas (que eram zento que juntamente com a sua textura, muito mar- olhos para ver melhor. E depois colocava cada uma na levantei-me e comecei de novo a caminhar pela mesma
muito baixinhas), marco/obelisco, muretes – tudo de cada por cicatrizes acumuladas ao longo das décadas minha mão em concha para conter as flores, olhava- passagem por onde havia chegado àquela zona do
branco. Todas aquelas superfícies pareciam-me caiadas ou até mesmo dos séculos, lhes dá um aspeto muito -me à espera da minha reação. Eu sorria e acenava com cemitério. Mais uma vez ouvia os meus pés esmagando
com a textura irregular e orgânica que vi ao longo da parecido ao da pele enrugada de um elefante velho. a cabeça. Trouxe-me várias flores sem parar até que as folhas secas com o peso dos meus pés. Avançando
minha infância nas paredes de cal da casa da minha avó Caminhei um pouco mais para próximo das raízes eu tive de usar as duas mãos para poder segurar todas por entre campas, túmulos e mausoléus, uns bem cui-
em Aljustrel. Muitos dos mausoléus estavam abando- da árvore até o chão em meu redor ficar totalmente as que ele me trazia. Via-se que lhe dava um prazer dados outros em ruínas, aproximava-me do portão de
nados, alguns tinham as portas ou mesmo as paredes coberto de flores secas que os meus passos faziam cre- enorme catar aquelas pequenas flores do chão e des- saída do cemitério. Por cima de mim, alguns abutres
partidas e viam-se os caixões lá dentro. Outros esta- pitar com o peso do meu corpo. Acabei por me debru- pejá-las nas minhas mãos. Fazia-o gradualmente mais sobrevoavam o cemitério banhados pela luz do final
vam mesmo vazios. Tinham ficado só as paredes e as çar sobre as flores amontoadas no chão começando a rápido. Ia trazendo e perguntando “Queres esta?” eu de tarde. Viam-se as asas abertas recortadas nas pon-
estruturas internas da construção. Um dos mausoléus apanhar, a observar e a guardar algumas. Podia esco- dizia que sim e ele ia logo atrás de mais uma, e depois tas preenchendo longas porções de céu. Como tinha
parecia um monumento modernista, tipo modernismo lher à vontade, havia milhares delas à minha volta. outra vez, e outra vez, e mais outra. Podíamos ficar ali as duas mãos ocupadas, abri o portão com o pé, saí do
brasileiro, com as paredes terminando em grandes Imaginei-me dentro de um perímetro avassalador de dias e dias a apanhar Kutubalas do chão. Eram todas cemitério, fiz-me à estrada. À medida que caminhava
vigas pontiagudas dispostas em círculo que com a luz Kutubalas secas. Seria interessante ver-me do espaço deslumbrantes, cada uma com a sua forma e mati- olhava para o monte de flores nas minhas mãos e sem
do entardecer ganhavam uma presença curiosamente naquele instante, um ponto no meio de uma nuvem zes particulares. Uma boa coleção de Kutubalas seria entender bem porquê comecei a pensar nos mortos
dramática apesar de minimalista. de ocres e dourados flamejantes. Apanhei uma, duas, sempre o conjunto de todas as kutubalas que existem. que havia conhecido ao longo da minha vida até che-
Olhando em profundidade para o espaço interior três, quatro flores. Debrucei-me pacientemente sobre Não é possível dizer que uma é melhor do que a outra. gar àqueles que conheço sem nunca ter conhecido
dos altos muros do cemitério, viam-se montinhos de o chão, esticando-me para a frente, para os lados, para Todas são fascinantes. que são os que morreram antes de eu ter nascido, mas
terra com pedaços de pedra e ferro que outrora haviam apanhar as flores que mais me chamavam a atenção. Enquanto Sana me trazia mais e mais flores, levantei que ainda assim fazem parte de mim. Por exemplo,
sido efigies funerárias dispostos em linhas retas per- Nisto, ao de leve, ouvi alguns paços atrás de mim. a cabeça para a copa da árvore e vi um mundo enorme o meu irmão que nunca nasceu, e que por isso nunca
turbadas aqui e ali pelas ruínas já muito informes de Sem sobressaltos, virei o pescoço e vi dois jovens de linhas entrecruzadas que eram os ramos intrinca- teve nome, mas que antes de mim existiu no ventre da
um mausoléu. Plantas, arbustos e árvores cresciam rapazes, de uns nove ou dez anos cada um, parados a dos da Ceiba, a trama de cores que eram os seus frutos minha mãe e em quem pensei muitas vezes ao longo

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dos anos. E de quem, quase sempre em momentos Santiago do Cacém dias depois de me ter visto pela A ARANHA sendo ao mesmo tempo o seu próprio instrumento de
de solidão, imaginei algumas vezes como seria a cara, primeira e única vez. Lembrei-me das suas lágrimas de trabalho? A luz que batia nas linhas realçava a forma
a voz, a presença, maneira de ser, de pensar, talentos e felicidade ao passar as mãos no meu rosto, da melodia Continuando a caminhar olhando para o que levava como se intersetavam. Como teciam uma espécie
defeitos, apetites musicais, vida profissional, angústias do seu sussurro entoando uma canção. Sempre que me nas mãos, um monte de Kutubalas secas, ouvindo de véu por cima da minha pele, e de como esse véu
e felicidades, etc. lembro do seu toque na minha cara, choro. Obrigado, vozes e sentindo presenças que vinham de todos os tinha um desenho tão delicado, tão complexo, tão
Vi também, de repente, a cara de Nate no dia em meu amor. Descobri o que era a morte com a sua morte lados, acompanhando-me como uma nuvem de mos- inteligente.
que o conheci no meio da Bolanha com uma cami- ao ver as suas roupas esvaziadas de corpo sobre uma cas, vi uma pequena aranha sair desse amontoado Acabei por fechar os olhos. Sentia a pequena ara-
sola do Didier Drogba quando jogava no Galatasaray. cadeira à espera de serem vestidas no seu, lindíssimo, de pequenas flores. Era branca e minúscula, e ia nha movimentar-se ao longo dos meus braços por
Nate morreu ao tentar atravessar um rio na zona de cadáver. Lembrei-me do meu irmão morto na boca da deixando um pequeno rasto, uma pequena linha de vezes quase freneticamente, por outras, devagar, cal-
Tombali completamente bêbado de vinho de caju. minha mãe dizendo que se ele tivesse nascido quem baba sólida, uma pequena linha a partir da qual foi mamente. Ia adormecendo ao sabor daquele tricotar
Caiu à água durante a noite e foi levado pela corrente, nunca tinha existido era eu. E finalmente lembrei-me montando uma teia. Movia-se em torno dos meus que me envolvia os membros chegando-me, a certa
encontraram-no alguns dias mais tarde preso no lodo de, apesar dele nunca ter nascido, o ter visto morto pulsos lançando linhas de um lado para o outro, por altura, ao peito. Adormeci profundamente. Num
já em avançado estado de decomposição. Lembrei-me numa fotografia que o meu pai trouxe da guerra na vezes andava até à base dos meus polegares, entrava sonho, via estranhos lugares, a minha visão levava-
também de Hiarray, que morreu com paludismo a Guiné e que a minha mãe havia escondido dentro de no monte de flores dentro da concha das minhas -me a avançar lentamente através de emaranhados
caminho do hospital. Tinha três anos. Lembrei-me de um álbum de fotografias por baixo de outras para eu mãos e saía outra vez. Em todos esses movimentos ia reticulares que formavam enormes véus, cortinas,
Muthna, Kpadé e Focna que morreram de velhos, dois não ver que ele se tinha transformado numa poça de tecendo uma trama que ia crescendo à medida que eu que desciam não se percebia de onde e que ocupa-
deles em casa e um no hospital. Lembrei-me de Djaló sangue depois de ter sido morto à pancada por uma ia caminhando. Foi assim o caminho todo até casa. vam o espaço todo. Não demorei a perceber que afi-
que morreu em casa duas semanas depois de se casar. matilha de soldados bêbados de vinho tinto e cerveja. Eu atravessava ruas inteiras, virava esquinas, corria nal não vinham de lado nenhum. Esses véus eram o
Lembrei-me também do amoroso Carlos que morreu Enquanto caminhava pelo passeio de volta para a atravessar estradas por onde passavam táxis azuis espaço ele próprio, só que o espaço era estruturado
de tristeza no seu estúdio em Lisboa rodeado das suas casa, fazendo o complicado slalom que as ruas de e brancos com a chapa tão batida que pareciam fei- daquela estranha maneira. Era como uma sequência
pinturas. Lembrei-me de Ana que morreu demente e Bissau exigiam. Eu via os rostos e ouvia as vozes de tos à mão, vidros rachados e rodas empenadas con- interminável de cortinas que o movimento do meu
com um cancro nos pulmões num hospital em Benfica. todas estas figuras que algum dia da minha vida, duzidos por taxistas intrépidos que se atiravam de corpo ia abrindo. Frágeis tramas que o meu corpo –
De Maria que morreu demente com um cancro no vivas ou mortas, se haviam cruzado comigo. O Nate qualquer maneira para cima de tudo. Passei por uma que eu não via porque via o espaço através dos meus
estômago num hospital em Lisboa onde via anjos enve- com a camisola do Drogba a convidar-me para comer rotunda com um monumento abandonado no centro. próprios olhos (como que em câmara subjetiva) – ia
lhecidos pousados nos cantos do teto enquanto con- amendoins com a sua voz aveludada, a Hiarray dan- Corri por uma estrada feita de placas de betão cober- atravessando e rasgando conforme se movimen-
tava como era brincar no jardim lá fora com os seus do-me palmadas nas pernas e soltando gargalha- tas de uma fina poeira castanha. Meti-me por uma tava. Mas movimentava-se sempre em frente, só em
irmãos que tinham morrido há décadas. De Manuel das, o Muthna aos berros dizendo-me para desligar rua já sem asfalto e cheia de lixo com um cão morto frente. Não havia curvas, inclinações, nem abertu-
que era seu irmão e que morreu exatamente da mesma a “máquina de filmar”, o Kpadé vestido de branco a ser comido por dois abutres ladeada por casas colo- ras naquele espaço. Era só um emaranhado de finas
maneira, mas completamente sozinho e sem nunca até aos pés a caminhar durante a noite pela aldeia, niais, algumas em ruínas, e pelo muro de um velho camadas reticulares, umas atrás das outras. Como se
ter regressado à infância. De Luís que morreu com o Focna a fumar liamba debaixo da sua enorme man- estádio de futebol com a tinta toda descascada e car- tivesse entrado num espaço que era a formação dos
Alzheimer, feliz, rodeado de crianças a quem chamava gueira, o Djaló a explicar o que era um mato sagrado tazes de campanhas eleitorais colados por cima uns tecidos de um corpo, do meu corpo. Era como se eu
o nome do seu único filho, Lázaro, num jardim cheio – “é um mato onde os animais vivem à vontade” –, dos outros também já todos rasgados. Finalmente tivesse entrado para dentro do meu próprio corpo e
de pequenas flores vermelhas em Ferreira do Alentejo. a voz do Carlos ao telefone simultaneamente alegre cheguei à porta de casa, consegui enfiar as flores den- atravessasse os seus intrincados tecidos moles. Ou
De José, encontrado morto aos noventa e cinco anos e deprimida, a Ana Paula nas urgências do hospital já tro de um saco de plástico que alguém, entretanto, então, era como se eu tivesse recuado no tempo até
em lençóis de cetim e que ao sentar-se numa cadeira meio morta com os olhos escancarados a olhar para decidiu oferecer-me, tirei as chaves do bolso e abri o um momento em que o espaço fosse uma coisa inde-
de tampo de vime se vergava sobre si próprio como um mim como se eu fosse de outro mundo balbuciando portão azul marinho. Apesar de ter aberto as mãos finida, ainda muito longe das configurações espaciais
recém-nascido que ainda não segura bem o pescoço. grunhidos por entre a saliva que lhe pingava dos can- para despejar as flores num saco, a teia de aranha con- nas quais cresci e me habituei a viver, mas de algum
Também morreu sozinho. Lembrei-me também de tos da boca. tinuava enrolada em torno dos meus pulsos e agora modo em processo de formação. Um espaço pré-natal,
uma outra Ana que morreu num acidente de mota nos Eu caminhava pela rua com as mãos cheias de até já se tinha estendido mais para cima, aos meus pré-linguístico, pré-percetivo, até. A única coisa que
subúrbios de Lisboa e por quem eu me tinha apaixo- pequenas flores e via todas estas pessoas. Falava com dois antebraços. Na verdade, estranhamente, não parecia ser um facto, era que eu estava num tempo
nado quando tinha quatorze anos. De Paulo, que não elas sem dizer nada. Ouvia pedaços de conversas que me incomodava nada aquela teia de aranha a cres- anterior, muito lá para trás, muito antes da história
sobreviveu ao choque frontal com um carro pesado. havia tido com elas. Sentia-as todas no meu corpo. cer assim em torno do meu corpo. De algum modo, de alguma coisa, era um tempo sem história, sem pas-
Do Sérgio, que era altíssimo, indomável e que mor- Caminhava sozinho por longas distâncias, não era fascinava-me a forma que a teia tomava e o modo sado, e sem os referentes que revelassem algum tipo
reu afogado num pequeno lago em Trás-os-Montes só naquele dia, e era por isso que elas vinham ter como aquele animal minúsculo se dedicava a tecê-la de projeção futura. Se estava dentro de mim próprio,
quando tínhamos dez ou onze anos. E do Orlando que comigo. E eu ia avançando uma rua atrás da outra. em cima de mim. Fui-me deitar para descansar um era antes mesmo de eu ter nascido. Era eu antes de
caiu para o alçapão de um elevador num prédio em Virando esquinas de ruas meio asfaltadas e outras pouco enquanto olhava atentamente para a estrutura eu existir. Uma coisa quase impossível de imaginar.
construção quando eu era muito pequeno. Lembro-me já todas destruídas, onde nuvens de poeira trazidas da teia. A aranha continuava a trabalhar. Era hipnoti- Um tempo sem passado e sem futuro em que o pre-
de uma outra Maria, que era curandeira no Alentejo pelo vento e pelos carros que passavam uns atrás dos zante ver como se movia o pequeno animal, como era sente era só a experiência de ir em frente através de
profundo, de cama numa casa de taipa muito baixi- outros me engoliam. O caminho era uma coisa ondu- tão criativo naquele processo de construir uma estru- um emaranhado interminável. De um emaranhado
nha por onde o Sol só entrava pelas frinchas das velhas lada e ondulante, entre uma terra firme pejada de cra- tura com um material que lhe saía do próprio corpo. que em vez de se desemaranhar com o movimento,
telhas que cobriam a casa. Lembrei-me de Carolina, teras e um mar agitado que em vez de ser feito de água Como era capaz de desenhar linhas tão precisas sem se perpetuava, repetia, multiplicava, complicava. Era
que era muda e que morreu já muito velhinha em salgada era feito de poeira, fumo e lixo. ter nenhum recuo para observar a estrutura toda eu, antes de eu existir, mas agora na direção oposta

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à da minha existência. Era eu a entrar num espaço horripilante, mas essencial. Fundamental ao ser que
onde eu nunca existiria, nem alguma vez existi. Mas eu sou porque se não fosse isso eu não era quem eu
a verdade é que lá estava, e não era estranho lá estar, sou. Mas então eu seria outra coisa, outra pessoa,
apesar de tudo lá dentro ser estranho. “O mundo é noutro lugar, noutra história. Nem melhor, nem
um lugar mesmo muito estranho”, pensei eu. “Nem pior. Apenas outra coisa. Outra cabeça, outros flu-
sei como é que algum dia vou sair daqui”, continuei a xos. Atolado no lodo da cambança como Nate. Preso
pensar. “Nem amanhã, nem depois de amanhã, nem na lama daquela estúpida memória. Se eu nunca
sei lá quando.” tivesse aberto aquele maldito álbum de fotografias!
A certa altura acordei e corri para a janela. Vi um Se eu nunca tivesse visto o cadáver do meu irmão
monte todo verde com algumas clareiras castanhas. morto. Se eu nunca tivesse sabido da sua existência.
Já não estava em Bissau, não sei onde é que estava. E se ele nunca tivesse ido a Pitche naquele dia? E se
As cores entravam-me pelos olhos adentro, eram ele nunca se tivesse cruzado com aqueles soldados
fortes. Havia verdes de vários matizes, azulados por bêbados? Hooligans de uniforme inventados pelo
vezes, e havia um vermelho muito forte que começava Estado. Polícia, juízes, tribunais, legisladores, estava
a escorrer de uma dessas clareiras e a misturar-se com tudo dentro das ambiguidades da lei. A lei era uma
os verdes. A luz do céu, rebentava. Rebentava-me na faca muito bem afiadinha, uma agulha muito fini-
cara, assim mesmo, diretamente, como um explo- nha que por vezes entrava com toda a precisão por
sivo. A minha cara transformava-se num enorme for- um poro na pele direitinha ao coração. Mas a lei tam-
migueiro de carne, insetos e luz. Numa explosão de bém podia ser sangue por todo lado a chapinhar, de
sensações que eu nunca tinha experienciado. Numa repente, a meio da noite num espaço esconso na cave
paisagem que eu não via porque ela era eu. Eu era a de um prédio quase vazio, cheio de ecos a bater de
paisagem onde estava. Olhava para as pessoas como um lado para o outro nas paredes lisas. A lei também
se fossem paisagens. Olhava para as paisagens do era rebentar com aquele corpo. Destruir-lhe a pele, a
nosso quotidiano como se fossem de outro pla- cara, espremer as suas entranhas cá para fora. A lei
neta. Olhava para as plantas como se conversassem era a imagem de um corpo que se esvai agarrado a
comigo. Olhava para tudo o que parecia não se alte- uma cruz, o ícone central da nossa cultura. A lei era
rar dia após dia como se fosse completamente novo. o puro conceito de esvaimento. Era mobilizar tudo,
As coisas mais insignificantes, olhava para elas como para que tudo, apenas, se esvaísse. O esvaimento
se fossem o centro do universo. Lá em baixo havia um dos corpos, das memórias, das ações e dos olhares,
pequeno vale por onde circulava um exército. A pai- dos estômagos, das tripas, das veias e das vozes.
sagem rebentava-me na cabeça e eu não estava sob o Dizer tudo aos gritos. Tudo da boca para fora. Tudo
efeito de drogas, nem a sonhar, era só a realidade a como se nada tivesse sentido, como se tudo fosse só
ser ela própria, mais nada. O exército dava uma curva ruído. E depois, quando as coisas acalmassem, fica-
acompanhando a curvatura do vale. O sangue escor- ríamos só a olhar. Cansados. Aturdidos. Sem fôlego.
ria encosta abaixo já iluminado por uma fabulosa luz Mas quase recompostos. Só a olhar, encarando a
de final de tarde. As flores ardiam como no cemité- distância, enquanto todo o sangue se infiltrasse
rio em Bissau. Kutubala! Kutubala! Sussurravam-me devagarinho na mesma terra sobre a qual, depois,
aos ouvidos todos os meus mortos. Nate, Hiarray, construiríamos a nossa casa.
etc… perseguiam-me como flores a arder trazidas
pelo vento morno dos trópicos. As sementes da Ceiba
atravessavam o mar, levadas por ventos, correntes,
e marés, das Américas até África.
Escorriam flores a arder pela encosta abaixo, ava-
lanches de estranhos pássaros, enormes e famin-
tos como abutres, reluzentes e eternos como anjos,
emaranhados uns nos outros como pequenas ara-
nhas. A minha cara já toda coberta de uma espessa
teia de aranha. Entrava-me pelos olhos. A guerra, Texto e imagem Daniel Barroca, 2020/22.
uma guerra que eu nunca vivi, mas que entrou pela Revisão Gisela Leal  Design gráfico Joana & Mariana
minha vida adentro como um foguetão supersónico, Apoio
um vírus letal, indecifrável, uma coisa do outro
mundo, uma coisa horrível. Horroroso, horrendo,

8 / 8  INLAND JOURNAL 33  Daniel Barroca

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