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Coordenação Institucional
Equipe do Projeto
Juliana Serra
Assistente Sênior de Proteção
em Manaus (Amazonas)
Colaboradora
José Egas
Representante do ACNUR no Brasil
5
Referências bibliográficas 68
Introdução
Esta publicação apresenta algumas contribui- A publicação está organizada em três capítulos, que
ções da antropologia para a proteção dos indí- buscam dar conta da complexidade que envolve a
genas Warao, refugiados e migrantes no Brasil. A presença Warao no Brasil. O primeiro aborda aspec-
antropologia é reconhecida como a ciência que tos sobre os Warao na Venezuela, apresentando
se dedica ao estudo da diversidade sociocultu- brevemente os processos históricos que motiva-
ral que compõe as sociedades, contribuindo para ram os deslocamentos para as cidades, chamando
a compreensão e o respeito à alteridade. Nesse atenção para o fato de que não se trata de um povo
sentido, por reconhecermos a necessidade de com modo de vida nômade ou, tampouco, que esse
subsidiar os atores locais no atendimento à po- processo resultaria de determinismo cultural. Nessa
pulação Warao, preparamos uma publicação que ocasião, também falamos sobre a heterogeneidade
conjuga cerca de quatro anos de experiência de interna ao grupo e sobre a inexistência de uma cen-
campo dos agentes do ACNUR1 e da antropóloga tralização sociopolítica Warao, fato que se reflete
Marlise Rosa2, que desenvolveu pesquisa de dou- nas relações que estabelecem aqui no Brasil. Por
torado junto a esses indígenas. Trata-se de um fim, fazemos uma breve descrição das atividades
material elaborado a partir de uma ampla interlo- de meios de vida na Venezuela, incluindo conside-
cução, da convivência cotidiana e do tempo com- rações sobre a prática de pedir dinheiro nas ruas.
partilhado dentro de abrigos e casas dos Warao
em diferentes cidades brasileiras. No segundo capítulo, apresentamos o histórico
do processo de deslocamento para o (e no) Brasil,
Ao longo do texto, apresentamos dados empíri- as dinâmicas e estratégias por meio das quais or-
cos, trechos de depoimentos de indígenas, refe- ganizam a mobilidade, a dispersão territorial e as
rências à literatura antropológica produzida na transformações sociais vivenciadas por esse gru-
Venezuela e no Brasil, e análises de legislações po durante o curto período em que estão em outro
nacionais e tratados internacionais referentes aos país. São também indicadas as razões que acionam
direitos dos povos indígenas, dos refugiados e para explicar esses deslocamentos, inclusive com
dos migrantes venezuelanos. Pretendemos, com referência às violações de direitos humanos nas co-
esta publicação, provocar olhares culturalmente munidades Warao na Venezuela, sobretudo no que
sensíveis e juridicamente orientados, contribuin- toca ao direito à alimentação e à saúde.
do para a proteção e adequação do atendimento
oferecido a essa população. No terceiro capítulo, por sua vez, apresentamos algu-
mas considerações sobre a presença de indígenas
No Brasil, os Warao são sujeitos de direito como em contexto urbano, citando os dispositivos legais
indígenas e, a depender do status legal acio- referentes aos direitos indígenas e à proteção de re-
nado, como refugiados e como migrantes. Os fugiados e migrantes em nosso país. Nas seções que
direitos decorrentes da condição indígena es- o compõem, discutimos aspectos sensíveis no aten-
tabelecem o respeito e a valorização dos costu- dimento a essa população, a começar, na primeira
mes, tradições, formas de organização social e delas, pelo processo de obtenção de documentos.
modos de vida diferenciados, garantindo auto- Ali, falamos sobre os caminhos para a obtenção do
nomia, autodeterminação, educação multilíngue status legal no Brasil, seja como refugiado ou como
ou comunitária e atenção à saúde diferenciada. migrante, e sobre o acesso à documentação civil bá-
A concepção de infância e os modos de socia- sica, chamando atenção para a existência de outra
lização das crianças, assim como a concepção relação com esses documentos, assentada em uma
de saúde, de doença e de cuidado, fazem parte concepção distinta a seu respeito.
desse modo de vida diferenciado. Isso também
se aplica aos ritos funerários, aos cuidados des- Na seção seguinte, falamos sobre as ações de abri-
tinados aos mortos e às formas como vivenciam gamento implementadas em diversas cidades brasi-
o luto. Por isso, é importante que essas práticas leiras. Citamos as diferentes modalidades adotadas,
sejam viabilizadas pelo poder público (desde os desafios mais recorrentes, a importância da con-
o embalsamamento do corpo, caixão, velório e sulta prévia aos indígenas diante de quaisquer de-
sepultamento) e respeitadas pelas equipes que cisões que afetem suas vidas e a centralidade de
realizam o atendimento. Nesse contexto, a antro- sua participação na elaboração dos acordos de con-
pologia é importante porque nos leva a substi- vivência. Mencionamos também os problemas rela-
tuir as lentes por meio das quais enxergamos o cionados à alimentação, assim como a necessidade
mundo, ajudando-nos a compreender os aconte- de respeitar a autonomia dos indígenas na definição
cimentos a partir do olhar do outro. de suas formas de representação política.
1. O ACNUR tem seu escritório central em Brasília (Distrito Federal) e unidades descentralizadas em São Paulo (São
Paulo), Manaus (Amazonas), Belém (Pará) e Boa Vista (Roraima), atuando na proteção dos refugiados venezuelanos
desde o início do fluxo de deslocamento, em 2016.
2. A tese A mobilidade Warao no Brasil e os modos de gestão de uma população em trânsito: reflexões a partir das
experiências de Manaus-AM e de Belém-PA, foi defendida em julho de 2020 no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ), sob orientação
do Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira.
10 Introdução
atendimento dos povos indígenas aos missionários O projeto foi executado pela Corporación
católicos, que deveriam “civilizá-los” e evangelizá- Venezolana de Guayana (CVG), um instituto autô-
-los. Os missionários incentivavam o cultivo do ocu- nomo criado justamente para esse fim. Após a re-
mo chino no intuito de fixar os Warao nessas áreas; alização de alguns estudos de viabilidade, a CVG
além disso, a agricultura era a base econômica das iniciou a construção de uma série de diques, que
missões. Os produtores de arroz das cercanias, deixariam descobertos mais de 300 mil hectares
que antes contavam com mão de obra vinda de de terra, supostamente adequadas para o desen-
fora, passaram a dispor de um contingente de tra- volvimento de pecuária intensiva e agricultura.
balhadores locais e, por isso, também fomentavam Em 1965, durante a primeira fase do projeto, foi
as plantações de ocumo chino entre os Warao. construído um dique-estrada no rio Manamo, que
teve graves consequências ecológicas, paralisan-
Embora os Warao tenham se adaptado facilmen- do a execução das fases seguintes. A água do rio
te ao novo ambiente, a longo prazo, a mobilidade Manamo, por meio desse sistema de diques, com
em direção a outros assentamentos gerou mu- 172 quilômetros de extensão, foi desviada para
danças profundas em seu modo de vida, induzin- o rio Macareo, que seria represado na segunda
do-os ao trabalho assalariado e à substituição da etapa do projeto, nunca realizada.
alimentação tradicional por uma dieta nutricional-
mente mais pobre. Não era possível sobreviver Cerca de 170 mil hectares de terra no estado de
só de ocumo chino, e os peixes já não eram su- Delta Amacuro e na porção sul de Monagas fi-
ficientes, então, muitos indígenas passaram a se caram protegidos de inundações, impulsionando-
empregar nas serrarias ou em fábricas de palmi- -se o cultivo intensivo de milho, feijão, arroz e, em
to; outros chegaram a trabalhar como lenhadores menor escala, banana e cacau. Porém, menos de
ou produtores de arroz. dois anos após a construção do dique, iniciou-se
um processo de progressiva salinização das áre-
Com a adoção da agricultura e do trabalho as- as próximas aos rios em que não circulava mais
salariado, a organização da família extensa água doce vinda do Orinoco, tornando-as impró-
centrada na mulher foi alterada, favorecendo a prias para a agricultura. Isso também provocou
formação de famílias nucleares encabeçadas por a modificação do padrão de sedimentação dos
homens. Essa transferência do poder administra- rios, o que, em combinação com alterações quí-
tivo doméstico da mulher para o homem talvez micas, causou mudanças na vegetação.
tenha sido uma das mudanças mais radicais na
organização social do grupo, tendo em vista que As sérias consequências ecológicas provocadas
a participação feminina na economia tradicional pelo represamento no rio Manamo afetaram dire-
sempre foi relevante12. Muitos dos antigos habi- tamente o modo de vida dos Warao, que, apesar
tantes dos buritizais se mudaram para as cidades, da realização de dois estudos prévios sobre os
principalmente para os municípios de Antonio impactos que as obras teriam sobre os indígenas,
Díaz, Tucupita e Barrancas. não tinham sua existência reconhecida pelos res-
ponsáveis pelo projeto. Com o processo de salini-
Posteriormente, na década de 1960, o delta do zação, não só as plantações de ocumo chino, mas
Orinoco foi cenário de um projeto desenvolvi- também a oferta de peixes foi afetada, comprome-
mentista realizado pelo governo venezuelano a tendo a alimentação do grupo. Os fertilizantes quí-
fim de potencializar a capacidade agrícola da re- micos, usados pelos produtores cada vez em maior
gião por meio do represamento do rio Manamo13. quantidade, a fim de compensar a má qualidade do
O objetivo era impedir que as enchentes sazonais solo, comprometeram o reservatório de água po-
do rio Orinoco inundassem milhares de quilôme- tável. Além disso, em 1976, ocorreu uma enchente
tros, supostamente adequados para a agricultu- – atribuída em grande medida à impossibilidade de
ra. Com isso, tanto em virtude das consequências as águas do Orinoco desaguarem no rio Manamo
ecológicas, que impossibilitavam a subsistência –, que provocou a morte de muitos Warao.
dos Warao, como também em decorrência das
transformações sociais resultantes desse proces-
so, intensificou-se o deslocamento de indígenas
para os centros urbanos.
culturais, os padrões tradicionais de assentamen- de deixarem o local, sob a alegação de que se sa-
to, o modo tradicional de agricultura e a alimenta- íssem causariam a morte dos criollos – eles então
ção, bem como o uso de recursos etnobotânicos se deram conta de que estavam sendo culpabili-
para o tratamento de doenças, foram alterados. zados pela transmissão da doença.
A exploração petrolífera ocasionou ainda falta de Mesmo após esse período de quarentena, os
água potável, destruição dos viveiros de cama- agentes do Estado acreditavam que a presença
rões e outros peixes, adoecimento de adultos e dos indígenas representava um risco para a saú-
crianças, contaminação do solo e dos rios, e com- de pública. Por isso, as autoridades estaduais e
prometimento das lavouras de subsistência22. municipais decidiram, a sua revelia, enviá-los
Com seus territórios invadidos por instalações para a ilha de La Tortuga. Os moradores da ilha
petrolíferas, o que impactou negativamente sua também não foram consultados e, no meio da noi-
subsistência e criou uma série de transtornos so- te, a população triplicou. O local não possuía es-
cioambientais, muitas famílias Warao deixaram as trutura para tantas pessoas, não havia um espaço
comunidades com destino às cidades. para os indígenas se instalarem e, nessa época
do ano, a ilha é infestada por mosquitos, sendo
A década de 1990, por sua vez, é marcada pela impossível dormir sem mosquiteiros. Diante das
ocorrência de uma epidemia de cólera23, que, entre condições degradantes em La Tortuga, os Warao
os anos de 1992 e 1993, levou a óbito cerca de 500 decidiram violar as ordens governamentais e re-
pessoas no delta do rio Orinoco, em sua maioria in- tornar a Barrancas. Estima-se que, na ocasião,
dígenas Warao. A comunidade Warao de Mariusa, aproximadamente três mil indígenas se encontra-
considerada uma das áreas mais remotas de Delta vam em Barrancas, fugindo da cólera. Em marcha,
Amacuro, foi praticamente devastada, pois, quando seguiram a pé para Tucupita, em busca de assis-
a epidemia começou, não havia clínicas médicas tência do governo estadual.
nem missões religiosas. Os curandeiros Warao ten-
taram cuidar dos doentes, mas foram infectados e Reconstruímos aqui um breve histórico de alguns
também morreram. Apavoradas, as pessoas deixa- processos de deslocamento dos Warao para as ci-
ram a comunidade em busca de tratamento médico dades venezuelanas. Observe-se que esses des-
nas cidades de Barrancas e Tucupita. locamentos passam a ocorrer no século xx, como
resultado de diferentes intervenções no território
A cólera, no imaginário popular, estava direta- de origem24. Trata-se de um processo de mudança
mente associada à pobreza, sendo tratada como social e cultural decorrente de relações de poder
um “problema indígena”, atribuído aos seus cos- e de dinâmicas políticas e territoriais, que não tem
tumes e modos de vida. Conforme as característi- nada a ver com nomadismo ou com determinismo
cas socioeconômicas da população venezuelana, cultural. Os Warao não possuem um “modo de vida
as autoridades de saúde pública estabeleceram nômade”; tampouco a mobilidade seria uma carac-
grupos de pessoas “salubres” e “insalubres”; de terística cultural do grupo. No capítulo seguinte, no
acordo com as categoriais raciais criollo e indíge- qual falaremos sobre os deslocamentos para (e no)
na, o país foi dividido em áreas “seguras” e áreas Brasil, retomaremos essa discussão.
“de risco”. Os pobres, sobretudo os indígenas, fo-
ram culpabilizados pela epidemia, e tratados de Deve-se notar ainda que o deslocamento para as
maneira violenta e discriminatória. cidades, em nenhum dos contextos aqui citados,
implica desligamento da comunidade de origem,
Um grupo de 260 Warao, ao chegar à cidade de mantendo-se o vínculo e, em alguns casos, um mo-
Barrancas em busca de atendimento médico, foi vimento constante entre ambos os espaços. Apesar
posto em quarentena em uma escola. Ali, as pes- da distância, isso ocorre entre algumas famílias
soas conseguiram o atendimento médico de que Warao no Brasil, que temporariamente regressam
necessitavam, mas às custas de sua liberdade e à Venezuela, para rever ou buscar parentes, com-
dignidade humana. Não lhes forneceram redes partilhar recursos e buscar artesanato para reven-
de descanso, obrigando-as a dormirem direta- der em nosso país. Além disso, ao saírem de suas
mente no piso. Além disso, tiveram de aceitar a comunidades, os indígenas não perdem sua identi-
nomeação arbitrária como cacique de um jovem dade étnica, ou seja, não deixam de ser indígenas,
de 25 anos, sem atuação política junto à comuni- porque isso não é determinado pelo local de mora-
dade, apenas por ele ser fluente em espanhol. A dia, mas sim pelo processo de autoidentificação e
polícia e a Guarda Nacional impediam os Warao de identificação como tal pelos membros do grupo.
28. A prática de pedir dinheiro nas ruas foi a atividade mais recorrente entre os Warao entrevistados em ambos os
estados. No Amazonas, representou 34,8% das respostas; no Pará, 41,8%. Os dados sobre as atividades de meios de
vida realizadas no Brasil serão apresentados em um capítulo específico mais adiante.
29. Ver Ayala Lafée-Wilbert e Wilbert (2008).
20 Os Warao na Venezuela: transformações territoriais, deslocamentos e estratégias de sobrevivência
A República Bolivariana da Venezuela vive uma A violação do direito à saúde, por sua vez, está
crise econômica, política e humanitária sem pre- relacionada à falta generalizada de medicamen-
cedentes. Estima-se que, até 5 de setembro de tos e tratamentos essenciais; à deterioração das
2020, mais de cinco milhões de venezuelanos/ condições em hospitais, clínicas e maternidades;
as tenham deixado o país.32 No Brasil, até 14 de ao fornecimento insuficiente de determinantes
agosto do mesmo ano, havia um total de 264.157 de saúde subjacentes, incluindo água e nutri-
pessoas refugiadas e migrantes de nacionalida- ção adequada; à deterioração dos programas de
de venezuelana, sendo 101.636 solicitantes da imunização e saúde preventiva; e a restrições ao
condição de refugiado e 150.196 venezuelanos/ acesso à saúde sexual e reprodutiva.
as com autorização de residência (temporária e
permanente). Desse número, cerca de cinco mil Os povos indígenas da Venezuela, além de en-
são indígenas pertencentes às etnias Warao, frentarem os mesmos ataques aos direitos hu-
Pemón, Eñepa, Kariña e Wayúu, em sua maioria manos que a população em geral, também têm
com o status legal de solicitantes da condição sofrido violações dos direitos coletivos a seus
de refugiado. Os Warao representam 65% desse territórios tradicionais. O relatório do ACNUDH
contingente de indígenas deslocados. demonstra que, na região do Arco Minero del
Orinoco33, a mineração tem causado a violação
A presença Warao é registrada no Brasil desde de vários direitos coletivos, incluindo o direito à
meados de 2014, mas se manteve pouco expres- manutenção de seus costumes e modos de vida
siva durante os primeiros anos. Foi somente a diferenciados. A mineração também tem graves
partir de meados de 2016, em decorrência do impactos ambientais e de saúde, como o au-
agravamento da crise na Venezuela, com desa- mento da malária e a contaminação dos cursos
bastecimento de produtos básicos, hiperinflação d’água. O relatório de 2020 aponta ainda que,
e aumento da violência, que o processo de des- desde 2018, têm aumentando a intimidação e
locamento de venezuelanos/as indígenas e não a violência contra os indígenas, com ações de
indígenas para o Brasil se intensificou. grupos armados no interior de seus territórios.
A mineração afeta o direito dos povos indígenas
O relatório do Alto Comissariado das Nações à autodeterminação, à autonomia e à consulta
Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) so- prévia, tendo em vista que o governo não os tem
bre a situação dos direitos humanos na Venezuela consultado sobre essas atividades.
no ano de 2019 identificou a violação do direito
à alimentação e do direito à saúde, entre outras
violações. A população venezuelana não conse-
gue acessar os alimentos devido a escassez e alto
custo, ao passo que o programa de assistência ali- Falar sobre a Venezuela me deixa com
mentar do governo não atende às necessidades vontade de chorar. Minha família está
nutricionais básicas. Conforme o documento, mui- passando fome agora e começaram a morrer…
tas pessoas relatam que conseguiam realizar uma Na semana que passou, se não me engano,
ou, no máximo, duas refeições por dia; ainda as- morreram cinco pessoas, na semana passada, cinco
sim, com ingestão baixa de proteínas e vitaminas. Warao [da mesma comunidade]. Estão morrendo
Os dados da Organização das Nações Unidas adultos e crianças, e não é pela enfermidade de
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apon- coronavírus, estão morrendo de fome. De fome!
tavam que 3,7 milhões de pessoas na Venezuela Eles me pedem apoio quase todos os dias, mas
estavam desnutridas. eu não tenho dinheiro. Sempre ajudo, mas é uma
grande quantidade de gente que me pede: ‘Me
Ainda em 2017, um indígena Warao, à época vi- mande R$ 100,00’, ‘Me mande R$ 50,00’. Minha
vendo na cidade de Manaus, relatou que, antes propriedade, meus parentes, minha família, a irmã
de virem para o Brasil, ele e sua família alimen- da minha mulher estão na Venezuela. Eu mando
tavam-se apenas com restos de comida encon- R$ 200,00 todo dia 28, porque me dá tristeza.
trados no lixo. Eles saíam às ruas, rompendo os ‘Vamos mandar para minha irmã’, a minha esposa
sacos de lixo em busca de alimentos. Quando fala. Muitos estão me pedindo, mas eu não tenho
chegou ao Brasil, ele conseguiu trabalho com dinheiro. Nos caños, está morrendo gente, está se
carga e descarga de caminhões, mas se sentia acabando tudo, acabando roupa, acabando sal, eu
fraco a ponto de mal conseguir realizar o serviço. não sei como, daqui em diante, não sei como vai ser.
A alimentação e a saúde, deve-se notar, são di- 2.1. Dispersão territorial no Brasil
reitos humanos relativos à preservação da vida e
da dignidade humana, sendo formalmente reco- Diante do contexto enfrentado na Venezuela, a
nhecidos pelo artigo 25 da Declaração Universal vinda dos Warao para o Brasil é motivada pela
dos Direitos Humanos. A não garantia desses di- busca por proteção internacional e melhores con-
reitos, portanto, encaixa-se também no que vem dições de vida. Como mencionamos acima, foi a
a configurar um cenário de “grave e generalizada partir do segundo semestre de 2016, momento
violação de direitos humanos”, conforme o inciso que marca o agravamento da crise na Venezuela,
III do artigo 1º da lei brasileira de proteção para os que o processo de deslocamento de venezue-
refugiados (Lei nº 9.474/1997). lanos/as para o Brasil se intensificou. Em 2014,
tratava-se de pouco mais de 30 Warao em nosso
Desde 14 de junho de 2019, o Comitê Nacional país; entre o final de 2016 e o início de 2017, já se
para os Refugiados (CONARE) considera que a somavam 600 pessoas; em março de 2018, eram
Venezuela se encontra em situação de grave e cerca de 1.200; e, em dezembro de 2020, a esti-
generalizada violação de direitos humanos, o mativa era de aproximadamente 3.300 indígenas
que permite o reconhecimento como refugia- Warao vivendo no Brasil.
das de pessoas que abandonam o país devido à
crise política, econômica e social. A avaliação34 Em dezembro de 2016, havia grupos em situação
considerou sete elementos, entre os quais cinco de rua em Pacaraima (Roraima) e outros alojados
critérios da Declaração de Cartagena (1. violência no Centro de Referência ao Imigrante (CRI) na
generalizada; 2. agressão estrangeira; 3. conflitos capital do estado, Boa Vista. Àquela altura, re-
internos; 4. violação maciça dos direitos humanos; gistravam-se poucas famílias já em Manaus ou a
5. circunstâncias que tenham perturbado grave- caminho de lá, que se instalaram em casas alu-
mente a ordem pública) e mais dois documentos gadas no centro e em outros bairros periféricos,
(nota de orientação do ACNUR35 e posição do assim como sob um viaduto nas proximidades do
Ministério das Relações Exteriores - MRE). terminal rodoviário. Até março de 2017, o total de
indígenas Warao no Brasil, simultaneamente, não
Com a constatação de “grave e generalizada vio- ultrapassava 60037 pessoas; em maio de 2017,
lação de direitos humanos” no país, superou-se apenas dois meses depois, só em Manaus já ha-
o critério subjetivo da análise dos requerimentos via cerca de 500 indígenas.
de nacionais venezuelanos. Essa decisão possi-
bilitou ao CONARE o uso de um procedimento Dentre as razões alegadas para deixarem Boa
simplificado para o reconhecimento da condição Vista, os Warao citaram: 1) a propagação de dis-
de refugiadas a 20.515 pessoas venezuelanas em cursos que desestimulavam as doações de di-
dezembro de 2019, a outras 16.196 em janeiro de nheiro aos indígenas nas ruas; 2) as condições
2020, a 772 crianças e adolescentes em abril e, de abrigamento no CRI, sobretudo em virtude
em agosto de 2020, a outras 7.984 pessoas. Com dos conflitos com venezuelanos não indígenas
isso, o Brasil se tornou o país da América Latina (os criollos) e da alimentação, considerada insu-
com o maior número de refugiados/as venezuela- ficiente e pouco diversificada; 3) dificuldade para
nos/as, totalizando cerca de 46 mil pessoas, sen- conseguir trabalho; e 4) concorrência para a ven-
do 117 delas indígenas pertencentes às diferentes da de artesanato, decorrente do alto número de
etnias provenientes desse país.36 indígenas na cidade38.
= 10 INDÍGENAS
1200
600
30
Em Manaus, as ações de abrigamento por parte do são apontados pelos indígenas como razões para
poder público tiveram início em meados de 2017, deixarem a capital do Amazonas40.
ocasião em que já havia uma família Warao na cida-
de de Belém. O estabelecimento da rota para o Pará, O início dos deslocamentos para o estado do Pará
contudo, ocorreu somente em meados de setembro suscitou a hipótese de tráfico de pessoas e alicia-
de 2017, em virtude das proximidades do Círio de mento. Sob a certeza de que os Warao não possui-
Nazaré39. Nessa época, um grupo de 28 Warao che- riam condições de se deslocar por conta própria,
gou a Santarém, região oeste do estado. Como os especulava-se sobre a existência de pessoas ou
indígenas nem sempre dispunham de dinheiro para organizações que financiariam essas viagens.
o pagamento da passagem de barco de Manaus Acontece, porém, que os indígenas que se dirigem
para Belém, a cidade de Santarém tornou-se para para o Brasil vêm em grupos de parentesco ou afins.
muitos um ponto intermediário entre as duas capi- Muitas das famílias que hoje aqui se encontram já
tais: de Manaus seguiam até Santarém, onde pas- se conheciam em suas regiões de origem; outras se
savam alguns dias, até arrecadarem o valor para as conheceram durante o percurso ou já nas cidades
passagens, e então continuavam até Belém. brasileiras. Existe, portanto, uma rede de relações
sociais por meio da qual os Warao organizam suas
Dentre as razões para deixarem a capital amazo- viagens, compartilhando entre si orientações e re-
nense, eles citavam a dificuldade em obter trabalho cursos financeiros necessários para o deslocamento.
e a diminuição das doações. Um indígena nos expli-
cou ainda em 2017 que, após as famílias serem aco- Até meados de 2018, registrava-se a presença
lhidas nos abrigos públicos, a sociedade manauara Warao em cinco cidades do Brasil: Pacaraima, Boa
deixou de ajudá-las com doações, por entender que Vista, Manaus, Santarém e Belém41. Em Roraima e
suas necessidades estavam sendo atendidas pelo no Amazonas, apesar de uma breve passagem por
Estado. As doações, porém, não seriam apenas Manacapuru (Amazonas), os indígenas se manti-
para aqueles que estavam no Brasil, mas para os veram nos mesmos locais, enquanto no Pará, em
familiares que permaneceram na Venezuela. A insa- decorrência da existência de uma malha rodovi-
tisfação com os serviços oferecidos em Manaus, o ária mais ampla, passaram a se deslocar para di-
encontro com parentes instalados nas cidades pa- ferentes cidades, de modo que, além de Belém e
raenses e a restrição imposta às mulheres abriga- Santarém, registrou-se a presença Warao em ao
das de saírem às ruas para pedir dinheiro também menos outras 20 cidades paraenses.
39. Festa cristã em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, realizada anualmente há mais de dois séculos, no segundo
domingo de outubro, reunindo cerca de dois milhões de pessoas. O grande afluxo de pessoas à cidade e a agitação do
comércio por ocasião do Círio apareciam como oportunidades para os Warao arrecadarem recursos por meio de doações.
40. Ver Moutinho (2020).
41. Em dezembro de 2017, uma família se deslocou da cidade de Santarém até o Distrito Federal, retornando pouco
tempo depois, sob a alegação de não ter se adaptado ao clima da região. Na mesma época, dois casais que viviam em
Belém realizaram uma primeira viagem para São Luís (Maranhão), retornando logo depois, segundo eles, em virtude
dos altos custos de hospedagem.
26 Deslocamentos para o (e no) Brasil: a busca por proteção e melhores condições de vida
Quantidade de indígenas
Warao no Brasil por ano
RORAIMA
2014
Em julho de 2014, ocorreu o primeiro
30 registro da presença Warao no Brasil.
2015
RORAIMA E AMAZONAS
2016 600 O ano de 2016 marca a intensificação da chegada de
venezuelanos no Brasil. No final de 2016, ocorreram os
primeiros deslocamentos Warao de Roraima para o Amazonas.
PARÁ
2017
A partir de setembro de 2017, estabeleceu-se o
fluxo de deslocamento do Amazonas para o Pará.
PARÁ
2018 1.200 Ao decorrer de 2018, os Warao
passaram a se deslocar no
interior do estado do Pará.
A partir do primeiro semestre de 2019, os Warao Em dezembro de 2019, registrou-se a primeira che-
iniciaram novos deslocamentos – dessa vez, par- gada de um grupo Warao a São Paulo, cidade que
tindo de Belém para a região Nordeste. Assim, desperta o interesse de muitas famílias desde o iní-
passou a haver grupos em São Luís (Maranhão), cio do processo de deslocamento para o Brasil, em
Teresina (Piauí) e Fortaleza (Ceará). Em segui- 2016. Os indígenas relatam que veem informações
da, esse deslocamento se estendeu para outros sobre essa cidade nos noticiários e programas de
estados, como Rio Grande do Norte, Paraíba, televisão, e, por isso sentem curiosidade de conhe-
Pernambuco e Bahia. cê-la. Alguns pensam que se trata da capital fede-
ral e estabelecem uma correlação com a cidade
Na mesma época, algumas famílias que estavam de Caracas. Outros entendem que se trata de uma
em Manaus começaram a se deslocar para os es- metrópole, demonstrando certo fascínio. Porém,
tados de Rondônia e Acre, na região Norte. Houve o primeiro grupo que chegou à cidade permane-
também a passagem de alguns grupos familiares ceu apenas três semanas, surpreendendo-se com
pelo estado do Tocantins, enquanto outros, a par- o alto custo de vida e com o número de pessoas
tir de rotas terrestres saindo de Rondônia, Pará, em situação de rua. Esses aspectos tornavam a ci-
Maranhão e Rio Grande do Norte, chegaram às dade pouco propícia à arrecadação e acumulação
regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. de dinheiro e outros bens. Posteriormente, outros
27
grupos familiares fizeram passagens rápidas pela buscar parentes, compartilhar os recursos ob-
capital paulista, dirigindo-se para municípios de tidos no Brasil e comprar artesanatos para re-
menor porte no interior do estado. A permanência, vender em nosso país. Embora o movimento de
porém, também foi provisória. regresso para a Venezuela seja recorrente no
histórico da presença Warao no Brasil, aconte-
Desde o primeiro semestre de 2019, a dinâmica cendo desde o início, deve-se observar que não
da mobilidade Warao se intensificou e os deslo- se trata de um deslocamento pendular, mas de
camentos para novas cidades passaram a ocor- viagens pontuais a fim auxiliar os familiares que
rer com maior rapidez, distanciando-se cada vez lá permaneceram. Em poucos dias, geralmente
mais da fronteira entre os dois países. Até o mês acompanhados por mais parentes, regressam
de agosto de 2020, registrou-se a presença des- ao Brasil. Contudo, à medida que eles estão
sa população em ao menos 75 cidades de 23 es- se distanciando da fronteira, as viagens para a
tados e do Distrito Federal. Venezuela têm se tornado menos frequentes
para muitas famílias. O envio de pequenas re-
A dispersão dos Warao no território brasileiro messas de dinheiro, por outro lado, ocorre com
ocorre de maneira concomitante ao movimen- regularidade, pois, como dito anteriormente,
to de regresso temporário à Venezuela, reali- os recursos obtidos no Brasil não contemplam
zado individualmente ou por parcelas menores apenas as pessoas que aqui estão, mas também
dos grupos familiares, a fim de reencontrar e os parentes que continuam na Venezuela.
Os deslocamentos Warao no Brasil, inicialmente, toda já estava no Brasil, ele ficou em Boa Vista
ocorriam de maneira similar à dinâmica utilizada com os filhos, enquanto sua mulher, juntamente
na Venezuela, mantendo-se o protagonismo fe- com outra indígena, seguiu para Manaus, para
minino. Eram as mulheres, acompanhadas pelos arrecadar o dinheiro necessário para a mudança
filhos menores, que realizavam a primeira viagem de cidade. Outro homem disse que as mulheres
para outra cidade. Os Warao viajavam em grupos estavam buscando uma solução para o “proble-
de mulheres e crianças, todas pertencentes à mes- ma Warao” – o que configuraria esse problema
ma família extensa. Algumas vezes, um ou dois ho- seria a a falta de alimentação, de trabalho e de
mens as acompanhavam, mas, via de regra, eles condições dignas de moradia, contradizendo a in-
se mantinham no local de partida, esperando que terpretação equivocada de que a mobilidade faz
elas retornassem ou enviassem dinheiro para que parte da cultura Warao ou de que eles seriam nô-
fossem ao seu encontro. Foi desse modo que mui- mades, conforme comentamos no capítulo ante-
tas famílias vieram para o Brasil: seguiram de Boa rior. O deslocamento dos Warao é impulsionado
Vista para Manaus e de Manaus para Belém. pela busca por proteção, melhores condições de
vida e satisfação de suas necessidades básicas,
O protagonismo feminino decorre do fato de que o que, como se pode notar, não tem relação com
eram as mulheres, por meio do ato de pedir di- determinismo cultural nem com nomadismo.
nheiro, que arrecadavam doações em espécie ou
em gêneros alimentícios, necessárias à subsistên- Essa dinâmica de deslocamento, protagonizada
cia do grupo familiar e também ao financiamento pelas mulheres, manteve-se inalterada durante
das viagens. Um homem Warao nos contou que os primeiros anos da presença Warao no Brasil,
sua mulher veio sozinha ao Brasil por duas vezes, sobretudo enquanto a mobilidade esteve restrita
enquanto ele permanecia em Tucupita, cuidando às cidades e aos estados da região Norte. A partir
das crianças. Posteriormente, quando a família do primeiro semestre de 2019, quando passaram
28 Deslocamentos para o (e no) Brasil: a busca por proteção e melhores condições de vida
a se deslocar para a região Nordeste e, poste- Afastar-se de outros Warao, contudo, ocorre tam-
riormente, para o Centro-Oeste e o Sudeste, e, bém com o intuito de se distanciar de feiticeiros
por fim, para a região Sul, algumas transforma- pertencentes a grupos familiares distintos, que
ções ocorreram. Desde então, além das viagens possam causar algum mal. Os indígenas acredi-
realizadas por grupos compostos por mulheres e tam que a presença de um brujo42 pertencente
crianças, também têm se identificado: 1) grupos a outro grupo familiar no mesmo ambiente pode
de homens se deslocando sozinhos, deixando as provocar o adoecimento, sobretudo das crianças,
mulheres e os filhos no local de partida; 2) grupos levando-as à morte. A ambiguidade aqui é que,
familiares compostos por 12, 15 e até 20 pesso- ao mesmo tempo em que um indivíduo é conside-
as, viajando juntas; e 3) separação das famílias rado feiticeiro por outro grupo familiar, ele é tam-
extensas, com famílias nucleares realizando via- bém, para sua própria família, o curandeiro. Sobre
gens sem a companhia de outros parentes. Nota- o xamanismo e suas implicações nas relações so-
se uma diminuição do protagonismo feminino no ciais entre os Warao, falaremos mais detidamente
processo de deslocamento, sem, contudo, redu- nos próximos capítulos.
zir-se a sua importância na organização social e
no sustento dessa coletividade. A mobilidade Warao, como já comentamos aqui,
organizou-se desde o princípio por meio de re-
Essas transformações na dinâmica pela qual os des de relações sociais estabelecidas mediante
Warao organizam os deslocamentos trouxeram mais vínculos de parentesco, amizade e conterranei-
uma alteração, que é justamente a presença de dade. Através dessas redes, circulam pessoas,
homens pedindo dinheiro nos semáforos e cruza- bens (artesanato, alimentos, roupas, dinheiro),
mentos, atividade até pouco tempo antes realizada informações/referências (tanto de lugares como
predominantemente por mulheres. Os homens con- de pessoas) e saberes, inclusive espirituais. Os
tribuíam com o orçamento familiar vendendo artesa- novos destinos são decididos com base nesse
nato e outros produtos de baixo custo, ou por meio levantamento de informações: quando se interes-
de trabalhos eventuais, mas, via de regra, sua função sam por alguma cidade, seja por ouvirem alguém
era zelar pelos pertences e por parte das crianças comentar ou por terem visto algo na televisão,
enquanto as mulheres estivessem nas ruas. Essas si- iniciam a busca por informaçãos, perguntando
tuações nos ajudam a refletir sobre o protagonismo sobre a distância, os meios para o deslocamento,
indígena no processo de mudança social. possibilidades de trabalho, clima etc.
A mobilidade Warao, como demonstramos aqui, é Os Warao se deslocam tendo em vista essa rede
um fenômeno social complexo, composto por mo- que os auxilia com informações sobre as cidades
tivações diversas que transitam entre a dimensão e com recursos financeiros, emprestando valo-
material, afetiva e espiritual/moral da vida desses res entre si. Os deslocamentos são organizados
sujeitos. Além da dificuldade de acesso a políti- de maneira autônoma, demonstrando o prota-
cas públicas culturalmente adequadas, do desejo gonismo desses sujeitos. Por conta dos custos
de reencontrar parentes, da busca por trabalho, das viagens, porém, nem todos os membros do
fontes de renda e melhores condições de vida, grupo familiar conseguem se deslocar ao mesmo
em alguns depoimentos se menciona a ocorrên- tempo, de modo que é comum ocorrer o deslo-
cia de conflitos internos ao grupo como situação camento gradual, principalmente no percurso
que influencia a decisão de mudança de cidade. Venezuela-Brasil. Além disso, os indígenas geral-
Os conflitos costumam ser decorrentes de diver- mente possuem dinheiro apenas para as passa-
gências religiosas, do consumo de bebida alcoó- gens de barco ou de ônibus, não conseguindo se
lica e de acusações de feitiçaria. alimentar no decorrer da viagem, o que contribui
para a condição de vulnerabilidade física e social
A ocorrência desses conflitos trouxe transfor- dessas famílias, e reforça a importância de que
mações no que toca à definição de quem pode haja respostas rápidas por parte do poder público
morar com quem, surgindo agora uma nova divi- local diante da chegada dessa população.
são com base no neopentecostalismo. Algumas
famílias que se converteram a alguma religião No capítulo seguinte, tendo em vista a intersec-
neopentecostal não aceitam mais morar com ção de categorias identitárias e jurídicas (indíge-
pessoas que não seguem os preceitos da mes- nas refugiados e/ou migrantes), falaremos sobre
ma denominação. Isso tem causado a separação os dispositivos legais para a proteção desses su-
de certas famílias extensas, quando não ocorre a jeitos em nosso país.
conversão de todos os membros, e provocado o
deslocamento de grupos familiares para cidades
em que não há a presença de outros Warao.
42. Brujo é o termo em espanhol usado pelos indígenas para identificar aqueles a quem
acusam de terem provocado o adoecimento de outrem por meio de feitiçaria.
29
O último Censo Demográfico realizado pelo tempo. Precisamos entender que vivemos na mes-
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ma temporalidade e que eles também passam por
(IBGE), em 2010, aponta que aproximadamente transformações sociais. Morar na cidade, cursar fa-
36% da população indígena do Brasil vive em áre- culdade ou possuir celular não altera a identidade
as urbanas, o que corresponde a cerca de 315 mil étnica, nem faz com que deixem de ser detentores
pessoas. No ano 2000, esse contingente popula- de direitos e políticas diferenciadas.
cional era maior, ultrapassando 383 mil pessoas.
Apesar do número expressivo de indígenas em Os povos indígenas no Brasil possuem direi-
contexto urbano, historicamente, a política indi- tos específicos, assegurados pela Constituição
genista tem tido como foco a população que vive Federal e por tratados internacionais, que visam
nas terras indígenas (TIs), que, de modo geral, si- possibilitar a reprodução, o fortalecimento e a va-
tuam-se na zona rural. Aqueles que residem fora lorização de suas culturas. Tais direitos, deve-se
dessas áreas são tratados como “desaldeados”, notar, aplicam-se também aos Warao e às demais
ficando desassistidos pelas políticas públicas etnias venezuelanas (ou de outras nacionalida-
específicas para povos indígenas. Há um enten- des) que hoje vivem em nosso país.
dimento equivocado de que o lugar dos povos
indígenas é a floresta, e não a cidade, o que, em Até a promulgação da Constituição Federal de
muitos aspectos, reverbera no atendimento ofe- 1988, a legislação brasileira era marcada pelos
recido aos Warao em nosso país. princípios de tutela e integração dos indígenas
à sociedade nacional. Com a nova Constituição,
Diante da chegada dos Warao em uma nova ci- a concepção integracionista foi substituída pelo
dade, é comum ouvirmos sugestões de que eles reconhecimento de que os indígenas são porta-
deveriam ser levados para a área rural ou assen- dores de culturas distintas, que devem ser respei-
tados em alguma aldeia indígena. Mas por que, tadas como parte do patrimônio cultural do país.
mesmo diante da presença histórica, contínua e Em seu artigo 231, a Constituição reconhece às
crescente de indígenas em contexto urbano, ain- coletividades indígenas “sua organização social,
da insistimos na lógica de que as cidades não são costumes, línguas, crenças e tradições, e os di-
um espaço adequado para essa população? reitos originários sobre as terras que tradicional-
mente ocupam, competindo à União demarcá-las,
O primeiro ponto é entendermos que a identida- proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
de indígena não está restrita ao local de moradia As ações que os membros dessas culturas execu-
e, tampouco, ao compartilhamento de uma cul- tam com base em suas crenças e costumes não
tura ancestral. A identidade étnica depende da devem ser consideradas desprovidas de sentido,
autoidentificação e da identificação como tal por tampouco estigmatizadas, sendo as tentativas de
aqueles que compõem o mesmo grupo, ou seja, criminalizá-las passíveis de enquadramento legal.
o indígena é aquele que se identifica desse modo Além disso, com as alterações introduzidas em
e é assim reconhecido pelos demais. A cultura, 1988, foi superada a tutela do Estado, reconhe-
por sua vez, não é uma característica primária de cendo-se aos indígenas plena capacidade civil,
um grupo étnico; ao invés disso, é consequência. inclusive o direito de se associarem livremente
Cultura é algo essencialmente dinâmico e continu- para representar seus interesses44.
amente reelaborado, de modo que os traços cul-
turais de um grupo étnico podem variar no tempo A noção de tutela pressupõe a incapacidade inte-
e no espaço, sem que isso afete a sua identidade. lectual e moral desses sujeitos, cabendo a outrem o
O contato interétnico e mesmo a interdependên- poder de falar, agir e decidir em seu nome. É um exer-
cia de grupos não dissolvem as fronteiras sociais cício de infantilização, em que toda ação e expressão
entre eles, ou seja, ser ou não ser indígena não pública do tutelado é anulada quando não subscrita
depende da ausência de mobilidade ou de intera- pelo tutor. A partir da superação jurídica do princípio
ção43. Portanto, viver na cidade entre os não indí- tutelar, “os índios, suas comunidades e organiza-
genas não significa, necessariamente, viver como ções são partes legítimas para ingressar em juízo
eles e tampouco significa deixar de ser indígena. em defesa de seus direitos e interesses, intervindo
o Ministério Público em todos os atos do processo”,
Dito isso, partimos para o segundo ponto, que é conforme estabelece o artigo 232 da Constituição.
entendermos que os direitos indígenas não de-
correm da condição de “primitividade” ou suposta Anterior à Constituição de 1988 e ainda vigente,
“pureza cultural” a ser comprovada pelas coletivi- é a Lei nº 6.001/1973, conhecida como Estatuto
dades indígenas atuais, mas sim pelo entendimen- do Índio, promulgada durante o regime militar.
to por parte do Estado de que esses grupos são Apesar de seu teor integracionista e tutelar, o
descendentes de povos originários. Falar em des- Estatuto do Índio lançou as bases para a luta pelo
cendência e ancestralidade, porém, não significa direito às terras ocupadas pelos povos indíge-
que os indígenas sejam estacionários, parados no nas em um momento marcado pela desenfreada
corrida por terras na Amazônia45. Esse estatuto, Em seu artigo 6º, a Convenção 169 estabelece o
embora não seja recepcionado pela Constituição princípio da consulta livre, prévia e informada aos
Federal no que se refere aos princípios de inte- povos interessados diante de quaisquer decisões
gração e tutela, contrários ao preceito de autono- que possam afetá-los. Em outros artigos, destaca
mia dos povos indígenas, ainda orienta aspectos o direito à autonomia, à terra, a saúde e segurida-
da situação jurídica dessas coletividades. de social, a educação e meios de comunicação,
e, também, a garantia de que possam trabalhar
Nele, encontramos referência à responsabilidade sem serem discriminados ou explorados, dispon-
da União, dos estados e municípios pela proteção do de meios para a sua formação profissional.
das comunidades indígenas e de seus direitos (ar-
tigo 2º), tendo em vista a garantia dos meios para Em Belém, por iniciativa do MPF, foi construído
seu desenvolvimento, respeitando suas peculiari- um protocolo de consulta prévia com o povo
dades (item III), bem como a possibilidade de livre Warao presente na cidade. Esse documento,
escolha de seus meios de vida e de subsistência embora tenha sido elaborado junto aos indíge-
(item IV). Destacam-se ainda a aplicação de todos nas que se encontravam em Belém em outubro
os direitos e garantia das leis trabalhistas e de pre- de 2018, serve para orientar as ações do poder
vidência social aos indígenas, sem que sejam dis- público em outras cidades em que haja presen-
criminados (artigo 14); o respeito a seu patrimônio ça dessa população, destacando a importância
cultural, aos valores artísticos e meios de expres- de ela ser consultada diante de quaisquer medi-
são (artigo 47); o direito à educação, submetendo das que afetem sua vida, respeitando assim seus
o sistema de ensino às adaptações necessárias direitos, costumes e cultura, e garantindo sua
(artigo 48); a alfabetização na língua própria e em participação na formulação das políticas públi-
português (artigo 49); e o direito à saúde (artigo cas a ela direcionadas. No protocolo, os Warao
54), embora sem considerar uma abordagem di- informam que as consultas devem ser feitas de
ferenciada. Nos artigos 56 e 57, referentes ao di- maneira coletiva, com a participação de homens,
reito penal, elencam-se a atenuação da pena e o mulheres, idosos, jovens, crianças e curandeiros
regime especial de semiliberdade em contexto de ou, em situação emergencial, por meio de repre-
infração, abrindo-se possibilidade de aplicação de sentantes indicados por cada grupo familiar. As
sanções próprias a cada povo. consultas devem ocorrer com antecedência, de
modo que os indígenas possam se reunir e deli-
No âmbito internacional, temos a Convenção nº berar internamente durando o tempo necessário
169 da Organização Internacional do Trabalho para seu entendimento sobre o assunto.
(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, incorpora-
da ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Os artigos 8º, 9º e 10 da Convenção 169 fazem re-
Decreto nº 5.051/200446. Com a promulgação da ferência à necessidade de que, em contextos de
Convenção 169, as coletividades indígenas são infrações penais, sejam respeitadas as práticas
caracterizadas como “povos”, afastando-se a po- de justiça por meio das quais cada povo solucio-
lêmica de que isso poderia causar fragmentação na os conflitos, levando em conta seus costumes
interna e perda da unidade nacional, tendo em no referido assunto e dando preferência a outros
vista que o termo nesse contexto não tem relação tipos de punição que não o encarceramento.
com seu uso pelo direito internacional (artigo 1º,
inciso 3º). Ainda no artigo 1º, inciso 2º, estabelece- Sobre esse aspecto em específico, tem-se ainda
se a definição de indígena a partir do processo de a Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional
autoclassificação. A Constituição de 1988 define de Justiça (CNJ), que estabelece “procedimentos
apenas o que são TIs, mas não traz uma definição ao tratamento das pessoas indígenas acusadas,
de quem seria o indígena, de modo que, antes da rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá
Convenção 169, recorria-se à acepção adotada diretrizes para assegurar os direitos dessa po-
pelo Estatuto de Índio: “Índio ou Silvícola - É todo pulação no âmbito criminal do Poder Judiciário”
indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana (artigo 1º). Essa resolução, em seu artigo 2º, es-
que se identifica e é identificado como pertencente clarece que os procedimentos por ela previs-
a um grupo étnico cujas características culturais o tos serão aplicados a pessoas autodeclaradas
distinguem da sociedade nacional” (artigo 3º, item indígenas, “brasileiros ou não, falantes tanto da
I). Com a convenção, entende-se que as classifica- língua portuguesa quanto de línguas nativas,
ções exteriores, estabelecidas por instâncias admi- independentemente do local de moradia, em
nistrativas ou legais, não devem ser consideradas contexto urbano, acampamentos, assentamen-
decisivas, deixando que as coletividades indígenas tos, áreas de retomada, TIs regularizadas e em
se pautem em processos de autoclassificação47. diferentes etapas de regularização fundiária”. Ela
assegura que a autodeclaração como indígena direito tanto como indígenas quanto como re-
poderá acontecer em qualquer fase do processo fugiados ou migrantes. Diante disso, para seu
criminal (artigo 3º); determina que as informações atendimento, devem também ser observados os
sobre a língua e a etnia devem constar no registro dispositivos legais referentes à proteção de refu-
de todos os atos processuais (artigo 4º); garante giados e migrantes em nosso país.
a presença de intérprete, preferencialmente da
própria comunidade, em todas as etapas do pro- A Constituição Federal, em seu artigo 5º, esta-
cesso, mesmo quando o acusado falar português, belece que “todos são iguais perante a lei, sem
tendo em vista a interpretação dos fatos a partir distinção de qualquer natureza, garantindo-se
de sua própria cosmovisão (artigo 5º); recomen- aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
da a realização de perícia antropológica a fim de País a inviolabilidade do direito à vida, à liberda-
compreender a percepção do acusado e saber de, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
como aquele povo indígena lida com o fato, se o Refugiados e migrantes também são detentores
considera crime e quais seriam as punições (arti- dos direitos sociais (educação, saúde, alimenta-
go 6º); e destaca a necessidade de consulta pré- ção, trabalho, moradia, transporte, lazer, seguran-
via à comunidade indígena para a criminalização ça, previdência social, proteção à maternidade e
do acusado (artigo 7º). à infância, assistência aos desamparados), con-
forme o artigo 6º, assim como direitos trabalhis-
A resolução determina, ainda, que o aprisiona- tas, segundo o artigo 7º. Não há impedimento ao
mento deve ocorrer apenas como última medida exercício de cargos na administração pública, se
e que, em contexto de penas com privação de preencherem todos os requisitos estabelecidos
liberdade, o estabelecimento penal deverá con- em lei (artigo 34, item I), porém não podem votar
siderar as especificidades culturais do indígena, nem ser votados (artigo 14, inciso 2º).
reconhecendo, dentre outros aspectos, a existên-
cia de outras formas de parentesco na realização No Brasil, de acordo com o artigo 1º da Lei nº
de visitas sociais, oferecendo alimentação que 9.474/1997, que determina os mecanismos para a
respeite os costumes da comunidade indígena, implantação do Estatuto dos Refugiados de 1951,
tratamento de saúde diferenciado etc. é reconhecido como refugiado o indivíduo que:
48. BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 9.277, de 5 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre a identificação do
solicitante de refúgio e sobre o Documento Provisório de Registro Nacional Migratório. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9277.htm. Acesso em: 08 jan. 2021.
35
Povos Indígenas
o
Dir
✓ Declaração Americana
Dir
2
✓ Convenção de 1951
governos federal, estadual e municipal, que se- ✓ Protocolo de 1967
✓ Declaração de
rão estabelecidas por meio de cooperação fede- Cartagena de 1984
rativa (artigo 4º), visando a ampliação de políticas ✓ Lei nº 9.474/1997
✓ Decreto nº 9.277/2018
públicas referentes a proteção social, atenção à
saúde, oferta de atividades educacionais, garan- 3. Direito dos migrantes
Constituição Federal
tia de direitos humanos, logística e distribuição de de 1988 Lei n˚ 13.684/2018
✓ Lei n˚ 13.445/2017
✓ Portaria Interministerial
insumos, dentre outros temas (artigo 5º). n˚ 9/2018
36 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
Uma vez no Brasil, os Warao podem escolher se documentação exigida para cada fim, e emitir o
solicitarão o reconhecimento da condição de re- documento de identificação. As pessoas solici-
fugiado, com base na Lei nº 9.474/1997 (Lei do tantes da condição de refugiada receberão o
Refúgio), ou a residência temporária com valida- Protocolo Provisório de Refúgio, enquanto as so-
de de dois anos, conforme estabelece a Portaria licitantes da autorização de residência receberão
Interministerial nº 9/2018. Ainda que haja esses o Requerimento de Autorização de Residência.
dois mecanismos para a permanência legal de Depois, ambos os documentos, uma vez cumpri-
venezuelanos no país, é importante destacar que dos os respectivos processos, serão substituídos
o refúgio não corresponde à mera alternativa mi- pela Carteira de Registro Nacional Migratório.
gratória equivalente a outras previstas pela Lei
de Migração, mas é um direito de proteção inter- A adoção de procedimentos eletrônicos para a
nacional, pautado no princípio de não devolução documentação, embora represente um avanço
(non-refoulement). em termos institucionais, no sentido de celerida-
de e transparência, trouxe aos Warao novos obs-
A solicitação da condição de refugiado é comple- táculos para a obtenção de documentos, tendo
tamente gratuita e não é prejudicada pela ausên- em vista sua não inclusão digital e tecnológica, o
cia de documentos emitidos pelo país de origem, analfabetismo e a barreira linguística. Salvo raras
tendo em vista que, diante da situação de fuga, a exceções, eles não possuem endereços eletrô-
pessoa pode não estar em posse deles. A solici- nicos (e-mail), não sabem manusear computador,
tação de residência, por sua vez, requer que seja não sabem ler ou, quando sabem, leem apenas
apresentada uma série de documentos pessoais, em espanhol ou na língua própria, não em por-
dentre os quais cédula de identidade ou passapor- tuguês. Assim, não conseguem realizar tais pro-
te, exigindo-se também o pagamento de algumas cedimentos sem o auxílio de terceiros, de modo
taxas (passíveis de isenção mediante declara- que é comum a existência de pessoas com os
ção de hipossuficiência). Em ambos os casos, o protocolos de solicitação da condição de refugia-
procedimento é realizado junto à Polícia Federal da fora da data de validade ou indocumentadas,
(PF), sendo iniciado de maneira virtual por meio mesmo em cidades geograficamente distantes
do Sistema do Comitê Nacional para Refugiados da fronteira entre os dois países.
(SISCONARE), quando se trata de solicitante
da condição de refugiado, ou pelo Sistema de A obtenção de documentos pelos Warao requer,
Registro Nacional Migratório (SISMIGRA), quando portanto, a atuação de instituições públicas ou
solicitante de residência temporária. organizações da sociedade civil que possam au-
xiliá-los e orientá-los no decorrer de todo o pro-
O primeiro passo, tanto para as pessoas que cesso, pois essa população, em decorrência de
solicitam a condição de refugiado quanto para desigualdades sociais históricas, vê-se impossi-
as que solicitam a autorização de residência, é bilitada de acessar tais serviços de maneira au-
o preenchimento de um formulário eletrônico, tônoma. Para a realização do procedimento de
respectivamente, nas plataformas SISCONARE solicitação da condição de refugiado, tendo em
ou SISMIGRA. Feito isso, os refugiados e mi- vista que o sistema é relativamente recente, as
grantes deverão se dirigir a uma delegacia da instituições podem solicitar capacitação junto ao
PF, na data previamente agendada, munidos da CONARE e ao ACNUR.
Superado esse primeiro obstáculo referente à os Warao também não dispõem desse documen-
obtenção do status legal no Brasil, deparamo-nos to. Nessas situações, os pais devem comparecer
com os desafios em torno da documentação civil ao cartório acompanhados de duas testemunhas
básica no país: Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) maiores de 18 anos (que confirmem a gravidez e o
para todos, Carteira de Trabalho e Previdência parto) e apresentar o documento de identificação
Social (CTPS) para os adultos, e certidão de nas- de quem for registrar a criança. Caso enfrentem
cimento para as crianças nascidas em território alguma dificuldade para a realização do registro
brasileiro. A documentação civil básica é um di- civil, é possível acionar a Defensoria Pública da
reito humano e deve ser assegurada pelo Estado, União (DPU) para apoiar na interlocução junto às
tendo em vista sua indispensabilidade para o instituições responsáveis, de modo que o direito
acesso a direitos sociais como educação, saúde à documentação seja garantido.
e assistência social.
De acordo com a Resolução Conjunta nº 03/2012
Ainda que o acesso a tais documentos seja legal- expedida pelo CNJ e pelo Conselho Nacional do
mente garantido, entre os Warao, mais uma vez, Ministério Público (CNPB), que “dispõe sobre o
deparamo-nos com desafios decorrentes da bar- assento de nascimento de indígena no Registro
reira linguística e do desconhecimento dos proce- Civil das Pessoas Naturais”50, a pedido do inte-
dimentos necessários para sua obtenção. Entre os ressado, é possível incluir o nome indígena do
indígenas solicitantes da condição de refugiados, registrado. Além disso, a etnia pode ser lançada
há ainda relatos de que, ao buscarem uma agên- como sobrenome, ao passo que a aldeia de ori-
cia dos Correios para a inscrição do CPF, tiveram o gem, juntamente com o município, pode constar
protocolo de solicitação da condição de refugiado como informação a respeito da naturalidade.
recusado, em virtude da falta de informação por
parte do atendente, que acreditava se tratar de um O prazo legal para a emissão da certidão de nas-
documento sem validade legal. Outros indígenas cimento é de até 15 dias após o nascimento da
contam que pagaram a um terceiro para auxiliá-los criança e de três meses para pessoas que vivem
na obtenção do CPF. A ausência da CTPS, por sua a mais de 30 quilômetros de distância de um
vez, impossibilita-os de buscar trabalho formal, li- cartório. Mesmo passado o prazo legal, o artigo
mitando ainda mais as possibilidades de inserção 46 da Lei nº 6.015/1973 estabelece que o regis-
laboral e expondo-os aos riscos da informalidade tro tardio do nascimento seja feito no cartório de
no mundo do trabalho. registro civil do munícipio de residência do inte-
ressado ou, conforme o artigo 4º da Resolução
Ocorre, portanto, que os desafios enfrentados Conjunta nº 03/2012, realizado mediante a apre-
pelos Warao para ter acesso à documentação sentação do RANI ou a apresentação dos dados
os colocam em condição de maior vulnerabilida- por um representante da FUNAI.
de, tanto por não conseguirem acessar os direi-
tos sociais como por frequentemente buscarem Note-se que, nesse caso, a ausência de docu-
ajuda de terceiros para a realização desses pro- mentação representa risco de apatridia. Por isso,
cedimentos, pagando pelos serviços. A fim de o poder público deverá se empenhar para que as
evitar esse tipo de situação, é importante que as crianças Warao nascidas no Brasil não permane-
instituições públicas assumam tal articulação, ga- çam indocumentadas. A FUNAI, por meio de suas
rantindo a proteção e dignidade dessas pessoas. coordenações regionais (CRs) e de suas coorde-
Recomenda-se que sejam identificadas as insti- nações técnicas locais (CTLs), tendo em vista que
tuições responsáveis por cada documento e que já realiza esse acompanhamento junto às etnias
elas construam entre si um fluxo de atendimento. nacionais, poderia realizar a interlocução entre os
Warao e os cartórios, facilitando a comunicação
Entre os Warao, registra-se um número expres- para o procedimento do registro civil. Deve-se
sivo de partos realizados em casa, de modo observar que os Warao têm direito de manter a
que as crianças não possuem a Declaração de ordem dos sobrenomes usual na Venezuela: pri-
Nascido Vivo (DNV) emitida pela instituição de meiro o sobrenome do pai e por último o da mãe.
saúde, exigida pelos cartórios de registro civil
de pessoas naturais para a emissão da certi- A emissão do registro civil da criança é gratuita,
dão de nascimento. O Registro Administrativo sendo possível, no mesmo procedimento, re-
de Nascimento Indígena (RANI), fornecido pela alizar a inscrição no CPF, tendo em vista o con-
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), de acordo o vênio firmado entre a Receita Federal do Brasil
Estatuto do Índio49, pode substituir a DNV, porém, e a Associação Nacional dos Registradores de
49. O artigo 13, parágrafo único da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) estabelece que “o registro administrativo
constituirá, quando couber, documento hábil para proceder ao registro civil do ato correspondente, admitido, na falta
deste, como meio subsidiário da prova”.
50. BRASIL. CNMP, CNJ. Resolução Conjunta nº 03, de 19 de abril de 2012. Dispõe sobre o assento de nascimento
de indígena no Registro Civil das Pessoas Naturais. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas/
norma/105/. Acesso em: 29 out. 2020.
38 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
CASO #1
José era casado com Maria, com quem teve dois filhos. Maria adoeceu e morreu, então José
decidiu entregar os filhos para sua irmã, Aparecida, criá-los. Aparecida é casada, possui
um filho biológico e assumiu informalmente a guarda de ambos os sobrinhos. Passado um
tempo, José se casou novamente e teve outros filhos. Quando decidiram vir para o Brasil, as
famílias deslocaram-se juntas, e José, no momento em que solicitou a condição de refugiado,
declarou ser o responsável legal por seus dois filhos que vivem com Aparecida. No Brasil, as
famílias de José e de Aparecida vivem na mesma casa, porém, as crianças não o reconhecem
como pai, reportando-se ao marido da tia. Aparecida, então, em consenso com José, quer
alterar a documentação e assumir a guarda formal de seus sobrinhos, tendo em vista a
relação de parentalidade socioafetiva estabelecida com as crianças, assim como o interesse
em realizar novas viagens sem a presença de seu irmão, o pai biológico dos menores.
Esse caso corresponde a uma situação concreta pelas equipes responsáveis por seu atendimento,
em que as famílias desejam alterar a guarda for- a prática de empréstimo de documentos pessoais
mal das crianças em decorrência da inexistência tem diminuído, porém, ainda há grande incidên-
de vínculos afetivos entre elas e o pai biológico. cia de perdas e extravios. Isso ocorre, inclusive,
Nessa situação, José pode passar a guarda for- com as cadernetas de vacinação, fazendo com
mal de seus filhos para Aparecida e seu marido. que algumas pessoas sejam imunizadas repeti-
Porém somente após as crianças atingirem a das vezes já que não conseguem comprovar a
maioridade, se assim quiserem, é que poderão realização do procedimento em outra cidade.
requerer o reconhecimento da paternidade e
maternidade socioafetiva. Isso porque, conside- É necessário, portanto, que sejam criados espa-
rando o melhor interesse das crianças, elas têm ços de diálogo e orientação para que os indíge-
direito de manter o nome dos pais biológicos e nas sejam informados sobre a importância da
fazer incluir os dois pais socioafetivos, se assim documentação, sua intransferibilidade e conser-
desejarem, ou promover a alteração. O procedi- vação. Eles devem ser esclarecidos sobre o seu
mento para substituição dos responsáveis legais status legal no Brasil, se são refugiados ou mi-
deverá ser feito com base na legislação brasileira, grantes, sobre os processos legais e sistemas de
perante o juízo da infância; se for necessário, o proteção referentes a cada situação, bem como
requerimento pode ser realizado na Defensoria sobre o fato de que os documentos são reconhe-
Pública do Estado (DPE). Caso a família tivesse cidos e regulados pelo Estado, identificando a
decidido pela alteração da guarda formal no mo- pessoa como única, de modo que não podem ser
mento da obtenção da documentação no Brasil, emprestados. Posto que o documento pessoal
a situação teria sido submetida ao procedimento identifica o indivíduo perante o Estado, ele deve
estabelecido pela Resolução Conjunta nº 01/2017. ser mantido em boas condições e levado consigo
na realização de novas viagens.
Cabe destacar ainda que os Warao possuem con-
cepções particulares sobre os documentos, de Os desafios enfrentados para a obtenção da docu-
modo que, no início do processo de deslocamen- mentação, e o modo como os Warao percebem e
to para o Brasil, era comum emprestarem uns aos lidam com os documentos demonstram, mais uma
outros era comum emprestarem uns aos outros vez, a necessidade de adequação dos serviços e
os protocolos de solicitação da condição de refu- das políticas públicas, tendo em vista as especifici-
giado, não compreendendo o caráter de intrans- dades socioculturais do grupo. É preciso, portanto,
feribilidade da documentação pessoal. Em 2017, que o direito à documentação seja efetivado, para
um indígena, à época vivendo em Manaus, disse- que eles possam usufruir dos demais direitos sociais
-nos que emprestar papéis (como se referiam aos que lhes são assegurados pela Constituição Federal.
documentos) e crianças era algo normal entre os
Warao. Para ele, como todos são parentes, não Na seção seguinte, também chamando aten-
fazia sentido deixar de emprestar o documento ção para a necessidade de adequação cultural
quando outro familiar necessitasse, do mesmo das respostas emergenciais, falaremos sobre as
modo que assumiriam o cuidado de uma crian- ações de abrigamento implantadas em diferentes
ça, caso seus pais precisassem. Com o passar do cidades brasileiras.
tempo e com o trabalho de orientação realizado
40 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
54. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a
Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/public/
resolucao_CNAS_N109_%202009.pdf. Acesso em: 2 nov. 2020.
55. Maiores informações sobre as políticas de assistência social destinadas aos indígenas refugiados e migrantes
poderão ser consultadas no Guia de Referência para o Atendimento a essa população elaborado pelo ACNUR em
parceria com o Ministério da Cidadania e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
41
57. Uma espécie de pão muito popular entre os Warao, feito à base de
farinha de trigo, água e sal, e assado em uma frigideira.
58. O termo aidamo é comumente utilizado para definir a liderança
Warao, porém, entre os indígenas, há divergências sobre a sua
aplicação. Para alguns, essa categoria não se estende às lideranças
constituídas no Brasil, pois corresponde ao grande chefe da
sociedade Warao, devendo ser usado apenas para designar aqueles
que já eram caciques reconhecidos na Venezuela. As lideranças
constituídas no Brasil seriam legítimos representantes políticos,
mas teriam uma posição social e política distinta à dos aidamos.
44 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
Os Warao comumente são acusados de negligên- Para os indígenas, porém, apesar de eles reconhe-
cia no cuidado com seus filhos, seja pelo fato de cerem o risco para si e para seus filhos, estar com
levarem as crianças consigo quando pedem di- as crianças nas ruas é uma forma de mantê-las em
nheiro nas ruas, seja pela precariedade dos locais segurança, junto de si. Além disso, em muitas si-
que habitam. O fato de estarem acompanhados tuações, sobretudo em contextos de menor inci-
pelas crianças enquanto pedem dinheiro também dência da rede de proteção social, é por meio da
implica acusações de exploração do trabalho in- arrecadação de dinheiro nas ruas que as famílias
fantil, suscitando ameaças de institucionalização obtêm os recursos necessários para a alimentação
e retirada dos menores por parte dos órgãos e o pagamento do aluguel. Muitos são os relatos
de proteção da criança e do adolescente. Para em torno da insatisfação e do cansaço decorren-
os agentes da rede de proteção à criança e ao tes da prática de pedir dinheiro nas ruas, assim
adolescente, assim como para a sociedade mais como sobre o desejo de encontrar trabalho, for-
amplamente, as famílias estariam não somente mal ou informal. Mas, enquanto isso não acontece,
colocando as crianças em situações de risco, mas pedir dinheiro é a única possibilidade de geração
também cometendo um crime, previsto pelo arti- de renda e sustento para essas famílias – inclusive
go 232 do ECA, ao “submeter criança ou adoles- para os parentes que permanecem na Venezuela,
cente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tendo em vista que, como dito anteriormente, os
vexame ou a constrangimento”. A pena para esse recursos obtidos no Brasil são compartilhados
crime pode chegar a dois anos de detenção. com os familiares que estão no outro país.
45
Mulher, 67 anos, vivendo em Pacaraima As sociedades indígenas, por sua vez, possuem
(Roraima), em 22 novembro de 2020 concepções próprias de infância, que diferem da
*Tradução própria concepção ocidental moderna. Também possuem
diferentes modos de socialização de crianças, em
que a inserção nas dinâmicas da coletividade ocor-
re de maneira precoce, quando comparada à nos-
sa sociedade. Não há um modo indígena (singular
e único) de conceber a infância, pois as diferentes rede de parentesco, e pelos rituais de iniciação e
etnias pensam e se relacionam com esse período de passagem, conformando o nascimento social.
da vida de variadas formas, mas, em termos gerais, A atribuição do status de pessoa ocorre, portan-
as crianças indígenas não são tratadas como sujei- to, por meio do consentimento social, e não do
tos diferentes, classificados à parte, como em nos- nascimento biológico64.
sa sociedade. Antes, elas são vistas como sujeitos
autônomos, agentes importantes na socialização A infância, enquanto modo particular de pen-
e integração dos grupos sociais, cujo trabalho é sar a criança, muda de um contexto histórico,
parte da dinâmica da coletividade60. Muitas são as cultural e social para outro. Nesse sentido, não
tarefas desempenhadas por elas junto a seus res- somente o pertencimento étnico-racial, mas
pectivos grupos domésticos, porém tais funções também o pertencimento de classe, conformam
são regidas por uma lógica de aprendizado cons- tipos de infância distintos, tratos diferenciados
tante, sendo frequentemente vivenciadas como com crianças que, consequentemente, produ-
formas de brincadeira ou diversão. zem crianças diferentes. A noção de infância,
ainda que entendida como categoria universal,
A criança indígena pode atuar como mediadora é composta por sujeitos muito distintos, sobre-
entre diferentes grupos sociais, como é o caso, tudo em países com índices de desigualdade
por exemplo, entre os Pataxó de Coroa Vermelha, social tão expressivos como o Brasil. A realida-
na Bahia, em que as crianças ocupam um lugar de de crianças negras e pobres, que habitam
central no mercado de artesanato. Os adultos, as periferias das cidades brasileiras, é infinita-
por reconhecerem que as crianças têm mais de- mente distinta daquela vivenciada por crianças
senvoltura para comercializar com não indígenas, brancas das classes média e alta. Do mesmo
impressionando-os facilmente com aspectos de modo, as concepções indígenas de infância e
sua cultura, deixam-nas atuarem ativamente nes- os modos como socializam suas crianças tam-
se comércio, que acaba se constituindo em um bém diferem daqueles utilizados por outros
importante espaço social de reafirmação da iden- grupos sociais. Portanto, para entender expe-
tidade étnica, assim como em uma destacada al- riências e vivências tão diferentes, precisamos
ternativa econômica61. situá-las a partir do seu contexto sociocultural.
Além da mediação entre diferentes grupos so- Entre os Warao, assim como ocorre em muitas
ciais, a criança indígena também pode atuar como sociedades indígenas no Brasil, as crianças são
mediadora entre o mundo cósmico e o terreno. incorporadas desde cedo às dinâmicas da coletivi-
Para os Guarani, por exemplo, as crianças são dade, acompanhando os adultos nas atividades de
mais vulneráveis às investidas de maus espíritos, subsistência do grupo. Em suas comunidades, vão
que, com facilidade, conseguem levá-las para o com os familiares no roçado, na pesca, e na coleta
mundo dos mortos; por isso, elas devem ser co- de frutas e animais nas matas, do mesmo modo
tidianamente convencidas a ficar neste mundo que, nas cidades brasileiras, acompanham suas
imperfeito (Yvy va’i). Entende-se, porém, que elas mães enquanto elas pedem dinheiro nas ruas.
têm capacidade de escolha, podendo optar por
retornar à terra sem mal (Yvy mara ey). O reco-
nhecimento de que a criança possui capacidade
de escolha em relação a ficar neste mundo ou
não é o que ameniza o sentimento de frustração
e fracasso em caso de morte62. Nos caños, se as crianças querem ir para as
roças, podem ir. Na canoa, vão junto com a
Em algumas sociedades indígenas, ainda, a con- mãe, com o pai, quando saem para buscar
cepção de infância está relacionada à noção de comida ou buscar lenha. As crianças vão junto,
pessoa humana e de sua construção. Ao contrário normal. Mais tarde, quando voltam para casa,
da concepção ocidental, a pessoa não é definida dormem bem. […] Até os dez anos, só acompanham
pelo nascimento biológico, mas pelo nascimento os pais até a roça, só acompanham e esperam para
social e pela corporalidade. A personitude63, as- regressar para casa, nada mais. Com 15 anos, já
sim como o corpo, são qualidades processuais trabalham, pescam, buscam lenha para fazer comida.
adquiridas gradualmente, pelo estabelecimento
de relações adequadas, pela inserção em uma Homem, 34 anos, vivendo em Recife
(Pernambuco), em 11 de novembro de 2020
*Tradução própria
60. Ver Silva (2012) e Tassinari (2007).
61. Ver Miranda (2006).
62. Ver Vasconcelos (2011).
63. Termo usado como tradução da expressão em inglês personhood. Refere-se à condição de pessoa humana.
64. Ver Rosa (2014).
47
desses povos vendem artesanato no períme- do órgão federal responsável pela política
tro urbano, instalando-se provisoriamente em indigenista, no caso de crianças e adolescentes
acampamentos de lona próximos às rodoviárias indígenas, e de antropólogos, perante a
e vivenciando experiências semelhantes às dos equipe interprofissional ou multidisciplinar
Warao no que tange à atuação da rede de prote- que irá acompanhar o caso. (Incluído pela
ção à criança e ao adolescente. Lei nº 12.010, de 2009) Vigência.
Entre os agentes da rede de proteção, a interpre- A partir de 2016, com a nova redação dada pela
tação vigente se pauta no tratamento universal Lei nº 13.257, o ECA, em seu artigo 19, reconhe-
da infância (definida a partir de critérios etários), ceu que toda criança e adolescente tem direito
existindo dificuldade em conciliar o ECA com ou- de “ser criado e educado no seio de sua família
tras legislações referentes à proteção de crian- e, excepcionalmente, em família substituta, asse-
ças indígenas. Ocorre, porém, que a Constituição gurada a convivência familiar e comunitária, em
Federal, em seu artigo 227, reconhece que, além ambiente que garanta seu desenvolvimento inte-
da família, cabe à sociedade e ao Estado o de- gral”. No mesmo ano, a Instrução Normativa (IN) nº
ver de assegurar à criança, ao adolescente e ao 1/2016 da FUNAI estabeleceu as normas e diretri-
jovem, dentre outros direitos, o de convivência zes para a atuação do órgão indigenista “visando
familiar e comunitária, colocando-os a salvo de à promoção e proteção dos direitos das crianças e
toda forma de negligência, discriminação, explo- jovens indígenas e a efetivação do direito à convi-
ração, violência, crueldade e opressão. vência familiar e comunitária”68. No documento, a
FUNAI utiliza o conceito de jovem, em vez de ado-
No artigo 231, a Constituição determina ainda o lescente, por entender que a adolescência não
respeito e a valorização dos costumes, crenças, satisfaz a pluralidade de arranjos socioculturais
línguas, tradições e formas de organização social existentes entre os diferentes povos indígenas.
das coletividades indígenas, inclusive no que toca
às suas concepções de infância e aos modos de Como já destacamos aqui, a criminalização de
socialização das crianças, uma vez que isso com- adultos indígenas, tomando-se as crianças como
põe seu universo sociocultural. A Convenção das vítimas de sua negligência ou perversidade,
Nações Unidades sobre os Direitos da Criança, chama atenção para apenas uma dimensão
promulgada no Brasil por meio do Decreto nº dessa realidade, esquecendo do contexto mais
99.710/1990, em seu preâmbulo, também chama amplo, em que todo o grupo familiar se encontra
atenção para “a importância das tradições e dos em situação de vulnerabilidade social. Isso nos
valores culturais de cada povo para a proteção e mostra que precisamos olhar a proteção da
o desenvolvimento harmonioso da criança”. criança e da família por um prisma interseccional,
em que o ECA seja aplicado em consonância
Com a promulgação do ECA, em 1990, instituiu- com o respeito aos direitos indígenas. Nesse
-se o chamado paradigma de proteção integral sentido, temos a Resolução nº 181/2016 do
da infância e adolescência. Com isso, as crianças Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
e adolescentes tornaram-se sujeitos de direitos, Adolescente (CONANDA), que “dispõe sobre
estendendo-se a eles o princípio da dignidade os parâmetros para interpretação dos direitos e
da pessoa humana, condição que deverá ser adequação dos serviços relacionados ao atendi-
protegida e garantida pelo Estado, pela família e mento de Crianças e Adolescentes pertencentes
pela sociedade. Até 2009, contudo, o ECA não a Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil”69.
fazia menção às crianças indígenas ou quilom-
bolas, que foram incluídas por meio da Lei nº A resolução estabelece que, em contextos en-
12.010/2009. A partir da nova redação, o artigo volvendo crianças e adolescentes indígenas,
28 do ECA estabelece que, tratando-se de crian- devem ser considerados a autodeterminação,
ça ou adolescente indígena, para a colocação em as culturas, os costumes, os valores, as formas
uma família substituta, é obrigatório:
I - que sejam consideradas e respeitadas sua 68. BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Instrução
identidade social e cultural, os seus costumes Normativa nº 01, de 13 de maio de 2016. Estabelece
e tradições, bem como suas instituições, normas e diretrizes para a atuação da FUNAI
desde que não sejam incompatíveis com visando à promoção e proteção dos direitos das
os direitos fundamentais reconhecidos por crianças e jovens indígenas e a efetivação do direito
esta Lei e pela Constituição Federal; (Incluído à convivência familiar e comunitária. Disponível
pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência em: bit.ly/3mBWNFa. Acesso em: 13 nov. 2020.
69. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança
II - que a colocação familiar ocorra
e do Adolescente. Resolução nº 181, de 10 de novembro
prioritariamente no seio de sua comunidade
de 2016. Dispõe sobre os parâmetros para interpretação
ou junto a membros da mesma etnia; (Incluído
dos direitos e adequação dos serviços relacionados ao
pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
atendimento de Crianças e Adolescentes pertencentes a
III - a intervenção e oitiva de representantes Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil. Disponível em:
bit.ly/3nK0Q3s. Acesso em: 12 nov. 2020.
50 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
de organização social, as línguas e as tradições, fins de proteção não cessa o ciclo de violência,
bem como as concepções diferenciadas acerca porque a separação em si é também um ato vio-
dos ciclos de vida que compreendem os perío- lento. Isso nos mostra, portanto, quão desafiador
dos legalmente estabelecidos como infância, e complexo é lidar com tais situações, exigindo
adolescência e fase adulta. Ela determina, ainda, que cada caso seja pensando a partir de suas
que sejam assegurados serviços culturalmente particularidades, possibilitando a escuta qualifi-
apropriados em saúde, educação, esporte e la- cada da família, com a participação de intérpretes
zer, convivência familiar e comunitária, trabalho, e, sempre que possível, a realização de investiga-
segurança pública etc., respeitando o direito à ção antropológica que possa dar subsídios para a
autodenominação, mesmo em contexto urbano condução do processo legal, se houver. A consul-
e em situação de itinerância, contribuindo para o ta ampliada à família extensa, bem como a busca
enfrentamento de tratamentos discriminatórios. de soluções junto à coletividade, de modo a con-
siderar seus mecanismos de resolução de con-
Tratando-se de crianças Warao, especificamente, flitos, também são importantes para a proteção
temos também a Recomendação nº 20/2019, do da criança, garantindo seu direito à convivência
Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), familiar e comunitária, como postula o ECA.
que postula “a abstenção da adoção de procedi-
mentos que gerem a perda do poder familiar, como o Deve-se notar ainda que, entre os Warao no Brasil,
acolhimento instucional [sic] e o acolhimento familiar, tem sido percebido o aumento dos casos de vio-
no que tange a crianças venezuelanas em situação lência de gênero e do uso problemático de álcool,
de rua, especialmente as de etnia Warao, sem antes que, na maioria das vezes, são tratados exclusiva-
serem observadas todas as medidas previstas no mente como questão de polícia, quando, na verda-
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”70. de, correspondem a problemas sociais da ordem
da saúde. A falta de trabalho, a impossibilidade de
Para os Warao, a separação do núcleo familiar é uma vida digna, a falta de privacidade e autonomia
uma experiência marcada por muito sofrimento. nos abrigos, o preconceito, o racismo e a xenofo-
Até mesmo em uma situação de violência intrafa- bia enfrentados nas ruas, a vulnerabilidade social
miliar (contra mulheres e crianças), observou-se em que se encontram, tudo isso compromete a
que a separação da família a fim de cumprir as saúde mental dessas pessoas, levando-as muitas
medidas legais destinadas à proteção das víti- vezes a atitudes extremas. As mulheres relatam
mas constituiu-se também como uma violência, que a violência de gênero e a agressividade, bem
a ponto de mãe e filhos se recusarem a comer como o uso problemático de álcool, não são com-
e a conversar em espanhol, comunicando-se portamentos usuais entre os Warao, sendo pouco
apenas entre eles na língua indígena. Em outras comuns na Venezuela, e dizem que eles estariam
situações em que houve acolhimento institucio- se acentuando no Brasil. Além disso, em algumas
nal de crianças, além do choro compulsivo e do situações que envolvem o acolhimento institucio-
sofrimento emocional em virtude da ausência da nal de mulheres vítimas de violência de gênero,
mãe, a recusa à alimentação também foi eviden- permanece, entre os indígenas, o entendimento
ciada. Nos locais destinados ao acolhimento ins- de que a mulher foi detida, como se ela estivesse
titucional em contexto de violação de direitos, os sendo punida pela agressão sofrida, em lugar do
indígenas não somente ficam separados de seus agressor, resultando na criminalização da vítima.
familiares, mas se veem privados da liberdade de
ir e vir, trancados em uma estrutura na qual não Isso nos mostra, portanto, não somente a impor-
conseguem vivenciar sua etnicidade, estranhan- tância de buscarmos uma abordagem interseccio-
do a comida e a ausência de redes de descanso. nal no que toca à proteção das crianças e famílias
A barreira linguística, ainda, limita ou impede a in- Warao, mas também a urgência da implementa-
teração com as outras pessoas acolhidas. ção de estratégias de geração de renda cultural-
mente sensíveis à população indígena, para que
A ambiguidade em casos como esses é que a se- essas pessoas tenham autonomia e vida digna,
paração do núcleo familiar sob a justificativa de sem depender da arrecadação de dinheiro nas
proteção – das crianças individualmente ou junto ruas. Ainda na perspectiva de se garantir direitos
com suas mães, quando se trata de contextos de ao povo Warao, na seção seguinte, falaremos so-
violência de gênero – comporta, para essas pes- bre a importância do estabelecimento de diálogo
soas, uma dimensão violenta, que as coloca em intercultural no atendimento à saúde.
situação de sofrimento físico e emocional. Ser pri-
vado da convivência familiar e comunitária para
70. BRASIL. Conselho Nacional de Direitos Humanos. Recomendação nº 20, de 10 de outubro de 2019. Recomenda a a
abstenção da adoção de procedimentos que gerem a perda do poder familiar, como o acolhimento instucional [sic] e o
acolhimento familiar, no que tange a crianças venezuelanas em situação de rua, especialmente as de etnia Warao, sem
antes serem observadas todas as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-humanos-cndh/
Recomendaon20CrianasWarao.pdf. Acesso em: 12 nov. 2020.
51
71. Ver Arellano (1986), Briggs (1994), Vaquero Rojo (2000), Guanire et al. (2008), Allard (2010) e Sørgauh (2012).
72. Ver Moutinho (2020) e Rosa (2020).
73. Ver Allard (2010), Sørgauh (2012), Moutinho (2020) e Rosa (2020).
52 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
A atuação dos xamãs compõe o sistema médico de tratar tais enfermidades. Ambos os sistemas
Warao; por isso, como já sinalizamos, eles são epidemiológicos reconhecem os conceitos de
vistos como médicos. Quando um indígena ado- patógeno, vetor, via de infecção e tropismos
ece, o protocolo médico Warao estabelece que o específicos, assim como os sintomas clínicos
primeiro diagnóstico deve partir de um de seus resultantes, de modo que há entre eles mais arti-
xamãs; o paciente só pode ser encaminhado para culações que conflitos. Porém, enquanto a biome-
o tratamento biomédico após sua liberação. dicina explica os patógenos como vírus, bactérias
etc., a medicina Warao os define como um odor
Os indígenas explicam que, primeiro, um Wisidatu fétido76, que invade o paciente pelo ar, pela água
“deve tocar” o doente. Se se tratar de hebu, ele ou por algo sólido contaminado, fixando-se em
já cura o paciente; se não, encaminha-o para o uma parte específica do corpo e produzindo os
Joarotu, que verifica se está ou não diante de daño sintomas observados. O odor fétido está associa-
provocado por joa. Em caso afirmativo, ele o cura; do a áreas onde ocorrem processos de decom-
do contrário, encaminha-o para o Bajanarotu, para posição, que infectam a vítima por contato direto.
que ele identifique se é daño por bajana e, assim, Segundo a teoria pneumática Warao, o patógeno
realize o tratamento. Somente após a realização é um ar fétido, o medicamento é um ar perfumado
do tratamento xamânico é que a pessoa doente e a saúde é um ar neutro77.
pode ser encaminhada ao tratamento biomédico.
Considera-se que, se for medicada antes desses Em relação às recusas aos tratamentos realiza-
procedimentos, pode morrer, já que o medicamen- dos pela biomedicina, há registros acerca da
to acaba fortalecendo o hebu ou as outras entida- administração de medicação intravenosa, como
des nocivas que provocaram a doença74. soro, pois os Warao acreditavam que esse pro-
cesso poderia diluir o sangue do paciente – e o
O sistema médico Warao identifica 64 tipos de sangue é considerado a essência da saúde78. Até
doenças ou transtornos que requerem cuidados a década de 1970, havia também grande resis-
médicos, cada um com um nome particular e com tência às vacinas que produziam reações febris
uma especialidade xamânica ou fitoterápica que após serem administradas, pois a febre, tradicio-
os trata. Nesse sistema, as enfermidades se sub- nalmente, estava associada à morte de crianças.
dividem em febris, respiratórias, gastrointestinais Desde a década de 1990, com exceção do des-
e dermatológicas. Quando um paciente apresen- conforto referente à ginecologia, os conflitos en-
ta alguma dessas doenças, o protocolo médico tre a concepção biomédica e o sistema médico
Warao estabelece que o diagnóstico seja realiza- Warao teriam sido amplamente dissipados.
do pelos xamãs, a fim de determinar ou descartar
se o elemento patológico é de ordem sobrena- Aqui no Brasil, no entanto, na direção do que foi
tural. Caso concluam que a doença não tem ori- recém-descrito, os casos de recusa à hospitaliza-
gem sobrenatural, encaminham o paciente para ção se tornaram recorrentes, mesmo diante de
uma das fitoterapeutas da comunidade, ou então, problemas de saúde extremos, como membros
quando se trata de doença atribuída ao mundo quebrados, pneumonia ou tuberculose. Os pro-
não indígena, recorrem à biomedicina75. Trata-se, fissionais de saúde e outros agentes do Estado
portanto, de uma complexidade de saberes, as- veem tais recusas como negligência dos indíge-
semelhando-se às especialidades que compõem nas para com seu próprio bem-estar ou para com
o sistema biomédico. o bem-estar de seus filhos, o que os leva a consi-
derar, algumas vezes, a possibilidade de judiciali-
A biomedicina chegou até os Warao no final de zação ou internação compulsória.
1930, por meio dos missionários capuchinos.
Naquele momento, os indígenas já atribuíam uma Por um lado, as recusas ocorrem em virtude do
série de doenças ao mundo criollo, de modo que protocolo médico Warao, que implica uma se-
lhes parecia óbvio que, entre esses últimos, tam- quência de procedimentos realizados dentro do
bém existissem curandeiros (médicos) capazes sistema médico indígena, para somente depois,
79. A fim de melhorar a comunicação entre, de um lado, os indígenas Warao e Eñepa, refugiados e migrantes
provenientes da Venezuela, e, de outro, os trabalhadores da saúde pública no Brasil, o ACNUR desenvolveu a cartilha
multilíngue Comunicação sobre saúde com indígenas Warao e Eñepa, que pode ser acessada em: https://www.acnur.
org/portugues/wp-content/uploads/2020/05/Cartilha-Sa%C3%BAde-Ind%C3%ADgena-Online.pdf.
54 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
CASO #2
Uma mulher com cerca de 30 anos, poucos meses após ter um filho, foi levada para uma unidade
de saúde, onde foi atendida por um profissional do sexo masculino. Sem que lhe explicassem o
motivo da ida para o hospital, nem lhe consultassem sobre as intervenções em seu corpo, ela teve
uma amostra de sangue coletada e recebeu uma injeção. Ambos os procedimentos foram realizados
sem esclarecimento prévio e consentimento. Após a aplicação da injeção, ela foi informada de
que deveria retornar em três meses para receber outra dose, pois se tratava de anticoncepcional
injetável. Ela relata que não queria ter recebido a “vacina”, mas que sua vontade não foi considerada.
De janeiro de 2017 a dezembro de 2020, foram re- diante da confirmação desses diagnósticos, inter-
gistrados 102 óbitos de pessoas Warao no Brasil, pretam os sintomas a partir de outro modelo de
20,6% dos quais provocados por pneumonia, compreensão e ação, o xamanismo.
8,8% por tuberculose e 7,8% por Covid-19. Por sua
vez, 17,5% das causas mortis são desconhecidas, Temos relatos de situações em que, diante de
levantando a suspeita de subnotificação para do- uma radiografia torácica com a indicação de
enças recorrentes. Dentre as 21 mortes resultan- pneumonia, a família interpretou as manchas en-
tes de pneumonia, 16 ocorreram entre crianças; contradas no pulmão como uma fumaça que con-
por sua vez, entre os adultos, houve maior inci- firmava a existência de daño. Tratando-se de daño,
dência de tuberculose, com cinco casos, enquan- o tratamento seria realizado por um dos “médicos
to a Covid-19 acometeu mais idosos, com quatro Warao”, ou seja, um de seus xamãs; somente após
casos. Além desses quatro casos confirmados de passar pelo tratamento xamânico o paciente po-
Covid-19, houve outros três suspeitos, dois deles deria ser encaminhado ao hospital. Ocorre, porém,
também entre idosos. que alguns casos são graves, e o tempo dedicado
à realização do tratamento xamânico pode agravar
Quadro 3 – Causas de mortalidade ainda mais o quadro clínico. Por isso, é importante
entre os Warao no Brasil que as equipes de saúde, junto com as equipes de
assistência social, estabeleçam um diálogo com
CAUSA DO ÓBITTO FREQUÊNCIA % a família, de modo a negociar a possibilidade de
Pneumonia 21 20,6
internação imediata mediante a continuidade da
atuação do xamã no espaço hospitalar.
Causa desconhecida 18 17,5
Tuberculose 9 8,8 Sabemos de casos em que esse diálogo foi bem
Covid-19 8 7,8 sucedido, possibilitando a realização simultâ-
nea de ambos os tratamentos. Nessas ocasiões,
Choque séptico 7 6,9
também é importante a presença de intérpretes
Morte súbita 4 3,9 warao-espanhol e espanhol-português, para au-
Câncer 4 3,9 xiliarem na comunicação entre os indígenas e
Sarampo 3 2,9 os profissionais da saúde. Um dos motivos pelos
quais os Warao recusam a internação é o fato de
Asfixia 3 2,9
o hospital se afigurar como um local tão distante
Natimorto 3 2,9 do sistema médico próprio, implicando ruptura de
Suspeita de Covid-19 3 2,9 suas práticas de cuidado.
Parada cardiorrespiratória 2 2,0
Meningite 2 2,0
Capacitação em saúde comunitária
AVC 2 2,0
Desnutrição 2 2,0 Com o objetivo de garantir o monitoramento e o acesso
efetivo à saúde pelas populações indígenas acolhidas
Falecimento durante o parto 2 2,0
em Manaus (Amazonas), o ACNUR e o Instituto Mana, em
Complicações em cirurgia 1 1,0 parceria com a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência
Traumatismo cranioencefálico 1 1,0 Social e Cidadania (SEMASC) e a Agência Adventista de
Causas naturais 1 1,0 Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), ofer-
taram um ciclo de capacitação a 16 indígenas Warao, para
Falência múltipla dos órgãos 1 1,0
atuação como Promotores Indígenas de Saúde Comunitária,
Hipertensão 1 1,0 auxiliando de forma voluntária a comunidade indígena
Catapora 1 1,0 refugiada em assuntos relacionados à saúde. Ao longo de
Complicações cardíacas 1 1,0 cinco sessões, que contabilizaram 20 horas de capacita-
ção, o grupo recebeu orientações gerais sobre a atenção
Diabetes 1 1,0
básica e sobre como monitorar a saúde nos abrigos para
Leucemia 1 1,0 prevenção e acompanhamento de doenças, em atuação
Total 102 100,0 semelhante à dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e dos
Fonte: ACNUR (2020) Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN), que atuam em
comunidades indígenas brasileiras. Os principais objetivos
Como vimos, entre os Warao, o processo de ado- da iniciativa foram: i) estimular a capacidade de mobilização
ecimento tende a ser atribuído à ação de xamãs. comunitária dos participantes; ii) informar sobre o acesso
Doenças como pneumonia, tuberculose e mesmo e os fluxos do Sistema Único de Saúde (SUS); e (iii) reali-
Covid-19 costumam ser definidas como daño, mal zar monitoramento de saúde dos residentes do abrigo. O
de ojo (para as crianças) ou, com menor frequ- ciclo de capacitações, para além do apoio à comunidade,
ência, hebu, exigindo a realização de tratamento apoiou os participantes em sua inserção laboral: com base
xamânico. Isso não significa, porém, que os indí- no conhecimento técnico adquirido e na experiência de-
genas neguem a existência dessas doenças. Eles senvolvida nos acolhimentos, parte dos participantes foi
sabem o que é pneumonia, assim como sabem contratada para atuar na temática da saúde comunitária.
que vivemos uma pandemia de Covid-19, mas,
56 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
A busca pelo diálogo intercultural também deve avaliação/classificação, realizado em sua língua
ocorrer com as famílias convertidas ao neopen- materna, podendo ser matriculado no ano, série
tecostalismo, que, algumas vezes, recorrem à fé ou etapa em acordo com seu desenvolvimento e
cristã para restabelecer a saúde. Sem construir faixa etária. A resolução estabelece ainda que as
um diálogo intercultural na busca pela cura, não escolas adotem procedimentos de acolhimento a
caminharemos para estabelecer uma articulação esses estudantes, com base na não discrimina-
entre a medicina indígena e o sistema oficial de ção; na prevenção de bullying, racismo e xeno-
saúde, e, consequentemente, não teremos ferra- fobia; na valorização da cultura do estudante não
mentas para evitar outras mortes. Considerar o brasileiro; no ensino de português como língua
ponto de vista indígena é fundamental, não so- de acolhimento; e na formação de classes co-
mente para diminuirmos a assimetria de poder muns (brasileiros e estrangeiros). Sobre esse últi-
entre os diferentes saberes médicos, mas tam- mo ponto, deve-se notar que a legislação relativa
bém para evitar que operemos com base em es- à educação escolar indígena prevê a existência
tereótipos e preconceitos, que tornarão qualquer de escolas exclusivas ou que atendam exclusiva-
proposta de atuação ineficaz. mente ao público indígena, demonstrando que
alguns dos preceitos recomendados aos refugia-
Na seção seguinte, ainda tendo a interculturalida- dos e migrantes colidem com as orientações da
de como horizonte, falaremos sobre os desafios educação escolar indígena.
para a implementação da educação escolar indí-
gena para as crianças e jovens Warao no Brasil. Os Warao, como bem sabemos, além de estarem
na condição de pessoas refugiadas ou migrantes,
3.5. Educação indígena: são indígenas; por isso, têm direito à educação
ensino multilíngue e práticas diferenciada, intercultural e bi/multilíngue, asse-
gurado por legislações nacionais e tratados inter-
culturais em áreas urbanas nacionais. Nesse aspecto, assim como ocorre na
atenção à saúde diferenciada, eles se deparam
Como vimos anteriormente, a Constituição com desafios semelhantes àqueles enfrentados
Federal de 1988, em seu artigo 5º, estabelece pelos demais indígenas em contexto urbano no
que não há distinção entre brasileiros e estran- Brasil, historicamente desassistidos pela política
geiros residentes em nosso país no que toca aos indigenista, permanecendo fora da escola ou ten-
direitos fundamentais. O direito a educação, saú- do de ingressar na rede regular de ensino.
de, moradia, trabalho etc. será garantido a todos,
sem distinção, tratando-se de brasileiro, refugia- A Constituição Federal, além dos princípios edu-
do ou migrante. No que toca à educação, a Lei do cacionais dirigidos a toda a sociedade brasileira
Refúgio (Lei nº 9.474/1997) determina que o pro- – tais como igualdade de condições no acesso e
cesso de validação de diplomas e de ingresso em permanência escolar, liberdade na aprendizagem
instituições educacionais seja facilitado para os e ensino, pluralidade de ideias e concepções pe-
refugiados, tendo em conta a situação desfavo- dagógicas, e gratuidade no ensino –, em seu ar-
rável por eles vivenciada. A Lei de Migração (Lei tigo 210, assegura às comunidades indígenas o
nº 13.445/2017), por sua vez, reafirma o direito do uso de suas línguas maternas e de seus proces-
migrante de acesso igualitário e livre à educação sos próprios de aprendizagem.
pública, sendo vedada a discriminação em razão
da nacionalidade e da condição migratória. O artigo 78 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB - Lei nº 9.394/1996)
Mais recentemente, temos a Resolução nº preconiza o desenvolvimento de “programas in-
01/2020 do Ministério da Educação (MEC), que tegrados de ensino e pesquisa, para oferta de
“dispõe sobre o direito de matrícula de crianças educação escolar bilíngue e intercultural aos
e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas povos indígenas”, tendo em vista a reafirmação
e solicitantes de refúgio no sistema público de da identidade étnica, a valorização das línguas e
ensino brasileiro”80. A resolução determina que saberes, e a garantia de acesso a informações,
seja dispensado o requisito de documentação conhecimentos técnicos e científicos da socie-
comprobatória de escolaridade anterior, estabe- dade nacional e de outras sociedades, indígenas
lecendo que a matrícula seja facilitada, em virtude ou não. Ele postula, portanto, que a educação es-
da condição de vulnerabilidade. Ausente a docu- colar para os povos indígenas seja intercultural e
mentação comprobatória da escolaridade ante- bilíngue. Já em seu artigo 79, a LDB estabelece
rior, o estudante terá direito a um processo de que a União apoiará técnica e financeiramente os
programas de educação intercultural, que serão
80. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 01, incluídos no Plano Nacional de Educação (PNE)
de 13 de novembro de 2020. Dispõe sobre o direito e deverão ser planejados com a participação das
de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, comunidades indígenas, a fim de:
refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema
público de ensino brasileiro. Disponível em: https://www. I – fortalecer as práticas socioculturais e a
in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-1-de-13-de-novembro- língua materna de cada comunidade indígena;
de-2020-288317152. Acesso em: 22 nov. 2020.
57
Podemos considerar também o Parecer CNE/ anos, para o Ensino Médio. As crianças de 0 a 3
CEB n° 14/2011 e a Resolução CNE/CEB nº 3/2012. anos, por sua vez, poderiam estar vinculadas a
Essa última “define diretrizes para o atendimen- berçários e creches municipais.
to de educação escolar para populações em si-
tuação de itinerância”82. Conforme o documento, Quadro 4 – Distribuição etária da
crianças, adolescentes e jovens em situação de população Warao em Manaus
itinerância são “aquelas pertencentes a grupos
sociais que vivem em tal condição por motivos FAIXA ETÁRIA FREQUÊNCIA %
culturais, políticos, econômicos, de saúde, tais
0 a 4 anos 149 19,2
como ciganos, indígenas83, povos nômades, tra-
balhadores itinerantes, acampados, circenses, 5 a 9 anos 116 14,9
artistas e/ou trabalhadores de parques de diver- 10 a 14 anos 87 11,2
são, de teatro mambembe, dentre outros” (artigo 15 a 19 anos 84 10,8
1º, grifo nosso). Os sistemas de ensino deverão
20 a 24 anos 90 11,6
se adequar às particularidades desses estudan-
tes, assegurando sua matrícula “sem a imposição 25 a 29 anos 61 7,8
de qualquer forma de embaraço, preconceito e/ 30 a 34 anos 46 5,9
ou qualquer forma de discriminação, pois se trata 35 a 39 anos 39 5,0
de direito fundamental, mediante autodeclaração
ou declaração do responsável” (artigo 3º). Diante 40 a 44 anos 35 4,5
da ausência de documentação comprobatória da 45 a 49 anos 14 1,8
escolaridade anterior, a instituição de ensino re- 50 a 54 anos 14 1,8
alizará um diagnóstico de suas necessidades de
55 a 59 anos 10 1,3
aprendizagem, inserindo o estudante no agrupa-
mento correspondente aos seus pares de idade. 60 a 64 anos 13 1,7
No ambiente escolar, deverá ser garantido “o 65 a 69 anos 9 1,2
respeito às particularidades culturais, regionais, 70 a 74 anos 3 0,4
religiosas, étnicas e raciais dos estudantes em
75 a 79 anos 2 0,3
situação de itinerância, bem como o tratamento
pedagógico, ético e não discriminatório, na forma 80 anos ou mais 2 0,3
da lei” (artigo 9º). Sem resposta 4 0,5
Total 778 100,0
No Brasil, tomando-se como exemplo o que se ob-
Fonte: MPF (2019)
servou em Manaus, por meio de dados coletados
pelo MPF84, com apoio do ACNUR e do Instituto Em dezembro de 2020, os dados do ProGress
Mana, entre os meses de agosto e setembro de (plataforma de registro do ACNUR) indicavam a
2019, nota-se uma presença expressiva de crian- presença de 3.344 indígenas Warao no Brasil, dos
ças e adolescentes em idade escolar obrigatória quais 667 (20%) eram crianças com idade entre 5
(dos 4 aos 17 anos). Na ocasião do levantamen- e 11 anos, e 441 (13%), adolescentes com idade de
to, cerca de 56% da população estaria dentro 12 a 17 anos. Ou seja, havia cerca de 1.100 pes-
dos ciclos etários estabelecidos para o ingresso soas em idade escolar obrigatória. Crianças com
na Educação Infantil (4 anos completos até 31 de idade de 0 a 4 anos somavam 506 (15%) pessoas,
março do ano letivo), no Ensino Fundamental (6 que também poderiam estar vinculadas a institui-
anos completos até a mesma data) e no Ensino ções de Educação Infantil, embora, como já dito,
Médio (não há idade mínima, mas se espera que até os 4 anos não haja obrigatoriedade.
o estudante chegue à fase com 15 anos). Pessoas
com idade igual ou superior a 15 anos poderiam, De todo modo, destaca-se que a etapa de
ainda, ingressar na Educação de Jovens e Adultos Educação Infantil para os povos indígenas não
(EJA) para o Ensino Fundamental, e, a partir de 18 pode ser obrigatória, tendo em vista o direito à
utilização da língua materna e de processos pró-
prios de aprendizagem, assegurado pelo artigo
82. BRASIL. Conselho Nacional de Educação; BRASIL. 210 da Constituição Federal, bem como o respei-
Câmera de Educação Básica. Resolução CNE/CEB to à autonomia dos povos indígenas na escolha
nº 3, de 16 de maio de 2012. Define diretrizes para o dos modos de educação de suas crianças (de 0
atendimento de educação escolar para populações em a 5 anos), como preconiza a Resolução CNE/CEB
situação de itinerância. Disponível em: bit.ly/37IrGn8 nº 5/200985. Diante do interesse das famílias,
Acesso em: 25 nov. 2020. contudo, caberia ao Estado promover a educação
83. Observe-se que, embora o Parecer CNE/CEB n°
14/2011 e a Resolução CNE/CEB nº 3/2012 apliquem-se
também a povos nômades, no caso dos Warao, esses 85. BRASIL. Conselho Nacional da Educação; Câmara
documentos são acionados a partir da condição indígena, de Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 5, de 17
pois, como já esclarecemos, o intenso processo de de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares
mobilidade dessa população não configura nomadismo. Nacionais para a Educação Infantil. Disponível em: bit.
84. Ver Moutinho (2019). ly/3aMZKkb. Acesso em: 24 nov. 2020.
59
tal como determinam a Constituição Federal, as educacional que melhor se adeque ao grupo.
legislações complementares e as diretrizes orien- Lembramos, mais uma vez, que a participação
tadoras da educação escolar para indígenas, re- dos indígenas é assegurada pela legislação na-
fugiados e migrantes. cional e por tratados internacionais sobre o tema.
Esse levantamento feito em Manaus identificou No Brasil, temos identificado que muitas famílias
que, entre as 778 pessoas entrevistadas, 218 indígenas não se opõem à inclusão das crianças
(28%) não possuíam qualquer grau de escolarida- e dos adolescentes na rede regular de ensino,
de, ao passo que 128 (16,5%) estariam abaixo da tanto que em algumas cidades houve matrículas
idade escolar. Considerando-se as estatísticas à na Educação Infantil e no Ensino Fundamental.
luz das experiências etnográficas com os Warao, Porém, elas enfatizam que as dificuldades decor-
pode-se afirmar, com elevado grau de seguran- rentes da comunicação em outra língua geram
ça, que se somariam, portanto, 346 pessoas que evasão escolar. Ao mesmo tempo, porém, em que
não frequentaram instituição de ensino. Ainda no concordam com a matrícula na rede regular, de-
universo abarcado pela pesquisa, 22 pessoas mandam a contratação de professores indígenas
(2,8%) teriam cursado um dos três níveis da edu- que possam atuar como mediadores entre a lín-
cação pré-escolar, 212 (32,2%) estudaram até um gua materna e o português. Isso nos mostra, por-
dos seis graus da educação primária e 39 (5%) tanto, a importância de pensarmos a adequação
até o sexto grau; 111 pessoas (14,2%) cursaram até do serviço educacional a fim de que os indígenas
um dos seis níveis da educação média; e apenas não fiquem à margem do processo de ensino e
12 pessoas (1,5%) ingressaram na universidade, aprendizagem e, tampouco, que a escolarização
sendo que somente 8 (1%) concluíram o curso; desrespeite seu direito à manutenção da língua,
36 pessoas (4,6%) não informaram seu grau de de seu modo de vida e de sua organização social.
escolaridade86. Observe-se que cerca de 80%
dos entrevistados correspondem a pessoas que
não acessaram o sistema educacional ou cursa-
ram parcialmente a educação básica, suscitando
a hipótese de que a ampla maioria da população
Warao no Brasil, no que toca às habilidades de As crianças podem estudar, podem seguir na
leitura e escrita, apresenta um índice elevado escola em português, mas não compreendem,
de analfabetismo. Os dados do ProGress, por e é muito complicado, porque não entendem,
sua vez, indicam que, dentre os 3.344 indígenas mas podem estudar, eu gostaria…
Warao no Brasil, aproximadamente 1.300 (39%) Na Venezuela, eram as duas coisas, espanhol e warao.
nunca frequentaram a escola. Estudavam um dia warao e no outro dia espanhol. Era
assim, aprendiam rápido, porque do warao traduziam para
Diante disso, recomenda-se que cada município o espanhol e do espanhol para o warao, as duas coisas.
realize diagnósticos a fim de conhecer o nível Na Venezuela, era assim, mas, aqui no Brasil, a escola
de escolaridade e as experiências educacio- está só em português. Entre os Warao, há professores
nais prévias dos Warao, para, juntamente com a também. Será que o governo não quer contratar os Warao
realização da consulta sobre as expectativas e para dar aula? Não sei como podemos fazer para contratar
os anseios da população, definir uma proposta um professor Warao para dar aula para as crianças. Nós
estamos tentando, porque na escola [no Brasil] deveria ser
assim também, ter um professor Warao para traduzir. Se as
86. Moutinho (2019, p. 11), esclarece que: “De acordo pessoas não entendem em português, ele explica em warao.
com a Lei Orgânica de Educação, o sistema educacional
na Venezuela está estruturado em dois subsistemas: Homem, 35 anos, vivendo em Recife
a educação básica e a educação universitária. O (Pernambuco), em 23 novembro de 2020)
subsistema de educação básica, por sua vez, está *Tradução própria
estruturado nos níveis de educação inicial, educação
primária e educação média. A educação inicial abarca as
etapas de maternal (0 a 3 anos) e pré-escolar (4 a 6 anos).
A educação primária, por sua vez, compreende seis anos,
denominados “graus”, do 1º ao 6º (7 a 12 anos), e conduz
à obtenção do certificado de educação primária. Já a
educação média apresenta duas opções de formação: a
educação média geral, com duração de cinco anos, do 1º
ao 5º (13 a 17 anos), que possibilita o título de “bacharel”;
e a educação média técnica, com duração de seis
anos, do 1º a 6º (13 a 18 anos), que conduz ao título de
“técnico médio”. O subsistema de educação universitária
compreende a formação profissional (18 a 21 anos), com
certificação de técnico superior universitário; a graduação
(17 a 22 anos) e a pós-graduação (especialização,
mestrado, doutorado e pós-doutorado)”.
60 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
Além dos problemas decorrentes da barreira lin- iniciativas de educação informal com o objetivo
guística, a permanência das crianças na escola de promover o letramento em português. Essas
é afetada pela frequência dos deslocamentos iniciativas, geralmente, resultam de parcerias en-
realizados pela família, o que nos mostra que a tre as secretarias municipais de educação, uni-
efetividade do direito à educação está atrelada versidades e organizações da sociedade civil.
à construção de uma política de inclusão social
e de estratégias de geração de renda, a fim de Como se nota, entre os indígenas, a demanda
que essas famílias não precisem realizar novas pelo ensino de português vem acompanhada
viagens em busca de meios para sua sobrevi- pela preocupação com uma educação diferencia-
vência. Destacamos, porém, que, apesar da par- da, intercultural e multilíngue, de modo a assegu-
ticularidade do contexto da mobilidade Warao, rar a continuidade da língua materna e também
algumas iniciativas de educação diferenciada, do espanhol. Eles querem que as crianças e os
intercultural e multilíngue foram implementadas. adolescentes estudem, porém, sinalizam que
Um exemplo é o projeto denominado “Saberes essa demanda não será suprida por sua inclusão
da EJA-Warao”, que conjuga conhecimentos de na rede regular de ensino – talvez, essa possibili-
educação indígena e de educação para jovens e dade sequer seja aceita por todas as famílias. Isso
adultos. O projeto, desenvolvido pela Secretaria reforça a importância da realização de consultas
de Estado de Educação do Pará (SEDUC), utili- com os indígenas residentes em cada cidade
za metodologias transdisciplinares, divididas por para conhecer os desejos e anseios dos grupos
áreas de conhecimento e trabalhadas de forma e, com a sua participação, pensar a construção
trilíngue (warao-espanhol-português), para a al- dos projetos político-pedagógicos e a adequação
fabetização e letramento de jovens e adultos de alguns parâmetros, como reclassificação es-
Warao. O corpo docente é formado por dois pro- colar, flexibilização dos tempos/dias letivos, docu-
fessores de língua portuguesa com habilitação mentação exigida e conteúdos requeridos, entre
em espanhol, e dois educadores da língua ma- outros que se fizerem necessários.
terna warao. As aulas são ministradas em uma
escola da rede estadual de ensino e atendem Preconiza-se, acima de tudo, que o ambiente
indígenas a partir de 11 anos de idade, já tendo escolar se paute no princípio de acolhimento,
formado mais de uma turma87. cultivando essa prática entre todos os sujeitos
da comunidade educativa (estudantes, familia-
Ocorrem, ainda, inúmeras iniciativas de educação res, professores, servidores etc.). A Educação
informal nos espaços de abrigamento, sobretudo Básica, como postula a Resolução CNE/CEB nº
direcionadas às crianças, como atividades de 4/2010, deve considerar a inseparabilidade das
aproximação linguística, desenvolvimento psico- dimensões de educar e cuidar, sendo o cuidado
motor e ambientação à rotina escolar. Para jo- relacionado ao acolhimento de todos (crianças,
vens e adultos, em algumas cidades, também há adolescentes, jovens e adultos), com respeito e
atenção adequada às especificidades, seja em Muitas vezes, contudo, o acesso aos programas
virtude da defasagem na relação idade-escolari- e benefícios sociais é impedido pela ausência da
dade, da existência de alguma deficiência ou da documentação civil básica e do Cadastro Único
condição étnico-racial88. (CadÚnico), usado pelo governo federal como
base para a seleção dos beneficiários de deter-
Diante da inclusão de crianças e adolescentes minados programas. O CadÚnico reúne um con-
Warao na rede regular de ensino mediante a junto de informações sobre famílias em situação
concordância da família, recomenda-se aos pro- de pobreza e extrema pobreza, podendo ser
fessores e gestores das escolas que façam uma cadastrados os núcleos familiares que recebem
abordagem positiva sobre a presença de estu- até meio salário mínimo por pessoa ou com ren-
dantes indígenas, refugiados e migrantes na sala da total de até três salários mínimos. A inscrição
de aula. No caso Warao, muitas crianças e ado- é realizada nos CRAS dos munícipios; o respon-
lescentes sequer têm alguma experiência prévia sável pela família, preferencialmente a mulher,
de educação, e quando a têm, deve-se levar em que deve morar na mesma casa que os demais
consideração que se trata de uma dinâmica esco- e ter no mínimo 16 anos, responderá as pergun-
lar diferente, de modo que levarão algum tempo tas do cadastro e apresentará pelo menos um
para se adaptarem à nova rotina89. A escola, por- documento de todas os dependentes, devendo
tanto, deve ser um espaço de acolhimento para atualizar o cadastro sempre que houver mu-
essas crianças e adolescentes indígenas refugia- danças na composição familiar, no endereço ou
dos e migrantes, contribuindo para sua proteção na condição de trabalho. Mesmo que não haja
e a inclusão social. mudanças, a cada dois anos, obrigatoriamente,
o cadastro precisa ser confirmado. Logo, a do-
Na seção seguinte, que encerra esta publicação, cumentação civil básica (CPF, certidão de nasci-
falaremos sobre a satisfação das necessidades mento ou CTPS) é um condicionante para que os
básicas e a geração de renda como estratégia de Warao acessem os direitos sociais que lhes são
autonomia para a população Warao no Brasil. assegurados. Por isso, deve ser garantida pelo
Estado com celeridade para que, acessando os
3.6 Satisfação das necessidades programas sociais, possam satisfazer algumas
básicas e geração de renda como de suas necessidades básicas.
estratégia de autonomia no Brasil Além do impedimento de acesso decorrente da
falta de documentação e da morosidade para a
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo realização das inscrições no CadÚnico por parte
5º, a Lei nº 9.474/1997 (Lei do Refúgio), em seus das equipes de assistência social dos municípios,
artigos 5º e 22, bem como a Lei nº 13.445/2017 em função das constantes mudanças de cidade e
(Lei de Migração), em seu artigo 4º, garantem aos do desconhecimento das regras para atualização
estrangeiros residentes em nosso país condição e confirmação do castrado no PBF, é comum que
de igualdade com os nacionais no que toca aos o benefício seja bloqueado, suspenso ou cance-
direitos fundamentais. A Lei de Migração asse- lado. Para que consigam verificar a situação, os
gura ainda, no inciso VIII do mesmo artigo, o indígenas precisam se dirigir a um equipamento
“acesso a serviços públicos de saúde e de assis- de assistência social na cidade onde residem no
tência social e à previdência social, nos termos momento. Porém, em virtude da falta de conheci-
da lei, sem discriminação da nacionalidade e da mento sobre esses procedimentos e da barreira
condição migratória”. Isso significa, portanto, linguística, a maioria deles não consegue realizar
que pessoas refugiadas reconhecidas, solicitan- os encaminhamentos de maneira autônoma.
tes da condição de refugiadas e migrantes, in-
dependentemente de seu status legal, possuem
os mesmos direitos que os brasileiros para o
acesso aos programas e benefícios sociais do
governo federal, como o Programa Bolsa Família
(PBF) e o Benefício de Prestação Continuada
(BPC). No contexto da pandemia da Covid-19, as-
sim como os brasileiros, os estrangeiros residen-
tes em nosso país obtiveram o direito ao auxílio
emergencial instituído pela Lei nº 13.982/2020,
regulamentada pelo Decreto nº 10.316/2020.
88. BRASIL. Conselho Nacional da Educação; Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 junho de
2010. Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica. Disponível em: http://www.crmariocovas.
sp.gov.br/Downloads/ccs/concurso_2013/PDFs/resol_federal_04_14.pdf. Acesso em: 26 nov. 2020.
89. Para maiores orientações sobre o acolhimento de estudantes migrantes e refugiados no ambiente escolar, recomendamos
a leitura do documento Estudantes imigrantes: acolhimento, elaborado pelo Governo do Estado de São Paulo.
62 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
90. Pessoas refugiadas e migrantes, sem distinção de nacionalidade, encontraram dificuldades para o recebimento
do auxílio emergencial nas agências da CEF, de modo que, no dia 6 de maio de 2020, a DPU em São Paulo ajuizou
uma ação civil pública (ACP) com pedido de tutela de urgência contra a CEF e o Banco Central do Brasil (Bacen), para
que, independentemente da situação migratória, o pagamento fosse realizado mediante a apresentação de qualquer
documento de identidade, mesmo que estivesse fora do prazo de validade. Os Warao, em muitas cidades, utilizaram-
se do Ofício Circular nº 3578466/2020 da DPU de São Paulo para que o pagamento do recurso ocorresse. No
documento, a DPU esclarece que os estrangeiros residentes no Brasil, independentemente de sua situação migratória,
têm direito à assistência social, que inclui o auxílio emergencial editado pelo governo federal. Com relação aos prazos
de validade dos documentos, em outubro de 2020, por meio da Portaria nº 18 da PF, estabeleceu-se que todos os
“documentos relativos às atividades de Regularização Migratória produzidos pela Polícia Federal e expirados a partir
de 16 de março de 2020 serão aceitos e poderão ser utilizados até o dia 16 de março de 2021 para fins de ingresso ou
de registro” (artigo 2º).
63
de recursos para as famílias Warao no Brasil. A R$ 20,00 por um dia inteiro de trabalho no de-
superação dos problemas sociais decorrentes sembarque de um carregamento de cimento. No
daquilo que erroneamente se tipifica como “men- contexto atual, em que vivemos uma crise da
dicância”, portanto, só será possível por meio da sociedade salarial, a desinstitucionalização do
criação de mecanismos voltados à inserção labo- trabalho, o afrouxamento de leis trabalhistas e
ral desses indígenas e da criação de alternativas o desmonte do Estado, a fragilidade desse refu-
para a geração de renda, que possam considerar giado se acentua ainda mais. Logo, o estímulo ao
as múltiplas ocupações experimentadas por eles. trabalho informal não pode, em hipótese alguma,
constituir-se como uma política de governo.
Para conhecermos as experiências de trabalho an-
teriores ao contexto de deslocamento, bem como A partir da realização de levantamentos voltados
identificar as possibilidades de inclusão socioe- à identificação das experiências prévias, bem
conômica da população Warao, é importante que como dos atuais desejos e anseios dessa popula-
sejam feitos levantamentos do perfil laboral, como, ção, poderão ser pensados cursos de capacitação
por exemplo, os realizados pelo MPF (com apoio profissional e iniciativas que melhor se adequem
do ACNUR e do Instituto Mana) em Manaus, e pelo às demandas dos indígenas. Somando-se a isso,
ACNUR em Ananindeua, Belém e Santarém. Como além das aulas de português, é preciso que haja
vimos no primeiro capítulo, o levantamento com espaços com orientações sobre os direitos tra-
indígenas vivendo no Brasil verificou que, quando balhistas, tendo em vista as diferenças entre as
moravam na Venezuela, predominavam as moda- legislações de ambos os países e a importância
lidades de trabalho realizadas no contexto das co- da redução dos riscos de exploração do trabalho
munidades, o artesanato, a agricultura e a pesca. e de situações análogas à escravidão.
Nas cidades brasileiras, porém, os Warao se jun-
tam aos trabalhadores urbanos que, diariamente, A falta de conhecimento sobre os direitos traba-
deparam-se com a falta de vagas e com a inade- lhistas, acrescida pela condição de vulnerabilidade
quação de seus perfis profissionais, tendo em vista social em que se encontram, gera situações como
a necessidade de qualificação e experiências an- a descrita a seguir, em que os indígenas se subme-
teriores, assim como de domínio do português, e o tiam a jornadas de trabalho de até 14 horas, incluin-
fato de, muitas vezes, não disporem de CTPS. do domingos e feriados, sem receberem hora extra
nem as verbas rescisórias, por ocasião da demissão.
A celeridade na emissão da documentação civil Reitera-se que a Constituição Federal, assim como
básica, como se nota, é fundamental tanto para a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), asseguram a
potencializar as chances de inserção laboral des- inviolabilidade dos direitos fundamentais e a garan-
ses sujeitos como para garantir sua proteção, tia de cumprimento de obrigações trabalhistas aos
tendo em vista que os riscos da informalidade no migrantes e refugiados residentes em nosso país,
mundo do trabalho podem colocar esses indiví- sem qualquer distinção de nacionalidade.
duos, que já estão em condição de vulnerabilida-
de social, em situações que comprometam sua CASO #3
integridade física e emocional, a exemplo de ca-
sos de trabalho análogo à escravidão (experiên-
cia já vivenciada por venezuelanos em Roraima91). Um grupo de cinco indígenas Warao trabalhou durante nove
meses para o mesmo empregador, realizando funções diversas.
Além disso, contam alguns homens Warao, que Durante cinco meses, trabalharam informalmente, com uma
ao buscarem trabalho informal como vendedores jornada de trabalho que poderia se estender das 7 às 21 horas.
ambulantes de água, picolé ou outros produtos, Recebiam diária de R$ 50,00, da qual eram descontados
encontravam dificuldades para se estabelece- R$ 12,00, referentes ao almoço. Restavam-lhes R$ 38,00,
rem em um ponto (cruzamento, semáforo etc.), pagos semanalmente. Após esse ciclo de trabalho informal,
porque esses espaços já estavam ocupados por foi efetuado o registro na CTPS, quando então começaram a
brasileiros que se viam na mesma situação de de- trabalhar como auxiliares de pedreiro. Nessa ocasião, sequer
semprego e informalidade. Quando procuravam receberam uma cópia do contrato, que assinaram sem conhecer
trabalho como estivadores no porto de Manaus os termos (pois não leem em português e tampouco conhecem
ou com carga e descarga de caminhões, relata- a legislação trabalhista brasileira). Quatro meses depois,
ram alguns, não raro lhes ofereciam valores mui- com a chegada da pandemia da Covid-19, foram demitidos,
to abaixo daqueles pagos aos nacionais; por isso, recebendo apenas o valor dos dias trabalhados. Atualmente,
sentiam-se injustiçados e acabavam recusando. aguardam a decisão de um inquérito civil no Ministério Público
Um indígena conta que chegaram a lhe oferecer do Trabalho (MPT) para o recebimento das verbas rescisórias.
91. Em fevereiro e em abril de 2018, o Ministério Público do Trabalho (MPT) realizou operações de fiscalização em uma
fazenda no interior do estado de Roraima e também em uma obra nos arredores de Boa Vista. Ambas as situações,
em virtude das condições precárias em que se encontravam os trabalhadores, foram consideradas trabalho análogo
à escravidão. Ver mais em: MAGALHÃES, Ana. Medo, fome, noites ao relento e trabalho escravo: a travessia dos
venezuelanos na fronteira norte do Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2018/05/medo-fome-noites-ao-
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64 Dispositivos legais para a proteção de indígenas refugiados e migrantes
A chegada de grupos Warao em uma nova É justo dizer que o deslocamento forçado
cidade pode ser impactante. Se a constru- de povos indígenas, em virtude das par-
ção de uma resposta emergencial cultural- ticularidades étnicas dessa população,
mente adequada é, por si, desafiadora, ela suscita importantes reflexões acerca de so-
é mais ainda quando se trata de um grupo luções duradouras para esses grupos. Para
étnico que conhecemos pouco. Além disso, o ACNUR, a integração local está entre as
muitos municípios brasileiros que hoje rece- soluções duradouras à disposição dos refu-
bem o fluxo Warao nunca haviam acolhido giados, consistindo em um processo legal,
pessoas refugiadas ou migrantes; outros, econômico e sociocultural, em que essas
tampouco contam com presença indígena pessoas se preparam para se adaptarem à
em seus territórios, de modo que ainda há sociedade de acolhimento, sem que para
desafios quanto à aplicação das legislações isso tenham de renunciar à sua própria iden-
específicas referente aos direitos desses tidade cultural. Entende-se, nesse sentido,
sujeitos, seja enquanto indígenas, seja en- que o princípio da integração local direcio-
quanto pessoas refugiadas ou migrantes. nado aos indígenas deve estar alinhado
com os preceitos e garantias estabelecidos
Nesse quadro, esta publicação foi pensada pela Constituição Federal 1988. Não se trata,
para subsidiar os atores locais no atendi- portanto, de uma atuação com o objetivo de
mento à população Warao. Ao longo dos assimilar os indígenas à sociedade nacional
quatro anos em que o ACNUR acompanha por meio da homogeneização e anulação
e atua na proteção desse povo indígena das diferenças culturais. Pelo contrário, en-
refugiado e migrante, foi identificada uma tende-se que a diversidade cultural deve ser
série de desafios no atendimento a essa enaltecida. E, especialmente no que se re-
população. Partindo da experiência de cam- fere aos indígenas, destacamos a existência
po, da interlocução com indígenas, antro- de instrumentos legais que determinam o
pólogos, gestores públicos e operadores respeito e a valorização de seus costumes,
do direito, apresentamos e discutimos al- crenças, línguas, tradições e formas de or-
guns desses desafios no decorrer do texto. ganização social, de modo que quaisquer
Nossa intenção é que este material contri- processos de assimilação forçada ou des-
bua para a capacitação dos atores locais e, truição de sua cultura devem ser impedidos.
consequentemente, para a adequação do
atendimento prestado à população Warao. Preconizamos, portanto, que o atendimento
oferecido aos Warao, além de buscar suprir
Lembramos, porém, que este documento as necessidades básicas dessa população
deve operar como um guia para o aten- no que se refere a moradia, alimentação e
dimento, não substituindo o processo de saúde, deve se preocupar em promover a
ampla consulta aos indígenas, como assegu- inclusão social dos indígenas, possibilitando
rado por diplomas legais e preconizado por seu acesso a bens e serviços por meio dos
esta publicação. Apresentamos caminhos quais possam adquirir autonomia e ter uma
possíveis para diferentes aspectos do aten- vida digna. Essa inclusão social se dará por
dimento, sobretudo no que toca à dimen- meio do acesso à educação para crianças,
são jurídico-legal, mas, diante de quaisquer jovens e adultos, do ensino de português,
questões que afetem suas vidas, os indí- de cursos de qualificação profissional, de
genas devem ser consultados. Isso inclui, iniciativas de inclusão laboral e geração de
como já falamos, a definição dos acordos renda. Sabemos que é um caminho longo,
de convivência nos abrigos, das formas de mas que precisa ser iniciado.
representação política, do modelo de edu-
cação para as crianças, jovens e adultos, e
o levantamento das intenções de trabalho e
possibilidades de inclusão socioeconômica.
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