Você está na página 1de 19

A NECESSIDADE DO DESFRUTE COM A PESQUISA CIENTÍFICA

uma crítica ao método hierárquico de educação

Rafael Albuquerque

Introdução

Hoje em dia podemos dizer que a pesquisa científica dentro do Serviço Social é
bastante significativa dentro da área das Ciências Sociais e da Filosofia. O Serviço
Social bebeu destas fontes durante o processo de desenvolvimento da categoria
profissional e hoje contribui significativamente na elaboração do conhecimento
científico nestes e noutros campos.
Sobretudo após a década de 80/90, a pesquisa científica (parte fundamental da
dimensão investigativa da profissão) ganha uma importância muito maior do que no
período anterior, em que, de diferentes maneiras, predominou por 50 anos um
pensamento conservador (do surgimento do Serviço Social em 1930 até 1980). Um
elemento central para entender esta maior importância da pesquisa científica se deve ao
fato de que o Serviço Social mudou seu pensamento hegemônico, passando do
conservadorismo aberto para uma aproximação com o marxismo (e outras teorias
consideradas progressistas), que considera a relação entre teoria e prática uma unidade
dialética, ambas partes fundamentais da história humana e do próprio desenvolvimento
profissional.
Com o avanço das pós-graduações em Serviço Social desde a década de 19701,
surge um número cada vez maior de pesquisadores. Estes pesquisadores, desde sua
formação, na graduação, mestrado e nos cursos de doutorado, se inserem cada vez mais
no turbilhão das contradições próprias do sistema capital e da sua estrutura de educação.
Neste turbilhão de contradições, vemos os pesquisadores ficarem doentes,
depressivos, muitas vezes desanimados com a sua pesquisa, perdendo progressivamente
o interesse com o seu objeto de pesquisa. Aquela pesquisa científica, se em algum
momento foi instigante e o estudante desfrutava de seu processo, em muitos casos
acontece a perda do desfrute com a sua pesquisa científica. Aquilo se torna um

1
Ver A pós-praduação e a produção de conhecimento no Serviço Social brasileiro (2007). R B P G,
Brasília, v. 4, n. 8, p. 192-216, dezembro de 2007;
sacrifício, um fardo, que é levada à frente por qualquer outro motivo, mas não porque é
uma necessidade interna do indivíduo, uma curiosidade genuína.
O isolamento da sociedade, o envolvimento exclusivo com a “área acadêmica”
(impossibilitando curtir outras esferas da vida, do consumo de arte à prática de
exercícios físicos) e a perda do desfrute com a pesquisa científica, nestes casos, levam à
piora progressiva da situação de vida do indivíduo e, consequentemente, de sua saúde
mental.
Esta perda do desfrute com a vida – ou partes da vida – é um dos efeitos sob os
nossos sentimentos das contradições do sistema do capital. Consideremos, portanto,
duas esferas em que este fenômeno acontece: 1) a perda do desfrute na relação de
trabalho (a relação entre os seres humanos e a natureza) e 2) a perda do desfrute na
educação.
Neste artigo, pretendemos apontar a necessidade do desfrute com a pesquisa
científica como decorrência da importância fundamental do desfrute na nossa vida como
um todo. Estas reflexões foram feitas a partir do pensamento de Marx e de Mészáros.
Respectivamente nas obras Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e A Teoria da
Alienação em Marx.

1. A perda do desfrute na relação de trabalho

Borde o caminho, nunca traia.


A linha da morte está se tornando mais clara
Monopólio da dor, miséria ritualística.
Corte seu café da manhã em frente ao espelho.
Me experimente, você será:
Mais é tudo o que você precisa.
Você está dedicado a como eu estou matando você.
Venha rastejando mais rápido,
Obedeça seu mestre,
Sua vida queima mais rápido.
Obedeça seu mestre. Mestre.
Mestre de marionetes, estou puxando suas cordas,
Retorcendo sua mente e esmagando seus sonhos.
Cego por mim, você não consegue enxergar nada.
(Metallica – Master of Puppets)

Uma das formas que Marx descreve a consequência de uma relação de trabalho
alienada é que o indivíduo não se identifica com o processo de trabalho. O ser humano
não importa como humano, em suas potencialidades, limites, necessidades e
sentimentos. Predominantemente, através daquele processo de relações sociais, ele não
se identifica e não se realiza como pessoa, consequentemente, ele não desfruta o
processo desta determinada forma de trabalho. Na verdade, ele a sofre, uma vez que o
trabalho é percebido como um sacrifício ou fardo e o momento que se sente humano é
talvez quando termina suas horas de trabalho. Ou seja, este processo abstrai a sua
subjetividade e ele não importa como ser humano, mas apenas como trabalho. Seus
sentimentos reais humanos não importam para aquela relação, apenas a sua objetiva
capacidade de trabalho.
A consequência teórica desta constatação do ponto de vista da superação da
alienação seria, portanto, transformar as relações de trabalho e toda a forma do ser
social de tal maneira que o processo de trabalho (uma necessidade básica insuperável)
se torne um desfrute2 para os indivíduos, não um fardo ou sacrifício. Não mais.
Trabalhar para atender as verdadeiras necessidades humanas, sejam elas do estômago
ou do espírito também na própria relação de trabalho. De tal maneira que trabalhar se
tornará uma autoafirmação do nosso ser, ou seja, também uma realização pessoal.
Também um desfrute, tantos dos resultados quanto dos desafios enfrentados na relação
de trabalho.
Nesta citação, podemos ter uma ideia de como Marx concebia esta relação da
propriedade privada (e sua superação) com o desfrute humano:
“Como a propriedade privada é apenas a expressão sensitiva do fato de que o ser humano se
torna objetivo para si, ao mesmo tempo em que se torna na verdade um objeto alienado e
desumano, do fato de que a exteriorização da sua vida é a alienação da sua vida, sua realização é
a negação da sua realização, é uma realidade alienada; então a superação positiva da
propriedade privada – isto é, a apropriação sensitiva da essência humana e da vida humana,
do ser humano objetivo, das obras humanas para e através do ser humano, não apenas no
sentido de desfrutes imediatos e unilaterais, não apenas no sentido da posse, no sentido do ter. O
ser humano apropria-se de sua essência multidimensional através de um modo
multidimensional, portanto, como um ser humano total. Cada uma de suas relações humanas
com o mundo, o ver, o ouvir, o cheirar, o saborear, o perceber, o pensar, o contemplar, o sentir,
o querer, o agir, o amar, ou seja, todos os órgãos de sua individualidade – como os órgãos que
são, diretamente em suas formas, órgãos sociais – | são, no seu comportamento objetivo ou em
suas relações com o objeto, a sua própria apropriação, a apropriação da realidade humana; sua
atitude em relação ao objeto é o desencadeamento da realidade humana (ela é, portanto, tanto
mais diversificada quanto diversificadas são as determinações da essência e as atividades
humanas), da eficiência humana e do sofrimento humano, pois o sofrimento, concebido
humanamente, é um autodesfrute do ser humano” (MARX, 2005, p. 90-91, negritos nossos).3

2
Ao longo do texto, vamos mencionar desfrute como tradução livre nossa para as categorias usadas por
Marx (Genuβ) e Mészáros (enjoyment).
3
Tradução livre nossa.
Impossível imaginar uma sociedade estruturada nesta forma tão ricamente sensitiva
entre cada indivíduo e o mundo exterior a si mesmo sem o desfrute como parte essencial
do processo, tanto com suas conquistas humanas quanto com seus sofrimentos
humanos. Liberado das contradições alienantes originadas pela relação de trabalho
alienada, superando a propriedade privada, desenvolve-se uma forma de desfrute que é
variada, multidimensional e conectada com o desenvolvimento de cada órgão social
sensitivo que o indivíduo possui por natureza. Assim, uma perspectiva
economicista/mecanicista do pensamento de Marx não pode nunca compreender o papel
que, por exemplo, o amor, o desfrute e a felicidade tem na sua construção teórica.
Neste contexto, pensamos que o desfrute não é simplesmente uma mera
“consequência positiva” de uma sociedade emancipada das contradições do sistema do
capital. Na verdade, é uma peça fundamental como medida do estágio da
transformação radical. “Até que ponto as relações de trabalho se tornaram um desfrute
para os seres humanos?” é uma pergunta cuja resposta pode ser um parâmetro do
processo de superação da alienação. Não sendo, portanto, apenas o fim, o objetivo
último da transformação, mas uma necessidade constante e peça fundamental dentro do
próprio processo de superação da alienação. Assim, sendo também um meio quando a
superação da alienação é entendida como processo histórico.
Nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, ao partir do princípio de que os
sentimentos humanos, suas paixões e etc., são afirmações ontológicas da natureza (em
sua forma humana) e que estes sentimentos só existem porque os objetos, que os seres
humanos estabelecem suas relações, existem para eles como objetos de sentidos, uma
das conclusões de Marx é que: “O significado da propriedade privada – liberada de sua
alienação – é a existência de objetos essenciais para o ser humano, ambos, como objetos
de desfrute e como objetos de atividade” (apud Mészáros, p. 26, itálicos nossos).
Nesta passagem seguinte d’A Teoria da Alienação em Marx, de István Mészáros, é
possível ter uma ideia da relação entre desfrute humano real e superação da alienação no
pensamento de Mészáros:
“A gratificação humana é inconcebível em abstração do indivíduo real. Em outras palavras:
‘apropriação humana sensitiva’ ou ‘auto-confirmação’ é inconcebível sem o desfrute humano
individual. Apenas o indivíduo humano real é capaz de realizar a unidade dos opostos (vida
publica – vida privada; produção – consumo; fazer – pensar; meios – fins), sem os quais é
injustificável falar de superação da alienação. Esta unidade significa não apenas que a vida
privada tem que adquirir a consciência prática de sua integração social, mas também que a vida
pública tem que ser personalizada, isto é, se tornar o modo natural de existência do indivíduo
real; não apenas que o consumo passivo deve se transformar em consumo criativo (produtivo,
humanamente enriquecedor), mas também que a produção deve se tornar desfrute; não apenas
que o “ter” sem-sujeito e abstrato deve adquirir um ser concreto, mas também que o “sujeito
físico” ou ser físico não pode se transformar ele mesmo em um ser humano real sem “ter”, sem
adquirir a ‘habilidade não-alienada da humanidade’; não apenas que pensar a partir da abstração
deve se transformar em um pensar prático diretamente relacionado com as reais necessidades
dos seres humanos – e não imaginárias ou alienadas –, mas também que o fazer deve perder seu
caráter coercitivo inconsciente e se tornar uma atividade livre autoconsciente” (MÉSZÁROS,
2005, p. 185-186)

Muito importante enfatizar, portanto, que o consumo deve se tornar um consumo


criativo/produtivo/enriquecedor e a produção deve se tornar um desfrute. O fazer se
torna, portanto, uma atividade livre e autoconsciente e deixa de ter um caráter de
sacrifício, fardo, desmotivante de uma atividade com a qual não nos identificamos
profundamente. E não o desfrute apenas compreendido abstratamente com sua relação
com a “humanidade em geral”, mas o desfrute individual real, multilateral,
humanamente rico. O desfrute individual é, portanto, inseparável do indivíduo humano
real. Só este é possível lutar contra a alienação e superá-la. Claro que não o indivíduo
real isolado, pois para superar a alienação, os indivíduos reais precisam estar muito bem
organizados, para dizer o mínimo.
Mas, ao mesmo tempo, só com a combinação das ações organizadas dos indivíduos
reais cada vez mais autônomos é possível caminhar no sentido da superação da
alienação. A questão é que desconectados do indivíduo humano real, os termos “povo”,
“massa”, “humanidade”, “gênero humano”, “espécie humana”, “totalidade social”, etc.,
não passam de uma abstração. Só ao indivíduo humano real (nós mesmos, cada ser do
“povo” ou “humanidade”), com todos os seus limites e potencialidades, é possível
realizar a unidade dos opostos4 nas contradições alienantes do capital.

2. A perda do desfrute na educação


A perda do desfrute com a relação mais essencial com a natureza para a
sobrevivência humana (o trabalho), tem que necessariamente estender esta característica

4
A “unidade dos opostos” aqui não pode ser entendida como o anulamento dos opostos, ou a identidade
absoluta entre os opostos. Mas no sentido de uma eliminação do antagonismo dos opostos como existe no
sistema do capital (e em todas as sociedades de classes anteriores, sob formas diferentes). É o
estabelecimento prático de uma relação social em que estes opostos estão em harmonia um com o outro,
livre das contradições que se originam da propriedade privada. Mészáros, nesta passagem, não argumenta
no sentido de uma identidade entre vida pública e vida privada, ou a inexistência de uma vida privada e
uma vida pública, tudo sendo um só (inclusive, esta é uma das críticas comuns ao comunismo, agarrada à
experiência soviética, de que sua vida privada deixa de existir e tudo vira coletivo, você não tem mais
uma identidade em relação à “massa do povo”). Não é que consumo e produção vão deixar de existir ou
se tornar uma coisa só, mas esta relação vai existir predominantemente em harmonia em toda a sua
complexidade e interrelação real que elas possuem. O sistema do capital “apenas” torna esta interrelação
dialética real já existente em uma oposição conflitante.
para outras esferas da vida e estas, por sua vez, também determinam mutuamente as
relações de trabalho, pois há entre elas uma interrelação dialética. Uma destas outras
esferas atingidas pelas contradições alienantes do sistema do capital é a educação, com
seus efeitos destrutivos sob o desfrute com o processo educativo.
Algumas características do que acontece com a relação de trabalho pode nos servir
para refletir a relação de educação e de desenvolvimento intelectual. Se o pesquisador
científico não possui algum grau de identificação pessoal com o objeto, se aquela
pesquisa (em alguma medida) não se apresenta para este pesquisador como uma
necessidade interna, mas como uma imposição externa (venha de onde for do sistema
do capital), é muito difícil manter-se apaixonado pelo que se investiga. E se não estamos
de alguma maneira apaixonados pelo que pesquisamos, é muito difícil sentir que o
processo de pesquisa é um desfrute, numa relação em que os nossos sentimentos estão
abstraídos como princípio.
O processo de educação institucional do sistema do capital é fundamentado na
hierarquia entre os envolvidos (professor x aluno) e isso faz com que a tendência da
perda do desfrute seja ainda mais forte contra as aspirações do jovem pesquisador. A
relação de hierarquia dentro da relação de aprendizado é um dos potentes fatores da
perda do desfrute no processo de aprendizado em geral.
O fato de que determinada atividade é imposta por uma força externa tem um efeito
sensitivo em nós também – destrói progressivamente o que tem e o que poderia ter de
desfrute com a pesquisa científica. Quanto mais o indivíduo percebe alguma parte da
realidade objetiva como uma curiosidade genuína pessoal, quando ele compreende o
estudo daquela parte específica da realidade objetiva como uma curiosidade infantil
apaixonada, quanto mais ele se identifica com esse estudo como uma necessidade
interna, mais aquela atividade representa uma realização pessoal, mais este indivíduo
tem a possibilidade de um desenvolvimento intelectual mais complexo, porque é
instigante apesar de todas as contradições e sofrimentos. Faz ele se sentir vivo, porque é
uma afirmação do seu ser. E, além disso, mais tem condições pessoais de lutar (ou seja,
não se trata de infalibilidade) contra todas as tendências que tentam apagar seu desfrute
com a descoberta científica.
Assim, no processo de aprendizado, se há uma determinada forma de hierarquia
entre os indivíduos, e ao invés de ser combatida, a hierarquia é reafirmada e justificada
consciente ou inconscientemente como parte daquela relação, o desfrute recebe um
grande impacto para se esvair e se perder.
A relação com a produção científica é radicalmente diferente se o indivíduo se torna
cada vez mais consciente do seu processo histórico enquanto parte do processo histórico
universal da humanidade. É assim que, nos manuscritos dos seus estudos na França em
1844, Marx descreve a atividade científica consciente:
Posto que também sou cientificamente ativo, etc., uma atividade que raramente posso
realizar em comunidade imediata com outros, então sou ativo socialmente porque [o sou]
enquanto homem. Não apenas o material da minha atividade – como a própria língua na qual o
pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha própria existência é atividade social;
por isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência
de mim como um ser social. Minha consciência universal é apenas a figura teórica daquilo de
que a coletividade real, o ser social, é a figura viva, ao passo que hoje em dia a consciência
universal é uma abstração da vida efetiva e como tal se defronta hostilmente a ela. Por isso,
também a atividade da minha consciência universal – enquanto uma tal [atividade] – é minha
existência teórica enquanto ser social (MARX, 2004, p. 107).

A perspectiva emancipadora que Marx começava a consolidar nestes estudos não


faria o menor sentido se a educação de outros seres humanos significasse o
desenvolvimento de meros reprodutores do seu pensamento ou de qualquer outro
pensador, ao invés de indivíduos cada vez mais autônomos e conscientes em massa para
agir sobre a realidade concreta em movimento histórico, entendendo suas próprias
existências reais e suas atividades como atividade social. O máximo que um mero
reprodutor do seu pensamento pode conseguir é entender que o Marx encarava dessa
forma sua relação com a produção científica, mas nunca poderá realmente vivenciar
isso autonomamente como uma conquista histórica pessoal.
Neste sentido, para Mészáros, a relação de educação deve ser uma relação
profundamente anti-hierárquica. Na verdade, a grande questão é a instiga do
autodesenvolvimento, o desenvolvimento da habilidade de autoeducar-se, como forma
de enriquecimento humano individual e desenvolvimento de sua autonomia. Aqui
podemos ter uma ideia de como Mészáros enxerga o processo educacional:
“O órgão da moralidade como automediação humana em sua luta pela autorrealização é a
educação. E educação é o único órgão possível da automediação humana, porque educação –
não no sentido institucional estreito – abarca todas as atividades que podem se tornar uma
necessidade interna para o ser humano, das funções humanas mais naturais até aquelas
atividades intelectuais das mais sofisticadas. Educação é uma questão inerentemente pessoal,
interna: ninguém pode nos educar sem nossa própria participação ativa no processo. O bom
educador é alguém que inspira autoeducação. Apenas nesta relação se pode conceber a
superação da mera externalidade na totalidade das atividades de vida do ser humano – incluindo
não a total abolição, mas a transcendência crescente da legalidade externa. Mas esta superação,
por conta das condições necessárias para tal, não pode ser concebida simplesmente como um
ponto estático na história para além do qual começa a ‘era dourada’, mas apenas como um
processo permanente (continuing), com realizações qualitativamente diferentes em seus vários
estágios” (MÉSZÁROS, 2005, p. 189).
Mészáros compreende este processo de superação da mera externalidade na
totalidade das atividades da vida do ser humano (quando suas realizações não estão
conectadas com o seu ser como necessidade interna) não como um ponto estático de
virada, uma transformação total a partir de um ponto estático específico na história. A
superação da alienação é entendida, portanto, como processo contínuo e um processo
histórico que possui realizações qualitativamente diferentes em seus variados estágios.
Educação é visto aqui de uma maneira muito ampla e profunda, abarcando todas as
atividades que podem se tornar uma necessidade interna para o ser humano. E a
educação (e por isso também a educação está em crise no sistema do capital) é uma
questão inerentemente pessoal e interna no sentido de que, para alguém “nos educar”, é
preciso que tenhamos uma participação ativa no processo histórico-individual de
educação. Por isso, portanto, “o bom educador é alguém que inspira autoeducação”,
que inspira o autodesenvolvimento, que inspira, portanto, a autonomia e a originalidade.
Não um educador que inspira a dependência, reprodução e a submissão, como vemos no
processo educacional em geral como é reproduzido no sistema do capital, sob uma
concepção hierárquica de educação.
Aqui a arte pode nos auxiliar bastante a conceber a contradição que é, do ponto de
vista da educação, uma relação hierárquica e de imposição do desenvolvimento, através
de métodos muito desumanos, na tentativa de alcançar um objetivo fundamental. Dando
continuidade a uma relação contraditória entre meios e fins, nos quais os “grandiosos
fins” podem justificar os meios mais problemáticos.
O filme Whiplash nos oferece um ótimo exemplo desta contradição ao tratar do
drama entre o professor Fletcher e seus alunos no Conservatório de Música Schaffer, em
Nova York. Especialmente o drama de sua relação com o aluno Andrew Nieman.
Fletcher é um professor renomado na área da música, com importantes realizações em
sua carreira. Na escola, é muito respeitado. No entanto, um respeito que emerge através
do medo e do abalo psicológico na relação com um professor com grandes qualidades
para fazer seus alunos se desenvolverem na música, mas que é, ao mesmo tempo, um
carrasco, muito rude e arrogante com os erros e as limitações dos alunos, fazendo-os
expandir seus limites utilizando meios como a competição entre os alunos, a mentira e a
humilhação pública em sala de aula, além da violência física e psicológica.
Do filme, podemos apreender que o pano de fundo do seu método educativo tem
como alguns de seus elementos fundamentais, por exemplo:
1) O professor Fletcher é quem realmente compreende a importância do
desenvolvimento dos alunos, conseguindo enxergar a relação educativa muito para além
dos indivíduos reais, tentando contribuir para a produção de grandes obras de arte que
significariam a continuidade da vitalidade do jazz como gênero musical; enquanto os
indivíduos são apenas instrumentos para a realização desta “grande causa”;
2) A não adesão ao seu método educativo de desenvolvimento musical significa um
completo fracasso para o propósito de manter o jazz vivo, justamente por isso é que ele
considera que “o jazz está morrendo”;
3) De acordo com 1 e 2: Seu método está fundamentado em extremos absolutos,
em termos de necessidade absoluta e absoluta tragédia. Uma relação entre opostos
abstratos que pode ser definida como “tudo ou nada” – ou se adota aquela forma
apontada pelo professor Fletcher, incorporando o conjunto de sua concepção, para
desenvolver grandes obras de arte, mantendo o jazz vivo – ou absolutamente nada pode
ser conquistado do ponto de vista do desenvolvimento musical. Para ele, todas as
bandas contemporâneas de jazz somente provam seu ponto de vista. Ele não consegue
enxergar nenhum elemento significativo da produção artística contemporânea, em
acontecimento, ficando preso ao passado, aos artistas do passado como Charlie Parker e
Louis Armstrong. Um passado, por sua vez, idealizado.
4) O seu método educativo de desenvolvimento musical está contraditoriamente
cindido em relação a um processo educativo humano em geral, na medida em que
considera que, para que atinja o objetivo de um desenvolvimento de uma grande obra de
arte no jazz, está completamente justificado a adoção de meios desumanos como a
violência física e psicológica;
5) De certa forma, está blindado de críticas fundamentais, bem como da profunda
autocrítica necessária, uma vez que considera que este seu método educativo não pode
ter consequências negativas, efeitos que contradizem o objetivo inicial de desenvolver
uma grande obra de arte – pois o indivíduo que seria capaz de desenvolver uma grande
obra de arte (como Charlie Parker), por sua condição especial de grande músico em si,
não seria desestimulado por nada.
A culpa, portanto, nunca é do seu método educativo. O problema foi o tipo dos seus
alunos, o problema é que ele não encontrou nenhum indivíduo que “inexplicavelmente”
seria o próximo grande músico da geração, que não se abalaria com o seu método.
Quem se abala com ele, é porque, em si mesmo, necessariamente não é um grande
artista. Um grande artista não se abalaria jamais, ele conseguiria, apesar das
contradições, controlar sua subjetividade para continuar a praticar e a tocar cada vez
melhor.
Podemos ver isso na cena em que Fletcher e Andrew conversam no bar, já próximo
do fim do filme, depois de Fletcher ter sido expulso do Conservatório de Música
Schaffer por conta dos seus abusos psicológicos e físicos e Andrew ter desanimado e
parado de tocar bateria, quando Fletcher menciona novamente a história de “como
Parker se tornou Parker, o Bird”. Nesta transformação em grande músico, o professor
deposita uma importância fundamental a um episódio em que o jovem músico Charlie
Parker erra feio numa importante jazz session e foi humilhado publicamente pelas
risadas dos presentes e atacado fisicamente por John Jones que lhe jogou um prato de
bateria na cabeça. Parker foi para casa e chorou até dormir. Mas, para Fletcher, foi
exatamente isto que fez com que no outro dia ele praticasse mais e mais. A única outra
opção existente para Fletcher (exemplo da sua concepção fundamentada em extremos)
seria o professor menosprezar o erro, passar a mão na cabeça do pequeno aluno Parker e
ainda lhe elogiar com “bom trabalho”, foi legal. Neste contexto colocado por Fletcher, o
elogio aparece necessariamente como decadência do desenvolvimento do músico, ou
seja, é visto por Fletcher como uma “absoluta tragédia”. Por isso que considera que
“não há duas palavras mais danosas na língua inglesa do que ‘bom trabalho’”.
Para o professor, as pessoas é que não entenderam o que ele estava realizando no
Conservatório Shaffer. Ele diz que não estava lá apenas para reger e ensinar, mas para
incentivar os alunos a irem “para além do que se esperava”. Isto, através dos meios
desenvolvidos pelo professor, é uma absoluta necessidade, caso contrário, estaremos
“privando o mundo do próximo Louis Armstrong. Do próximo Charlie Parker”. O que
seria uma absoluta tragédia.
Andrew lhe questiona ironicamente se existe alguma linha de demarcação, algum
limite desta postura, para além da qual ele acaba por realizar o efeito inverso do que
pretende, ou seja, para além do qual ele acaba por desmotivar o aluno que supostamente
seria o próximo Charlie Parker da geração a se tornar um Charlie Parker. A resposta de
Fletcher é: “não, cara. Porque o próximo Charlie Parker jamais seria desmotivado”.
Assim, seu lamento é que ele na verdade nunca teve um aluno do tipo Charlie Parker.
Essa é sua tristeza. Mas ele parte do pressuposto de que tentou bastante nesse sentido, e,
assim, já fez mais do que a maioria dos professores e regentes e, por isso, nunca vai se
desculpar pela maneira como ele tentou.
6) Nestas circunstâncias, não há espaço para uma relação dialética educativa entre
professor e aluno, mas apenas uma forma educativa que é uma imposição hierárquica
daquele que domina o processo de desenvolvimento. Os efeitos negativos existem e
comentamos dois muito importantes que aparecem no filme: um dos ótimos bateristas
de sua banda, Tanner, acabou se desmotivando da música e abandonou a área para
estudar medicina, mas Fletcher não consegue enxergar a sua enorme contribuição para
que Tanner perdesse o sentimento de desfrute em tocar bateria e decidisse abandonar a
música.
Outro exemplo ainda mais grave é o caso de Sean Casey, um dos seus alunos que
desenvolveu depressão e ansiedade durante o período em que teve contato com Fletcher
e que acabou por se suicidar. Fletcher, por sinal, quando soube que seu aluno tinha
tirado a própria vida, mentiu na aula seguinte com sua banda, dizendo que foi um
acidente de carro. E ainda criou toda uma cena em que ele chorava a perda de um
grande aluno, depois de ter colocado um CD de Sean para tocar, para que a turma o
conheça, um grande músico – dando ares de um professor sensível e preocupado com a
parte humana da vida de seus alunos;
7) Apesar de suas conquistas profissionais, e do pequeno núcleo que se desenvolve
intensamente, o resultado geral do seu método educativo é a paralisia, a desmotivação, a
perda do desfrute de tocar jazz. Na sua parcela de grandes realizações, ele conquistou
uma reputação nas competições musicais de Nova York. O que o público vê é só esta
pequena elite seleta que conseguiu sobreviver a este método educativo desumano; quem
incorporou estas características na sua própria personalidade, que irá reproduzir futuros
Fletchers; quem se tornou submisso ao ponto de aceitar estes abusos físicos e
psicológicos como forma de desenvolvimento pessoal;
8) O desenvolvimento pessoal de um grande artista é encarado como um ponto de
virada, um salto, uma conversão, um ponto histórico de mudança total. Isto está
evidente na sua maneira de compreender como Charlie Parker se tornou o grande
Charlie Parker – o ponto de virada foi quando John Jones jogou um prato da bateria na
sua cabeça. Para Fletcher, depois disso foi que ele praticou o suficiente para dali há um
ano ele tocasse o melhor solo que o mundo já tinha visto;
E como não há bom caminho naquele caminho que é imposto, isto vale também
para os marxistas.
Nenhum marxista pode fugir da responsabilidade de ter que lutar contra a
hierarquia em qualquer relação social na medida em que esta questão faz parte do
cerne do pensamento de Marx. A luta pela superação da alienação é justamente o
desenvolvimento de uma relação de trabalho não-hierárquica e consequentemente toda
uma reprodução social não-hierárquica.
Assim sendo, não há porque imaginar que seria significativamente diferente a
relação se estes fundamentos do método educativo de Fletcher, por exemplo, fosse
reproduzido por um educador que se intitula de perspectiva materialista histórica
dialética (marxista). Um Fletcher “marxista” não seria muito diferente, apenas os pontos
de partida e de chegada seriam parcialmente diferentes, bem como algumas categorias
alteradas, para reproduzir a mesma problemática central de uma relação educativa
hierárquica e, portanto, necessariamente um obstáculo para o autodesenvolvimento dos
indivíduos, consequentemente, um fortalecimento da tendência à perda do desfrute com
a sua pesquisa científica.
Dentro da literatura marxista, que estes fenômenos de desânimo e depressão na vida
acadêmica aconteçam com o pesquisador por conta das instituições políticas e sociais do
sistema do capital, não é novidade, não é de se surpreender. No entanto, a situação se
complexifica quando parte das tendências que vão fazer com que o indivíduo perca o
desfrute com a sua pesquisa são compostas por correntes “marxistas” (as aspas porque
esta postura específica só pode estar em profundo desacordo com os elementos centrais
da teoria de Marx de emancipação humana).
Assim, voltemos aos elementos centrais destacados a partir da análise de Fletcher no
filme Whiplash:
Nenhum professor materialista histórico dialético poderia alegar um determinado
método educativo e de desenvolvimento pessoal como “modelo” único, sem uma
contradição em termos com o método filosófico o qual defende “politicamente”. A não
adesão a este “modelo” significaria, portanto, a explicação pela qual não se há mais
grandes obras teóricas no campo materialista histórico dialético, desconsiderando, como
Fletcher, qualquer elemento significativo nas produções científicas contemporâneas. Ou
seja, sua perspectiva se torna mais problemática quanto mais ele a fundamenta sobre
extremos absolutos, em “opostos dualísticos abstratos e rígidos”, como diz Mészáros.
Em termos muito variáveis, esta oposição é problemática, como por exemplo:
absoluta necessidade – absoluta tragédia, absoluta liberdade – absoluta escravidão,
alienação como uma totalidade inerte – superação total da alienação como ponto
histórico de virada radical da totalidade. Para Mészáros, do ponto de vista do método
filosófico, a fundamentação da realidade prática enquanto “opostos dualísticos rígidos e
abstratos” é sempre problemático. Discutindo a alienação e a necessidade de sua
superação, Mészáros argumenta:
“Se alguém lida com o problema da autoalienção humana, não se deveria começar com
suposição autoderrotante (self-defeating) de que alienação é uma totalidade inerte homogênea.
Se alguém entende a realidade (ou “ser”) como uma totalidade inerte homogênea, a única coisa
que se pode opor a este pesadelo conceitual é igualmente o pesadelo de um “movimento” e
“negação” como “nada”. Esta descrição da realidade como “totalidade inerte”, independente da
forma em que é expressada, é contraproducente. Ela emerge da suposição de opostos abstratos
dualísticos e rígidos – tais como “necessidade absoluta” e “liberdade absoluta”, as quais, por
conta de suas próprias definições, não podem comunicar nem interagir uma com a outra. Não se
tem nenhuma possibilidade genuína de movimento em tal imagem da realidade. […] Se a
sociedade fosse uma “totalidade inerte de alienação”, nada poderia ser feito a respeito. Nem se
poderia ter nenhuma questão de alienação, ou percepção dela, pois se a consciência fosse a
consciência dessa “totalidade inerte”, essa consciência seria com alienação (MÉSZÁROS, 2009,
p. 181).

Caso o pensador materialista histórico dialético vá por este caminho, ele acaba por
reproduzir o que artisticamente foi representado na personalidade de Fletcher como uma
absoluta necessidade de seguir sua proposta de desenvolvimento pessoal, caso
contrário, absolutamente nada significativo por de ser conquistado do ponto de vista do
desenvolvimento teórico de novos pesquisadores. Assim, se torna bastante complicado
conseguir enxergar elementos significativos na produção teórica contemporânea, em
andamento, fortalecendo uma tendência de retorno ao passado, retorno aos clássicos,
ficando preso ao passado de maneira análoga a Fletcher. Mas, no caso, ao invés de
Louis Armstrong e Charlie Parker, seria Marx, Engels ou algum representante de sua
tendência marxista.
Este seria também um método educativo de desenvolvimento teórico que estaria em
contradição com um processo educativo humano em geral, na medida em que os
grandes objetivos da “grande causa” de produzir grandes obras e realizar as grandes
transformações sociais que a destrutividade da contradição do sistema do capital exige,
seriam muito frequentemente realizados através de meios desumanos, na tentativa de
impor este “modelo” proposto. Ao mesmo tempo, emerge uma forte tendência de perda
da autocrítica, considerado como “modelo” o seu método educativo. O que, por sua vez,
dificulta imensamente a capacidade autocrítica de conceber a enorme contribuição que
se pode estar dando para a perda do desfrute na pesquisa científica. Ou seja, indo no
sentido contrário da intenção original concebida como uma “grande causa” de
“superação do sistema do capital”.
Neste sentido, o que este tipo de postura pode realizar, como resultado geral do seu
método educativo, junto com algumas grandes conquistas que podem ter sido
alcançadas, é a paralisia, a desmotivação, a perda do desfrute com a pesquisa científica,
para se tornar algo maçante, um fardo, um definhamento físico e emocional, quando não
ocorre o abandono desta perspectiva, do estudo e da produção científica.
Um outro ponto fundamental é que o desenvolvimento pessoal (de um artista ou de
um teórico) está em profunda contradição com a própria realidade na medida em que é
encarado como um ponto de virada, um salto, uma conversão, ou seja, um ponto
histórico na vida do indivíduo em que há uma mudança total de sua maneira de ser. O
desenvolvimento de um indivíduo (em geral e enquanto um materialista histórico
dialético), de acordo com os próprios fundamentos deste método, só pode ser
compreendido realisticamente enquanto um processo histórico de desenvolvimento de
suas capacidades naturais enquanto ser humano, em relação dialética com todas as
outras esferas da sua vida e com as suas circunstâncias históricas. Com momentos e
episódios mais ou menos importantes dentro desta trajetória, mas nunca visto como um
ponto isolado de transformação, apenas como um contínuo processo de relação dialética
entre continuidade e descontinuidade. Ninguém se torna um materialista histórico
dialético num determinado ponto histórico de sua vida, não importa quantas cadeiras ou
livros são jogadas em sua cabeça, não importa quão profunda for a decisão consciente
de querer mudar, não importa quão humilhado alguém seja, isto só acontece entrando
num processo histórico prático de desenvolvimento pessoal em conexão com as suas
circunstâncias históricas.
Desta maneira, se a pesquisa científica é desvinculada ao máximo das
circunstâncias concretas dos indivíduos, suas reais condições de vida, dificilmente ela
será uma atividade que se sustentará à longo prazo. Não só das condições de vida em
sociedade, mas se ela for desvinculada também da nossa condição subjetiva, de nossas
potencialidades e limites pessoais do momento, dos nossos sentimentos, será crescente a
tendência a encarar esta atividade como algo dissociado de nosso ser de maneira
profunda, ganhará força a tendência a tornar aquela pesquisa algo “impessoal”, sem
alma, sem entusiasmo e, por consequência, sem desfrute.
Tal como foi a postura adotada por Andrew Nieman para se desenvolver
intensamente na bateria no Conservatório Shaffer, se espera de um cientista (social) que
ele se isole, um indivíduo que sofre desumanamente a vida, que parece se ocupar
exclusivamente com um único interesse pessoal, que não tem muitos outros desfrutes,
nem amigos. Algo próximo disso, seria o ideal para uma postura de alguém que se diz
cientista (social). Acontece que, como todos os seres humanos, temos interesses
diversos. O que precisamos aprender é dar prioridade àqueles interesses que queremos
desenvolver, aqueles interesses que queremos levar conosco em nossas personalidades
enquanto prática e desfrute, não apenas como desejo e contemplação. De que maneira
os demais interesses vão estar equilibrados com a atividade de pesquisa científica é algo
inerentemente interno e em constante processo de desenvolvimento. Não existe um
modelo.
Se uma determinada perspectiva marxista defende um modelo específico de
estudo, modelo de produção teórica ou até modelo de personalidade revolucionária,
dificilmente poderia estar mais longe do espírito do pensamento de Marx. O método de
análise da realidade originado por este pensador é inerentemente contra esta ideia de
modelo, uma vez que se baseia no próprio desenvolvimento histórico da realidade
objetiva como fundamento da sua análise.
Na relação do indivíduo com o seu estudo científico, o que está em questão é a
realidade da vida particular daquele indivíduo em suas circunstâncias históricas
concretas de vida, uma combinação que é inerentemente singular na maneira como
acontece concretamente com este determinado indivíduo e inerentemente histórica,
sempre em desenvolvimento. Qualquer tipo de imposição de um modelo de pesquisa e
produção científica, restringe essa complexa relação entre o indivíduo real e a história,
desconsiderando, portanto, as condições particulares dos indivíduos em nome de
generalizações abstratas da relação entre “indivíduo e humanidade”, entre “pessoa e
gênero humano”, quando desconectadas do indivíduo real.
Ou seja, a formação de alguém em um pesquisador diz respeito a um processo
inerentemente histórico. Os limites subjetivos e ideológicos que o pesquisador possa ter
só podem ser reconhecidos, enfrentados e superados através de um processo de
desenvolvimento histórico-pessoal. Da mesma forma que as potencialidades só podem
ser transformadas em realidade através deste processo histórico. Isso quer dizer que esta
“transformação” de um indivíduo em um pesquisador não se trata, de maneira alguma,
de uma “conversão” – uma transformação mística, da água para o vinho, do nada para o
tudo. Na verdade, todo processo histórico é determinado pela interrelação entre
continuidade e descontinuidade, onde cada momento de consolidação ou de mudança
radical se trata da mudança do momento predominante na relação entre a continuidade e
a descontinuidade. Neste sentido, não pode existir nenhum tipo de “conversão”
marxista, um determinado conjunto de ações, técnicas, produções, etc., ou seja, modelo,
que signifique esta conversão “materialista”. A apropriação do método materialista
histórico dialético é, na relação do indivíduo com o estudo, um processo de
desenvolvimento histórico-pessoal de absorção e incorporação prática deste método de
análise e de ação na realidade.
Consequentemente, um elemento fundamental a respeito do processo
educacional é contribuir para a formação de subjetividades ativas, independentes e
autônomas para agir no mundo de maneira progressivamente consciente. A formação da
passividade na subjetividade das pessoas não pode ser uma ajuda no desenvolvimento
da teoria social crítica para enfrentar radicalmente os antagonismos sociais, não importa
o quão ligado à Marx esteja a argumentação em defesa desta passividade e mera
reprodução teórica.
O desenvolvimento da passividade se expressa, por exemplo, na imposição de
uma determinada tendência marxista a ser adotada, na consequente
hipervalorização/endeusamento de determinados autores, defendendo que a produção
teórica se resume à comentar sobre os grandes assuntos já abordados pelos “clássicos”,
ou seja, se expressa quando esta produção teórica não é incentivada na direção de um
enriquecimento da síntese da teoria social como um todo, na direção de uma
originalidade do pesquisador.
Esses são alguns elementos que, se existirem na relação do indivíduo com a sua
pesquisa científica, é muito forte a tendência para esvair seu desfrute com a mesma. Não
importa o quanto pareça que estamos nos dedicando a uma “grande causa”, não importa
o quanto pareça que estamos realmente identificados com o nosso objeto, se estas
relações não forem construídas através de um processo histórico-individual de
desenvolvimento intelectual pessoal, através de uma construção destas relações sociais
como uma necessidade interna de cada um de nós, o desfrute certamente terá mais uma
tendência apontando para o seu enfraquecimento e desaparecimento.
E só a realização de uma atividade que é, em algum grau no processo histórico-
individual, vista como uma necessidade interna é que se pode sentir o desfrute em
realiza-la. Mesmo com todas as dificuldades de executar aquela atividade. E assim faz
sentido falar de um auto-desenvolvimento, de uma auto-educação.

CONCLUSÃO

O desfrute é uma questão fundamental na nossa vida. O desfrute com as variadas


relações com podemos desenvolver e nos autodesenvolver. Mesmo aqui numa
sociedade alienada, a reprodução do metabolismo social controlada pelo capital. Mesmo
numa sociedade alienada em sua crise estrutural, o desfrute é fundamental. É tão
fundamental que pode ser uma medida de análise para qualquer relação que nós temos
com o mundo e com os outros seres humanos; por exemplo, relações esportiva, artística,
amorosa, culinárias, etc.: “porque eu faço isso, se não estou desfrutando? Se não tenho
real prazer?”.
Além de nos fazer bem, ainda que nos faça chorar e sofrer (humanamente), é
também um elemento fundamental para conferir sentido humano àquela atividade, seja
ela qual for (aprender a dançar, a pintar ou uma atividade física). Não seria diferente
com o estudo, com a pesquisa científica. É necessário que haja o desfrute humano
durante o processo de desenvolvimento pessoal enquanto um pesquisador científico.
Isto significa que a realização deste objeto, deste produto (um conhecimento científico),
é, ao mesmo tempo, enquanto uma autorrealização pessoal.
Assim, pensamos que a importância do desfrute, do prazer e da felicidade no
pensamento iniciado por Marx não poderia ser maior. Uma das grandes questões da
emancipação humana é justamente criar as condições básicas de reprodução de uma
sociedade que proporciona o autodesenvolvimento humano, para que o ser humano
desfrute das suas atividades diversas, ainda que seja durante a realização de atividades
para atender as necessidades mais elementares de sobrevivência, como o trabalho.
Consequentemente, a própria emancipação do trabalho das relações de exploração
do sistema capitalista através da auto-organização dos indivíduos tem como um dos
objetivos fundamentais o desenvolvimento do tempo livre como um dos meios materiais
para o livre autodesenvolvimento humano em todos os sentidos desejados e possíveis ao
indivíduos reais, o que se torna profundamente vazio se abstraídos da importância do
desfrute, do prazer e da felicidade com este tempo livre para desenvolver suas
habilidades de acordo com suas necessidades internas; e não uma imposição externa
econômica e política que impõe estruturalmente determinadas atividades que o
indivíduo tem que desenvolver se ele quer sobreviver neste mundo contraditório.
O estudante que inicia seu processo de desenvolvimento teórico e se depara com um
processo de perda do desfrute, se depara com algo que não diz respeito ao processo de
conhecimento em si mesmo. Diz respeito a determinadas condições econômico-sociais
que faz com que haja uma tendência forte à perda do desfrute com diversas esferas e
atividades de nossas vidas, inclusive na educação.
Pensamos que quanto mais o indivíduo se identifica com a sua área de investigação,
enquanto uma relação genuína de curiosidade investigativa sobre o seu objeto de estudo,
mais a pesquisa é uma resposta também às suas próprias questões, mais as contradições
identificadas e as soluções propostas são uma autorrealização de sua contribuição com a
humanidade, na luta pela igualdade humana. Nestas circunstâncias, mais ele tem
condições pessoais de se desenvolver teoricamente, se comparado com condições
hierárquicas de desenvolvimento. Mais ele se torna capaz (não o torna imune) de lutar
contra as tendências que pressionam o desfrute, fazendo-o desaparecer.
Certamente, o fim da contradição social que provoca uma tendência predominante
no sentido da perda do desfrute com nossas atividades, com a educação, com a nossa
pesquisa científica só é realizado quando houver uma transformação estrutural da forma
como a sociedade (se) produz e (se) reproduz. No entanto, isto não pode ser motivo para
acreditar que absolutamente nada pode ser feito enquanto esta resolução completa não
acontecer. Como vimos acima, não se trata de uma oposição dualística abstrata e rígida
entre “tudo ou nada”.
Como tudo nesta concepção de mundo iniciada por Marx, o desfrute é uma categoria
histórica. É uma conquista histórica. Assim, temos que, no cotidiano, perseguir o
máximo possível nossa felicidade, o desfrute com atividades que queremos fazer. E
também o desfrute com atividades que temos necessidade de fazer. É preciso, na medida
da capacidade (que também vai mudando) de cada um, lutar ao máximo contra a
tendência da perda do desfrute, e tentar insistentemente criar relações e atividades que,
de alguma maneira, contribuam para que possamos sentir desfrute com elas, apesar de
suas contradições. Que, de alguma maneira, nos enriqueça enquanto seres humanos.
Que, de alguma maneira, sejam atividades e relações anti-alienadoras, enquanto não
possam ser emancipadas.
Mas que busquemos a felicidade e o desfrute com o nosso entorno. Como forma de
manter uma pesquisa científica sustentável ao longo do tempo do ponto de vista da
saúde física e mental do pesquisador, bem como como forma de afirmar, junto com
manifestações, levantes, textos, a luta contra um sistema desumano com o sorriso e a
lágrima de um desfrute cada vez mais consciente da sua relação com a humanidade,
com a história e com a natureza.
REFERÊNCIAS [falta finalizar]

MARX. K. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844;


MÉSZÁROS, I. A Teoria da Alienação em Marx; (1970)
Filme Whiplash: em busca da perfeição (2014);
Música Master of Puppets, Metallica (1986);

Você também pode gostar