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estética do frio de Erechim
A estética do frio de Erechim
Por Thiago Ingrassia Pereira
24/05/2013 06:09:14
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03/05/2016 A estética do frio de Erechim
As últimas manhãs geladas do nosso outono tem me feito pensar sobre o nosso “jeito gaúcho”, sobre a nossa
identidade que se materializa em hábitos e costumes. Certamente, o debate sobre identidade traz consigo
grande complexidade em suas vertentes filosóficas e antropológicas, mas, sobretudo, políticas. Contudo, de
forma mais espontânea, reflito a partir da neblina que agora vejo, da sacada do meu apartamento, entre os
prédios do centro de Erechim e sua representatividade em nossa vida.
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Eu sou um gaúcho que nunca andou a cavalo, que eventualmente bebe chimarrão e que gosta de samba.
Tenho predileção por churrasco, mas não frequento CTG e nem escuto música nativista. Passeio pelo
Acampamento Farroupilha de setembro como quem, estando familiarizado, também estranha as vestimentas
e as relações que se estabelecem em meio à fumaça do churrasco.
Mesmo não me pilchando e não compartilhando alguns símbolos característicos de certo imaginário gaúcho,
me sinto gaúcho de forma autêntica, me sinto sulista, brasileiro. E, talvez, o que aproxima a todos que
nasceram ou vivem aqui no sul do Brasil, construindo algum traço de identidade, seja o frio. Isso mesmo:
sentir frio, viver uma geada, morar num lugar com expectativa de neve, usar blusão de lã, cachecol, dormir
com quatro ou cinco cobertores, respirar e sair “fumacinha”, entre outras coisas.
O frio nos aproxima e forja relações. Cria, segundo o entendimento de alguns, um tipo “frio” de pessoa: mais
reservada, menos extrovertida. O frio é algo estranho ao Brasil como um todo. Nossa “brasilidade” é
construída pelo clima tropical, pelo sol, pelos corpos quase nus, pelo suor, pela música que faz o corpo
requebrar. Por outro lado, nós, os que sentem frio, convivemos de forma diferente com o sol, precisamos nos
proteger mais e, por isso, “escondemos” os nossos corpos e, por consequência, nossas danças típicas não nos
fazem rebolar e nem fomentam a sexualidade, ainda que ela esteja latente sob as pesadas roupas.
Essas minhas considerações me aproxima das reflexões do músico gaúcho Vitor Ramil. Nascido em Pelotas,
Vitor vai morar no Rio de Janeiro por causa dos compromissos profissionais. Estando lá, passa a perceber o
Rio Grande do Sul de uma forma diversa do que até então percebia. Assim, reflete sobre como os
“brasileiros” veem os “gaúchos” e como esses últimos veem a si mesmos. O resultado desse exercício
reflexivo produz o conceito de “estética do frio”.
Portanto, mesmo o Brasil sendo um país construído a partir de suas múltiplas diferenças, o frio parece
promover uma diferença que se afirma em detrimento das demais que se conjugam na formação do
“brasileiro”. Ou seja, o frio, o vento, a geada, a temperatura perto do 0 ºC, tudo isso singulariza de forma
extrema o habitante do sul do sul do Brasil, que difere daquela identidade que parece “natural” do samba, sol
e mar.
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O gaúcho, assim, formado em uma região de fronteira, particularizase em seu país, ainda que a ele pertença
e até tenha lutado por esse pertencimento. Ao constatar que “a neblina desce e se instala”, Vitor Ramil
proclama a “estética do frio” como um traço de identidade do sulista, um pouco distante do “Brasil tropical”,
mas perto de nós mesmos enquanto “brasileiros que sentem frio”.
Quando morava em Porto Alegre sentia frio, mas, aqui em Erechim, o frio é “mais gelado”, o ar fica gelado e
te leva a se esconder dentro dos casacos. A “culinária do frio” também é convidativa, com suas delícias
quentes que contrastam com o clima. Há, sem dúvida, uma “estética do frio erechinense”: os prédios
“somem”, a Avenida Sete de Setembro fica vazia, os supermercados recebem pessoas de pala e a geada
cobre os campos. As lareiras passam a ser rodeadas por pessoas, o cheiro do fogão à lenha toma conta do ar e
sua fumaça encontra a neblina que nos esconde. Há menos crianças jogando bola na rua e vemos, raramente,
alguém andando de bicicleta.
Mas este mesmo frio não esfria o calor das pessoas reunidas em um jogo de futsal do Atlântico, no Colosso
da Lagoa, nos diversos jogos do campeonato municipal de futebol e ao lado do calor dos motores dos carros
durante o Rally. O frio que nos particulariza, nos deixa solidários: ao sentir frio, sentimos que estamos em
“casa”.
Sociólogo e Educador
Prof. UFFS/Erechim
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