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Direito Educacional e Ética

Aida Rosa Amoroso Bortolato Miranda


Sandra da Costa Lacerda
Aida Rosa Amoroso Bortolato Miranda
Sandra da Costa Lacerda

DIREITO EDUCACIONAL E ÉTICA


Educação a Distância
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................3
INTRODUÇÃO ............................................................................................................4
1 ÉTICA E MORAL .....................................................................................................5
1.1 A PERSPECTIVA SOCIAL DA MORAL ............................................................7
1.2 A PERSPECTIVA INDIVIDUAL DA MORAL .....................................................8
1.3 A PERSPECTIVA SOCIAL E INDIVIDUAL DA MORAL..................................10
2 DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUÇÃO DA
CIDADANIA ..............................................................................................................12
3 ÉTICA E CIDADANIA ............................................................................................23
4 O PAPEL DA INSTITUIÇÃO ESCOLA NA CONSTRUÇÃO DO JUÍZO MORAL
DOS EDUCANDOS ..................................................................................................28
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................43
REFERÊNCIAS.........................................................................................................45
ANEXO .....................................................................................................................47
3

APRESENTAÇÃO

Por que em um curso de Pedagogia temos uma disciplina dedicada ao


estudo do Direito Educacional e da Ética? Por que os dois conceitos estão
associados?
Responder a tais questões remete-nos, novamente, à questão essencial
acerca de qual é o papel da Educação na construção do mundo em que vivemos,
remete-nos, ainda à busca do significado das noções do Bem, do Belo, e do
Verdadeiro. Busca que acompanha o homem desde que este se percebeu um ser
com capacidade de refletir.
Esta disciplina coloca-se, neste curso, como uma possibilidade de
sistematização das idéias que temos discutido desde o primeiro módulo em
Filosofia.
Tendo tais noções como norteadoras, discutiremos as idéias de Ética e
Moral e de como tais idéias se aproximam ou se afastam; discutiremos, também, o
conceito de Direito Educacional na perspectiva da construção da cidadania; a
seguir procuraremos relacionar Ética e Cidadania e encerraremos o módulo
problematizando o papel da instituição escola na construção do juízo moral dos
educandos, voltada para uma cidadania que se guie pela ética e pelo respeito ao
direito educacional.
Esperamos que este processo de sistematização permita, a todos nós, um
espaço de amadurecimento acerca das opções que profissionalmente temos que
fazer a cada dia. Acreditamos que é o processo de reflexão filosófica que permite a
passagem do mundo infantil para o mundo adulto, tendo como limiar a possibilidade
de pensamento abstrato. Como afirmam Aranha & Martins (1986), se a condição do
amadurecimento é a conquista da autonomia no pensar e no agir, muitos adultos
permanecerão crianças caso não exercitem, desde cedo esse olhar crítico sobre si
mesmo e sobre o mundo.
É acreditando na educação como ‘mola propulsora’ da construção desse
olhar crítico que esta disciplina se coloca.
4

INTRODUÇÃO

Discutir sobre ética no mundo contemporâneo é extremamente


necessário. E, se em outros setores da vida - do trabalho - esse tema se destaca, na
educação ele é notadamente imprescindível.
Em nosso meio - escolar - encontramos diversas perspectivas morais, com
inúmeras representações de homem e de vida, e nos redescobrimos criando novas
relações. E, sem que se privilegie um lado ou uma perspectiva para olhar, não é
difícil perceber como não são muitos os que medem seus atos e se propõem a zelar
por um homem que tenha como princípio os verdadeiros - pelo menos os que
deveriam ser - fins da vida. Não há desculpas para quem escapa desse princípio. Já
desculpamos demais! Somos, sempre, responsáveis por nosso atos, por nossas
escolhas, por aquilo que julgamos e projetamos. Isso quer dizer que somos nós que
construímos as relações, que projetamos referências, valores, uma potência criadora
ou que traga o fluxo denso de miséria... humana.
Olhar a ética é o mesmo que lançar-se criticamente sobre a moral, sobre a
moral que nos cerca. Certamente, que esta crítica é inseparável de certos elementos
que balizam a noção mais primeva de ética, como metamoral e doutrina fundadora
enunciando os princípios. (RUSS, 1999, 8).
Assim, neste texto - elaborado pelas professoras Aida Miranda e Sandra
Lacerda - passamos por referências de grandes filósofos que pensaram a moral:
Kant, Hobbes, Montesquieu, Locke, Rousseau, pelo grande educador russo Lev
Vygotsky etc., procurando conceber os fundamentos da ética e, ao mesmo tempo,
responder e pensá-los agora, sobre o semblante do presente e todas as
consequências que a relativização de certos valores tem provocado. Vamos ao
estudo!
Prof. Louis J. P. de Oliveira
5

1 ÉTICA E MORAL

Que o jovem não espere para filosofar, nem que o velho de


filosofar se canse. Ninguém, com efeito, é ainda imaturo ou
já está demasiado maduro para cuidar da saúde da alma.
Quem diz não ter ainda chegado sua hora de filosofar ou já
ter ela passado, fala como quem diz não ter ainda chegado
ou já ter passado a hora de ser feliz.
Epicuro, Carta a Menequeu

Estamos sempre julgando quando olhamos as pessoas e as coisas.


Emitimos opiniões acerca de tudo: ‘Este sapato é feio! Além disso, aperta meu dedo,
não dá para usar no trabalho. Não vou comprá-lo.’, ‘O novo corte de cabelo da
professora fez com que ela se parecesse com um sapo!’, ‘Dias ensolarados me
fazem feliz.’, ‘O mundo seria melhor se todos cumpríssemos com nossas
obrigações.’; pois bem, quando emitimos nossas opiniões estabelecemos um juízo
de valor. Emitir juízos de valor implica no reconhecimento da materialidade de algo
e, concomitantemente, na percepção de que essa materialidade tem conteúdos que
provocam nossa repulsa ou nossa atração.
A repulsa ou atração que sentimos evocam valores que atribuímos às
coisas, valores esses relacionados à utilidade, à bondade, à beleza.
Toda vez que atribuímos um valor a algo, fazemo-lo estabelecendo algum
tipo de comparação. Para existir um processo de comparação necessitamos de
parâmetros de análise. Como estudamos em Filosofia, nossos parâmetros de
análise são construídos culturalmente na medida em que nos apropriamos (ou
somos apropriados por?) de um sistema de significados já estabelecidos por outros.
Assim, conforme atendemos ou transgredimos os padrões socialmente
estabelecidos, nossos comportamentos são avaliados como bons ou maus e, quanto
mais estamos imersos em um determinado padrão de socialização, também
avaliamos como bons os comportamentos alheios que se aproximam do padrão
cultural que incorporamos e como maus aqueles que dele se distanciam.
As pessoas emitem juízos de valor referentes às mais diversas áreas do
existir humano, temos, então valores econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos,
religiosos, políticos, educacionais, e assim, sucessivamente, poderíamos nos
alongar infinitamente. Entretanto, nosso questionamento maior nesta disciplina é
6

uma pequena pergunta: há valores universais, perenes, para além do aqui e agora
cultural?
A Ética é a parte da Filosofia que se ocupa do estudo dos fundamentos da
vida moral. Nestes termos, embora haja autores que discordem do nosso ponto de
vista, poderíamos afirmar que enquanto a Ética se pergunta o que é o bem e o mal?
A Moral nos afirma o bem é... ou o mal é..., dependendo de onde se alicerce a
análise, quer seja na ordem cósmica, como afirmava Epicuro1, na vontade de Deus,
como defendia São Tomás de Aquino2 ou em nenhuma ordem exterior à própria
consciência humana, de acordo com a perspectiva existencialista3.

1
Epicuro vinculou de modo inédito a física atomística à ética emancipadora: sua idéia central, resumo
de todas as outras, é a de que compreendendo a ordem cósmica como efeito mecânico do
entrechoque dos átomos nos libertamos do terror supersticioso e do temor da morte. Sua lição
atravessou os séculos. Nela reconhecemos a vocação iluminista do materialismo filosófico, isto é, sua
confiança na força libertária das luzes do conhecimento. Cumpre ressaltar a permanência histórica do
vínculo ligando o princípio ontológico de que o substrato último de todas as coisas visíveis e invisíveis
são partículas corpóreas indivisíveis e eternas – cuja junção e separação no vazio infinito constroem
e desconstroem os mundos que foram, são e serão – ao princípio ético de que, exatamente por
resultar do entrechoque mecânico dos átomos, o cosmos não contém nenhuma finalidade ou
intenção imanente ou transcendente, natural ou divina. Para o pensador, a morte é meramente a
separação dos átomos que nos compõem. Não anuncia, portanto, nem castigos, nem recompensas
para os homens. Não devemos temer nem a morte e, menos ainda, as punições infernais inventadas
pela ignorância e pela superstição.
2
São Tomás de Aquino, em Questões discutidas sobre a Verdade, afirma que embora o ente, o
verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que nas coisas criadas, não é
necessário que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas criaturas se distingam
também realmente. Isto acontece com aquelas coisas que pelo seu próprio conceito não se
identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus constituam uma só coisa,
nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom e o uno, pelo seu conceito se
identificam. Daí que, onde quer que se encontrem concretizados, constituem realmente uma só coisa,
embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram em Deus do que quando se encontram
nas criaturas.
3
Sartre, em O existencialismo é um humanismo, afirma que o existencialista, pelo contrário, pensa
que é muito incomodativo que Deus não exista [...] o existencialista não pensará também que o
homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; porque pensa
que o homem decifra, ele mesmo, esse sinal como lhe aprouver [...] mas se verdadeiramente a
existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do
existencialismo é o de pôr todo homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total
por sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos
dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os
homens.
7

1.1 A PERSPECTIVA SOCIAL DA MORAL

Na luta humana para sobrepujar os limites impostos pela Natureza, o


comportamento varia de local para local, de época para época.

O antropólogo Lévi-Strauss apontou, a partir de seus estudos com


comunidades primitivas, que a passagem do modo de vida animal para o modo de
vida humano se dá por meio da introdução da proibição do incesto nessas
comunidades, o que cria as relações de parentesco, construindo o primeiro patamar
do mundo simbólico, da cultura. Ao lado da interdição, aparece a figura da sanção
ao transgressor, seja o banimento ou a coerção física, há sempre o uso da
repressão pela força.
Na mesma linha, Durkheim apontava que nas comunidades primitivas,
regidas pela solidariedade mecânica, o ato infratório tem uma punição mais severa
que nas sociedades com elevada divisão do trabalho organizada por meio da
solidariedade orgânica.

Atenção
Assim, há uma moral constituída, exterior ao homem, que orienta seu
comportamento, determinando o que é moral ou imoral em um
determinado tempo e espaço, para um determinado grupo de
homens, que têm uma dependência mútua e que precisam acordar
normas de trabalho coletivo a fim de garantir a sobrevivência do
grupo.

Cada vez que as relações de produção são alteradas, surgem


modificações nas exigências das normas do comportamento coletivo4.
No entanto, dialeticamente, a interdição traz em si o germe da
transgressão, quando os valores individuais contrapõem-se aos coletivos. Há, pois,
uma moral individual que se contrapõe à histórica e social.

4
Marx foi brilhante ao descrever esse processo de alteração nos quatro estágios dos modos de
produção -comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo - e a moral social vigente em
cada um deles.
8

1.2 A PERSPECTIVA INDIVIDUAL DA MORAL

A ordem social pressupõe que a moral, ao mesmo tempo em que é o


conjunto de regras que determina como deve ser o comportamento dos indivíduos
em um grupo, deve, também, ser livre e conscientemente aceita pelos indivíduos
que a ele pertencem.

É em tal contradição que muitas vezes se funda a angústia individual do


existir, pois faz parte do processo de individuação o questionamento dos valores
herdados.
Nesse sentido, um ato só é propriamente moral se se fundar na aceitação
pessoal da norma. Como afirmam Aranha & Martins (1986) à exterioridade da moral
contrapõe-se a necessidade da interioridade, da adesão mais íntima.
Kant5 nos falava que o valor do homem não reside apenas na luz da sua
inteligência, mas antes, e acima de tudo, no sentimento, na intimidade e na
profundidade da alma, onde a adesão à norma deve se processar. Para ele, o
grande norteador seria a dignidade do homem por ser dotado de personalidade, ou
seja, a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, mais do que por uma moral circunstancializada, para Kant,
o homem deve guiar-se por princípios.

A verdadeira virtude só pode plantar-se em princípios e, quanto mais


universais estes, mais nobre e elevada se torna aquela. O
sentimento ético é o sentimento da beleza e da dignidade da
natureza humana. Defendo a crença na superioridade de um
princípio ético dirigente sobre todas as outras faculdades do homem.
(KANT, Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime,
1764)

Na encruzilhada da aceitação e da contestação forma-se o juízo moral.


Cada um sabe, por experiência pessoal, o quanto é difícil aceitar normas que se

5
Emanuel Kant nasceu em Königsberg (Prússia), em 22 de abril de 1724. Alguns autores viram certo
significado no fato do seu pai ser de descendência escocesa e supuseram ser esta a causa da
parcialidade com que o filósofo se ocupou, mais tarde, dos pensadores daquele país. Do nosso ponto
de vista, parece mais importante a atmosfera pietista na qual o jovem Kant foi criado pelos pais –
pietismo que constituía uma reação contra o protestantismo dogmático e que realçava o valor da
exaltação do espírito, confiança nas boas intenções, mais do que ciência teológica – e indagar se isto
não corresponde ao papel que esta religião desempenhou no pensamento do filósofo. Além disso,
sua mãe parece ter exercido uma grande influência sobre ele, fazendo-o partilhar dos seus
sentimentos acerca da natureza e associar esse fato com a tentativa que ele fez de combinar sua
crença religiosa com sua admiração pelos fenômenos cósmicos.
9

sabe ultrapassadas, obsoletas, mas, por outro lado, sabe, também, como é difícil
promover a mudança dessas mesmas normas.
As contradições entre o velho e o novo são vividas quando as relações
estabelecidas entre os homens exigem um novo código de conduta. Essas mesmas
contradições se põem no plano pessoal, como nos apontavam os existencialistas. A
singularidade do ato moral nos coloca em situações únicas, em que só o indivíduo
livre e responsável é capaz de decidir, são as chamadas situações-limites, em que
regra alguma é capaz de orientar a ação.
Como exemplo, podemos citar a reflexão de Kohlberg (1991), acerca do
período pós II Guerra Mundial, quando se engajou no transporte ilegal de
sobreviventes do holocausto para a Palestina, então sob domínio britânico:

[...] Nosso navio foi capturado pela marinha britânica, assim como
havia sido seu antecessor, o Exodus, celebrado no livro e no filme
de Leon Uris.
A marinha britânica e os fuzileiros usaram gás lacrimogêneo, vapor
e abriram caminho para a sala de direção e sala das máquinas e
pararam o navio. Vários bebês morreram, embora os ingleses
tivessem tentado não usar violência desnecessária. Eu, meus
companheiros e os refugiados fomos levados para um campo de
concentração em Chipre. A Hagenah ajudou-nos a escapar para a
Palestina fornecendo-nos documentos falsos. Eu e alguns
companheiros de tripulação ficamos em um kibutz ou acampamento
coletivo até que fosse seguro deixarmos o país com documentos
falsos e pegar outro navio da América para a Europa, e de lá para a
Palestina; um navio que se tornou da marinha na guerra de
independência de Israel contra os estados árabes, em 1948.
Minhas experiências com imigração ilegal em Israel levantaram todo
tipo de questões morais, que eu via como questões de justiça. Era
certo ou justo usar a morte e a violência para um fim político?
Enquanto os bebês morriam e os adultos iam para um campo de
concentração, os objetivos da Hagenah eram políticos, tratava-se de
pressões internacionais sobre os britânicos, para abandonarem a
Palestina. Quando é permissível envolver-se com meios violentos
para obter fins supostamente justos?
Esse tatear ao redor de questões de justiça era mesclado por um
hedonismo e relativismo adolescentes a respeito das exigências da
sociedade sobre mim, seja a sociedade norte-americana, seja a
israelense. O kibutz israelense representava ideais de justiça social
que eu tinha de admirar, mas estaria eu obrigado a segui-los, ou
poderia viver de acordo com as demandas mais familiares e mais
fáceis de minha terra natal, os Estados Unidos? Ao final, essas
questões se tornaram questões de relativismo ético. Havia uma
moralidade universal ou toda escolha moral era relativa, dependente
da cultura ou da escolha pessoal e emocional de cada pessoa?[...]
10

(KOHLBERG, L. Minha busca pessoal pela moralidade universal.


In BIAGGIO, A. M. B. Lawrence Kohlberg, Ética e Educação Moral,
2002, pp. 92-93)

Como vimos, o aumento do grau de consciência e de liberdade, e,


portanto, de responsabilidade pessoal no comportamento moral, introduz um
elemento contraditório que irá, o tempo todo, angustiar o homem; o ser e o dever-ser
na contraposição social X individual.

1.3 A PERSPECTIVA SOCIAL E INDIVIDUAL DA MORAL

Evitando-se por um lado o extremado legalismo e dogmatismo e por outro


um exacerbado individualismo há que se colocar esses dois pólos contraditórios em
uma relação dialética, ou seja, uma relação de aproximação dos contrários de forma
a abarcar a aceitação e a recusa da norma constituída.
Como alguém que se cria em um universo cultural e que por outro lado
produz cultura, o homem só terá uma vida autêntica quando for capaz de, face ao
constituído, propor uma moral constituinte, isto é, a que se faz penosamente por
meio da experiência vivida.
Se não podemos negar o caráter histórico da formação da moral, também
não precisamos aceitar que a História se faz em um movimento de continuísmo, é
preciso abrir espaço para rupturas quando estas se fizerem necessárias. Cumpre
buscar o preciso distanciamento daquilo que nos circunstancializa, de modo a
entender o passado que consubstanciou o presente que vivemos, para reassumi-lo
ou recusá-lo. Ser um ser histórico não se limita à continuidade no tempo, mas à
consciência ativa do futuro, por meio da elaboração de um projeto de ação que, se
necessário, possa mudar o instituído.
Resumindo a distinção que procuramos traçar neste tema entre Ética e
Moral, poderíamos afirmar que enquanto a Ética trata dos princípios, dos imperativos
categóricos6 como afirmou Kant, do dever-ser; a Moral trata dos fatos, daquilo que é,

6
Como muitos outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio
fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este
princípio «imperativo categórico». Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o
desta forma: Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne
lei universal. No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais
11

do acontecido, ou seja, dos atos humanos que se realizam efetivamente no tempo e


no espaço; a Moral trata, portanto do ser7.
Assim, enquanto a Moral diz respeito ao conjunto de princípios, crenças e
regras que orientam o comportamento dos indivíduos nas diversas sociedades, a
Ética ocupa-se da reflexão crítica acerca da Moral.

QUESTÕES PROPOSTAS:

1. Por que é tão importante refletir sobre a ética?

2. A partir da reflexão proposta por L. Kohlberg (pag. 9 de nosso texto), é possível


estabelecer que, em situações limites, pode ocorrer a relativização da ética?
Explique.

adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o
seguinte: Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre
como um fim e nunca apenas como um meio.

7
Utilizamos a expressão ser, neste contexto, na acepção do verbo de ligação, como sinônimo de
estar, ou seja, na dimensão de contextualização temporal. A palavra ser não deve, nesta discussão,
ser confundida com o ser, substantivo, cujo significado liga-se a essência, tendo, portanto, a
conotação de permanência atemporal.
12

2 DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUÇÃO


DA CIDADANIA

Jamais suportaremos que todas as coisas e que todos os


serviços sejam produzidos de forma automática, que não
sejam senão ‘produzidos’, que nada se situe fora das leis do
mercado e das regras do Estado. Teremos, sempre,
necessidade de fazer com que as coisas se articulem de uma
outra maneira, de fazer ‘passar’ as coisas pela dádiva.
Jacques T. Godbout

Compreendendo cidadania como a qualidade de cidadão e cidadão como


o habitante da cidade, com pleno gozo de seus direitos civis e políticos, cumpre-nos
discutir quais seriam esses direitos.
A idéia de que o homem, pela sua própria natureza humana, pudesse
dispor de certos direitos a ela inerentes e em oposição ao poder do Estado, não era
aceita pelos juristas e pensadores políticos da Grécia Antiga. A noção de direito
individual, como o entendemos nas democracias modernas, não existia nas práticas
dos gregos e dos romanos. O indivíduo, na sociedade greco-romana, afirmava e
garantia a sua personalidade na medida em que se inseria na coletividade social, ou
no aparelho estatal. Sócrates, por exemplo, preferiu aceitar a injusta condenação à
morte a fugir da decisão de seus compatriotas.
Foi, provavelmente, com o cristianismo que surgiu a necessidade de
certas prerrogativas que limitem o poder político nas suas relações com a pessoa
humana.
A certeza de uma vida pós-morte, de um destino sobrenatural do homem,
acabou levando os cristãos a duas posições aparentemente contraditórias, mas que
no fundo eram complementares. Por um lado, reverenciavam o poder temporal que
acreditavam emanar de Deus, não reivindicando direitos políticos e, por outro lado,
resistiam até a morte às tentativas do Estado de imiscuir-se no que constituía o
domínio espiritual. O castigo resultante dessa resistência era alegremente
suportado, pois o martírio era visto como um caminho para a salvação, à imitação do
comportamento de Cristo.
Nestes termos, esse domínio espiritual impenetrável pelo estado, foi a
primeira manifestação histórica de afirmação do homem, pelo fato de ser homem,
13

dispor de certos direitos oponíveis à coletividade estatal em que se integrava e não


aos seus semelhantes individualmente, ou seja, tratava-se da oposição entre direito
privado e direito público. O fundamento de tal direito era afirmado pelo cristãos na
transcendência da organização política histórica, a polis, pela eternidade; a Cidade
de Deus.
Entretanto, essa colocação do problema não o afastava do campo jurídico,
já que o jurídico regulamenta o político. Assim, por sua natural evolução, foi o
Estado moderno que elaborou a teoria jurídica dos direitos humanos, como
conseqüência de circunstâncias históricas e não de concepções religiosas,
sobretudo no princípio das chamadas leis fundamentais do reino, que garantiam os
privilégios de certas classes sociais, ou atividades profissionais, até mesmo contra o
poder da coroa.
Não é à toa que um dos significados possíveis de serem atribuídos à
palavra cidade é refúgio, área urbana especialmente reservada para asilar pessoas
que cometeram delitos involuntários; ficavam elas a salvo da perseguição dos
vingadores e podiam ser julgadas por representantes autorizados da sociedade.
(Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, Enciclopédia Mirador, Vol. I, p. 415)
A plena caracterização dos direitos humanos, inicialmente filosófica e
posteriormente jurídica foi feita a partir dos escritos de John Locke, na Idade
Moderna. Locke8, Montesquieu9 e Rousseau10 devem ser mencionados como os

8
John Locke (Wringtown, 29 de Agosto de 1632 – Harlow, 28 de Outubro de 1704) foi um filósofo do
predecessor Iluminismo cujas noções do governo com o consentimento dos governados e os direitos
naturais do homem (vida, liberdade e propriedade) tiveram uma enorme influência nas modernas
revoluções liberiais: Revolução Inglesa, Revolução Americana e na fase inicial da Revolução
Francesa, oferecendo-lhes uma justificação da revolução e a forma de um novo governo. Para fins
didáticos, Locke costuma ser classificado entre os "Empiristas Britânicos", junto com David Hume e
George Berkeley, principalmente por sua obra relativa à questões epistemológicas. Em ciência
política, costuma ser enquadrado na escola do direito natural ou jusnaturalismo.
9
O aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bredé e Barão de Montesquieu, nasceu
em 18 de Janeiro de 1689, perto de Bordeaux, na França, e faleceu em 10 de Fevereiro de 1755, em
Paris. Político, filósofo e escritor francês, filho de uma família nobre, ficou famoso pela sua teoria da
separação dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições nacionais.
Teve formação iluminista com padres oratorianos, de modo que cedo se mostrou um crítico severo e
irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Montesquieu escreveu várias obras,
como Cartas Persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua
decadência (1734) e O Espírito das Leis (1748). Ganhou notoridade e exerceu notável influência.
Contribuiu também para a Enciclopédia e foi uma das maiores figuras do Iluminismo.
10
Jean-Jacques Rousseau (28 de Junho de 1712, Genebra - 2 de Julho de 1778, Ermenonville,
perto de Paris) foi um filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata.
Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do
Romantismo. Foi uma das principais inspirações ideológicas da segunda fase da Revolução Francesa
- a última das revoluções modernas, e que deu início a um longo período de terror e instabilidade
14

autores que mais contribuíram para a sistematização do pensamento sobre a


doutrina dos direitos públicos individuais, na fase inicial da jurisprudência política.
Locke considerava que apenas o pacto tornava legítimo o poder do
Estado. Se no estado natural os homens eram livres, iguais e independentes, o que
os faria abdicar desse estado para viver em sociedade, delegando poder para
outrem? O autor apontava que, no estado natural, cada um era juiz de sua própria
causa, fazendo com que os riscos das paixões e da parcialidade fossem muito
grandes, o que poderia desestabilizar as relações entre os homens. Nestes termos e
visando à segurança e à tranqüilidade necessárias ao gozo da propriedade, as
pessoas consentiram a instituição do corpo político, como regulador das relações
entre os homens. No entanto, os direitos naturais do homem não desaparecem em
conseqüência desse consentimento, mas subsistem para limitar o poder do
soberano, justificando, em última instância, o direito à insurreição11.

Atenção

Se os soberanos romperem com o pacto de confiança neles


depositado, se não visarem ao bem público, perdem o
direito de governar, sendo permitido aos governados retirá-
los do poder e substituí-los por outros mais dignos da
confiança do povo.

Montesquieu elaborou uma teoria política, que aparece em sua obra mais
famosa O Espírito das Leis (1748), inspirada em Locke e no estudo das instituições
políticas inglesas. Nela, ele discutiu as instituições e as leis, e buscou compreender
as diversas legislações existentes em diferentes lugares e épocas. Esta obra
inspirou os redatores da Constituição Francesa de 1791 e tornou-se a fonte das

política, que acabaria por levar à ditadura de Napoleão. Do Contrato Social, de sua autoria, inspirou
muitos dos revolucionários e regimes nacionalistas e opressivos subseqüentes a esse período, por
toda a Europa continental. Inspirados nas idéias de Rousseau, os revolucionários defendiam o
princípio da soberania popular e da igualdade de direitos.

11
Não é necessário, tampouco conveniente, que o poder legislativo esteja sempre reunido; mas é
absolutamente necessário que o poder executivo seja permanente, visto como nem sempre há
necessidade de elaborar novas leis, mas sempre existe a necessidade de executar as que foram
feitas. Quando o legislativo entregou a execução das leis que fez a outras mãos, ainda tem o poder
de retomá-la, se houver motivo, e de castigar por qualquer má administração contra as leis. (LOCKE,
J. Segundo Tratado sobre o Governo. In, Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979,
p. 101).
15

doutrinas constitucionais liberais, que repousam na separação dos poderes


legislativo, executivo e judiciário. O que Montequieu descreve como espírito geral de
uma sociedade aparece como resultante de causas físicas (o clima), causas morais
(costumes, religião...) e as máximas de um governo12. Modernamente, seria o que
chamamos de uma identidade nacional que se constitue conforme os fatores citados
acima.
As máximas anteriormente descritas dizem respeito, segundo o próprio
autor, aos tipos e conceitos que dariam conta daquilo que as causas não abrangem.
Seriam o princípio e a natureza de um governo.
• Natureza: aquilo que faz um governo ser o que é, determinado pela
quantidade daqueles que detêm a soberania;

• Princípio: o que põe esse governo em movimento, o princípio motor em


linguagem filosófica, constituído pelas paixões e necessidades dos
homens.

Montesquieu distingue três formas de governo: República, Monarquia e


Despotismo. Os tipos de governos e suas máximas:

• República: soberania nas mãos de muitos (de todos = democracia - de


alguns = aristocracia) - princípio é a virtude;

• Monarquia: soberania nas mãos de um só, segundo leis positivas -


princípio é a honra;

• Despotismo: soberania nas mãos de um só, segundo o arbítrio deste -


princípio é o medo;

Apesar de beber na fonte dos clássicos (notadamente Aristóteles) seu


esquema de governo é diverso do daqueles. Montesquieu, ao considerar
democracia e aristocracia um mesmo tipo e falar do despotismo como um tipo em si
e não a corrupção de outro (da monarquia no caso), mostra-se mais preocupado
com a forma com que será exercido o poder: se segundo leis ou não.

12
As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho ou do arbítrio de quem
legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da história concreta própria ao povo considerado.
Não existem leis justas ou injustas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um
determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou lugar. (MONTESQUIEU, O
Espírito das Leis)
16

Para Montesquieu, a forma republicana de governo só seria viável em


regiões pequenas, como as cidades gregas da Antiguidade e as cidades italianas da
Idade Média. Para os grandes Estados, só seria possível o despotismo
(absolutismo) e as monarquias. Ele simpatizava com a monarquia constitucional
(liberal) à moda inglesa, e foi a partir de uma viagem à Inglaterra que ele elaborou a
sua teoria da separação dos três poderes.
Ao procurar descobrir as relações que as leis têm com a natureza e o
princípio de cada governo, Montesquieu desenvolveu uma teoria de governo que
alimentava as idéias fecundas do constitucionalismo, pelo qual se busca distribuir a
autoridade por meios legais, de modo a evitar o arbítrio e a violência. Tais idéias se
encaminham para a melhor definição da separação dos poderes, ainda hoje uma
das pedras angulares do exercício do poder democrático.
Montesquieu admirava a constituição inglesa, mesmo sem compreendê-la
completamente, e descreveu cuidadosamente a separação dos poderes em
Executivo, Judiciário e Legislativo, trabalho que influenciou os elaboradores da
constituição dos Estados Unidos.
O poder executivo seria exercido por um rei, com direito de veto sobre as
decisões do parlamento.
O poder judiciário não era único, porque os nobres não poderiam ser
julgados por tribunais populares, mas só por tribunais de nobres; portanto
Montesquieu não defendeu a igualdade de todos perante a lei.
O poder legislativo, convocado pelo executivo, deveria ser separado em
duas casas: o corpo dos comuns, composto pelos representantes do povo, e o corpo
dos nobres, formado por nobres, hereditário e com a faculdade de impedir (vetar) as
decisões do corpo dos comuns. Essas duas casas teriam assembléias e
deliberações separadas, assim como interesses e opiniões independentes.
Refletindo sobre o abuso do poder real, Montesquieu conclui que "só o poder freia o
poder", daí a necessidade de cada poder manter-se autônomo e constituído por
pessoas e grupos diferentes.
É bem verdade que a proposta da divisão dos poderes ainda não se
encontrava em Montesquieu com a força que posteriormente lhe foi atribuída. Em
outras passagens de sua obra, ele não defendeu uma separação tão rígida, pois o
que ele pretendia, de fato, era realçar a relação de forças e a necessidade de
equilíbrio e harmonia entre os três poderes.
17

Montesquieu não era um revolucionário. Sua opção social ainda era por
sua classe de origem, a nobreza. Ele sonhava apenas com a limitação do poder
absoluto dos reis, pois era um conservador, que queria a restauração das
monarquias medievais e o poder do Estado nas mãos da nobreza. As convicções de
Montesquieu tiveram origem na sua classe social e, portanto, o aproximavam dos
ideais de uma aristocracia liberal. Ou seja, ele criticava toda forma de despotismo,
mas não apreciava a idéia de o povo assumir o poder. Sua crítica, no entanto, serviu
para desencadear a Revolução Francesa e instaurar a república burguesa.
Rousseau, por sua vez e como seus antecessores Hobbes13 e Locke,
desenvolveu seu pensamento a pártir da hipótese do homem em estado natural e
procurou resolver a questão da legitimidade do poder nascido do contrato social.
Sua posição foi, contudo, inovadora, pois distinguiu os conceitos de soberano e de
governo, atribuindo ao povo a soberania inalienável.
Rousseau descrevia de forma nostálgica o estado feliz em que o homem
vivia no contato direto com a Natureza e denunciava o caráter de desigualdade
social introduzido pela propriedade privada, diferenciando rico e pobre, poderoso e
fraco, senhor e escravo, até a predominância da lei do mais forte14. Para ele, o

13
Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 – Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679) foi um
matemático, teórico político, e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651).Na obra
Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de
governos e sociedades. No estado natural, embora alguns homens possam ser mais fortes ou mais
inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima dos demais por forma a estar além do medo
de que outro homem lhe possa fazer mal. Por isso, cada um de nós tem direito a tudo, e uma vez que
todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos (Bellum omnia
omnes). No entanto, os homens têm um desejo, que é também em interesse próprio, de acabar com
a guerra, e por isso formam sociedades entrando num contrato social.
Leviatã é um monstro bíblico cruel e invencível que simboliza, para Hobbes, o poder do Estado
absoluto. Seu corpo é constituído de inúmeras cabeças e ele empunha os símbolos dos dois poderes,
o civil e o religioso.
De acordo com Hobbes, a sociedade necessita de uma autoridade à qual todos os seus membros
devem render o suficiente da sua liberdade natural, por forma a que a autoridade possa assegurar a
paz interna e a defesa comum. Este soberano benevolente, quer seja um monarca ou um estado
administrativo, deveria ser o Leviatã, uma autoridade inquestionável. A teoria política do Leviatã
mantém no essencial as idéias de suas duas obras anteriores, Os elementos da lei e Do cidadão (em
que tratou a questão das relações entre Igreja e Estado).
Thomas Hobbes defendia a idéia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem
em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão
formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as
Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Neste sentido, critica a livre-interpretação da
Bíblia na Reforma Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca.

14
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar
com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar o
18

homem que surge, então, é um homem corrompido pelo poder e esmagado pela
violência, trata-se, neste sentido, de um falso contrato social, que coloca o homem
sob grilhões. O que Rousseau defendia era um verdadeiro contrato, no qual o povo
estivesse reunido sob uma só vontade.
Nesta medida, o contrato deveria originar-se do consentimento, que, por
sua vez, deveria ser unânime. Cada cidadão deveria abdicar de todos os seus
direitos em favor da comunidade, mas, como todos abdicariam igualmente, ninguém
perderia nada, pois,
Atenção

[...] este ato de associação produz, em lugar da pessoa


particular de cada contratante, um corpo moral coletivo
composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade,
seu eu comum, sua vida e sua vontade. (ROUSSEAU, Do
Contrato Social. In Coleção Os Pensadores, 1979)

Nestes termos, o homem abdica de sua liberdade pelo pacto social, mas
como faz parte do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si próprio, sendo,
conseqüentemente, livre. Na concepção do autor, o contrato social não faz o
indivíduo perder sua soberania pois não institui um Estado separado de si me=mo, já
que

o ato pelo qual o povo institui um governo não o submete a ele. Ao


contrário, não há um ‘superior’ ao povo, pois os depositários do
poder não são os senhores do povo, mas seus oficiais, e o povo
pode elegê-los e destituí-los quando lhe aprouver. Os magistrados
que constituem o governo apenas executam as leis, estando
subordinados ao poder de decisão do soberano.
O soberano é o povo incorporado, é o corpo coletivo que expressa
através da lei, a vontade geral. A soberania do povo, manifesta pelo
legislativo, é inalienável, ou seja, ela não pode ser representada. A

corpo com várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras
agudas algumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música - em uma palavra:
enquanto só se dedicavam a obras que um único homem podia criar e a artes que não solicitavam o
concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua
natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o
instante em que um homem sentiu necessidade de socorro de outro, desde que percebeu ser útil a
um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o
trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se
impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e
crescerem com as colheitas. (ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem da desigualdade entre
os homens. In Coleção Os Pensadores, 1979).
19

democracia rousseauniana critica o regime representativo, pois


considera que toda lei não ratificada pelo povo em pessoa é nula.
Daí preconizar a democracia participativa ou direta. Só se mantém a
soberania do povo através de assembléias freqüentes de todos os
cidadãos. (ARANHA & MARTINS, 1986, p. 257)

Todas essas idéias fervilhavam no continente europeu no Séc. XVIII e


acabaram por dar corpo às reivindicações burguesas, que culminaram com a
revolução Francesa em 1789. O ideário da revolução incorporou o sistema dos
direitos humanos ao direito constitucional moderno.
A primeira divisão dos direitos naturais proposta pela teoria do direito
constitucional foi entre direitos naturais e direitos civis:
• Direitos naturais correspondiam à crença na existência pré-social de
um estado natural do homem, e procuravam garantir as faculdades
primordiais com que a Natureza caracterizara o homem: liberdade
pessoal, de religião, de pensamento.

• Direitos civis corresponderiam à evolução do homem do estado natural


para o estado social, evoluindo-se para um conceito de liberdade civil,
mais restrita que a liberdade individual, já que os seus limites
coincidiam com os da liberdade de outros homens.

Kant foi um dos primeiros a exprimir, em termos definitivos, essa noção de


liberdade civil do indivíduo, limitada dentro do estado pela liberdade dos outros
indivíduos ao propor no seu livro Crítica da Razão Prática (1788), a existência de
uma lei interior a ser regida pelos imperativos categóricos.
Nessa obra de importância capital, tanto pela evolução intelectual do autor
como pelo lugar que ocupa na história do pensamento humano, Kant atribui à ética a
finalidade de descobrir e revelar o princípio que a razão do homem prático – a razão
prática – usa sem o conhecer.
Na constituição da idéia de cidadania deve-se partir , pois, do princípio de
que a teoria jurídica dos direitos humanos se caracteriza pela sua relatividade, em
relação aos próprios homens, mas não em relação ao Estado.
Essa teoria jurídica dos direitos humanos, caracterizada a princípio pela
diferença entre direitos naturais e direitos civis, teve a sua primeira concretização em
sentido amplo, com a Declaração de Direitos inglesa (Bill of Rights), que, como
vimos, influenciou o pensamento de Montesquieu, já em 1689, cem anos antes da
20

Revolução Francesa. Por essa lei, foram introduzidas, na Inglaterra, várias medidas
que, mais tarde, se tornariam parte do regime democrático, tais como eleições livres
para o parlamento, liberdade de debates dentro dele, supressão de penalidades
cruéis, proibição de encargos fiscais sem autorização legislativa, contudo, ainda, os
direitos dos indivíduos apareciam de forma reflexa, como decorrência dos deveres
impostos à coroa, isto é, ao Estado.
Foi somente após a independência dos Estados Unidos, com as
constituições escritas dos estados na nova federação, que as Declarações de
Direitos, inseridas nesses documentos, adquiriram o caráter de relação de direitos
oponíveis aos do Estado e de que todos os cidadãos eram sujeitos de direitos.
Como exemplo, a Constituição da Virgínia, de 1776, (Virginia’s 1776
Declaration of Rights), diz expressamente:

[...] todos os homens são naturalmente livres e independentes e


dispõem de certos direitos, dos quais, quando entram em estado
social, eles não podem, por nenhum título, privar os seus
descendentes; notadamente o gozo da vida e da liberdade, a
aquisição e manutenção da propriedade, e a procura de segurança
e felicidade.

Com esse documento legal, os direitos humanos adquiriam, pela primeira


vez, forma positiva, ficando superada a fase em que eles decorriam implicitamente
de limitações impostas ao arbítrio do Estado.
Essas idéias foram ratificadas na emenda constitucional americana de
1791, que incluia na Constituição dos Estados Unidos uma Declaração de Direitos.
Em resumo, tal emenda contém as seguintes disposições: liberdade de religião, de
palavra, de imprensa, de reunião e de petição, direito a julgamento legal e público,
proibição de penalidades cruéis.
1791 foi também o ano de promulgação da Constituição Francesa pós-
revolução. A Assembléia Nacional, na qual se transformara a reunião dos Estados
Gerais, nomeou, em 6 de julho de 1789, uma comissão especial incumbida de
preparar o projeto da Constituição. No dia 14 (data da queda da Bastilha), a
Assembléia decidiu que a Constituição deveria ter uma Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão (Déclaration des droits de l’homme et du citoyen), que, votada
em 1789, figura como preâmbulo da Constituição Francesa de 1791. Composta de
17 artigos, contém, basicamente, as seguintes disposições: princípio de isonomia
21

(igualdade perante a lei), liberdade pessoal, de opinião, de religião, de imprensa,


justiça fiscal, separação de poderes e direito de propriedade.
A partir desses textos precursores, as declarações de direitos tornaram-se
comuns nas constituições do mundo ocidental, no decorrer do século XIX. A
importância adquirida por elas foi tão grande que o direito constitucional clássico
considerava que as leis fundamentais continham, essencialmente, duas partes: uma
destinada à definição dos poderes e ao seu funcionamento e outra, destinada aos
direitos e garantias individuais.
No Brasil, a definição de Rui Barbosa, do século XIX, a respeito da ciência
jurídica e dos direitos e garantias individuais é antológica:

Uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos que


essas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança,
política ou judicial. Os direitos são aspectos, manifestações da
personalidade humana em sua existência subjetiva, ou nas suas
situações de relações com a sociedade, ou os indivíduos que a
compõem. As garantias constitucionais, stricto sensu, são as
solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos
contra os abusos de poder.

Esclarecendo seu pensamento, Rui Barbosa apresentava o quadro dos


direitos individuais definidos e das respectivas garantias asseguradas, de forma a
tornar facilmente apreensível o caráter complementar da garantia em relação ao
direito. Um exemplo clássico de direito individual e de sua garantia é o da liberdade
pessoal e do recurso do habeas corpus.
As transformações sociais trazidas pela evolução da economia e dos
meios de produção foram alterando, na teoria do direito constitucional, as
concepções clássicas dos direitos individuais. A intervenção crescente do Estado em
todos os setores da vida coletiva determinou uma série de novas regras jurídicas em
que o indivíduo era menos visado que o grupo, ou seja, aos direitos individuais do
Estado Liberal foram sendo acrescidos certos direitos sociais, reconhecidos pelo
Estado.
Uma discussão complementar a este tema seria o estudo do papel a ser
desempenhado pelo Estado15 na constituição da cidadania, pois se o cidadão é
sujeito de direitos, ao Estado cabe a garantia dos mesmos.

15
Para Hegel, o Estado é uma das mais altas sínteses do espírito objetivo. O Estado sintetiza, numa realidade
coletiva, a totalidade dos interesses contraditórios entre os indivíduos. Assim como a família é a síntese dos
22

Fica-nos então a questão, a quais direitos nos referimos quando falamos


em direitos do cidadão brasileiro? Um bom guia para nortear a nossa reflexão pode
ser a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da qual o Brasil é um
dos países signatários. Cotejá-la à nossa Constituição Federal, de 1988, alterada
pelas inúmeras Emendas Constitucionais em vigor, pode mostrar-se um exercício
interessante para a reflexão e construção do que seja (ou do que deveria ser)
cidadania hoje no nosso país.
A partir daí, poderíamos sonhar com uma cidadania planetária? É o que
discutiremos no próximo tema.

QUESTÕES PROPOSTAS

1. Em que tipo de contexto nasceu a necessidade de caracterizar/construir os


direitos do homem?

2. Os filósofos da "era moderna" partilhavam as mesmas ideias sobre o homem?


Exemplifique.

3. Por que a Constituição da Virgínia, de 1776, é tão importante para a consolidação


dos direitos dos homem?

interesses contraditórios entre seus membros, e a sociedade civil a síntese que supera as divergências entre as
diversas famílias, o Estado representa a unidade final, a síntese mais perfeita que supera a contradição
existente entre o privado e o público. Portanto, o Estado se define por não possuir nenhum interesse particular,
mas apenas os interesses comuns e gerais a todos. (ARANHA & MARTINS, 1986, p. 264)
23

3 ÉTICA E CIDADANIA

Considera a pior das iniqüidades submeter alguém o seu


espírito à vergonha e, por amor à vida, perder as razões
de viver.
Juvenal
O rei pode determinar o meu destino terreno, mas não
pode forçar-me a negar minha consciência e minhas
convicções íntimas.
Emanuel Kant

Para Kant, os seres humanos têm um valor intrínseco, isto é, dignidade,


porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as
suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta
pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a
encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as
criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido
de dever, fazê-lo. Isto, pensava Kant, é a única coisa com valor moral. Assim, se não
existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente
desapareceria.
Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo
de coisa valiosa entre outras. Eles são os seres para quem as meras coisas têm
valor, e são os seres cujas ações conscientes têm valor moral. Kant conclui, pois,
que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer
outra coisa.
Se o seu valor está acima de qualquer preço, segue-se que os seres
racionais têm de ser tratados sempre como um fim e nunca apenas como um meio.
Isto significa, a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência
relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar;
temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, empenhar-
nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros.
No entanto, a idéia de Kant tem também uma implicação um tanto ou
quanto mais profunda. Os seres de que estamos a falar são racionais, e tratá-los
como fins em si significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos
manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos objetivos, por melhores
24

que esses objetivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo: suponha que você
precisa de dinheiro e queira um empréstimo, mas saiba que não será capaz de
devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de
maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez
precise do dinheiro para um propósito meritório — tão bom, na verdade, que poderia
convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse
ao seu amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo como um meio.
Por outro lado, como seria tratar o seu amigo como um fim? Suponha que
você dissesse a verdade, que precisava do dinheiro para um certo objetivo mas que
não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão
sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar
os seus próprios valores e desejos, e fazer uma escolha livre e autônoma. Se
decidisse, de fato, emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, escolheria fazer
seu esse objetivo. Dessa forma, você não usaria o seu amigo como um meio para
alcançar o seu objetivo, pois seria agora igualmente o objetivo dele. É isto que Kant
queria dizer quando afirmou que os seres racionais […] têm sempre de ser
estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que têm de
poder conter em si a finalidade da ação.
A concepção kantiana da dignidade humana não é fácil de entender;
precisamos encontrar uma forma de tornar a idéia mais clara. Para isso,
analisaremos mais detalhadamente uma das suas aplicações mais importantes: a
cidadania.
As ações humanas são mediadas tanto pela percepção do real como pela
capacidade de dar diferentes respostas frente a um estímulo. Como já vimos, os
diferentes grupos humanos criaram diferentes formas de responder às suas
necessidades. Formas estas ligadas à sua cultura, aos valores que criaram e
passaram a cultuar.
Assim, a moralidade está presente em todas as culturas e ganha
concretude quando analisamos o comportamento de cada pessoa em relação a si
própria e aos outros, um povo em relação às suas condicionantes internas e na
relação com outros povos.
É no viver em sociedade, na pólis, na “cidade” que se configuram valores,
estabelecem-se direitos, prescrevem-se normas, regras e leis e é, também nesse
espaço de cidadania que normas, regras e leis podem ser contestadas, a partir da
25

proposição de novos valores. Há, portanto, um caráter histórico na definição da


moralidade, como vimos nos temas anteriores.
Atualmente, discutimos questões como a igualdade e a diferença entre os
seres humanos, grupos culturais e classes sociais. Continuamos enfrentando
situações em que se negam e desrespeitam os direitos dos seres humanos, em que
dominam os preconceitos e a violência, mas, por outro lado, essas formas de
discriminação têm sido veementemente denunciadas, o que abre um espaço para a
discussão da tolerância.
Nesta medida, o exercício da cidadania coloca-se como a possibilidade de
escolha inerente a todos os seres humanos. Escolher significa valorar. Poder
escolher implica em liberdade, o que por sua vez implica em responsabilidade.
Exercer a cidadania de uma forma ética poderia, talvez ser definido como
o ato de se fazer livremente e de maneira responsável a escolha de valores de
convivência que garantam que o outro seja tratado como um fim.
As dimensões do ato humano trariam, nesta medida, a relação necessária
entre querer, poder e dever.

Atenção

Cada uma dessas dimensões ganha sentido na articulação com


as demais: não adianta querer realizar um gesto bom se não se
pode realizá-lo; não adianta poder se não se tem consciência do
que se deve fazer; não adianta saber o que se deve fazer se não
se quer empenhar a vontade em fazê-lo; etc.

Em todas as sociedades humanas há razões para a obediência e para a


rebeldia; a responsabilidade implica no conhecimento dessas razões e na
consideração das implicações das escolhas para aqueles a quem se dirigem nossos
atos ou para aqueles com quem os compartilhamos.
Apostar na escolha individual não quer dizer, contudo, que haja uma moral
individual. É dentro do contexto social, dos grupos de que faz parte, que o indivíduo
desenvolve suas potencialidades, inclusive sua moralidade, pois a relação de
responsabilidade envolve poder e interdependência. Como descrito nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (MEC, 1998),
26

[...] ela [a moralidade] remete, assim, de certo modo, à noção de


cuidado. Ser responsável é ter cuidado com o poder que se exerce,
ao realizar escolhas e definir caminhos para a ação. É preciso ter
claro, portanto, que o que se verifica é um posicionamento de cada
pessoa frente aos valores e princípios que são criados e que têm
significação no âmbito mais amplo de uma comunidade humana.

A ação humana é presa do cotidiano, cercada pelos ditames da Moral,


exercer a cidadania nesse contexto, tratando os outros como fim em si mesmos
seria, na concepção kantiana, iluminar este caminho com as luzes da Ética.
Como fazê-lo? Ter clareza racional acerca do imperativo categórico de
não-mediatização do homem, para poder fazer uma leitura crítica da moral vigente.
Ainda como afirmado nos PCNs,

A ética é a reflexão crítica sobre a moralidade. Ela não tem um


caráter normativo, pois, ao fazer uma reflexão ética, pergunta-se
sobre a consistência e a coerência dos valores que norteiam as
ações, busca-se esclarecer e questionar os princípios que orientam
essas ações, para que elas tenham significado autêntico nas
relações. Há uma multiplicidade de doutrinas morais que, pelo fato
de serem históricas, refletem as circunstâncias em que são criadas
ou em que ganham prestígio. Assim, são encontradas doutrinas
morais cujos princípios procuram fundamentar-se na natureza, na
religião, na ciência, na utilidade prática. As questões que se colocam
a respeito das ações encontram resposta, de imediato, nas diversas
doutrinas. Para a pergunta "por que devemos agir de determinada
maneira?", encontram-se respostas diversas, como: "porque está
escrito nos Mandamentos", "porque está demonstrado pela teoria x',
"porque traz vantagens" etc. A pergunta crítica colocada pela ética é
de natureza diferente, pois sua intenção é problematizar exatamente
os fundamentos. Ela indagará: "que valores sustentam os
Mandamentos?”, "qual o suporte da teoria x?”, "para quem tal ação
traz vantagens?”. A ética serve, portanto, para verificar a coerência
entre práticas e princípios, e questionar, reformular ou fundamentar
os valores e as normas componentes de uma moral, sem ser em si
mesma normativa. Entre a moral e a ética há um constante
movimento que vai da ação para a reflexão sobre seus sentidos e
seus fundamentos e, da reflexão retorna à ação, revigorada e
transformada.

Se a moral é circunstancializada historicamente e a ética nos permite uma


leitura mais profunda dessas circunstâncias, as relações entre ética e cidadania
colocam-se na justa medida da adesão racional a valores que permitam a todos a
busca da felicidade, pois as vivências particulares cruzam-se na construção coletiva
das sociedades e culturas, e umas e outras ganham sua configuração específica em
função das condições particulares dos seres humanos e dos ambientes - físico-
biológicos e histórico-econômico-políticos - nos quais estes vivem. De qualquer
27

modo, a dimensão moral das ações humanas guarda uma perspectiva de


intencionalidade. Ao agir no mundo, construindo sua vida, na relação com os outros,
o ser humano o faz com vistas à sua realização, ou seja, em busca da felicidade.
Na perspectiva que discutimos nesta disciplina, a felicidade confundir-se-ia
com a realização do bem-comum pois,

[...] ser cidadão é participar de uma sociedade, tendo direito a ter


direitos, bem como construir novos direitos e rever os já existentes.
Participar é ser parte e fazer parte - com seu fazer, sua interferência
criativa na construção da sociedade, os indivíduos configuram seu
ser, sua especificidade, sua marca humana. Admitir e defender
direitos humanos significa reconhecer não apenas esta ou aquela
propriedade de alguns sujeitos, mas que o direito de ser humano é
um estatuto que todas as pessoas têm o dever moral de, consciente
e voluntariamente, conceder-se umas às outras. (PCNs, 1998)

Ou, ainda, como nos ensinava Kant,

[...] devo esforçar-me por promover a felicidade do próximo, não


como se com isso favorecesse qualquer interesse meu (seja por
inclinação imediata seja por qualquer satisfação diretamente obtida
através da razão), mas simplesmente porque uma máxima que a
excluísse não poderia ser compreendida como lei universal em uma
única e mesma volição.

QUESTÕES PROPOSTAS

1. Para o filósofo Immanuel Kant, os seres racionais têm de ser tratados sempre
como um fim e nunca apenas como um meio. O que isso significa? Para o indivíduo,
a noção de fim implica em certas restrições?

2. Pensando nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais - MEC/1998) e em como


abordam a questão da moral (como moralidade), por que eles acabam destacando a
noção de cuidado? Explique.
28

4 O PAPEL DA INSTITUIÇÃO ESCOLA NA CONSTRUÇÃO DO JUÍZO


MORAL DOS EDUCANDOS

A criança tem em si mesma um impulso natural


irresistível; a tendência ao crescimento. Não pode
renunciar a isso para se adaptar às exigências sociais.
Ela se defende contra tudo o que impede a sua energia
de desenvolvimento, porque, a todo preço, deve crescer,
sob pena de morrer. Se ela só parcialmente se adaptar,
sua adaptação não aumenta o equilíbrio social, mas
produz unicamente um homem mal desenvolvido e
enfraquecido [...] A nossa tarefa de adulto consiste, pois,
em criar para a criança um ambiente apropriado, onde a
cada etapa ela encontre os meios necessários ao seu
desenvolvimento. Depois só nos restará observar a
criança para secundá-la o melhor que pudermos. Eis aí
toda a obra do educador. Seu papel torna-se destarte
mais humilde e sua autoridade se apaga ante o impulso
criador da criança.
Maria Montessori

Um processo educacional que pretenda formar para a cidadania não pode


desconsiderar o processo de formação do juízo moral nas crianças e nos
adolescentes.
Jean Piaget16 foi um dos teóricos que produziram conhecimentos que
podem dar suporte à ação docente em relação a esta questão.

16
Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, no dia 9 de agosto de 1896 e faleceu em Genebra em
17 de setembro de 1980. Estudou a evolução do pensamento até a adolescência, procurando
entender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza para captar o mundo. Como epistemólogo,
investigou o processo de construção do conhecimento, sendo que nos últimos anos de sua vida
centrou seus estudos no pensamento lógico-matemático. Piaget foi um menino prodígio. Interessou-
se por História Natural ainda em sua infância. Aos 11 anos de idade, publicou seu primeiro trabalho
sobre a observação de um pardal albino. Esse breve estudo é considerado o início de sua brilhante
carreira científica. Aos sábados, Piaget trabalhava gratuitamente no Museu de História Natural. Piaget
freqüentou a Universidade de Neuchâtel, onde estudou biologia e filosofia. E recebeu seu doutorado
em biologia em 1918, aos 22 anos de idade. Após formar-se, Piaget foi para Zurich, onde trabalhou
como psicólogo experimental. Lá, ele freqüentou aulas lecionadas por Jung e trabalhou como
psiquiatra em uma clínica. Essas experiências influenciaram-no em seu trabalho. Ele passou a
combinar a psicologia experimental – que é um estudo formal e sistemático – com métodos informais
de psicologia: entrevistas, conversas e análises de pacientes. Em 1919, Piaget mudou-se para a
França onde foi convidado a trabalhar no laboratório de Alfred Binet, um famoso psicólogo infantil que
desenvolveu testes de inteligência padronizados para crianças. Piaget notou que crianças francesas
da mesma faixa etária cometiam erros semelhantes nesses testes e concluiu que o pensamento se
desenvolve gradualmente. O ano de 1919 foi um marco em sua vida. Piaget iniciou seus estudos
experimentais sobre a mente humana e começou a pesquisar também sobre o desenvolvimento das
habilidades cognitivas. Seu conhecimento de biologia levou-o a enxergar o desenvolvimento cognitivo
de uma criança como sendo uma evolução gradativa. Em 1921, Piaget voltou à Suíça e tornou-se
diretor de estudos do Instituto J. J. Rousseau da Universidade de Genebra. Lá ele iniciou o maior
trabalho de sua vida, ao observar crianças brincando e registrar meticulosamente as palavras, ações
e processos de raciocínio delas. Em 1923, Piaget casou-se com Valentine Châtenay com quem teve
29

Piaget estudou a construção da moralidade sob uma dupla


perspectiva: de um lado, pesquisou o pensamento moral efetivo ou experiência
moral, que se constrói pouco a pouco, por meio da ação individual, isto é, através
dos fatos e por ocasião dos conflitos com o social; por outro lado, estudou o
pensamento moral teórico ou verbalizado, que aparece quando o indivíduo é levado
a julgar os atos de outras pessoas que lhe interessam diretamente ou a própria
conduta passada.

Atenção

Piaget, então, estudou a construção da moralidade sob


uma dupla perspectiva: pesquisando o pensamento moral
efetivo ou a experiência moral, e pesquisando o
pensamento moral teórico ou verbalizado.

O próprio Piaget considerou que os julgamentos verbais, baseados em


atos não praticados e não testemunhados não levam a uma avaliação ideal da
construção do juízo moral. Considerou que os julgamentos apoiados na narração de
histórias estão em atraso em relação às avaliações apoiadas na experiência, pois o
grau de tomada de consciência difere em ambas as situações. Quando exerce um
julgamento prático ou efetivo, a criança não projeta luz sobre noções já elaboradas,
mas as constrói, num processo complexo e demorado.
Os julgamentos morais podem estar associados a dois tipos de
responsabilidades: objetiva e subjetiva. A primeira ocorre quando o indivíduo se
sente responsável por um ato proibido por uma autoridade externa, por uma ação
que se choca com as normas impostas de fora; já a segunda acontece quando o
indivíduo se sente responsável por um ato censurado por ele mesmo, que vai contra
as normas construídas e sancionadas por ele, em cooperação com a sociedade.
Como tais formas de julgamento são apropriadas pelo indivíduo?

3 filhos: Jacqueline (1925), Lucienne (1927) e Laurent (1931). As teorias de Piaget foram, em grande
parte, baseadas em estudos e observações de seus filhos que ele realizou ao lado de sua esposa.
Enquanto prosseguia com suas pesquisas e publicações de trabalhos, Piaget lecionou em diversas
universidades européias. Registros revelam que ele foi o único suíço a ser convidado a lecionar na
Universidade de Sorbonne (Paris, França), onde permaneceu de 1952 a 1963. Até a data de seu
falecimento, Piaget fundou e dirigiu o Centro Internacional para Epistemologia Genética. Ao longo de
sua brilhante carreira, Piaget escreveu mais de 75 livros e centenas de trabalhos científicos.
30

A criança aprende socialmente a respeitar normas e regras, por meio


de dois tipos de relações sociais:

• Relações sociais coercitivas: são impostas e baseiam-se na


autoridade e no respeito do inferior ao superior, levando à chamada
moral heterônoma. Um exemplo claro de tal situação refere-se às
crianças pequenas que, não podendo criar suas normas em
colaboração com o ambiente, interiorizam as normas dos pais ou da
sociedade.

• Relações sociais cooperativas: nascem no interior do indivíduo como


produto da comunhão de idéias e sentimentos entre parceiros,
baseando-se na igualdade e no respeito mútuo. Daí decorre a moral
autônoma que obriga os indivíduos a situarem-se em relação aos
outros, sem fazê-los suprimirem ou abandonarem seus pontos de
vistas particulares.

No seu estudo com crianças pequenas, Piaget constatou que se as regras


são elaboradas pelos adultos, torna-se difícil separar o respeito que as crianças têm
por essas regras do respeito que têm pelo adulto que as elabora, ou seja, como
separar a obediência da regra por achá-la justa da obediência à regra por amor à
pessoa que a emite.
Tentando superar essa dificuldade na pesquisa17, Piaget propôs-se a
trabalhar com jogos, o que facilitou o estudo de duas classes de fenômenos, a
prática de regras e a consciência das regras, ou seja, o modo de jogar e o
sentimento de validade e obrigatoriedade das regras aplicadas.
O estudo levou Piaget a concluir que existem três tipos de regras:

• Motora: relativamente independente do social, confunde-se com a


seqüência de ações realizadas no hábito;

• Coercitiva: derivada do respeito unilateral que submete um indivíduo


ao outro;

17
O trabalho de pesquisa aqui citado é descrito na obra O Julgamento Moral na Criança, publicado
em francês em 1932 e traduzido para o português em 1977.
31

• Racional: originada do respeito mútuo e da cooperação entre iguais.


Sendo interna, torna-se produto da personalidade e, de forma circular,
fator de formação da própria personalidade.
No transitar da regra motora à regra racional existe a intervenção do
respeito unilateral e do respeito mútuo. No primeiro há a imposição do ambiente
social, pois as crianças não distinguem o seu eu subjetivo do outro, tendo dificuldade
de saber o que inventam por si mesmas e o que é inventado pelos outros, em
distinguir o subjetivo do objetivo, assim, as sugestões externas, que são
interiorizadas, aparecem à consciência infantil como se fossem suas, e passam a
orientar suas condutas.
Para Piaget, a criança só vai tomar consciência do seu próprio eu ao se
libertar do pensamento e da vontade do outro, o que só será fruto de uma
convivência social que permitir discussões e trocas sociais verdadeiras.
Um outro autor importante para que possamos compreender a construção
da mente no interior da prática social é Vygotsky18.

18
Lev Semionovitch Vygotsky (variações de tradução encontradas: Vigotski, Vygotski ou
Vigotsky) (russo Лев Семёнович Выготский, transliteração: Lev Semënovič Vygotskij, nasceu a 17
de Novembro de 1896, em Orsha e faleceu em 11 de Junho de 1934, Moscou) foi um psicólogo bielo-
russo, descoberto nos meios acadêmicos ocidentais depois da sua morte, causada por tuberculose,
aos 37 anos. Pensador importante, foi pioneiro na noção de que o desenvolvimento intelectual das
crianças ocorre em função das interações sociais (e condições de vida). As obras de Vygotsky
incluem alguns conceitos que se tornaram incontornáveis na área do desenvolvimento da
aprendizagem. Um dos conceitos mais importantes é o de Zona de Desenvolvimento Proximal, que
se relaciona com a diferença entre o que a criança consegue aprender sozinha e aquilo que
consegue aprender com a ajuda de um adulto. A Zona de Desenvolvimento Proximal é, portanto, tudo
o que a criança pode adquirir em termos intelectuais quando lhe é dado o suporte educacional
devido. Este conceito será, posteriormente desenvolvido por Bruner, sendo hoje vulgarmente
designado por etapa de desenvolvimento. Outra contribuição vygotskiana de relevo foi a relação que
estabelece entre pensamento e linguagem, desenvolvida no seu livro Pensamento e Linguagem. É
chamado por muitos de "o Mozart da Psicologia". Vygotsky é o grande fundador da escola soviética
de psicologia, principal corrente que, hoje, dá origem ao socioconstrutivismo. Em sua curta vida,
Vygotsky foi autor de uma obra muito importante. Seus primeiros estudos foram voltados para a
psicologia da arte. Extremamente culto, tinha entre seus amigos o grande cineasta Serghei
Eisenstein, admirador de seu trabalho. O contexto em que Vygotsky viveu ajuda a explicar o rumo
que seu trabalho tomou: suas idéias foram desenvolvidas na União Soviética saída da Revolução
Comunista de 1917 e refletem o desejo de reescrever a psicologia, com base no materialismo
marxista, e construir uma teoria da educação adequada ao mundo novo que emergia dos escombros
da revolução. O projeto ambicioso e a constante ameaça da morte (a tuberculose se manifestou
desde os 19 anos de idade e foi responsável por seu fim prematuro) deram ao seu trabalho,
abrangente e profundo, um caráter de urgência. Para Vygotsky, o que nos torna humanos é a
capacidade de utilizar instrumentos simbólicos para complementar nossa atividade, que tem bases
biológicas. Em um pequeno artigo sobre o jogo infantil, diz que as formas tipicamente humanas de
pensar surgem, por exemplo, quando uma criança pega um cabo de vassoura e o transforma em um
cavalo, ou em um fuzil, ou em uma árvore... Os chimpanzés, por mais inteligentes que sejam, podem
no máximo utilizar o cabo de vassoura para derrubar bananas, por exemplo, e jamais para criar uma
situação imaginária. O que nos torna humanos, segundo Vygotsky, é nossa capacidade de imaginar...
A linguagem é uma espécie de "cabo de vassoura" muito especial, capaz de transformar
32

Uma das correntes psicológicas que mais claramente propôs os objetivos


anteriores foi a psicologia sociocultural, desenvolvida, em grande parte, graças às
idéias de Vygotsky. No século passado, a partir da década de 1920, formou-se uma
escola psicológica russa que, inspirada nas idéias de Marx e, de modo especial, nas
formulações expressas em suas obras Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã,
colocou a atividade ou a prática humana como princípio explicativo da constituição
humana e principal preocupação com vistas a seu conhecimento e sua
transformação. Inspirados por essa orientação filosófica, Vygotsky e, um pouco mais
tarde, Luria e Leontiev desenvolveram uma nova visão sobre a mente humana.
As contribuições desses autores articularam-se, em torno de uma
psicologia histórico-cultural, atenta à mediação cultural da consciência e a uma
psicologia da atividade, preocupada em estudar a ação orientada para objetivos e
mediada por ferramentas. A distinção e a ligação entre ambos os pontos de vista
foram muitas vezes influenciadas por fatores políticos. Mais adiante, até os anos
1970, essas idéias penetraram no Ocidente, e foram adotadas e desenvolvidas.

Atenção

A preocupação central da psicologia sociocultural é dar à


sociedade e à cultura um lugar no mesmo nível do biológico
e do mental na explicação do ser humano.

Trata-se, pois, de elaborar uma explicação dos processos mentais


humanos que contemple a relação entre tais processos e os cenários sociais,

decisivamente os rumos de nossa atividade. Quando aprendemos a linguagem específica de nosso


meio sociocultural, transformamos radicalmente os rumos de nosso próprio desenvolvimento. Assim,
podemos ver como a visão de Vygotsky dá importância à dimensão social, interpessoal, na
construção do sujeito psicológico. Grande parte de sua obra está sendo divulgada somente agora, até
mesmo na União Soviética (suas idéias entraram no grande expurgo promovido por Stalin e
sobreviveram somente graças à devoção de um grupo de discípulos), e sua teoria sociocultural do
desenvolvimento deve ser cada vez mais pesquisada ao entrarmos no século XXI. Na área
educacional, a influência de Vygotsky também vem crescendo cada vez mais e dando origem a
experiências das mais diversas. Não existe um método Vygotsky. Como Piaget, o psicólogo bielo-
russo é mais uma fonte de inspiração do que um guia para os pedagogos.
33

culturais, históricos e institucionais onde eles se desenvolvem. A cultura não é a


causa externa que desencadeia os processos mentais, mas é parte da mente, e a
mente é parte da cultura; resumindo, trata-se de uma realidade única. A partir dessa
hipótese de trabalho inicial, a psicologia sociocultural foi desenvolvendo um conjunto
de temas que constituem uma verdadeira agenda de trabalho ou um programa de
pesquisa.

As características principais da psicologia cultural são as seguintes:

• Destaca a ação medida num contexto.

• Insiste na importância do “método genético” entendido amplamente


para incluir os níveis histórico, ontogenético, microgenético de análise.

• Trata de fundamentar suas análises em acontecimentos da vida diária.

• Supõe que a mente surge da atividade mediada conjunta das pessoas.


A mente é, portanto, num sentido importante, “co-construída” e
distribuída.

• Supõe que os indivíduos são agentes ativos em seu próprio


desenvolvimento, mas não atuam em ambientes totalmente de sua
própria escolha.

• Rejeita a ciência explicativa causa-efeito e estímulo-resposta, em favor


de uma ciência que reitere a natureza emergente da mente na
atividade e que reconheça um papel central para a interpretação em
seu âmbito explicativo.

• Recorre a metodologias das áreas humanas, assim como das ciências


sociais e biológicas.

Não cabe aqui apresentar todas as características da psicologia cultural,


mas, pelo menos, um esboço daquelas que mais podem ajudar-nos a compreender
de que modo construímos a personalidade moral no seio das atividades cotidianas
dos contextos socioinstitucionais que freqüentamos.
Essa foi uma das principais preocupações de Vygotsky. Como já
dissemos, o autor partia da convicção de que era impossível compreender a mente
humana separando e analisando isoladamente suas distintas funções. Ao contrário,
34

somente mediante o estudo de sua inter-relação seria verdadeiramente possível


alcançar uma compreensão adequada de seu funcionamento. Entretanto, o
problema reside no fato de que a inter-relação não poderia ser conseguida a
posteriori por composição de achados analíticos, e tampouco seria possível levar a
cabo um estudo empírico partindo da mera afirmação da interfuncionalidade da
mente. Observar a mente em toda a sua complexidade não era possível, e Vygotsky
não queria cair na redução condutivista ou na compreensão subjetiva que propunha
a introspecção. Ter acesso à complexidade da mente requeria encontrar uma
unidade de análise que fosse observável, manejável e que, ao mesmo tempo, se
comportasse como um microcosmo de todas as funções mentais. Portanto, a tarefa
da psicologia centrava-se na busca de uma unidade que cumprisse todos esses
requisitos.
Por outro lado, também dessa nossa perspectiva eminentemente
pedagógica, o fato de encontrar uma unidade de análise apropriada significa obter,
ao mesmo tempo, uma unidade de intervenção educacional. Onde atuar para formar
os distintos componentes da inteligência moral, para aprender a considerar os
conflitos de valor e para adquirir e usar a cultura moral? Esse espaço é a unidade de
análise, e, portanto, também é a unidade de intervenção educacional. Não é por
acaso que uma das recomendações clássicas para pensar em uma unidade de
análise adequada tenha sido a colocação de problemas empíricos concretos, ou
simplesmente observação da vida cotidiana.
Vygotsky tentou resolver o problema da unidade de análise propondo a
palavra como a melhor opção para obter um estudo unificado da complexidade
interfuncional da mente. O estudo do significado da palavra deveria permitir entender
o pensamento e, a partir daí, chegar a compreender o conjunto da consciência.
Entretanto, a palavra talvez possa servir como instrumento de mediação semiótica
da consciência, mas é insuficiente como unidade para abordar o conjunto do
desenvolvimento humano. Nas palavras, não vemos refletidas, de maneira
nenhuma, as diversas funções da mente. Que instância, então, pode desempenhar o
papel da unidade?
A resposta a essa questão foi proposta por Leontiev, com uma substancial
mudança de rumo: o desenvolvimento da teoria da atividade. Essa mudança de
direção, no entanto, aproveitou muitas idéias do próprio Vygotsky. Influenciado pelo
pensamento de Marx e, concretamente, pela primeira tese sobre Feuerbach,
35

considera que, para explicar o desenvolvimento do psiquismo, é imprescindível


observar a atividade ou práxis humana. A chave da consciência está na atividade.
Apoiando-se nessa idéia, Leontiev propõe a atividade como melhor unidade de
análise. Na realidade, e dentro de uma teoria global da atividade, distingue três
níveis distintos e relacionados, que servem de base a três unidades de análise. A
atividade, agora entendida não como atividade humana genérica, mas como
processo concreto, refere-se às formas mais gerais e amplas de organizar os
comportamentos dos sujeitos em relação com seu meio. Buscam uma correta
adaptação e são guiadas por motivações vitais do indivíduo ou da comunidade. As
atividades são compostas por várias ações, e as ações, por sua vez, podem fazer
parte de diferentes atividades. As ações caracterizam-se por serem comportamentos
que perseguem metas ou objetivos precisos. Por último, as operações referem-se à
realização das ações sob condições espaço-temporais concretas, de modo que é
possível torná-las rotineiras, enquanto o ambiente não se modificar de maneira
substancial. De acordo com as diferentes condições em que é realizada, uma
mesma ação será operacionalizada de maneira diferente. Portanto, a relação entre
ação e operação é tão próxima que muitas vezes se fala delas simultaneamente.
Se Leontiev, ao falar da unidade de análise, abriu as portas à teoria da
atividade, mais tarde Zinchenko e Wertsch (1981) propuseram novos matizes que,
ao mesmo tempo, enriquecem a busca de uma melhor unidade e aperfeiçoam a
teoria da atividade. Ambos propuseram como unidade adequada a “ação mediada
por instrumentos”. Na realidade, tal proposta leva em conta o trabalho de Vygotsky
sobre o significado da palavra, mas não a situa como unidade, e sim como mediação
da ação. Decorre daí que sua proposta de unidade não seja nem a palavra, nem a
ação simplesmente, mas a ação mediada — ação mediada pela palavra, ou outros
signos ou símbolos, ou ainda por instrumentos ou ferramentas não semióticos de
outra natureza. Entre o sujeito que atua e o mundo, coloca-se um elemento
mediador que transforma o sujeito, o mundo e a relação entre ambos
Entretanto, se consideramos a ação mediada como unidade de análise,
perdemos a definição do papel do contexto em que se produz a ação. Na realidade,
fazemos desaparecer o cenário da definição da unidade. Ninguém duvida da
existência de um ambiente onde a ação é levada a cabo, mas, ao reduzir a unidade
a ação mediada, o ambiente passa a ser uma preocupação posterior, separada e
talvez acrescentada ao estudo da ação. E essa manobra, na verdade, não parece
36

legítima: não existe ação desvinculada do ambiente; na realidade, a ação é


incompreensível quando se quebra sua união com o meio.
Nessa linha — muito fecunda, como se pode intuir pela variedade de
conceitos afins —, destacaremos, em primeiro lugar, os trabalhos de Engeström
(1987). Sua principal contribuição relativa ao que aqui discutimos é um conceito
ampliado de “ação mediada”. Parte do triângulo clássico da ação mediada — sujeito,
instrumentos, objeto —, mas completa-o com três novos elementos que configuram
o ambiente da ação: as regras, a comunidade e a divisão do trabalho. As regras,
enquanto convenções que restringem e possibilitam as ações dentro de um sistema
global de atividade; a comunidade ou o conjunto de sujeitos que compartilham
objetivos similares; e a divisão do trabalho ou distribuição das ações orientadas para
objetivos entre os distintos membros da comunidade. Os três elementos tradicionais
e os três novos elementos propostos por Engeström entrelaçam-se formando um
sistema único, que deve ser o centro da atenção enquanto unidade de análise.
Outra maneira de abordar a ação levada a cabo no interior de um contexto
sociocultural é recorrer ao conceito de “prática”. Entendendo prática não como algo
oposto à teoria, mas como “uma prática”, ou seja, um curso de ações pautadas
culturalmente, um modo estabelecido de realizar certas tarefas.

Definimos as práticas culturais como aquelas atividades para as


quais há expectativas normativas de ação repetidas ou habituais.
(COLE, M. Psicologia cultural. Madri: Morata, 1999, p. 171).

Estamos mais uma vez diante de uma tentativa de equilibrar os pratos da


balança: trata-se de falar da ação humana mediada, mas trata-se de fazê-lo no
interior de fronteiras, pautas e percursos estabelecidos culturalmente. Portanto,
trata-se de compreender o humano em sua globalidade, mediante o estudo da ação
construída culturalmente.
Seja qual for a unidade de análise escolhida, em todos os casos propõe-
se explícita ou implicitamente a participação de algum elemento cultural que atue
como mediador da ação humana. Decorre daí que a noção de “mediação” seja
essencial em toda a psicologia cultural.
O desenvolvimento das idéias de mediação e elemento mediador tem
origem, como tantas outras questões da psicologia cultural, no pensamento de Marx.
Parte-se da tese de que a consciência humana é um produto do trabalho humano;
37

ou seja, o trabalho faz o homem. Podemos chegar a entender o desenvolvimento


psicológico e a mente humana vendo o tipo de atividade prática em que o sujeito
esteve implicado. Mas não basta falar unicamente do trabalho para entender o ser
humano. A partir de certo momento de sua evolução, o trabalho é realizado com a
ajuda de ferramentas. Na realidade, os humanos não são os primeiros seres vivos a
produzir ferramentas, mas são os primeiros a fazê-lo em massa e a usar também em
grande escala os signos linguísticos como ferramentas. São capazes de produzir
artefatos muito variados que lhes permitem transformar sua relação com o ambiente.
Portanto, na gênese dos processos psicológicos de mediação, encontramos a noção
marxista de trabalho e a capacidade de produzir ferramentas e operar com elas. A
mediação supõe colocar um artefato produzido pelos humanos — um elemento
cultural — entre o sujeito e o objeto sobre o qual se realiza a ação, com intenção de
conseguir uma melhoria na consecução dos objetivos perseguidos. Os seres
humanos utilizam instrumentos, elementos mediadores, que lhes facilitam sua
relação com o ambiente. No entanto, as consequências desse comportamento são
enormes, e não se limitam a otimizar a ação, mas chegam a transformar
profundamente o próprio sujeito que idealizou e começou a utilizar os artefatos
mediadores.
Cabe lembrar que os artefatos mediam a ação humana, e que tal processo
acontece no interior de uma prática cultural. Mas deve-se também assinalar que as
próprias práticas podem se converter em instrumentos mediadores no seio de
contextos ampliados. De certo modo, ocorre sobreposição de artefatos, práticas e
meios cada vez mais inclusivos. As práticas, que são compostas de ações
mediadas, convertem-se, por sua vez, em elementos mediadores em atividades
humanas de maior amplitude.
Os processos de mediação constituem um elemento central da psicologia
cultural, na medida em que dão forma a uma idéia essencial: a consciência não é
algo exclusivamente natural, mas é um resultado de complexos processos culturais.
Como surgem as funções mentais superiores?
Vygotsky desenvolve essa tese em direções distintas, entre as quais se
destaca sua formulação da lei genética do desenvolvimento cultural. Uma lei que
afirma que as funções psicológicas superiores aparecem primeiro no plano
interpsicológico, e depois no plano intrapsicológico:
38

Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa se


reconstrói e começa a acontecer
internamente. [...] Um processo interpessoal é transformado em
outro, intrapessoal. No desenvolvimento cultural da criança, toda
função aparece duas vezes: primeiro, no nível social, e, mais tarde,
no nível individual; em primeiro lugar, entre pessoas
(interpsicológica) e, depois, no interior da própria criança
(intrapsicológica). Isso pode ser aplicado igualmente à atenção
voluntária, à memória lógica e à formação de conceitos. Todas as
funções superiores originam-se como relações entre seres
humanos. (VYGOTSKY, L. S. El desarrollo de los procesos
psicológicos superiores. Barcelona, Crítica, 1979, pp. 93 e 94).

Como se assegura a passagem do interpsicológico ao intrapsicológico?


Que propriedades manifestam os processos interpsicológicos que favorecem a
internalização das funções mentais? Partimos da suposição de que as mudanças
produzidas no nível do social manifestam-se de modo específico no nível pessoal ou
interno. Portanto, não se trata de uma passagem brusca do social ao individual, mas
de passos sucessivos, nos quais certas modificações nas relações sociais se
expressam, uma após outra, na internalização experimentada pelos sujeitos
individuais. Daí resulta ser possível falar de um processo entremeado de mudanças
externas e internas. Mas esse vínculo do social com o pessoal não supõe uma cópia
interna do interpsicológico; trata-se de uma transformação profunda.
A internalização das funções mentais supõe uma relação intersubjetiva
que se produz no nível do social. Uma das formas de interação que Vygotsky
estudou com mais cuidado foi a relação entre um adulto e uma criança na Zona de
Desenvolvimento Proximal.

Atenção

A Zona de Desenvolvimeto Proximal define o espaço no qual os


jovens podem realizar algo com a ajuda dos maiores; trata-se da
distância entre o que podem realizar por si mesmos e o que ainda não
podem chegar a realizar de nenhum modo. Portanto, é o espaço do
social, do que são capazes de fazer junto com outras pessoas. Graças
ao trabalho realizado nesse espaço, junto com outros mais
preparados, novas capacidades vão sendo adquiridas e novos
conhecimentos vão sendo aprendidos.
39

Para estudar o que acontece nesse espaço social de aquisição de


conhecimento, é preciso partir do conceito de “definição da situação”, ou seja, da
maneira como se representam ou definem os aspectos relevantes de um setor da
realidade. Tal conceito é importante porque ajuda a definir as fronteiras do que é
compartilhado pelos sujeitos envolvidos numa interação social e, portanto, define o
espaço comum a partir do qual podem ser iniciados processos conjuntos de
aprendizagem.
Apesar da eficácia dos processos de transição do interpsicológico para o
intrapsicológico, algumas funções mentais permanecem sempre, em certa medida,
realizadas socialmente. Trata-se do que se denominou “cognição socialmente
distribuída”. Por outro lado, os processos de interiorização se dão no seio de
instituições sociais fortemente estruturadas, cenários que influem substancialmente
nos processos interpsicológicos e na transição para o intrapsicológico.
Toda a psicologia cultural é um enorme esforço para integrar a cultura no
estudo da mente humana — um ponto de vista psicológico que parte de uma
afirmação primordial: a mente não pode ser compreendida totalmente se a isolarmos
de seu contexto sociocultural. Para levar a cabo este programa, trabalha-se em três
direções: determinar unidades de análise que captem corretamente a complexidade
humana; estudar as ferramentas mediadoras da mente enquanto elementos culturais
e fatores de transformação das capacidades mentais; e examinar os meios de
transmissão sociocultural do conhecimento.
Neste contexto de pensamento, as práticas são uma unidade de análise
ótima e um espaço de mediação cultural e de transmissão social do conhecimento.
No caso das práticas morais, ocorre exatamente a mesma coisa. Portanto, a
psicologia cultural encerra um trajeto que nos levará a ver as cenas escolares que
descrevemos como um espaço onde sujeito e cultura compartilham protagonismo, e
onde a mente individual reflete, de algum modo, as condições socioculturais em que
ela se desenvolve. Explicar esta última idéia foi o desafio que ficou nas mãos da
psicologia cultural.
As práticas morais são obra dos sujeitos que as protagonizam, ou são o
resultado das forças sociais que pautam seus comportamentos? Diante dessa
pergunta, alguns aspectos devem ser precisados. Em primeiro lugar, deve-se propor
o que se convencionou chamar a descentralização do sujeito. Ou seja, não dar aos
participantes um protagonismo absoluto na produção das práticas que levam a cabo.
40

Eles não gozam, portanto, de uma liberdade ilimitada. Mas descentralizar não
significa diluir os sujeitos nas estruturas sociais a ponto de fazê-los perder qualquer
intenção ou qualquer razão eficaz para os seus atos. Os sujeitos não são
inteiramente os produtores de seus atos, porém tampouco são totalmente
determinados pelas forças sociais. Como nos ensina Puig (2004),

[...] fiquemos com a idéia de que os agentes não desaparecem, mas


que as formas sociais, institucionais ou culturais assumem notável
protagonismo, ou, como afirma Maclntyre, as tradições da
comunidade deveriam delimitar as virtudes que convém aos
indivíduos.
Em segundo lugar, cabe reconhecer que é precisamente no espaço
das práticas que se produz a intersecção entre as estruturas e os
agentes. As práticas são produtos culturais da comunidade e, ao
mesmo tempo, são realizações pessoais dos sujeitos participantes.
Além disso, por meio das práticas, os sujeitos se formam e as
estruturas sociais se reproduzem. Portanto, as práticas permitem
superar o dilema entre o objetivismo e o subjetivismo; elas são um
espaço onde a ação expressa as restrições sociais, mas onde essa
mesma ação reproduz e modifica tais condições.
Em terceiro lugar, há uma correspondência entre as estruturas
sociais e as estruturas mentais dos sujeitos. Ou seja, as formas
sociais, as tradições culturais e as instituições não são apenas um
cenário onde atuam os sujeitos, mas são também influências que
dão forma à sua mente, a seu modo de ser e ao conjunto de seus
comportamentos. Dito de outra maneira, os conteúdos que dão
forma aos sujeitos têm uma origem sociocultural. A mente é um
produto da sociedade e da cultura.
Finalmente, em quarto lugar, convém notar uma certa coincidência
com relação à expectativa pouco oportuna de algo moralmente
muito relevante da natureza humana ou de um eu fechado em si
mesmo. Em vez disso, convém destacar a importância do esforço
para construir condições institucionais e práticas sociais que ajudem
a levar a cabo condutas moralmente universalizáveis. A moral é uma
responsabilidade humana, mas é uma responsabilidade exercida,
em grande parte, por meio da criação das condições que convidam
a uma conduta moral ótima ou que permitem mantê-la.

A escola, portanto, deve ser um meio para que a experimentação


individual se equilibre com a reflexão coletiva, pois no respeito mútuo, a cooperação
entre iguais se constitui num método de construção e num método de aplicação da
norma, isto é, de controle recíproco entre parceiros.
Nesse sentido, os métodos de trabalho em grupo e de auto governo
poderiam favorecer o equilíbrio entre o individual e o social.
41

Decorrem, daí, possibilidades de intervenção metodológica: equilibrar


situações de trabalho individual e trabalho coletivo. Piaget, contudo, nos alertou
acerca do perigo de aplicação ou generalização imediata do saber psicológico a
todas as situações pedagógicas.
Estando atentos a esse alerta, cumpre-nos, como docente, encontrar
soluções metodológicas acerca do que ensinar e do porquê fazê-lo.
Uma aprendizagem pode ser desenvolvida de diferentes maneiras, pode
ser realizada de modos distintos, de acordo com o tipo de concretização exigida, ou
ainda, em função do grau de profundidade que se pretende alcançar. Do mesmo
modo, para um aluno, não é a mesma coisa trabalhar sozinho ou em grupo. Cada
um dos aspectos enumerados no quadro abaixo estabelece condições específicas
para a metodologia do ensino e da aprendizagem que se coloca em jogo em
determinada atividade:
• O tipo de competências colocadas em jogo pelos alunos;

• O tipo de produto resultante da aprendizagem;

• O tipo de aprendizagem priorizado na atividade de ensino;

• O tipo e o grau de interação social propostos em determinada aprendizagem;

• A modalidade de avaliação utilizada;

• O tempo disponível para o conjunto da atividade de ensino e aprendizagem e


para cada segmento da mesma;

• O tipo de material disponível;

• O tipo de habilidades que estão sendo analisadas;

• O tipo de pré-requisitos de conhecimentos, de valores, de procedimentos que


são exigidos dos alunos;

• A modalidade organizacional do grupo de alunos.

Deve-se reiterar que um dos elementos fundamentais na aprendizagem –


em qualquer tipo de aprendizagem – é a mobilização das atitudes como pré-requisito
indispensável, mas essa mobilização deve concretizar-se por meio de
aprendizagens funcionais e eficazes. Não é suficiente que o currículo, programa ou
42

projeto seja intrinsecamente interessante para o professor, nem que corresponda a


necessidades objetivas de conhecimento por parte dos alunos, seu desenvolvimento
deve ser capaz de mobilizar condutas distintas, contar com recursos distintos. Para
tanto, é necessário gerar ou produzir iniciativas de atividades que, em si, sejam
afetivas e cognitivamente mobilizadoras, ou, ainda, incorporar propostas que
coloquem os alunos em confronto com situações-problema que estejam ao seu
alcance, enfim, um conjunto de propostas que estejam vinculadas aos métodos de
trabalho utilizados.
Finalizando este tema gostaríamos de destacar que a opção metodológica
feita pelo professor pode ter efeitos decisivos sobre a formação da mentalidade do
aluno, da sua visão de mundo, de seu sistema de valores e, finalmente, de seu
modo de viver. Enquanto os conteúdos do ensino informam, os métodos de ensino
formam. Dos conteúdos o aluno aprende datas, fórmulas, conceitos, etc. Dos
métodos ele aprende a ser livre ou submisso, seguro ou inseguro, responsável ou
irresponsável, competitivo ou cooperativo.
Dependendo de sua metodologia, o professor pode contribuir para gerar
uma consciência crítica ou uma memória fiel, uma visão universalista ou uma visão
estreita e unilateral, uma sede de aprender pelo prazer de aprender e resolver
problemas, ou uma angústia de aprender apenas para receber um prêmio e evitar
um castigo.

QUESTÕES PROPOSTAS

1. Na teoria piagetiana, qual a importância dos jogos para o desenvolvimento do


comportamento moral nas crianças?

2. É possível dissociar da teoria vygotskyana das questões sócio-históricas?


Explique.
43

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] não se deve esquecer qual deve ser a educação e


como se deve educar. Nos tempos modernos, as
opiniões sobre este tema diferem. Não há consenso
quanto àquilo que os jovens devem aprender, nem
quanto à virtude, nem quanto àquilo que se faz
necessário para uma vida melhor. Também não está
claro se a educação deveria preocupar-se mais com a
formação do intelecto ou do caráter.
Aristóteles, Política, VIII, 1 e 2

São os atos de virtude os únicos que decidem


soberanamente a felicidade.
Aristóteles, Ética a Nicômaco

O papel fundamental da educação escolar na formação das pessoas e das


sociedades parece ampliar-se neste início de um novo milênio, quando valores e
verdades anteriormente aceitas estão sendo revistos. Vivemos um tempo marcado
pela competição exacerbada e, contudo, nunca se falou tanto acerca da
solidariedade como um dos pressupostos fundamentais para a sobrevivência da
espécie humana.
O compromisso com a cidadania pede, necessariamente, uma prática
educacional voltada para a compreensão da realidade social e dos direitos e das
responsabilidades em relação à vida pessoal e coletiva e a afirmação do princípio de
participação política.
Quando falamos de ética e cidadania, de desenvolvimento do juízo moral
da criança, de direito educacional, não estamos falando de uma disciplina específica
voltada a esses temas, mas pelo contrário, estamos falando em uma escola que
esteja, formal e informalmente, preocupada no seu fazer cotidiano, com o
desenvolvimento de ações pedagógico-metodológicas consistentes com a
consecução dos valores que defende.
Fazer uma escola voltada para a construção de uma sociedade
democrática implica em vivenciar no dia a dia escolar a prática da democracia.
Sabemos que é
[...] de extrema importância que os princípios gerais que regem este
país já estejam formulados atualmente na direção da democracia,
mas ao observar as atitudes e relações que se desenvolvem nas
diversas instâncias da sociedade, pode-se perceber o fosso que
separa a legislação e o comportamento dos indivíduos, qualquer que
44

seja sua classe social, sua categoria profissional ou sua localização


geográfica. Se a lei maior brasileira preconiza a inclusão e a
equalização de direitos, as práticas sociais, políticas e econômicas
ainda produzem exclusão e desigualdades, seja por meio da
estrutura socioeconômica e pelo modelo de desenvolvimento, seja
pelos valores, concepções e preconceitos produzidos e
reproduzidos na cultura19.
Percebe-se uma mentalidade de "salve-se quem puder", um esforço
em "levar vantagem", como sinônimo de "passar sobre os outros"
para conseguir seus objetivos. Zomba-se da lei, na medida em que
esta parece perder sua essência, quando é desprezada ou
interpretada de maneira equivocada, favorecendo interesses
escusos e colocada, paradoxalmente, a serviço dos privilégios e da
discriminação. A atitude discutível daqueles que deveriam fazer
valer os preceitos e zelar por sua concretização no contexto social
revela, com freqüência, o cinismo, a indiferença diante dos valores.
Em decorrência do cinismo e da indiferença diante da lei, instala-se
um "relativismo moral", entendido como "cada um é livre para eleger
todos os valores que quer". Tal atitude provoca uma desintegração
nas relações de convivência. Mais ainda, desemboca numa
desesperança, numa negação da utopia. E sem esperança, sem
uma visão utópica, que acredita que a sociedade do futuro está no
presente, perde-se o sentido da construção conjunta da democracia.
A esperança transita num espaço em que se coloca aos homens o
desafio de construir o possível, criando uma sociedade na qual a
questão da moralidade deve ser uma questão de todos e de cada
um.
É este o desafio maior que se apresenta à sociedade, mais
particularmente, à escola, espaço de socialização e criação de
conhecimentos e valores. Trabalhar com crianças e adolescentes de
maneira responsável e comprometida, do ponto de vista ético,
significa proporcionar as aprendizagens de conteúdos e
desenvolvimento de capacidades para que possam intervir e
transformar a comunidade de que fazem parte, fazendo valer o
princípio da dignidade e criando espaços de possibilidade para a
construção de projetos de felicidade. (PCNs, 1998)

Esta última e longa citação resume o que acreditamos ser a tarefa da


escola e, acima de qualquer coisa, a tarefa de educadores comprometidos com a
constituição do bem comum em nossa sociedade, identificando-se bem-comum com
dignidade de vida para todos e para cada um dos cidadãos brasileiros.

19
Para maior clareza do assunto, ver documentos de Apresentação dos Temas Transversais,
Trabalho e Consumo, Pluralidade Cultural.
45

REFERÊNCIAS

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Barcelona, Crítica, 1979.

WERTSCH, J. V. The concept of activity in Soviet psychology. Nova York:


Sharpe, 1981.
47

ANEXO
48

RESPOSTAS COMENTADAS
Capítulo I

1. Por que é tão importante refletir sobre a ética?

R - Vamos iniciar esta questão pensando no homem. O homem é um animal social,


ou seja, um animal que vive em sociedade. Por estar em sociedade e viver com
outros homens, necessita de regras, de regras ou normas sociais para direcionar
sua conduta. A toda conduta corresponde um ato moral, ou seja, um ato que
prescreve em sua ação um julgamento, um tipo de valoração, que compreende
escolhas. Mas, quem ou o que vai refletir sobre esses atos? A ética. A ética é uma
campo da filosofia que se dedica aos estudos dos princípios morais, seus
fundamentos e causas, que regem nosso comportamento. Assim, ao refletir sobre a
ética, procuramos pensar sobre o sentido de certos atos humanos. E pensando
nessas razões, podemos questionar modelos políticos, algumas de nossas ações,
certos padrões historicamente constituídos (em relação às minorias, por exemplo),
procurando, sempre, pensar na possibilidade da construção de um conjunto de
regras/morais que, defendendo a dignidade humana, possa ser vivida por todos. Eis,
assim, a importância dessa reflexão.

2. A partir da reflexão proposta por L. Kohlberg (pag. 9 de nosso texto), é


possível estabelecer que, em situações limites, pode ocorrer a relativização da
ética? Explique.

R - É... é possível. Como o próprio Kohlberg afirma - no seu relato sobre o seu
engajamento no transporte de sobreviventes do holocausto para a Palestina -,
escolhas tinham de ser realizadas. Sua escolha: salvar judeus. O que implicava,
muitas vezes, no sacrifício do outro, até mesmo na sua morte. Neste caso tem-se a
caracterização de uma situação limite. E nessas situações, e sua história se encaixa
neste quadro, é difícil estabelecer o que está certo ou o que está errado. Assim,
como apontar o que devemos fazer? Por exemplo: o que é certo para o homem
latino que vive à margem na cultura norte americana, ou mesmo, por aqui - em São
Paulo -, para os imigrantes bolivianos? Percebem! Nessas situações, em que viver
parece extremamente difícil, a ética e seus postulados vêem-se enfraquecidos e por
49

isso, sua conseqüente relativização, sua pulverização em vários sentidos, quase


sempre presos às circunstâncias. E presa, a moral é relativizada, segundo o que se
pede na ação.

Capitulo II

1. Em que tipo de contexto nasceu a necessidade de caracterizar/construir os


direitos do homem?
R - No contexto da Idade Moderna. Contexto em que se consolidou uma nova forma
de Estado, de organização sócio-econômica e mesmo cultural. Nesta Idade/período
- que vai de 1453 até 1789 - um outro mundo aparece. A classe burguesa, então
dependente dos vícios da nobreza, sente a necessidade de legitimar-se através de
novas leis e para isso, utilizando de seus representantes - filósofos e políticos -,
construirá um outro significado para os homens e para o mundo... moderno. E este
mundo aproximará a maioria dos homens de uma outra concepção de direito: direito
à igualdade, à liberdade, à autonomia etc.

2. Os filósofos da "era moderna" partilhavam as mesmas ideias sobre o


homem? Exemplifique.
R - Não. John Locke, por exemplo, era um empiricista, filho da classe burguesa, e
acreditava que o homem nascia como uma Tábula Rasa, ou seja, em branco, e que
havia homens melhores que outros, e que por isso deveriam ter mais direitos;
Rousseau, por sua vez, era uma naturalista que acreditava na bondade humana e
na igualdade de todos. No povo, segundo ele, estava toda a soberania; Thomas
Hobbes acreditava que o homem era mal por natureza e que só um Estado forte
poderia contê-lo. Portanto, os filósofos deste período não concebem o homem da
mesma forma. Toda concepção, não só deste período, mas também de outros,
vincula-se à formação do filósofo, à escola que frequentou e, principalmente, em
função daquilo que escolheu defender, ou seja, o seu lado na história.

3. Por que a Constituição da Virgínia, de 1776, foi tão importante para a


consolidação dos direitos dos homem?
50

R – Porque, pela primeira vez, os direitos do homem serão expressamente


definidos. Textualmente, nela está escrito: "[...] todos os homens são naturalmente
livres e independentes e dispõem de certos direitos, dos quais, quando entram em
estado social, eles não podem, por nenhum título, privar os seus descendentes;
notadamente o gozo da vida e da liberdade, a aquisição e manutenção da
propriedade, e a procura de segurança e felicidade." Percebem! Por ser tão
significativa, já que expressa esse desejo de toda uma era, ela se tornou um
exemplo.

Capitulo III

1. Para o filósofo Immanuel Kant, os seres racionais têm de ser tratados


sempre como um fim e nunca apenas como um meio. O que isso significa?
Para o indivíduo, a noção de fim implica em certas restrições?

R - Para este filósofo, tratar o outro como fim é o mesmo que reconhecê-lo como
pessoa, um cidadão igual à mim, com direitos. E neste caso, jamais observá-lo ou
mesmo tratá-lo como meio. Como meio, o outro passa a ser um instrumento/objeto
para meu usufruto, perdendo sua condição de pessoa. Por isso Immanuel Kant
reitera a necessidade de, como uma obrigação, observar sempre o homem como um
fim, e isto vai implicar em sérias restrições para o sujeito. Porque se vejo o outro
como fim, não posso tratá-lo como coisa, usá-lo ou explorá-lo como algo sem valor.
A restrição está aí! Como fim, o outro é sempre um semelhante, sobre o qual eu não
posso fazer nenhum mal.

2. Pensando nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais - MEC/1998) e na


questão da moralidade, por que eles acabam destacando, ao refletir sobre a
moral, a noção de cuidado? Explique.

R- Como cautela, precaução, inquietação do espírito etc., a noção de cuidado nos


assegura mais atenção ou consciência para com os nossos atos. Sem a noção de
cuidado, certas razões, contrárias à ética, podem aparecer como possíveis escolhas,
51

e os nossos fins serem substituídos por meios. Como se não nos interessasse mais
observar qualquer forma de responsabilidade pelo que fazemos. Por isso, como esta
nos PCNs " Ser responsável é ter cuidado com o poder que se exerce, ao realizar escolhas
e definir caminhos para a ação. É preciso ter claro, portanto, que o que se verifica é um
posicionamento de cada pessoa frente aos valores e princípios que são criados e que têm
significação no âmbito mais amplo de uma comunidade humana." Assim, cuidado é zelo...
zelo por nossas ações, escolhas, por nossa prática.

Capítulo IV

1. Segundo Jean Piaget os julgamentos morais podem ser associados a


quantos tipos de responsabilidades? Explique-as.

R - Segundo Piaget, são dois esses tipos de responsabilidades: objetiva e subjetiva.


A objetiva ocorre quando o indivíduo se sente responsável por um ato proibido por
uma autoridade externa, por uma ação que se choca com as normas impostas de
fora; a subjetiva acontece quando o indivíduo se sente responsável por um ato
censurado por ele mesmo, que vai contra as normas construídas e sancionadas por
ele, em cooperação com a sociedade.

2. Qual é a preocupação central da psicologia sociocultural?


R - A preocupação central da psicologia sociocultural é dar à sociedade e à cultura
um lugar no mesmo nível do biológico e do mental na explicação do ser humano.
Trata-se, pois, de elaborar uma explicação dos processos mentais humanos que
contemple a relação entre tais processos e os cenários sociais, culturais, históricos e
institucionais onde eles se desenvolvem. A cultura não é a causa externa que
desencadeia os processos mentais, mas é parte da mente, e a mente é parte da
cultura. Neste caso, trata-se de uma realidade única. A partir dessa hipótese de
trabalho inicial, a psicologia sociocultural foi desenvolvendo um conjunto de temas
que constituem uma verdadeira agenda de trabalho ou um programa de pesquisa.

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