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Prefácio: o Funk e o Samba

Carlos Palombini e Lucas Ferrari

Paradinha Funk
Do samba ao funk do Jorjão traz para o centro do debate, estampado em seu próprio título,
o desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro no Carnaval de
1997. Após o ataque de isquemia que o deixara semiparalítico, Joãosinho Trinta vinha
com a alegoria “Trevas! Luz! A explosão do Universo”, samba-enredo interpretado por
Dominguinhos do Estácio e uma bateria conduzida por Jorge de Oliveira, então em seu
segundo ano na escola de Niterói: “Vem das trevas, tudo pode acontecer, a noite vira dia,
luz de um novo amanhecer, vai, meu verso...” Sob o impacto de um abre-alas negro, com
“O Poder das Trevas” por destaque, seguiam-se as ondulações brancas de um vasto
lençol de baianas. Nem o vice-diretor do Instituto Astronômico e Geofísico da USP,
João Steiner, foi capaz de conter-se: “À primeira vista parece o samba do crioulo doido.
Mas não é.”1 Para alguns, foi a última evolução a levantar a arquibancada na Marquês de
Sapucaí.

Não foram apenas as novidades de Joãosinho Trinta as responsáveis por aquele primeiro
lugar da Viradouro. Na Paradinha, Mestre Jorjão enxertou uma célula de Funk
possivelmente derivada do Volt Mix,2 a base preferida dos Mestres de Cerimônia cariocas
dos anos 1990.

A Paradinha Funk de Mestre Jorjão, nas repetições do estribilho de “Trevas! Luz! A explosão do Universo”,
Unidos do Viradouro, 1997 (transcrição de Lucas Ferrari).3

                                                        
1 João Steiner, “Big Bang com plumas e paetês: Joãozinho Trinta venceu o carnaval representando a

origem do Universo de maneira cientificamente correta.”, Superinteressante (vol. 11, nº 5, 77), maio de 1997.
2
O termo “Volt Mix” designa tanto a segunda faixa do lado B, “808 Beatapella Mix”, do single de 12
polegadas 8 Volt Mix, do DJ Battery Brain, codinome de Mark Rogers (Los Angeles, Techno Hop
Records, THR–20, 1988), quanto o loop abaixo, extraído de seus compassos iniciais.
3 Disponível em: goo.gl/lLBqH1.
O loop conhecido como Volt Mix, extraído de “808 Beatapella Mix”, versão instrumental4 do single 8 Volt
Mix, do DJ Battery Brain, faixa de electro de Los Angeles gravada em 1988 (transcrição de Lucas Ferrari).5

Mestre Jorjão explicou-se diante das câmaras: “Eu acho que a bateria, para se renovar,
tem que inovar. Então vamos meter o funk”. Dois anos depois, ele diria:
O samba, funk, como este ano aquele negócio do Villa-Lobos com a orquestra, tudo é a mesma
coisa. É só se ensaiar, se combinar: tudo é a mesma coisa. Isso aqui é Brasil. No ano do funk lá
na Viradouro, quando botei o funk na gravação, todo o mundo foi contra. Naquele ano o funk
estava sendo muito criticado pelas violências que existiam.6

Funk afro-pan-americano
Na primeira metade dos anos 1990, DJs de Funk Carioca começaram a mesclar
percussões afro-brasileiras a bases majoritariamente afro-norte-americanas. Em 1994 os
DJs Alessandro e Cabide combinaram capoeira, atabaques e Volt Mix na “Montagem
Macumba Lelê”.7 O Funk com instrumentos de escola de samba pode ter tido início
quando a torcida Raça Rubro-Negra incorporou a seu hinário o “Rap do Pirão”, de
                                                        
4 O instrumento em questão é a bateria eletrônica TR-808, da Roland, que marcou o Electrofunk, o

Electro e outros gêneros afro-norte-americanos, homenageada no título da faixa.


5 Disponível em: goo.gl/a8ORuX.
6
Ambos os depoimentos, o de 1997 e o de 1999, foram extraídos do documentário Jorjão, de Paulo
Tiefenthaler, Rio de Janeiro, Synapse Produções, 2004.
7
DJs Alessandro e Cabide, “Montagem Macumba Lelê”, nona faixa do CD Beats, funks e raps, vol. 4, dos
DJs Grandmaster Raphael e Amazing Clay, 1994. Disponível em: goo.gl/OsxepY.

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1992.8 Por outro lado, para executar seu “funk com instrumentos de escola de samba”
em 1995, Ivo Meirelles, da Estação Primeira, criou o Funk’n Lata, que em 1998 inspirou
o DJ Luciano Oliveira, de Campo Grande, na realização de um loop de bateria eletrônica,
o Tamborzão.

O loop Tamborzão, criado pelo DJ Luciano Oliveira, de Campo Grande, em 1998, originalmente para “dar
enchimento ao Volt Mix” (transcrição de Lucas Ferrari).9

Dez anos depois, a “batida nacional do Funk” incorporaria a cadência característica do


jogo entre o surdo de primeira e o surdo de segunda, embora, nas elocuções e divisões
dos MCs do estado do Rio de Janeiro, o Samba sempre tenha estado presente.

Tambor utilizado em 2008 na produção de “Feitiço”, do MC Mágico, pelo DJ Gão (transcrição de Lucas
Ferrari).10

                                                        
8
MC D’Eddy, “Rap do Mutuapira”, “Rap do Pira” ou “Rap do Pirão”, lançado em 1992 e gravado em
1993 no LP Beats, funks e raps, do DJ Grandmaster Raphael, primeira faixa do lado A (London Records,
533.404.126). Disponível em: goo.gl/zD8AAq. Para a versão da Raça Rubro-Negra, ver: goo.gl/Ossoxj.
9 Disponível em: goo.gl/bUjrJS.
10 Disponível em: goo.gl/un56hn.

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Samba e historiografia
“Se a música pode vir de baixo ou ser imposta de cima, a musicologia sempre vem de
cima”, afirmou Joseph Kerman em 1985.11 O Samba e sua historiografia se articulam em
torno do par oposicional morro/asfalto.12 No plano das associações,13 morro/asfalto está
em relação virtual de substituição com negro/branco, pobre/rico, barracão/arranha-céu,
senzala/casa-grande, lundu/modinha. Reunidos de modo empírico, esses pares definem
o sistema.14

O contorno fantástico de formações rochosas na diversidade de seu encontro com as


águas, o mangue e a terra firme é traço distintivo da paisagem carioca. O morro emerge
— gradual ou abrupto — nos aclives e declives de diversos segmentos sociais. Na cultura
urbana, ele é o conjunto dos desempregados e subempregados de comunidades sub-
urbanizadas: favelas planas ou convexas. Na cultura do samba, o morro é o São Carlos, a
Mangueira, o Salgueiro, a Serrinha. O morro é o samba. E o alto do morro é o centro de
onde a autenticidade do samba emana. Ao eleger a praça Onze de Junho como espaço de
origem15 a história desloca o morro para a periferia.

Se o barracão está “pendurado no morro”,16 a encosta vira escarpa, sem erro: lata d’água
na cabeça, Maria sobe “sonhando com a vida do asfalto, que acaba onde o morro
principia”.17 Entre o morro e o asfalto não há transição possível: o morro se define na
metonímia do piche que lhe falta. Da ocupação ascendente da encosta à do morro, da
                                                        
11 Joseph Kerman, sobre a etnomusicologia, em Musicology (Londres: Fontana, 1985), 159.
12
De acordo com o método definido por Roland Barthes em “Elementos de semiologia”. Ver Barthes,
“Éléments de sémiologie”, Communications 4 (1964: 91–135), em Œuvres complètes I (Paris: Seuil, 1993, 1465–
1524), 1500.
13
A expressão “plano das associações” é de Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale (Paris:
Payot, 1916).
14
“Sistema” ou “paradigma”: a expressão “plano paradigmático” foi usada para o eixo vertical da
linguagem em substituição ao “plano das associações” de Saussure; cf. Barthes, “Éléments de sémiologie”,
1499.
15
Carlos Sandroni afirma em Feitiço decente: “a casa de Tia Ciata assumiu [...] uma dimensão quase mítica
como ‘lugar de origem’ do samba carioca” (Rio de Janeiro: Zahar e Editora UFRJ, 2001, 101).
16
“Barracão”, samba de Luiz Antônio e Oldemar Teixeira Magalhães, gravado por Heleninha Costa em
20 de agosto de 1952, lançado em novembro (RCA Victor 80.1007-B).
17
“Lata d’água”, samba de Luís Antônio (Antônio de Pádua Vieira da Costa) e Jota Júnior (Joaquim
Antônio Candeias Júnior), orquestração de Radamés Gnattali, gravado por Marlene em 25 de outubro de
1951, lançado em janeiro do ano seguinte (Continental 16.509-A). Marlene cantou-o ainda, em arranjo de
Lindolfo Gaya, com a participação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, no filme Tudo
azul, de Moacyr Fenelon, também em 1951.

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ocupação do morro à comunidade que o habita, e desta ao conjunto das favelas, o
significado se alastra para instalar um povo no “carioca” da geografia.

O samba é o negro, a despeito da historiografia, e o negro é o morro. E como o asfalto e


o morro não se misturam, o preto continua escuro. O samba destrincha o crioléu:
negrinho, negrinha, neguinho, neguinha, nego, nega, negão, preto, preta, pretinho,
pretinha, escurinho, escurinha, crioulo, crioula, mulato, mulata, mulatinho, mulatinha,
caboclo, cabocla, caboclinho, caboclinha, moreno, morena, moreninho, moreninha.
Ciosamente denotativo, o vocabulário da historiografia se atém aos extremos, entre os
quais intercala pardos e mestiços.

O samba tem ricaço, doutor, coronel, deputado, senador, bacharel, advogado, sinhô, iaiá,
madame, patroa, grã-fina; mas, sobretudo, soldado, policial, operário, lavadeira, sambista,
malandro, capoeira, molambo, vagabundo. A historiografia utiliza termos genéricos, nem
sempre mais precisos, de acordo com a orientação do autor e o espírito do tempo: as
elites, a burguesia, as classes hegemônicas, abastadas, dominantes, populares, subalternas,
exploradas, oprimidas, desfavorecidas, trabalhadoras.

Senzala/casa-grande pertence à historiografia. O samba atualiza a senzala no barraco, no


barracão, na maloca, na choupana, na choça, na palhoça, no bangalô, no chatô para
sonhar com os arranha-céus, os palacetes à beira-mar e as casas com varanda na Tijuca
que afirma desdenhar, mas onde se vangloria de ser recebido.

Lundu/modinha é característico da musicologia histórica. O lundu se origina dos


africanos escravizados, a modinha, da aristocracia portuguesa italianizada. Mas ao se
deslocarem em direções opostas, da senzala aos salões e dos salões às senzalas, o lundu e
a modinha se cruzam para dar origem à canção brasileira.18 O par afirma a diferença para
neutralizá-la, seus elementos dotados do ímpeto de atirarem-se um nos braços do outro.

O enlace amoroso não ocorrerá no morro, mas no asfalto, em casa com número, de rua
com nome. Desse domicílio, até a planta-baixa é conhecida.19 A sala-de-visitas, da largura

                                                        
18
Ainda não foi possível provar que a modinha não se tenha lundunizado primeiro nos salões da
aristocracia portuguesa, onde a modinha brasileira provavelmente teve origem.
19 Roberto Moura, Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Funarte, 1983), 67.

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do imóvel, se abre sobre a rua, no limite sul da Praça. Transposta a sala-de-visitas, chega-
se à sala-de-jantar pelo corredor à direita, ao longo de três quartos, à esquerda. Também a
sala-de-jantar tem a largura do imóvel e comunica-se com o quintal através de um
corredor espremido entre a cozinha e a despensa. Alguns degraus o separam do pátio. É
necessário descê-los para chegar-se aos fundos, onde se encontra o quarto-de-santo.
Excetuados a despensa e os quartos, cada um desses espaços gesta ou cultiva um gênero
musical: o Choro, o Samba, o Partido-Alto, a Capoeira, o Candomblé. O fato essencial é
que, da porta de entrada ao fundo do quintal, se passa da negritude misturada à negritude
pura, cujo lugar, em relação à rua, é o mais afastado possível.

O mito da casa de tia Ciata não é o mito de fundação do Samba, mas de uma de suas
manifestações, a canção gravada, que, diante da sinédoque, não deixou de expressar seu
desconforto — “tensões do espírito humano produzidas pelas forças da opressão, e pelas
forças contrárias que ela engendra”.20

Ideologia
Em poema publicado postumamente em 1919, Olavo Bilac definiu a música brasileira
como “flor amorosa de trez raças tristes”,21 a portuguesa, a africana e a ameríndia. Do
português, a melodia italiana; do africano, a síncope, que não vem da África;22 do
ameríndio, não se sabe ainda — e, de 1919 a 2015, se vão cem anos. A musicologia
nacionalista pratica uma xenofobia seletiva: oferece à Schottisch, à Polca, à Mazurca e à
Habanera o passe-livre que recusa ao Soul, à Disco, ao Funk, ao Hip-Hop, à House.
Trocas entre as músicas afro-brasileiras e afro-norte-americanas, todavia, são tão antigas
quanto a fonografia.23 Elas se intensificam sob a Ditadura, quando o Soul, associado à
luta pelos direitos civis, passa a catalisar a expressão de identidades oprimidas mundo
afora. No Brasil, essas manifestações são tachadas de antinacionais, subversivas, frutos
do imperialismo norte-americano, produtos da “indústria cultural”, resultado da ação da
CIA. Com o final da Guerra Fria e a emergência da economia transnacional globalizada,
                                                        
20 Philip Brett e Elizabeth Wood, “Lesbian and Gay Music”, GLSG Newsletter (vol. 11, n° 1, 3–20, 2001),
16.
21 Olavo Bilac, “Muzica brazileira”, Tarde (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte: Francisco Alves,
18–19, 1919), 18.
22 Ver “Premissas musicais”, no livro de Carlos Sandroni, Feitiço decente, 19–37.
23
Procurei demonstrar isso no ensaio “Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson” (Per musi 23:
58–70, 2011).

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esse discurso se torna insustentável, e é substituído pelo xingamento puro e simples. “A
produção intelectual do ocidente é cúmplice, de vários modos, dos interesses
econômicos internacionais do ocidente”,24 Gayatri Spivak dizia.

Do samba ao funk do Jorjão tem como pressuposto tácito a crítica ideológica. Spirito Santo
está no centro dos acontecimentos, seja o Black Rio dos anos 1970, seja o júri do desfile
do grupo especial em 1997, um e outro sujeitos aos mecanismos punitivos que lhes são
peculiares. E porque exila-se na Áustria entre um e outro, convive com dispositivos
diversos e tem ciência da perversidade de um racismo tão introjetado que é capaz de
imbuir a própria insurreição de ímpetos auto-supressivos. Cabe a ele inserir a cultura
musical afro-brasileira no painel das culturas da diáspora africana. Funkeiros, só
poderíamos ser-lhe gratos por isso. Como dizia Malcolm X, que tomamos a liberdade de
verter ao favelês, “se você é negro, ou pensa negro ou tá fudido”.25

                                                        
24
Gayatri Chakravorty Spivak, “Can the Subaltern Speak? Speculations on Widow-Sacrifice”, Wedge 7/8
(120–130, 1985); citado da versão expandida, “Can the Subaltern Speak?”, em Cary Nelson e Lawrence
Grossberg (org.), Marxism and the Interpretation of Culture (Urbana e Chicago: University of Illinois Press,
1988, 271–313), 271.
25
Malcolm X, “The Ballot or the Bullet”, 3 de abril de 1964. O áudio dessa palestra, do qual provém a
paráfrase acima, data de 17 de abril e difere do texto impresso.

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