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PROFESSORA: VANESSA LEÃO DISCIPLINA: ARTE

ALUNO(A): ANO/TURMA: 2° A X B X C X D X E X
TIPO DE APOSTILA PARA SER DEVOLVIDA A ESCOLA? DATA:
EXPLICATIVA X QUESTIONÁRIO AVALIATIVA SIM NÃO X 28/10/2021
CONTEÚDO: MÚSICA E CULTURA AFROBRASILEIRA

DO SAMBA AO MANGUE BEAT: COMO A ÁFRICA INFLUENCIOU A MÚSICA BRASILEIRA

O surgimento de manifestações como candomblé e capoeira foram fundamentais para o desenvolvimento


dos principais gêneros musicais do Brasil

É impossível entender a música brasileira sem refletir sobre o êxodo de escravos africanos aos continentes
americanos a partir de 1500. Todos os gêneros e ritmos ramificam dessa raiz e se consolidam nos séculos seguintes: o
maracatu (no século 17), o baião (século 19), o choro (século 19) e o samba (entre o final do século 19 e começo do século
20). Depois, essa tradição forneceu elementos rítmicos e inspirou o surgimento da bossa nova, da tropicália, do mangue
beat, do funk carioca e o DNA da África ainda é perfeitamente visível em trabalhos de artistas contemporâneos de destaque
– como, por exemplo, o Baiana System, um dos principais fenômenos populares recentes. Porém, antes do surgimento
desses ritmos, a história dos negros no Brasil já trazia formas de expressão que adubaram essa árvore genealógica. O
candomblé e a capoeira estão entre elas.

Ambas manifestações eram praticadas nos quilombos e senzalas. O candomblé tornou-se uma religião
brasileira de matriz africana e híbrida de elementos da fé dos negros trazidos de diferentes países, como Angola, Benin,
Congo e Nigéria. O louvor aos orixás no ritmo do atabaque e a dança são aspectos das celebrações nos terreiros. A
capoeira se popularizou como uma forma de arte marcial também associada à música, em que os golpes são desferidos
na cadência do som do berimbau. Os instrumentos de percussão trazidos da África ou adaptados pelos escravos já no
Brasil são fundamentais para a musicalidade tanto em um caso quanto no outro e seus fundamentos foram incorporados
posteriormente na criação do samba.

“Eu vejo o surgimento do candomblé, da capoeira e do samba como resistência, lugar de reencontro e de
reestruturação de uma cultura”, observa o maestro baiano Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz. “Na música popular
brasileira, na virada do século 19 pro século 20, que a gente considera que é o período do surgimento do samba, esses
encontros estavam sempre ligados à reestruturação da cultura, aos princípios de organização religiosa. Então, eu não
consigo imaginar outra forma do que sendo atividades de resistência, de reorganização da sua cultura e do seu
pensamento. Os negros fizeram uma recriação incrível e profunda, em que eles não só se reestruturaram dentro dos seus
pensamentos culturais ancestrais, como influenciaram toda cultura ocidental contemporânea. Toda cultura considerada
contemporânea está de alguma forma influenciada pela diáspora negra.”

O maestro amplia a reflexão para toda música das Américas, já que desde o jazz e o blues norte-americanos
à salsa cubana e o reggae jamaicano, todos os gêneros musicais surgidos no ocidente têm suas origens ligadas à África.
O disco mais recente da Rumpilezz, “A Saga da Travessia” (de 2016), reflete justamente sobre a partida dos escravos até
a chegada ao Brasil. “Desde o início do trabalho da Rumpilezz, eu tinha comigo um desejo de fazer uma música que
retratasse a saída forçada dos negros da África pra construção das Américas. É uma história que não é contada de forma
contundente, clara, não é discutida dentro das academias com profundidade”, explica ele. “‘A Saga da Travessia’ é uma
visão pessoal desse primeiro momento da saída. A suíte tem 3 movimentos: a saída do continente africano, a travessia
atlântica com todas intempéries (as mortes, as chicotadas...) e a chegada no continente americano, no Brasil, mais
precisamente na Bahia, mas sem desembarcar. Eu criei uma imagem hipotética de um dos negros refletir e dizer, ainda
dentro do navio: ‘um dos meus descendentes vai ser Pixinguinha’; o outro dizer ‘Miles Davis’; ‘Louis Armstrong’; ‘Milton
Nascimento’; ‘Nina Simone’; ‘Bob Marley’; ‘Michael Jackson’... Foi uma tentativa minha de traduzir em leitura musical esse
holocausto tão profundo e cruel que foi a escravatura.”

A evolução do samba durante o século 20 revela uma afinidade intrínseca com os fundamentos do candomblé
em trabalhos de alguns dos principais artistas do gênero, como Dorival Caymmi, Clara Nunes, Clementina de Jesus e
Martinho da Vila. Na discografia da música brasileira, alguns álbuns estabelecem uma conexão mais explícita com os
toques de terreiro. É o caso, por exemplo, de “Coisas” (Moacir Santos, 1965). “Título obrigatório em qualquer lista de
clássicos do jazz mundial, ‘Coisas’, a obra-prima de Moacir Santos, dificilmente seria criado por um músico sem DNA
brasileiro e que não tivesse uma percepção tão aguda de sua negritude e do passado de seu povo”, analisa o jornalista
Marcelo Pinheiro. “Nos dez temas, é explícita a confluência da profunda erudição de Moacir, que foi aluno de H.J.
Koellreutter, com a ancestralidade africana que legou a miríade de ritmos e manifestações regionais de nossa cultura
popular. Municiado de sutilezas harmônicas e rítmicas, Moacir estabelece pontes imaginárias entre Brasil e África, entre
Brasil e mundo.”

No fim dos anos 60, o movimento tropicalista propõe uma abordagem pop que funde toda tradição da música
brasileira com elementos do rock, alavanca um período que se estende até o começo dos anos 70 e se revela um dos
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mais inspirados da MPB – a própria sigla, aliás, surge nessa fase. Entre 1968 e 1975, são lançados por exemplo: o disco
coletivo “Tropicália ou Panis Et Circenses” (com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, Nara Leão
e Rogério Duprat, de 1968), todos os discos da primeira formação dos Mutantes, os cinco primeiros da Gal Costa, os cinco
primeiros do Tim Maia, oito LPs de Jorge Ben (inclusive “A Tábua de Esmeralda”, de 1974), “Clube da Esquina” (Milton
Nascimento e Lô Borges, em 1972), “Pérola Negra” (Luiz Melodia, 1973), o primeiro dos Secos & Molhados (1973), “Elis
& Tom” (1974) e muitos outros. Um dos mais conectados com a África é “Krishnanda”, do percussionista Pedro Santos,
de 1968: em uma mistura com elementos místicos e o ambiente da selva (nas letras, nos batuques tribais, nos sons de
animais gravados no disco), o álbum não repercutiu na época e se tornou cultuado décadas depois.

Já em 1976, Jorge Ben estampa logo no título do disco a conexão com o continente africano. “África Brasil”
marca a definitiva troca do violão pela guitarra e trata de personagens negros reais (como os escravos Zumbi e Chica da
Silva) e fictícios (Umbabaraúma). “Apesar de o próprio Jorge ter manifestado sua insatisfação com a gravação e com a
mixagem do álbum registrado no extinto estúdio Havaí, no Rio de Janeiro, ‘África Brasil’ beira a perfeição não só por revelar
uma nova leva de composições inspiradas e marcadas pelo o uso da guitarra elétrica, mas também porque escancara o
quanto a influência do funk foi decisiva para a criação de uma nova estética na prosódia negroide do Babulina”, diz Pinheiro.
“Graças à polirritmia brasileira, herança da Mãe África, o funk defendido por Jorge, no entanto, é bem mais próximo do
afro-funk que tomou de assalto países como Nigéria, Senegal, Gana, Benin e Camarões do que do funk praticado nos
EUA nos anos 1970.”

O mangue beat, nos anos 90, atualizou o sentido antropofágico da Tropicália e promoveu uma combustão de
influências internacionais (rock, rap, funk e reggae principalmente) com as batidas tradicionais de Pernambuco. “Ritmos
como coco, maracatu, ciranda e frevo estavam fadados ao esquecimento pelas gerações mais novas. Sobreviviam em
festas populares, nas escolas e agremiações de bairro. O que Chico & Nação realizaram não é uma releitura. A ciranda
não é eletrificada, por exemplo. São células rítmicas –encontradas nos ritmos nordestinos – sendo reprocessadas,
juntando-se a elementos de outros gêneros musicais. É o que faz a mistura se tornar tão interessante”, observa a jornalista
e apresentadora Lorena Calabria, que escreveu um livro sobre o disco “Da Lama ao Caos”, o primeiro de Chico Science
& Nação Zumbi, com lançamento previsto para 2019. “É possível identificar muitas influências africanas no som da banda.
A começar pela origem do maracatu, por exemplo. Ainda que o maracatu não seja a base de todas as músicas de Chico
& Nação, o som das alfaias evoca as raízes musicais africanas. Já no álbum ‘Da Lama ao Caos’ tem uma faixa em que
fica bem explícita a influência da música africana. É em ‘Samba Makossa’. Não só pelo título, que é uma referência a ‘Soul
Makossa’, hit internacional do camaronês Manu Dibango nos anos 70, como na guitarra de Lúcio Maia, semelhante a juju
music. Curioso é que Lucio desconhecia o ritmo na época da gravação do disco; foi o produtor Liminha que notou a
proximidade.”

Essa referência intuitiva à África também é uma característica das batidas do funk carioca. “Isso é muito
evidente e remete ao candomblé. Se a gente for construir uma linha do tempo, o funk é essa versão mais nova da tradução
da tradição, que é quando a gente pega elementos ancestrais e transforma em algo novo”, explica Ana Paula Paulino,
produtora executiva da festa e selo musical Heavy Baile e dona da empresa Ubuntu Produções. “Os pontos de macumba
se transformam em uma referência pra um DJ da periferia do Rio de Janeiro fazer um funk que todo mundo vai dançar,
inclusive em boate de playboy.”

Com dois discos gravados (“Baiana System”, de 2010, e “Duas Cidades”, de 2016), a banda Baiana System
é um dos fenômenos pop mais interessantes da música brasileira contemporânea. Sua agenda de shows percorre o Brasil
inteiro e outros países e a catarse move as apresentações, com uma potente receita que mistura elementos da música da
Bahia (nas referências rítmicas e na guitarra baiana de Roberto Barreto) e da Jamaica (principalmente no estilo ragga do
vocalista Russo Passapusso e no destaque ao baixo nos arranjos). Seu próximo álbum, ainda sem nome e previsto para
janeiro, já anuncia um olhar mais atento à África e aos efeitos da miscigenação cultural promovida pela chegada dos
escravos à Bahia. O novo trabalho parte de uma intensa pesquisa na Ilha de Itaparica, onde há uma concentração de
terreiros que cultuam os Egunguns – em rituais que, em linhas gerais, propõe uma conexão espiritual com a ancestralidade
e a existência coletiva.

“A partir dessa vivência, começamos a absorver esse entendimento além-mar e esse olhar da África que veio
para o Brasil. Como isso se mistura no sangue, se mistura com os nossos índios? Como isso muda o canto e o pranto?
Como essa simbiose se reflete na capoeira e no samba?”, diz Russo Passapusso. “A perspectiva do disco ‘Duas Cidades’
é muito em cima da cidade, de como Salvador se comporta dentro de uma visão social urbana. No próximo disco, a gente
vai transitar por esse ambiente ancestral através dessa pesquisa. É um processo de reconhecimento de nossas próprias
melodias, onde a gente encontra recortes de muitos outros povos que vieram pra cá. A gente não faz música antes de
conversar, antes de viver. Nosso processo de fazer música é principalmente convivendo dentro do ambiente. É assim que
o Baiana está nessa fase, convivendo com os mestres: Buli Buli, Lourimbau, Mateus Aleluia, Antonio Carlos & Jocafi,
Virginia Rodrigues, Letieres Leite, maestro Bira Marques, As Catadeiras, As Lavadeiras, As Ganhadeiras de Itapuã. São
referências fortíssimas e ancestrais. É através da convivência que a gente toma aula dessa galera.”

Em um momento na história do Brasil em que a escravidão é relativizada e o racismo é tratado como


“coitadismo”, a música tem um papel fundamental para não nos esquecermos de quem somos e de onde viemos.
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