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Rio de Janeiro
2013
Versipellis Diabolus: um estudo comparado das representações diabólicas nos Milagros de
Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo e no Liber Mariae de Juan Gil de Zamora
Rio de Janeiro
2013
Silva, Thalles Braga Rezende Lins da. Versipellis Diabolus: um estudo comparado das
representações diabólicas nos Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo e no Liber
Mariae de Juan Gil de Zamora / Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Rio de Janeiro, 2013.
viii, 161 f.
1 – Idade Média Central. 2 – Reino de Castela. 3 – Diabo. 4 – Gonzalo de Berceo. 5 – Juan Gil
de Zamora.
Dissertações. I. Silva, Andréia Cristina Lopes Frazão da (orient.) II – Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Instituto de História. III – Versipellis Diabolus: um estudo comparado das
representações diabólicas nos Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo e no Liber
Mariae de Juan Gil de Zamora.
Versipellis Diabolus: um estudo comparado das representações diabólicas nos Milagros de
Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo e no Liber Mariae de Juan Gil de Zamora
Aprovada em ___/___/______
Banca Examinadora
___________________________________________________________________
Prof.a Dr.a Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva – PPGHC-UFRJ (Orientadora)
___________________________________________________________________
Prof.a Dr.a Leila Rodrigues da Silva – PPGHC-UFRJ
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Renata de Castro Menezes – PPGAS-UFRJ
À Andréia Frazão,
a única que sempre se preocupou com meu estado de espírito, sem que
eu precisasse pedir, até mesmo quando eu merecia o contrário.
Agradecimentos
Refrão:
Você não consegue algo por nada
Você não pode ter liberdade de graça
Você não ficará sábio
Com o sono ainda em seus olhos
Não importam quais sejam os seus sonhos
Refrão
Quero agradecer também a Andréa Torres, minha amada, que se dispôs a ser minha
revisora. Ela me ajudou imensamente, acelerando em anos-luz a confecção deste trabalho. Ela
se preocupou com cada dificuldade, comemorou cada conclusão parcial, cada fechamento de
capítulo... Quando eu estava “vivendo em uma oração”, ela sempre me estendia à mão e dizia
que eu estava quase lá, que me ajudaria e que conseguiríamos.
Sinceramente, sem a ajuda destas duas xarás este trabalho nunca teria sido terminado.
Quero agradecer ainda a todos aqueles e aquelas que me deram alguma contribuição na
pesquisa, com conselhos, sugestões, recomendações de leituras, discussões conceituais...
Lembro especialmente da banca de qualificação que me trouxe críticas e sugestões
imensuráveis. E da professora Leila Rodrigues pela orientação gratuita e atenciosa sobre os
marginalizados no medievo.
E aqueles que viajaram comigo para os eventos ou participaram da organização de
atividades acadêmicas junto comigo, porque eles sabem que a vida na estrada e de coordenador
não é fácil. Em ordem de lembrança, mas sem querer causar ciúmes: Rodrigos Ballesteiro e
Rainha, Bruno Uchoa, Nathália Rachid, Adriana de Sousa, Tarcísio Amorim, o pessoal que foi
para São Paulo e, novamente em especial, Andréa Torres, que já conheceu meio Brasil junto
comigo.
Quero registrar a lembrança dos amigos que me ajudaram cotidianamente: Gabriel e
Hugo Conrado, Alessandra Cordeiro, Rodolpho Hugo, Priscila Cupello e Luís Lacerda. Um
abraço grande e alvi-negro também para o sumido Marcelo Fernandes, que sempre me mandou
boas vibrações.
Por último, mas não com menor importância, agradeço à minha família por preciosas
lições de vida, exemplos e cuidados que me ajudaram a chegar até o mestrado. Sei que sempre
poderei contar com meu pai Alfredo, minha mãe Valéria e meu irmão Thiago.
Se me esqueci de alguém peço que me perdoem, provavelmente isto foi uma artimanha
do Diabo.
Esta dissertação de mestrado teve como objetivo compreender, por meio da comparação,
quais os possíveis sentidos e finalidades das representações diabólicas presentes nas narrativas
de milagres das hagiografias mariológicas Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo,
e Liber Mariae, de Juan Gil de Zamora. Para conceituar representação foram adotadas as
concepções de Roger Chartier. Como metodologia de comparação foi utilizada a História
Cruzada, como proposta por Michael Werner e Bénédicte Zimmermann, e como técnica de
análise foi utilizada a Análise de Narrativa. As práticas condenadas ou incentivadas pelas
representações diabólicas das hagiografias foram cruzadas comparativamente com as atas
conciliares de Latrão IV (1215), Valladolid (1228) e Peñafiel (1302). Assim, as finalidades das
representações diabólicas e as práticas relacionadas com elas foram comparadas entre si e
também com um projeto normatizador mais amplo empreendido pelas Igrejas de Roma e de
Castela. Como conclusão, foi demonstrado como as representações diabólicas ligavam-se com
os interesses institucionais dos seus autores; como reforçavam e ajudavam a difundir o projeto
normatizador citado; como eram utilizadas nas disputas entre diferentes grupos eclesiásticos, e
como demonizavam os judeus.
Palavras-chaves: Idade Média Central. Reino de Castela. Diabo. Gonzalo de Berceo. Juan Gil
de Zamora.
Abstract
This dissertation aimed to understand, by comparison, what are the possible meanings
and purposes of the representations of the devil present in the miracle narratives of the
mariological hagiographies Milagros de Nuestra Señora, by Gonzalo de Berceo, and Liber
Mariae, by Juan Gil de Zamora. To conceptualize representation were adopted conceptions of
Roger Chartier. As a comparison methodology was employed the concept of Crossed History,
as proposed by Michael Werner and Bénédicte Zimmermann, and as an analysis technique was
used Narrative Analysis. The practices condemned or encouraged by diabolical representations
in hagiographies were comparatively crossed with the conciliar canons produced in Latran IV
(1215), Valladolid (1228) and Peñafiel (1302) councils. Thus, the purposes of the diabolical
representations and the practices related to them were compared with each other and with the
larger normative project undertaken by the Churches of Rome and Castile. The conclusion of
this work demonstrate how the diabolical representations bound up with the institutional
interests of their authors, how they reinforced and helped to spread this normalizing project,
how they were used in disputes between different ecclesiastical groups and how they could
demonize Jews.
Keywords: Central Middle Ages. Kingdom of Castile. Devil. Gonzalo de Berceo. Juan Gil de
Zamora.
Sumário
Introdução ............................................................................................................................ 9
1
Palavra de origem grega (hagio = santo; grafia = escrita), usada desde o século XVII para classificar os textos
medievais, cujos temas centrais são os santos e/ou seu culto ou o estudo crítico que se faz dessas temáticas, usando
esses documentos como principais fontes (SILVA, 2009).
2
As classificações dos tipos hagiográficos podem ser feitas por temáticas, desta forma mais alguns exemplos de
classificações seriam as atas de martírio, as vidas de santos, os inventários de relíquias, os relatos de transladações,
visões ou viagens maravilhosas, etc.
3
Seriam as cidades de: Colônia; Toledo; Celinos del Campo; Pávia; Roma; Pisa; Borges; São Miguel de Tumba,
Cluny; Anfridi; São João d'Acre, e Constantinopla.
10
4
Segundo o Banco de Dados das Hagiografias Ibéricas, feito pelo projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e
História, das 136 hagiografias que nele constam, 51 foram escritas no século XIII. Entre estas, os textos
mariológicos aparecem como a segunda temática mais recorrente, somando um total de 9 documentos (SILVA,
2009, p. 162-163).
5
Tais representações são expressas no sentido mais amplo possível. Podem ser textos; obras de arte plásticas;
filmes; símbolos de poder familiar, institucionais, religioso, régio ou pátrio, etc.
11
6
Maiores considerações sobre em HUNT (1992).
13
E as configurações de uma sociedade se formam como resultado em rede das escolhas pessoais
e da repercussão delas tomadas em particular e coletivamente.
Em decorrência disso, é preciso historicizar também os meios de transmissão das
representações, seus suportes físicos e as maneiras como eram comunicadas para os seus
receptores. Chartier lembra que, seja entre contemporâneos, seja entre pessoas de
temporalidades diacrônicas, a maneira como uma representação é transmitida influi diretamente
no seu impacto no ambiente social e na maneira como ela será apreendida por aqueles que
compartilham desse ambiente. Uma representação pode ser mais ou menos acessível de acordo
com seu suporte e ambiente a que se destina, por exemplo.
No decorrer da sua transmissão, ela pode ser alterada, modificada, interpolada,
comentada, etc. Porém, mesmo que nada disso ocorra, ela ainda pode ser vista de uma maneira
completamente diferente por pessoas de uma temporalidade posterior, como consequência do
suporte em que foi transmitida. Obviamente, isso se deve às próprias diferenças culturais
causadas pela distância entre as temporalidades, mas justamente este é o alerta: como a
transmissão pode ser um dos fatores fundamentais para compreender essas diferenças.
Ao final destas reflexões sobre o conceito de representação, gostaria de ressaltar que em
nosso entendimento ele não pode ser compreendido e empregado sem os demais, isto é, a
prática, a apropriação e a transmissão. Pode-se dizer que as representações são o resultado do:
A maneira como uma representação é apropriada mostra como se deu a passagem entre
o sentido pretendido pelos produtores e os significados absorvidos pelos receptores das
representações. Este pode ser mais desenvolvido, oposto ou parcial ao que era esperado,
devendo-se muito disso à maneira como ocorreu a transmissão, mas também a concorrência nas
lutas de representação. Esta está fundamentada nos interesses de pessoas ou grupos que se
originam de práticas pré-existentes tanto quanto tentam instituir novas.
Lembramos que, em nenhum momento, Chartier elege grupos perpetuamente
privilegiados como produtores, ou condenados como meros receptores de representações. Pelo
contrário, considera estes posicionamentos sociais como históricos, portanto, passíveis de
14
7
Como exemplo pode ser citado o projeto coletivo Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade,
coordenado pela Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e do qual faço parte. Ele estuda hagiografias e
santos tendo como recorte espaço-temporal as penínsulas ibérica e itálica, dos séculos XI a XIII, adotando os
seguintes eixos de análise: o caráter propagandístico das hagiografias; o crescimento da espiritualidade leiga; a
organização da Igreja sob a liderança do Papado; a coexistência e os conflitos entre as crenças e práticas da
religiosidade, ou seja, não oficiais, e as impostas por Roma; os discursos de gênero, e os centros intelectuais.
15
8
Segundo Werner e Zimmermann (2003).
16
determinado pelas suas inserções eclesiásticas e vínculos sociais. Também almejamos uma
maior eficiência na abordagem dos documentos para responder à questão proposta para a
dissertação, por isso utilizamos a técnica de análise de narrativa para tratar dos textos
hagiográficos. O objetivo desta técnica seria “identificar e analisar os diversos elementos que
configuram a narrativa e que a tornam um todo de sentido” (SILVA, 2002, p. 199), isto nos
permitiu relacionar o sentido das representações selecionadas como objeto do nosso trabalho
com os das narrativas como um todo.
Desta forma, descontruímos as narrativas, analisando cada um dos seguintes elementos:
o enredo e suas partes constituintes (o conflito, a verossimilhança e a estrutura); as personagens;
o tempo e o espaço da narrativa; o foco narrativo; o tema, os motivos, o assunto e a mensagem
das histórias; e a função ou objetivo do texto. Não deixamos de considerar seus recursos formais
e de conectar sempre que possível nossa técnica de análise com nosso aporte teórico.
De acordo com as nossas concepções teórico-metodológicas, o objetivo principal desta
dissertação foi analisar comparativamente duas hagiografias mariológicas castelhanas do século
XIII, destacando de que maneira eles se valeram de representações demoníacas para difundir
entre os fiéis, eclesiásticos e leigos, práticas ligadas aos interesses das suas inserções
eclesiásticas e de seus vínculos sociais. Justamente, para apreender a relação destas
representações e práticas com os interesses eclesiásticos em Castela no século XIII, usamos
como ponto de cruzamento comparativo a normatização social pretendida pela Igreja com os
cânones dos Concílios de Valladolid (1228), Peñafiel (1302) e de Latrão IV (1215).
Para concretizar a meta principal, fez-se necessário completar alguns objetivos
secundários, que foram: identificar as características das representações diabólicas nas
hagiografias estudadas, observando como os seus sentidos são constituídos em relação ao
sentido das narrativas como um todo; analisar estas mesmas representações que Gonzalo de
Berceo e Juan Gil de Zamora compuseram, tendo em vista os ambientes espaciais e temporais
e os lugares sociais de produção dos textos; explicar como estas representações demoníacas
dialogavam com os diferentes espaços de produção cultural castelhanos e ocidentais do século
XIII; sistematizar e cotejar as determinações canônicas dos concílios estudados para identificar
qual a normatização pretendida pelas Igrejas Castelhana e Romana; e articular o sentido das
representações satânicas e das narrativas com a referida normatização.
Ainda com o mesmo quadro teórico-metodológico em mente, passamos às nossas
hipóteses. A primeira delas é que as representações demoníacas eram empregadas nas
hagiografias como elementos narrativos de uma mensagem que propagava a correção moral e
o controle social, traçando analogias e continuidades entre a sociedade terrena e o Além. Os
18
autores usaram as relações sociais terrenas verticais e horizontais, conhecidas deles e de seus
contemporâneos, para compor a hierarquia e as leis do Além. Ou seja, as relações sociais da
Terra serviram para dar forma às relações sociais sobrenaturais. Porém, ocorre uma inversão
nos textos. Aquilo que compõe o sobrenatural, a partir de uma inspiração na vivência histórica,
passa a ser visto como originário do Além, tornando-se, sutilmente, a explicação e validação do
que ocorre na Terra. Em decorrência, esta é retratada como nada mais do que uma extensão
contínua e análoga de como as coisas são no Além. Portanto, a ordenação social é representada
nestes textos de maneira a parecer prévia e naturalizada. Assim, por meio das continuidades e
analogias produzidas pela inversão da origem das configurações do sobrenatural e do terreno,
as representações contidas nas hagiografias poderiam tentar comandar atos, como diria Chartier,
e, consequentemente, a definição contraditória das identidades, a própria e a dos outros.
Este ponto nos conduziu à nossa segunda hipótese, a saber: se as práticas incentivadas
ou condenadas, relacionadas às representações diabólicas, nos textos hagiográficos, estiverem
em sintonia com as determinações conciliares, poderemos afirmar que as finalidades destes
textos são complementares às das atas conciliares. Por um lado, os concílios regulamentavam
a normatização religiosa de toda a sociedade, prevendo punições para quem as infringisse. Por
outro, as hagiografias difundiam tais normativas, tentando conscientizar as pessoas com suas
histórias edificantes, prometendo recompensas ao invés de castigos para os cumpridores das
normas conciliares. O cristão modelar seria o mesmo nas hagiografias e nos concílios, fosse ele
exemplar por temer penas e/ou por almejar prêmios.
Contudo, tão certo quanto existiam outras religiões, também existiam diferentes
religiosidades cristãs. E como nossa terceira hipótese, defendemos que os Milagros de Nuestra
Señora e o Liber Mariae também possuíam a finalidade de construir uma identidade própria
para as ordens religiosas a que se vinculavam seus autores, bem como diferenciar os cristãos de
outras religiões, neste caso específico, a judaica. As representações diabólicas foram
configuradas nos textos com grande respeito à teologia ortodoxa, consequentemente, elas
deveriam ser semelhantes. Porém, elas possuem detalhes divergentes resultantes dos lugares
sociais dos autores e da redação dos documentos, bem como dos interesses imediatos daí
derivados. Tais detalhes alteram os sentidos do que foi representado, proporcionando
oportunidades de apologias ou de críticas veladas, explicáveis porque as vinculações
eclesiásticas e sociais dos autores, como já dissemos, eram concorrentes. Neste sentido, as
hagiografias, ao mesmo tempo em que difundiam as decisões da hierarquia clerical, também
foram, para diferentes segmentos eclesiásticos, um meio de reforçar seu próprio prestígio e/ou
19
Para não comprometer a fluência do texto com excesso de citações diretas e permitir
que os leitores possam acompanhar os dados extraídos das narrativas que analisamos, incluímos
três anexos ao final da dissertação. No Anexo A – Narrativas analisadas dos Milagros de
Nuestra Señora, encontram-se os poemas desta hagiografia com os quais trabalhamos, no
idioma original, com as estrofes numeradas, segundo a edição crítica de Claudio García Turza,
publicada em Obra Completa de Gonzalo de Berceo, coordenada por Uría Maqua. No Anexo
B – Narrativas analisadas do Liber Mariae, estão os textos que estudamos do referido livro,
na ordem do manuscrito medieval. Porém, a língua de apresentação é o espanhol moderno,
segundo a tradução de Francisco Rodrigues Pascual. No Anexo C – Mapas, incluímos alguns
documentos deste tipo que foram utilizados no nosso trabalho com fins explicativos.
Esta dissertação segue o que está estipulado a respeito da apresentação do texto e das
citações das referências bibliográficas nas normas ABNT 6022, 6023, 6027, 6028, 10520 e
14724.
As representações diabólicas nas hagiografias estudadas recebem muitos epítetos, que
não aparecem empregados sempre da mesma forma dentro de cada uma ou em ambas. Contudo,
as duas deixam bem claro que existe uma personagem que lidera toda uma espécie de entidades
sobrenaturais, da qual ele faz parte, opondo se aos designíos de Deus. Para evitar quaisquer
riscos de engano por associações errôneas nas análises dos dois textos, optamos por denominar
a personagem líder como Diabo, Satã ou Satanás, considerando estes termos como sinônimos.
Designamos os demais membros da sua espécie com a palavra demônios. 9
9
Alguns autores chamam a atenção para esta descontinuidade nas denominações do Diabo e dos demônios, seja
em textos bíblicos canônicos e apócrifos ou nas artes, concluindo que a solução adotada é a mais condizente
(GUTIÉRREZ MARTÍNEZ, 1998, p. 44-48; KELLY, 2008, p. 11; LINK, 1998, p. 14).
1. O Falso Traidor Provado: as representações satânicas nos Milagros de Nuestra Señora
de Gonzalo de Berceo
1
La Rioja está situada no centro-norte espanhol e é subdividida em La Rioja Alta, que é montanhosa e com
cavernas, e La Rioja Baixa, com planícies, fauna e flora diversificadas. Durante a chamada Reconquista,
desenvolveu-se na região a pecuária, passando depois à agricultura de frutas, hortaliças e cereais. Nos séculos XI
e XII, a reurbanização fortaleceu as atividades comerciais e financeiras. Foi uma área estratégica e fortificada,
primeiro contra os mouros e depois, devido às disputas territoriais, entre os núcleos cristãos.
2
Segundo Sarmiento (1775).
22
cópia I. Ela foi produzida provavelmente entre 1774 e 1779 e chegou a ser dada também como
perdida. O MS. I pode ser conhecido hoje porque A. García Solalinde descobriu uma cópia dele
no Archivo de Santo Domingo de Silos, publicando-a em 1958. Além deste exemplar de I, que
ainda está em Santo Domingo de Silos, há uma fotocópia feita por Solalinde em 1914 para o
Centro de Estudios Históricos espanhol.
A primeira publicação das obras de Gonzalo de Berceo, que teria estes manuscritos
como fonte, foi feita por Tomás Antonio Sánchez em 1780, com base em I.
Em 1925, parte do manuscrito em fólio, F, foi comprado de uma livraria de Madrid pela
Real Academia de la Lengua. C. Carroll Marden o publicou em 1928. O manuscrito continha
30 fólios, amarrados em forma de livreto, sendo batizado por Marden de A. Ele presumia que
no total deveriam ser 955 fólios, mas somente os últimos dois milagres figuravam neste
fragmento.
Em 1928, Marden encontrou o restante de F no mosteiro de Santo Domingo de la
Calzada. Ele renomeou os fragmentos como A' e A", passando assim o conjunto final a ser
conhecido como A. Marden publicou o fragmento A" em 1929. Porém, nele faltavam a
introdução e o milagre número I até a penúltima estrofe. O MS. A, ou F, como também passou
a ser conhecido, encontra-se no arquivo da Real Academia de la Lengua. 3
Quanto à forma, os poemas estão escritos em cuaderna vía, ou tetrástrofo monorrimo,
métrica medieval de estrofes com quatro versos de 14 sílabas. 4 Esta métrica lhe confere um
ritmo, para o qual Berceo faz menção de execução musical na introdução.5 Estilisticamente, os
MIL foram redigidos principalmente por meio da técnica de amplificação, isto é, eles foram
baseados em uma ou mais versões latinas anteriores6 que, por serem mais sucintas,
possibilitaram a expansão de certos trechos, permitindo que o autor aplicasse nestes pontos sua
criatividade. Contudo, não se trata de uma simples cópia ou tradução ampliada, mesmo para os
padrões medievais, período durante o qual alterações e interpolações textuais eram muito
3
Para este trabalho foram utilizadas algumas das principais edições críticas dos MIL, indicadas na bibliografia,
selecionadas, sobretudo, pelas observações introdutórias feitas pelos responsáveis pelas mesmas. Isto possibilitou
ter em mãos o documento e, ao mesmo tempo, ter ampliada a bibliografia a respeito das singularidades do
documento, evitando ao máximo os erros de leitura causados pelo manuseio de tantas cópias de datações tão
espaçadas e distintas do manuscrito original de Berceo. Estas edições partem da cópia I cotejada com F e, às vezes,
M para elaborar o texto, recorrendo ainda às outras edições críticas anteriores a sua data de publicação.
4
Exceto pela penúltima estrofe do poema II e pela última do poema VIII, que têm cinco versos.
5
Estrofes: (7) Yaziendo a la sombra perdí todos cuidados,/odí sonos de aves, dulces e modulados;/nunca udieron
omnes órganos más temprados,/nin que formar pudiessen sones más acordados. (8) Unas tenién la quinta e las
otras doblavan,/otras tenién el punto, errar no las dexavan;/al posar, al mover, todas se esperavan,/aves torpes nin
roncas y´ non se acostavan. (9) Non serié organista nin serié vïolero,/nin giga nin salterio nin mano de rotero,/nin
estrument nin lengua nin tan claro vocero/cuyo canto valiesse con esto un dinero.
6
Segundo Kinkade (1971).
23
7
Outros poemas de sua autoria: Hinos, Vida de San Millán de la Cogolla, Vida de Santa Oria, Vida de Santo
Domingo de Silos, Martirio de San Lorenzo, Duelo de la Virgen e Loores de Nuestra Señora.
8
Agostiniano licenciado em Teologia, Ciências da Educação, Filosofia, História e Bibliotecário do Mosteiro de
San Millán de La Cogolla. Segundo seu estudo da questão, a assinatura de Gonzalo se encontra entre as das
testemunhas de um documento de doação para o Mosteiro de Sán Millán em 1212, assinando como milites, cerca
de uma semana antes da famosa batalha de Las Navas de Tolosa.
9
Este termo pode ser traduzido por cavaleiro, indicando todo aquele capaz de portar armas e manter uma montaria
devido aos seus próprios recursos, não necessariamente envolvendo como condição para tanto o nascimento nobre.
A associação entre cavalaria e nobreza só começa a se cristalizar a partir do final do século XII.
24
10
Esta matéria ainda deixa algumas incertezas. Domingo Ynduráin (1976) alega que Berceo não faz menções em
suas obras à sua educação universitária, enquanto por outro lado exalta sua formação monástica. Contudo, como
explica SILVA, o autor só faz isso nas Vida de San Millán de la Cogolla e Vida de Santo Domingo de Silos,
padroeiros dos mosteiros a que Berceo se ligava. Seria contraditório que em textos apologéticos e propagandísticos
dessas instituições o autor exaltasse outro espaço de saber. Se existe outra possibilidade de lugar onde Berceo
pudesse ter estudado este teria sido a escola da Catedral de Calahorra, mas mesmo assim tendo passado por, ou
sendo admitido lá por meio de Palência. Para mais detalhes ver SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. La
Trayectoria Intelectual de Gonzalo de Berceo. Disponível em:
<http://www.vallenajerilla.com/notabene/indice_andreia.htm>. Acesso em: 06 dez. 2010.
11
Chama-se Mester de Clerecía, um tipo de literatura medieval do século XIII, elaborada por letrados, geralmente
formados no quadrivium, originária de ambientes cultos como os Estudos Gerais ou as escolas catedralícias. Além
dessas suas características são: o uso de retórica e de um vocabulário cheio de cultismos, embora seus idiomas de
redação geralmente sejam as línguas vernáculas; temas religiosos e históricos de apelo didático e moralizador
baseado em fontes latinas anteriores, ainda que também se pretendam como entretenimento; e são escritos em
verso, em cuaderna vía, com rima consoante.
25
Devido a sua formação, os textos de Gonzalo de Berceo prezam pelos cultismos,12 mas
também são leves, diretos, objetivos e de fácil entendimento. Nos MIL, o autor usa linguagem
figurada, coloquial e conotativa e há uma quantidade considerável de alegorias, eufemismos,
provérbios ou expressões idiomáticas regionais, comicidade, emprego de adjetivos no lugar do
nome das personagens e cenas que remetem ao cotidiano das pessoas comuns.
Em termos literários, pode-se dizer que o gênero dos MIL é a épica, porque ele é uma
coletânea de narrativas de acontecimentos heroicos contados em verso. Devido a sua atuação
em cada um dos poemas, Maria pode ser considerada como uma heroína andante, que protege
os mais fracos, ainda que pecadores, realizando feitos milagrosos e lutando contra seu arqui-
inimigo, o Diabo, e seus subordinados (BAEYENS DE ARCE, 2002; GARCÍA, 2006;
GRANDE QUEJIGO, 2000). Cada um dos milagres é um conto, isto é, um tipo de narrativa
curta, que condensa o conflito, o tempo, o espaço e reduz o número de personagens (GANCHO,
1991, p. 8). Esse tipo narrativo, no medievo, foi marcado pela intenção moralizante do que era
contado, tal qual uma hagiografia com seu caráter edificante.
Nos MIL, o foco narrativo assume uma grande importância. O Narrador é uma entidade
ficcional, uma criação do autor, que só existe no texto (GANCHO, 1991, p. 29). Logo, o
narrador não é o autor, mesmo que se apresente como tal, como é o caso dos MIL. Da mesma
forma que, por exemplo, uma personagem que representa uma figura histórica não é um retrato
fiel das ações e pensamentos dela. Uma figura histórica pode ser idealizada, caricaturada,
depreciada etc. quando aparece em uma narrativa.
Quando se trata de hagiografias, como são os MIL, o narrador também está submetido
a uma série de topoi. Estes, independente dos motivos que levaram o autor a identificar o
narrador com a sua própria pessoa, podem divergir do Gonzalo de Berceo, o padre hagiógrafo
riojano do século XIII, que existiu extratextualmente. Por isso, apesar de pretendermos entender
os sentidos que o autor atribuiu às representações que compôs nos MIL, evitaremos falar que o
autor disse, descreveu, afirmou, ou agiu dessa ou daquela maneira. Atribuiremos todas estas
atitudes ao narrador, que é nada mais do que mais uma das muitas representações constantes
nas narrativas estudadas.
O narrador dos MIL é heterodiegético,13 onisciente, parcial e intruso. Sua parcialidade
é flagrante; ele se apieda dos pecadores quando agem ingenuamente ou os insulta quando têm
consciência do que fizeram. Escolhe o lado que deseja que prevaleça hostilizando os
12
Como as expressões em latim que aparecem com certa frequência no meio dos versos redigidos em dialeto
riojano.
13
Está em terceira pessoa, não é um dos personagens e vê os fatos de fora (GANCHO, 1991, p. 30).
26
antagonistas, louvando Maria e incentivando o culto mariano. Ele se insere nos relatos com
uma clara intenção comunicativa, cometendo até digressões com a intenção de efetivá-la. O
narrador não é distante, como uma voz que parece pairar de lugar nenhum. Pelo contrário, é um
contador de histórias ativo que sempre está dialogando (saudando, advertindo, exortando, etc.)
com uma audiência (real ou suposta) desejando cativá-la com os milagres da Virgem (CACHO
BLECUA, 1986, p. 49-66).
O narrador dos MIL busca atestar a autenticidade das narrativas: às vezes alega que é
apenas um reprodutor de fatos sobre os quais ouviu falar; em outras passagens apela para o
poder legitimador de autoridades exteriores ao texto; ou simplesmente roga aos seus
interlocutores para que considerem o relato como verdadeiro, para que obtenham os mesmos
benefícios das personagens representadas (MIL 182, 218 e 748).
Observamos que os diálogos, bem como a transcrição das falas das personagens,
aparecem mais conforme aumenta o tamanho da narrativa. Nas menores, eles só aparecem no
clímax. Nas de tamanho intermediário, ficam no momento do desenvolvimento, do clímax e do
desfecho,14 limitando-se às personagens centrais. Na maior de todas elas, o recurso aos diálogos
é marcante, aparecendo ao longo de toda a narrativa e não se resumindo às personagens centrais.
Nesta narrativa, também ocorre um monólogo interior,15 durante o qual a personagem está se
lamentando e rezando. Portanto, podemos afirmar que a intenção comunicativa dos MIL
continua a se manifestar por meio dos muitos diálogos e/ou monólogos em discurso direto16
(PRAT-FERRER, 2007, p. 85-90).
Nos poemas analisados, dentro das tramas, o tempo objetivo ou cronológico sempre flui
em prolepses (flashfowards), com uma frequência iterativa, ou seja, o número de
acontecimentos é maior do que o de apresentações. A única ocorrência de tempo subjetivo –
aquele de caráter psicológico ligado aos personagens ou ao narrador – que encontramos é o
monólogo interior citado no parágrafo anterior.
Os poemas tendem a ter uma duração curta, os que analisamos contam 33 estrofes em
média. 17 Por isso, o narrador foca-se nos pontos principais do acontecimento miraculoso, ou
seja, nas partes de desenvolvimento e clímax, que são geralmente mostradas por meio de cenas
14
Estamos subdividindo as narrativas da seguinte forma: introdução, parte na qual se situa o leitor diante do enredo;
desenvolvimento, momento em que se desenvolve o conflito; clímax, momento culminante e de maior tensão da
trama, quando o conflito chega ao máximo; e desfecho, parte em que se soluciona o conflito (Ibid., p. 11).
15
Conversa consigo mesmo sem perda de consciência.
16
A fala da personagem é registrada integralmente, do modo como ele a diz, sem interferência do narrador que se
limita a introduzi-la (Ibid., p. 33).
17
Exceto pelos poemas XI e XXV, que, respectivamente, possuem muito menos e muito mais estrofes, contado 10
em um e 163 no outro.
27
com a presença de discursos diretos. Os pontos de menor importância destas partes, a introdução
e o desfecho, são sumarizados com o uso do discurso indireto. Contudo, como o narrador usa o
desfecho para exortar o culto mariano, este é mais longo que a introdução.
Quanto à ambientação, ela é feita de forma franca, isto é, tudo que o leitor/ouvinte
precisa saber é descrito e exposto pelo narrador, sem a necessidade da intermediação das
percepções ou das ações dos personagens. Porém, os índices espaciais que a narração fornece
para o andamento do enredo são mínimos, limitando-se somente aos extremamente
indispensáveis para que o enredo flua com coerência.
18
No poema XII – El prior y el sacristán, faz-se menção a um entidade sobrenatural chamada de Príncipe de
Esmirna, que seria um dos títulos do Diabo. Contudo, trata-se de uma aparição muito breve, não configurando
Satanás como um personagem, trazendo apenas elementos analíticos que podem ser encontrados nas outras
narrativas. Por isso, resolvemos não incluí-lo nas nossas análises.
19
Existe uma controvérsia sobre a ordem dos últimos dois milagres. No MS. I, La Iglesia Robada figura como o
último e El Milagro de Teófilo como penúltimo. Enquanto, no MS. F (ou A) a ordem está invertida. Mesmo sendo
I considerado pelos especialistas uma cópia fiel do manuscrito mais antigo dos MIL (apesar de datar do século
XVIII), enquanto F já é uma cópia do século XIV, foi adotada aqui a ordem de apresentação de F. Ou seja, La
Iglesia Robada aparece como poema XXIV e El Milagro de Teófilo como o poema XXV. Além da antiguidade
maior de F, a sequência de améns que fecham as três últimas estrofes do El Milagro de Teófilo e a despedida do
narrador/Gonzalo de Berceo no final do poema são mais condizentes como encerramento da composição, como
apontado por Claudio García Turza, seguindo Daniel Devoto (GONZALO DE BERCEO, 1992, p. 552).
20
Lembramos a todos aqueles que desejarem ler os poemas completos que eles se encontram ao final do documento
no Anexo A.
21
Observamos que enquanto a abreviação MIL indica o texto Milagros de Nuestra Señora, a abreviatura mil. é
empregada na localização de cada um dos milagres que esta hagiografia contém. Fizemos isto como uma opção
para manter a uniformidade com as abreviações usadas na localização das narrativas no Liber Mariae.
22
O sacristão era o responsável por guardar todas as chaves de um mosteiro e encarregado de tudo o que era
relacionado à organização do culto. Personagens com este cargo aparecem recorrentemente na obra de Gonzalo de
Berceo (RUIZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 234).
28
23
Sobre o tema da castração neste milagre de Berceo consultar Giles (2010).
24
Nos MIL, o homem peca por livre-arbítrio e somente depois de pecar o Diabo pode lhe fazer algum mal. Por
isso, a passagem da fonte latina mais provável dos MIL, o MS. Thott 128, que diz que o monge foi levado a beber
29
“yogando”25 no chão até tarde. Quando ele regressou ao mosteiro, seus companheiros notam o
seu estado, mas ele desejava ir a igreja rezar perante o altar mariano, como era do seu costume.
O Diabo viu nisso uma chance para espantá-lo. Tomando-lhe a dianteira, ele atacou o monge
no caminho para a igreja, nas formas de um touro, de um cão e de um leão. Nas três vezes,
Maria salvou o monge. Na primeira e na terceira vez, de forma humilhante para Satanás, ela o
toureou com a saia, fazendo-o levar um grande tombo. Depois, deu uma sova de pauladas nas
costas dele, à porta da igreja. Após se curar, o Diabo se vai, nunca mais ousando escarnecer do
monge.
Tendo o Diabo partido, Maria reconfortou o monge, colocando-o em seu leito e lhe
recomendando que ele procurasse um amigo dela, para se confessar no dia seguinte. Ela revelou
sua identidade para o monge, que intenta lavar-lhes os pés. Mas, antes disso, ela partiu envolta
em luzes. O monge cumpriu tudo, levando uma vida ainda mais correta. Depois do ocorrido, o
religioso nunca mais bebeu. O confessor do monge, diz que os acontecimentos honraram toda
a instituição. Cheio de amores por Maria, ele também resolveu ingressar no mosteiro. A
sociedade como um todo foi tomada por um surto devocional mariano. Ao final, o narrador faz
uma exortação ao seu culto, às benesses dele e pede proteção para todos.
No mil. XXV – El milagro de Teófilo,26 conta-se sobre um homem chamado Teófilo.
De bom comportamento, ele cuidava dos necessitados e tinha muito prestígio entre as pessoas
em demasia pelo Diabo, foi removida (DE LA RED e DE LA RED, 2000). Contudo, o vinho não era sinônimo de
problema por si só. Berceo escreve positivamente sobre o vinho nas suas obras (PÉREZ ESCOHOTADO, 1994,
passim). A bebida era artigo fundamental da alimentação cristã medieval junto ao pão, estando incluso na dieta de
todas as camadas sociais. Seu consumo era intenso, a quantidade variando de acordo com o poder econômico de
cada grupo social. Estava presente em todas as refeições, sendo bebido diluído em água, pois era corrente o medo
de que esta pudesse estar contaminada. Muitas vezes, os gastos com o vinho eram maiores do que com outros itens
da dieta, como as carnes, por exemplo. O vinho ainda podia ser usado como moeda de troca, medicamento e esmola
oferecida às instituições religiosas. Além disso, o vinho estava presente na missa durante a Eucaristia (FAUVE;
FORTALEZA, 2005, passim). Figurando nas Escrituras, apreciado pelo próprio Jesus, o problema do vinho era
seu consumo exagerado. A embriaguez era associada no imaginário medieval ao aumento da libido, o que podia
levar a atos considerados da pior espécie, como, por exemplo, no episódio bíblico de Ló. No caso do monge do
relato, ele foi guloso e luxurioso, além de ter quebrado os votos de castidade, de ascetismo e de disciplina
monástica.
25
O verbo “yogar” pode designar festa, no sentido de farra, contudo Berceo o usa frequentemente para designar
relações sexuais, como no mil. VIII. Este sentido ainda é aceito pela língua espanhola segundo o dicionário da
Real Academia Española, disponível em http://www.rae.es/rae.html.
26
A lenda medieval de Teófilo é célebre por inaugurar a temática do pacto com o Diabo. Segundo Alfonso
D’Agostino, a primeira versão escrita deste milagre, atribuída a Eutychianos, foi elaborada em grego e data do
início do século VII. A primeira versão latina conhecida é a de Paulo Diácono de Nápoles, De Theophilo
poenitente, datada do século IX. A partir de então, várias outras foram produzidas, como as de pseudo Marbodo,
Historia Theophili; Rosvita, Lapsus et conversio Theophili vicedomini; Radewin, De Theophilo; Fulberto di
Chartres, Sermones; Guglielmo de Malmesbury, incluída no De laudibus; Vincente de Beauvais, presente na
Speculum historiale; Bartolomeo da Trento, inserida no Liber miraculorum; Jean de Mailly, na Abbreviatio in
gestis et miraculis sanctorum, e na Legenda aurea de Iacopo da Varazze. A partir do século XIII, o milagre passou
a circular nas línguas vernáculas em consolidação. Em francês destacam-se os textos de Rutebeuf e Gautier de
Coinci; em galego-português, as Cantigas de Santa Maria de Afonso X; em catalão, no Recull de eximplis; em
italiano, a de Giordano da Pisa, para só citar alguns exemplos. Nos séculos XVI e XIX, a temática do pacto com
30
do lugar em que vivia. Ele também era o vigário 27 e, muito competente, preservava o Bispo
local de quaisquer preocupações. Quando o Bispo morreu, a população do lugar elegeu Teófilo
como seu sucessor, mas ele declinou da oferta, por se considerar indigno. Quando um novo
Bispo assumiu, ele acabou destituído do cargo de vigário, perdendo praticamente todo o seu
prestígio social. Teófilo procurou um judeu conhecido por suas feitiçarias. Durante a noite, este
o levou até o Diabo, em uma encruzilhada. Teófilo assinou, com seu próprio sangue, e selou,
com seu anel, um pacto com o Diabo. Vendeu a sua alma, renegando Jesus e Maria como seus
senhores e tornando-se vassalo satânico.
Teófilo recuperou tudo que tinha e ainda obtém mais, porém perdeu a sua sombra e
ficou com um aspecto macilento, até que começou a sofrer de fortes dores e febres.
Arrependendo-se e penitenciando-se, pediu ajuda a Maria de frente para um altar dedicado a
ela. Depois de quarenta dias de penitência, Maria apareceu para Teófilo e, a princípio, foi dura
com ele, mas decidiu ajudá-lo, desde que ele confessasse sua apostasia e confirmasse sua fé
cristã. Em mais duas visitas, com intervalo de três dias entre cada uma, Maria conseguiu
resolver todos os problemas de Teófilo, inclusive recuperando o trato que ele assinara com
Satanás.
O vigário confessou-se publicamente em um domingo na missa do novo Bispo. Quando
o contrato foi queimado por este, o corpo de Teófilo se revestiu de uma luz de santidade. Ele se
despojou dos seus bens e pediu perdão a todos, falecendo três dias depois. No enceramento, o
narrador faz uma oração a Maria pedindo proteção para si e para todos.
Excluindo algumas exceções,28 que não serão esquecidas na nossa análise, formulamos
a seguinte proposta de enredo para englobar todas as cinco narrativas, usando o que há de
comum na maioria delas. A formulação de um enredo comum nos permitiu perceber que a
estrutura delas também seguiu um padrão para a ordenação dos acontecimentos narrados, que
é linear, o que quer dizer que os eventos da trama acontecem cronologicamente. As narrativas
estão compostas como exposto na Tabela 1. 29
o Diabo foi consagrada na literatura ocidental pelos personagens conhecidos como Fausto, respectivamente dos
autores Christopher Marlowe e Goethe. (D’AGOSTINO, 2004. p. 707-710).
27
O vigário era aquele que substituía o bispo em sua ausência, ou seja, figura muito próxima do maior poder
eclesiástico local, com a qual era extremamente positivo manter boas relações.
28
Estas exceções seriam o lavrador avarento e o romeiro de Santiago, que são leigos e não tinham um bom
comportamento; não se faz menção à devoção mariana do romeiro de Santiago antes de lhe acontecer o milagre,
quem intervém a seu favor é Santiago; o sacristão fornicador é provocado pelo Diabo até que começa a pecar; e,
no caso do lavrador, basta que um anjo mencione a devoção dele por Maria para ele ir diretamente para o Céu,
recaindo apenas sobre ele o impacto do milagre.
29
Estamos expondo uma estrutura geral baseada no enredo comum que formulamos, propositalmente abstraímos
uma vez mais as exceções citadas na nota anterior, mas não nos esquecemos delas.
31
Tabela 1 – Estruturação do enredo das narrativas com representações diabólicas nos MIL
Nas primeiras estrofes dos poemas, o narrador pede a atenção do público, apresenta o
Introdução protagonista e delimita o tempo e o espaço narrativos. O protagonista levava uma vida reta,
exceto por um motivo que, no desenvolvimento, colocará todo o enredo em movimento.
Devido à falha inicial do protagonista, o Diabo atua deixando-o ainda mais alijado de Deus.
Desenvolvimento Também é possível que o protagonista morra e que sua alma fique em disputa entre agentes
do bem e do mal, com a vitória pendendo mais para este último lado.
Maria intervém em defesa dos seus devotos (servos), sempre conseguindo livrá-los do Diabo
Clímax ou de seus subordinados. Porém, o que ela consegue não é a Salvação imediata do pecador,
mas sim uma segunda chance para que ele possa se penitenciar e se redimir.
O protagonista passa a ter uma vida ainda mais correta a serviço de Maria, geralmente em
um mosteiro, obtendo a Salvação quando chega sua hora de morrer novamente. O milagre é
Desfecho
impactante no seu entorno social, fazendo com que o culto mariano cresça. O narrador faz
uma exortação deste, destacando para os leitores/audiência as benesses desta veneração.
30
A noção de pecado pode ser sistematizada como “uma resistência à vontade de Deus nas coisas e nos homens”
(ANCILLI, v.3, p. 118-124).
32
31
Por exemplo, quando Maria confrontou os demônios que levavam a alma do monge sacristão, eles lhe respondem
que como os homens devem ser julgados pelas suas boas e más ações (MIL 90-91) e neste caso o protagonista era
um incontinente sexual. O mesmo ocorre com Geraldo, o romeiro de Santiago. Quando o santo contesta o direito
do Diabo sobre a alma do mortal, ele replica que ele fornicou, matou-se pela própria mão, que por isso devia ser
julgado como irmão de Judas e que de todas as formas Geraldo era paroquiano dele (MIL 200-201).
33
pecados.32 Por outro lado, suas atitudes corporais na Terra podiam garantir sua Salvação 33 e,
quando retornam a Deus, alguns dos pecadores manifestam isso no seu físico.34
Os protagonistas eclesiásticos são pessoas serenas, enquanto que os leigos não têm um
estado psicológico sadio (Geraldo não teria “juízo”, gostava de folía e pecado; o lavrador era
revolvedor ou desordeiro, MIL 183 e 270). Entretanto, os estados pecaminosos dos
protagonistas e as ações praticadas em função deles são qualificados de loucura pelo narrador
(MIL 79, 193, 270, 463 e 772). Tais loucuras dão lugar às alegrias pelas graças obtidas nos
desfechos dos milagres. Como as pessoas só ficam suscetíveis às investidas diabólicas depois
que pecam, por permitirem a entrada do satânico nas suas vidas, os protagonistas estão
temporariamente insanos (DEVOTO, 1985-1986, p. 607-608), só se curando depois que
recebem as benesses marianas.35
A tônica das narrativas dos MIL está voltada para a coletividade e isto se manifesta por
meio dos protagonistas e das suas relações sociais. Quando os protagonistas são eclesiásticos,
a sua aventura milagrosa repercute na instituição a que pertencem, honrando-a (MIL 492). A
devoção deles ainda é associada ao status social de servos de Maria, visto que recorrentemente
as expressões usadas nos textos para indicar a veneração deles pela santa é “servir” ou “a serviço
de”. Ou ainda, eles também podem ser considerados vassalos da Virgem (MIL 748).
Mas o impacto do milagre que os protagonistas receberam de Maria não se limita às
instituições clericais, até porque os leigos também eram agraciados. Quando os milagres são
tornados públicos cativavam todos os grupos sociais dos locais em que os protagonistas viveram
ou por onde passaram, independentemente do estado de vida 36 deles. (MIL 98, 215-216, 494-
496, 891-892 e 898).
Em nenhum momento das narrativas fica explícito que os bens das personagens
significavam que elas eram nobres. Teófilo, que gozava de um grande prestígio social por conta
32
No conto do monge bêbado, o Diabo se aproveita de sua embriaguez para atacá-lo fisicamente, intentando,
respectivamente nas formas de touro, cão e leão, chifrá-lo, mordê-lo e devorá-lo (MIL 466-467 e 470-474). Já no
caso de Teófilo, ele fica sem sombra e macilento logo após assinar o pacto com o Diabo e posteriormente é ferido
pela lança de Cristo, começando a sofrer de fortes dores e de febre (MIL, 788, 791 e 793).
33
Como as reverências do sacristão fornicador ou a cantoria de louvor que saía da boca do lavrador (MIL 89 e
276-277).
34
Geraldo conserva apenas uma fina cicatriz do corte que fez na garganta para se suicidar e passa a urinar por um
orifício, onde estavam seus órgãos genitais; e Teófilo é cercado por uma luz que ilumina o seu rosto quando o
pacto satânico é queimado (MIL 211-212 e 894-898).
35
O melhor exemplo disto é a embriaguez no mil. XX. Ela simbolizaria a perda da razão, causada pelos vícios e
paixões mundanas, que cede espaço ao lado animalesco do homem representado nas formas animais do Diabo.
Porém, aos poucos, o monge recobra a lucidez e a consciência dos seus atos conforme Maria o ajuda e reconforta.
36
A expressão “estado de vida” refere-se ao tipo de pertencimento de uma pessoa em relação à Igreja, ou seja, se
ela é eclesiástica ou leiga. Dentre aqueles que fazem parte do grupo eclesiástico, há os clérigos seculares, os
religiosos e os religiosos ordenados, denominados clérigos regulares.
34
de seu cargo de vigário, é o único dos três eclesiásticos que aparecem que não é de uma ordem
monástica. Ele também é o único entre eles que possui riquezas, que ele distribui entre os
necessitados antes de morrer. O leigo Geraldo faz o mesmo antes de ingressar em Cluny e não
há nada que indique que ele fosse da nobreza (MIL 217 e 900).37 A alcunha do lavrador avarento
deixa bem claro que se tratava de um camponês, apesar de ser um homem livre que morreu
dono de muitas terras.38
Além dos comportamentos considerados como pecaminosos, que colocam os
protagonistas ao alcance do Diabo, ajudando a elucidar por contraste qual seria o
comportamento correto que os protagonistas deveriam ter, ocorre uma menção deliberada ao
credo religioso que eles deveriam seguir. Isto acontece quando Maria exige que Téofilo, no
meio de sua penitência, recite o Credo católico para ser perdoado pela sua apostasia. A confissão
de fé que ele faz possui os seguintes pontos: ele crê em Deus, que é Trindade, três pessoas em
uma deidade e que entre elas não há diversidade, são uma única verdade; crê na encarnação de
Jesus, nascido de Maria para a redenção dos humanos; que Ele pregou o Evangelho, que sofreu
a Paixão e no terceiro dia ressuscitou; crê na ascensão de Cristo, que enviou a graça e a
consolação; que haverá uma regeneração dos corpos, quando bons e maus receberão seu
galardão; resume que crê em tudo que Cristo mandar um cristão acreditar (MIL 836-840).
Reiteramos que quase todos os protagonistas eram devotos marianos de longa data,
observando esta devoção (serviço ou vassalagem) diariamente e com extremo zelo.39
Entretanto, do ponto de vista moral são negativamente qualificados quando sucumbem aos
pecados e vícios motrizes do enredo.40 Mas, com exceção do lavrador, que vai direto para o
Céu, após os milagres todos levam uma vida indefectível de serviço religioso mariano, muitas
vezes associada com mosteiros beneditinos.41 Neste momento da narrativa tornam a ser
qualificados positivamente e mais ainda do que eram na introdução dos poemas.
37
O cuchellijo (faca ou cutelo que Geraldo usa para se castrar e matar) não era uma arma. Trata-se de um
instrumento medieval usado como ferramenta para cortar alimentos e realizar pequenos reparos (FERREIRA
PRIEGUE, 1994. p. 54).
38
A diferença fundamental entre um lavrador e um jornaleiro é que este último não tem instrumentos de trabalho,
enquanto aqueles possuíam atrelagens, usadas para arar o solo. Os lavradores eram mestres de confrarias, membros
de fábricas de igrejas, almotacés das aldeias e assessores de justiça, segundo o verbete “Terra”, de Robert Fossier
(LE GOFF; SCHMITT, 2006, v. 2, p. 552).
39
Exceto por Geraldo, que se torna devoto após o milagre. Mesmo assim, ele estava empreendendo um gesto de
grande devoção a Santiago peregrinando para Compostela.
40
Geraldo é chamado de “astroso” (desgraçado) e mesquinho. O lavrador de “rastrapaja”. Teófilo, o apostáta que
se vendeu para o Diabo, é o mais duramente criticado, “mudou de Abel para Caim”, tornando-se invejoso,
ganancioso, enganoso, orgulhoso, mesquinho, malfadado, torpe, vilão, sujo e um “traidor pior que Judas” (MIL
193, 209, 273, 763, 772 e 797-802).
41
Em três dos quatro casos que o humano recebe a chance de voltar à vida para se redimir, o comportamento que
leva a redenção é o mesmo esperado de um monge exemplar (casos do sacristão, de Geraldo e do monge bêbado,
35
MIL 99, 217, 219 e 493). Em duas destas três narrativas, menciona-se que a regra monástica que os protagonistas
seguiram até findarem os seus dias na Terra era beneditina (MIL 76, 182-183 e 461).
42
No mil. XX, o monge bêbado se considerou merecedor dos castigos imputados pelo Diabo, porque julgava que
suas faltas foram graves. Na iminência de ser devorado, o religioso maldisse o seu pecado e apelou à Maria, que
o atendeu, mesmo que o narrador ressalte que dificilmente o religioso fosse capaz de cumprir suas palavras de
arrependimento (MIL 471 e 475). Em outra situação, Teófilo passa um longuíssimo monólogo interior,
correspondente à etapa de 40 dias da sua penitência, maldizendo-se, lamentando-se e martirizando-se até que
Maria, mesmo contrariada, resolve ajuda-lo (MIL 796-849).
43
Há menções aos demônios nos mil. VII e X, optamos por não incluí-los na nossa análise porque são apenas
citações muito breves, que não constituem os demônios como personagens destes poemas como definimos aqui.
36
ater-se-á aqui aos significados dentro do conjunto textual, no qual o signo está inserido,
evitando este risco (LE GOFF; SCHMITT, 2006. v. 2, p. 504-506).
Deve ser observada atentamente a maneira como se constrói textualmente a relação
entre signo e significado. Uma das formas mais comuns era por analogia. Este método trata de
buscar o significado oculto existente entre duas coisas, graças a uma semelhança mais ou menos
vaga, que faz com que uma delas simbolize algo além do que é ou aparenta. As coisas análogas
não precisam ser da mesma ordem (LE GOFF; SCHMITT, 2006. v. 2, p. 497-499). Por
exemplo, a exegese medieval buscava as analogias existentes entre este mundo e o além. Nos
MIL, as analogias ocorrem quando o Diabo é transformado em animais ou adjetivado. Embora
o fato de nestes textos o touro, o cão e o leão serem demonizados, não quer dizer que esta fosse
sempre sua atribuição.44
Na forma de touro, ele é chamado de coisa diabólica, mostrado como uma fera chifruda;
cheia de ódio, irada e esquentada. De cenho franzido, fazia gestos maus, cavava com os cascos,
como tipicamente este animal faz antes de um ataque, até que investiu fisicamente contra o
monge para chifrá-lo. Soberbo, logo depois foi amansado. Maria o toureou usando sua saia,
fazendo ele se esborrachar e chorar (MIL 466-468).
É preciso diferenciar o touro do boi, animal de tração importante para agricultura do
período medieval, de conotações positivas, sendo associado ao evangelista Lucas. O touro, por
outro lado, era, desde a Antiguidade, relacionado aos deuses pagãos na Bíblia (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 137-138; LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.1, p. 60-61). No poema, ele
simboliza a violência, uma força irresistível, arrebatadora. O destaque dado aos chifres deve-se
a estes serem emblemas de poder, item integrante de muitas representações do Diabo
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 233-235; RUIZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 125). O
animal também pode corporificar uma força psíquica de difícil controle, como uma pulsão ou
vício (gula/embriaguez), sendo o motivo da tourada também interpretável como uma forma de
matar ou controlar um instinto. Nesse sentido, Satanás seria uma força regressiva, que deveria
ser sublimada pela vida civilizada. Esta encontraria sua representatividade na Virgem e suas
vestes detalhadas. Ela toureia o Demônio com a saia, contrastando sua altivez espiritual e
civilizada com a nudez bestial de Satanás (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 890-895 e
44
Outras formas de simbolismo eram o desvio e a “parte pelo todo”. A primeira era uma forma de prender a
atenção do público, apontado um signo que simbolizasse alguma coisa diferente ou oposta do significado
largamente mais conhecido, neste caso, o monge bêbado e luxurioso, em vez do modelo de conduta espiritual
cristã. E a segunda toma um exemplar de uma determinada categoria para classificar todo o grupo, logo o “homem
bom”, para quem o monge se confessa, faz de todos os confessores “homens bons” (LE GOFF; SCHMITT, 2006.
v. 2, p. 502-504).
37
974-950). No mesmo sentido, pode ser interpretado o fato de que a Virgem se expressa pela
fala, enquanto Satanás fica em silêncio durante todo o relato.
Na forma de cão, o Diabo tinha o cenho muito turvo e os olhos fendidos, caninos
proeminentes que arreganhou para o monge. Queria despedaçá-lo, atacando-o nas costas e nos
lados. Maria se livrou dele da mesma forma que fez com o touro (MIL 470-472). O cão está
ligado ao mundo do pós vida em muitas culturas pré-cristãs, figurando ora como psicopompo,
ora como guardião do lugar de repouso dos mortos. Daí sua associação com o Inferno e com o
Diabo. Às vezes, o cão era lembrado por sua fidelidade e subserviência, mas sua indignidade,
por se alimentar de restos ou até de cadáveres, fazia de seu nome xingamento para figuras
desprezíveis. É, sobretudo, neste sentido que ele é associado a Satanás pelo narrador (RUIZ
DOMÍNGUEZ, 1999, p. 125-126). Mas, o cachorro também retrata uma ferocidade e ira
irracionais, mais ainda na avidez da fome deste animal. Assim, o Diabo parece se comportar no
ímpeto de prejudicar o monge. As dentadas, que são um castigo físico, são signos de uma
perigosa agressão dos instintos ao espírito, coadunando-se com as conotações do touro
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 176-182).
Por fim, na forma de Leão, Satanás é tido como uma besta temida, com tanta ferocidade
que não se poderia imaginar. Para o monge bêbado, ele tinha encontrado uma fera que era a
pior de todas. Mesmo assim, Maria dá uma sova humilhante de pauladas nas costas do Diabo
(MIL 473-478).
O leão também é outra figura ambígua. Sua ideia é a da majestade e soberania, embora
esta possa degenerar-se em soberba tirânica. Respectivamente, portanto, ele pode simbolizar
tanto Jesus quanto Satanás. As referências bíblicas ao leão só reforçam esta ambivalência, já
que, por exemplo, ele é tanto empregado positivamente na expressão “Leão de Judá”, como
negativamente no episódio de Daniel. O evangelista Marcos e os bispos usavam o leão como
insígnia. A associação de Cristo com o rei dos animais ecoava no imaginário medieval, que
dizia que esta fera ressuscitava seus filhotes natimortos após três dias (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 538-540; LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.1, p. 66; MACHADO, 2007,
p. 98-99). Mas no início da era cristã, ele também era a besta que devorava os mártires. Por
todos estes motivos, o narrador o considerava “besta provada”, ideal para a encarnação de
Satanás, senhor do Inferno e de legiões de demônios, um déspota dominador ávido para
conquistar a alma do monge. Logo, o leão reúne as características do touro e do cão na potência
máxima das forças do Diabo (RUIZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 126).
Em resumo, somente duas características físicas de Satanás são expressas nos MIL: a
polimorfia e a capacidade de interagir com o mundo material. A polimorfia é uma das
38
45
Alguns estudiosos chegam a discutir se no mil. II, as formas animalescas do Diabo não seriam apenas alucinações
do monge causadas pela sua embriaguez. A respeito disto, é importante observar que Gonzalo de Berceo não utiliza
a palavra fantasia, presente no MS. Thott 128, fonte mais provável dos MIL, a qual daria embasamento à
possibilidade do monge ter alucinado. Nos MIL, o Diabo também simplesmente aparece neste mundo em formas
de animais, como se sobrenatural e natural não se diferenciassem. Desta forma, Berceo retira quaisquer indicações
de que o Diabo não fosse real. O autor parece querer transmitir a mensagem de que quando o homem descuida da
vigília, ou se deixa ficar fora de si, Satã se aproveita para atacar (CACHO BLECUA, 2006; CARRERA DE LA
RED; CARRERA DE LA RED, 2000).
46
Ele possui conhecimento dos pecados de Geraldo. Quando o engana, alega querer salvá-lo, dizendo que a
situação do romeiro não agradaria Maria (MIL 189). No seu encontro com Santiago, quando se destaca da
companhia diabólica que levava a alma do peregrino, não se apresenta como “o” Diabo, mas Tiago o reconhece.
Quando o santo tenta impedir que ele fique com esta alma, Satanás faz-se de rogado sobre o ardil que lançou conta
Geraldo, enumera os pecados deste e coloca-se numa posição de poder sofrer uma injustiça de Santiago (MIL 200-
202). Este santo não poupa Satanás de acusações e de defeitos. Diz que por soberba e escárnio, o Diabo se passou
por ele, enganou o romeiro e o matou com uma mentira deslavada. Para Tiago, as palavras de Satanás são as de
39
com a Danação das almas e se entristece quando elas lhe escapam. Não é despropositado que
ele seja chamado de Pecado47 (MIL 209, 219 e 468). Contudo, frisamos uma vez mais que o
Diabo é um tentador ausente nos MIL (BURKARD, 2003, p. 1-15), isto é, no geral, ele não
leva ninguém a pecar e só age sobre aqueles que já possuem algum vício ou cometeram alguma
falta.
Na narrativa de Teófilo, Satanás não comanda uma horda de demônios no Além apenas,
ele possui vassalos e servos terrenos. Ele é um rei (rei coroado, segundo o judeu), que se faz
acompanhar de um séquito de gente feia e não luzente que empunha círios. No meio deste
séquito, alguns são chamados de príncipes (MIL 780).
Mesmo assim, Satã procura valer-se das próprias regras divinas para alcançar seus
objetivos. No mil. XXV, o Diabo preocupa-se em não fazer nada pelos vassalos alheios, pois
ele não considera de bom tom. Para seu agrado, ele estabelece que Teófilo renuncie seus
suseranos divinos, assine, com seu sangue, um contrato de próprio punho e o sele com seu anel.
Apesar de tudo, é por conta do caráter legal do acordo, que Teófilo insiste com a Virgem para
que ela peça a Cristo que desça ao Inferno e recupere a carta, mesmo depois dele ser perdoado
de sua apostasia e traição pelos seus Senhores e suseranos, Jesus e Maria (PANATERI, 2012,
p. 103). Só com o trato em mãos, para que pudesse destruí-lo, é que o vigário tranquilizou-se e
considerou-se finalmente livre do peso dos seus pecados (MIL 867-870).
Contudo, igualmente aos outros demônios, Satanás respeita e sempre tem seus poderes
subjugados pela autoridade divina, tanto que Teófilo é alertado pelo intermediário judeu para
não se benzer na frente dele. No mesmo poema, por mais que Maria diga que para Jesus seria
custoso descer até o Inferno para recuperar o contrato assinado por Teófilo, se Cristo assim o
quisesse, o Diabo não lhe poderia resistir (MIL 846-849). Desta forma, apesar do narrador
chamar Satã de rei, como faz com Jesus e Maria, isto não constitui um dualismo, porque o
reinado diabólico está submetido às leis do reinado divino (RUIZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 137).
Nos MIL, o vassalo mortal de Satanás de maior destaque é o Judeu. Seu papel
antagônico no mil. XXV é central. No estado de loucura que acomete todos os protagonistas,
Teófilo o procura e na noite seguinte ele o guia até o Diabo, servindo de intermediário para que
um traidor falador e não valem um “mau dinheiro”. Inclusive, o apelo que o apóstolo faz para que a Virgem Maria
julgue a querela é para se prevenir contras as perfídias diabólicas. Maria também corrobora esta caracterização do
Diabo, chamando-o de pérfido, incorrigível, falso traidor, que anda sempre em maldades e é senhor de todo o mal
(MIL 477 e 479).
47
No século XIII, o pensamento escolástico, sobretudo o de Tomás de Aquino, considerava o mal como um vazio
de existência, já que Deus criou todas as coisas boas. O mal era uma ausência do bem, um distanciamento de Deus.
Neste mesmo pensamento, pecar seria um ato que infringia as leis divinas, também distanciando a criatura de seu
Criador. Portanto, como ambos têm o mesmo efeito, o Diabo, que é inigualável tanto nas vilezas como nos pecados,
seria a personificação do Mal e do Pecado (RUSSELL, 2003, p. 153-200).
40
se firmasse o trato. O Judeu chega a segurar Teófilo pela mão para que ele não desista do que
ia fazer. Em nossa opinião, o seu caráter antagônico proeminente está direta e
proporcionalmente relacionado com a demonização da sua descrição.
O Judeu é representado como um mentiroso endiabrado, falso, traidor e cheio de vícios
maus. Conhecedor das coisas más e de todas as perfídias, de encantamentos,48 de muitos
malefícios e de outros artifícios. Em tudo isso era guiado por Belzebul e com a hoste antiga
(diabólica) tinha confraria. Muito mau conselheiro e vassalo de um senhor terrível; se Satanás
ordenava o mal, o Judeu fazia pior. Matou a muitos com maestria maligna (palavras de Teófilo).
Empenhava-se em enganar a todos provando o que dizia guiado por Satanás. Por isso, grandes
e pequenos o consideravam um profeta. Se em algo ele acertava, as pessoas, chamadas de loucas
pelo narrador, o adoravam. Dessa forma, todos aceitavam fazer tudo o que ele mandasse. Antes
mesmo do caso de Teófilo, ele já havia matado muitas almas (MIL 766-771).
Para não incorrer em generalizações quanto às representações dos judeus nos MIL,
consideramos necessário analisar, ainda que brevemente, os demais poemas da hagiografia nos
quais eles aparecem.
No mil. XVI, El Niño Judío, narra-se a história de um menino judeu que, quando voltava
da escola, acabou por assistir uma missa de Páscoa, comungando nela e ficando encantado por
uma imagem da Virgem. Quando o seu pai descobriu o que ele fez, furioso, atirou-o a um forno.
Desde antes de concretizar o ato o pai do garoto já é retratado como “adïablado” e pecador. No
final do relato, a Virgem salvou o garoto, seu pai foi sentenciado à mesma morte que tinha
tentado condenar o filho e, comovidos com o ocorrido, todos os judeus se converteram (MIL
352-377).
No mil. XVIII, Los judíos de Toledo, a história é mais direta e difícil de interpretar.
Supostamente, durante uma procissão para celebrar a festa da Assunção de Maria, uma voz
atribuída à Virgem foi ouvida dos Céus queixando-se do crime judeu de ter crucificado Cristo,
o que causou grandes dores à sua Mãe. A voz acusou os judeus de Toledo, aparentemente em
48
Berceo usa “feitiçaria”, que em termos medievais mais gerais podem ser entendida como um poder mágico
instrumentalizado ou adquirido de uma fonte externa, quase sempre diabólica. No pensamento cristão do período,
feitiçaria podia designar superstições, resquícios do paganismo ou sincretismos oriundos do contato com outras
crenças. Como no caso de Teófilo, as feitiçarias sempre tinham um impacto nocivo na sociedade, sendo atribuídas
a Satã e colocando os feiticeiros como seus cúmplices. Estes, muitas vezes, supostamente conseguiriam seus
poderes por meio de tratos com o Diabo. O ápice desta noção de feitiçaria foi o argumento de que existiria uma
contra-Igreja encabeçada por Satanás e compostas pelos seus seguidores, entre eles os judeus, que agia ativamente
contra os cristãos. Em momentos de crise, como o da peste negra do século XIV, tal ideia será usada para culpar a
população judaica pela doença em algumas regiões da Europa (envenenamento dos poços), acarretando em uma
série de pogroms (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v. 1, p. 423-435). Para mais sobre a relação entre os judeus e a
feitiçaria ver Trachtenberg (2001, p. 57-75).
41
grande número, de estarem causando novamente muitas dores à Maria. Liderados pelo
Arcebispo (que lida diretamente todo o tempo com o Rabino local), os cristãos iniciam um
pogrom, justificado no texto pelo achado de um boneco de cera usado para simular a
crucificação de Jesus. Segundo o narrador, o crime dos judeus, além do neotestamentário, é de
terem nascido e estarem em Toledo. Não se narra nenhum outro crime específico de teor não
religioso, como no mil. XVI. Ou seja, neste milagre os Judeus são caracterizados coletivamente
como realizadores de rituais anticristãos (MIL 413-430).
Finalmente, no mil. XXIII, La Deuda Pagada, conta-se a história de um cristão de
Constantinopla. Ele era tão generoso que muitas vezes esbanjava seus bens só para manter sua
reputação até que, ficando pobre, pegou empréstimo com um judeu. O judeu não é retratado de
forma pejorativa inicialmente, exigindo apenas um fiador. O devedor colocou a Virgem Maria
e Jesus como seus fiadores. No desfecho da história, o cristão tem sua fé recompensada e o
judeu se converteu impressionado (MIL 625-702).
Portanto, nas outras narrativas dos MIL, encontramos mais representações dos judeus,
porém sem uma marcante presença do diabólico e sem que eles estejam sempre do lado
antagônico. Nestes casos, mesmo que algumas personagens judaicas sejam demonizadas e
acusadas de rituais anticristãos, nem todas são pejorativamente descritas ou estão além da
salvação. Em tais ocorrências, eles são representados como meros coitados que desconhecem a
verdadeira fé, mas que estão prontos para serem convertidos, porém por meio do
convencimento e encantamento com o cristianismo.
Por se tratarem de uma hagiografia mariológica, os MIL focam-se na propagação do
culto mariano. Para impulsionar a veneração à santa, nas cinco narrativas que analisamos, nas
quais Maria se contrapõe às representações diabólicas, as suas características ressaltadas são: a
maternidade de Jesus, que não contradiz a perpétua virgindade da santa; a autoridade dela, que
é derivada da de sua progênie;49 e a imensa piedade e misericórdia que demonstra.50
49
Para enfatizar a maternidade de Maria, o narrador afirma categoricamente que ela é a parideira do verdadeiro
Salvador e quem o amamentou (MIL 75, passim). Somente isto já garantiria um lugar especial para Maria na
hierarquia cosmológica cristã. A Santa Virgem Maria é uma Senhora Bendita “entre todas as mulheres”. Contudo,
ela não é apenas uma Mãe Gloriosa e Santa. Por ser a mãe de um rei, consequentemente ela é considerada uma
rainha, possuindo autoridade sobre os mesmos domínios do seu rebento. Neste caso, isso significa que ela tem
potestade sobre toda a Criação de Deus. Maria é a Preciosa e Poderosa Santa Rainha Coroada, Geral e Principal
dos Céus e dos feitos honrados. Como tal, diz-se no mil. XX, que seu corpo é cheio de dons e que ela veste um
hábito honrado, tal qual nenhum homem vivo poderia ter. Obviamente, nesta passagem suas roupas traduzem o
seu poder. Com a saia, ela toureou facilmente o Diabo no mesmo poema (MIL 468-469). Quando é preciso, Maria
é enérgica no exercício da sua autoridade. Ela empunha um pau para sovar o leão diabólico, escorraçando-o e
humilhando-o, é ríspida na resposta que dá a um diabo no mil. II e estava irada com Teófilo quando lhe aparece
pela primeira vez.
50
Ela pode se transportar sumindo envolta em luzes, para onde for necessário, porque seu deleite e seu ofício de
costume é andar pelo mundo salvando coitados, protegendo-os contra a ruína da danação (MIL 485-490). Mãe de
42
Piedade, justa e sábia, ela ainda é chamada de conselho e madrinha dos pecadores, ela sempre reza pelos errados
(MIL 874).
51
No mil. XXV ela exige uma confissão de fé e dos pecados de Teófilo. No mil. XX, ela ordena que o monge
bêbado se confesse com um homem bom conhecido dele, para quem ela delega as funções de confessor e
penitenciário, por ele ser amigo dela (MIL 484).
52
Por exemplo, no mil. II, ela se submete a decisão do julgamento de Cristo, mesmo correndo o risco de que a
alma do sacristão fornicador fosse para o Inferno, deixando claro que a autoridade de Jesus é superior e
inquestionável. Outro exemplo ocorre quando ela salva o monge do touro diabólico é a Deus, que o narrador, dá
graças. Por fim, há o trecho do mil. XX, no qual após revelar a sua identidade com altivez ao monge bêbado, evita
um gesto de soberba, impedindo que o monge lhe lave ou beije os pés (MIL 489).
43
é veemente na denúncia da perfídia diabólica que vitimou Geraldo, porque ele era romeiro 53
seu (MIL 202). Mais uma vez, a devoção como apresentada nos MIL se equipara às relações de
servidão e vassalagem, como no caso de Maria. Servir ou ser vassalo de alguém acarretava em
uma série de obrigações com o senhor ou suserano, mas uma das contrapartidas era contar com
a proteção de um poder superior (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.1, p. 444-446). Entretanto,
contra um adversário tão traiçoeiro como o Diabo, Santiago apela ao julgamento de Maria para
proteger-se das perfídias satânicas. Portanto, o santo admite não poder ajudar Geraldo sozinho,
reconhecendo que Maria, com sua autoridade, poderia conseguir livrar dos demônios a alma do
romeiro dele (MIL 205).
Nos MIL, os Anjos são mostrados brevemente. Eles são retratados como entidades
sobrenaturais de poucos poderes que estão a serviço de Deus. Sua índole é boa, eles
compadecem-se dos humanos, mesmo dos pecadores, desde aqueles que foram tentados pelos
demônios, como o sacristão fornicador, até os mais inveterados, como o lavrador avarento.
Porém, a capacidade de ação angelical parece limitar-se às boas obras que os humanos
realizaram. Se a quantidade delas for suficiente para suplantar a dos maus feitos, eles podem
ajudar. Caso contrário, eles apenas podem assistir impotentes as almas dos homens serem
levadas pelos demônios, o que os entristece. Contudo, destacamos, mais uma vez, que graças à
autoridade de Maria um anjo lembra o quanto o lavrador avarento era devoto da santa. Isto
suplanta todos os pecados deste protagonista, dissuadindo os demônios de manterem a posse da
alma dele (MIL 86-87 e 274-279).
Finalmente, nas cinco narrativas que analisamos, aparecem mais algumas personagens
tipo. Personagens tipo são aquelas pouco detalhadas e complexas, facilmente identificáveis
pelas suas características típicas e invariáveis compartilhadas por todo o grupo a que pertencem
(GANCHO, 1991, p. 16). Alguns exemplos de personagens tipo que já trabalhamos aqui são os
demônios e os anjos. As que ainda não abordamos podem ser dividas entre os outros
eclesiásticos e os leigos das sociedades nas quais os protagonistas se inserem.
Algumas vezes não se fala nada dos demais eclesiásticos, nem positiva nem
negativamente. No caso dos monges dos mil. II e XX, eles são apenas as demais pessoas que
habitam no lugar, aliás, justamente devido a isto eles podem ser tomados coletivamente como
53
A peregrinação nos séculos X-XIII podia ser feita por livre-vontade religiosa ou como punição, tendo por
objetivo central chegar austeramente ao local onde repousam as relíquias de um santo (restos mortais ou objetos
miraculosos que lhe pertenceram). Ela sempre tinha um teor religioso diferenciando-se de viagens comuns, assim
como distinguia peregrinos de outros viajantes. Suas finalidades eram muitas, podendo ser a busca por uma cura,
o cumprimento de um voto, o pagamento de uma promessa, a penitência para a remissão de um pecado grave e,
inclusive, a sentença para um crime.
44
uma instituição. Não obstante, aqueles que são mais piedosos são contados entre os servos de
Maria e ela delega para eles a responsabilidade de ouvir a confissão dos pecadores e lhes indicar
a penitência deles (MIL 484).
Quando se trata de figuras de liderança eclesial, como um abade e ou um bispo, o tom
da descrição é respeitoso. Nada de ruim é dito sobre eles, o que não necessariamente significa
que as qualidades deles sejam efusivamente ressaltadas. Exceto pela prerrogativa que abades e
bispos possuem para gerenciar a Igreja e legitimar crenças religiosas e comportamentos
adequados.54
As personagens laicas sempre acreditam nos milagres e se deixam levar por um surto
de devoção mariana. Nos poemas, suas reações aos eventos sobrenaturais parecem que são
quase sintomáticas. Efeitos de uma causa que são os eventos miraculosos. Como estas
representações estão sempre acompanhadas das exortações ao culto mariano, feitas pelo
narrador, parece-nos que sua intenção é contagiar o seu público com a descrição que ele faz da
intensificação da veneração à Maria.
Os medievais temiam as horas noturnas e consideravam-nas um tempo do mal e de
malfeitores, de feiticeiros e do Diabo. Em algumas situações, um delito ou crime cometido à
noite era mais severamente punido do que se fosse realizado de dia (LE GOFF; SCHMITT,
2006, v. 2, p. 536-537). Em alguns casos, os pecados do protagonista se repetem por um longo
tempo que é sumarizado nas narrativas, por exemplo, o milagre do lavrador que narra toda uma
vida de iniquidades. Porém, verificamos que nos outros quatro milagres o pecado, e/ou a severa
punição para ele, acontece de noite.55
Nenhuma especificação é feita, nos cinco poemas, quanto à época em que os milagres
se passam, com exceção do caso de Geraldo, situado entre os séculos XI e XII, período em que
Hugo de Cluny viveu. Entretanto, como dissemos na primeira parte deste capítulo, as
representações são feitas com o uso de coloquialismo e conotações, mostrando que o narrador
queria trazer a mente dos leitores ou ouvintes centromedievais imagens familiares. Logo, a falta
54
No mil. II, o monge fornicador, antes de ser instigado pelo Diabo a pecar, é escolhido pelo abade para o cargo
de sacristão por causa do seu comportamento (MIL 77). No mil. VIII, o narrador apoia a veracidade do relato na
figura de São Hugo, o abade de Cluny, sobre quem ele afirma que conheceu Geraldo, que contava a história do
peregrino no mosteiro e ainda a registrou por escrito. Neste milagre, ainda há um passagem interessante sobre este
tópico. Quando o Diabo disfarçado de Santiago encontra com Geraldo e diz que ele precisa se corrigir pelo seu
pecado, mesmo sendo leigo, o peregrino implora pedindo ao falso santo que lhe diga qual era “o castigo previsto
pelos abades” (MIL 191). Na estória de Teófilo, o novo Bispo, ao final do poema, disserta sobre os eventos
milagrosos admoestando todos os presentes na missa (MIL 884-890).
55
No mil. II, o monge sacristão concupiscente, fugia para fornicar e morreu durante essas horas; Geraldo, antes de
peregrinar fez igual; o monge bêbado é atacado pelo Diabo animalesco depois das vésperas; e Teófilo se encontra
com o Judeu e o Diabo para assinar o pacto à meia-noite (MIL 79, 185, 463 e 777).
45
de preocupação com a delimitação de época nas narrativas poderia ser uma forma de evitar
repetições despropositadas. As descrições do que já era comum para todos dispersaria a atenção
direcionada aos eventos milagrosos. Por isso, achamos plausível interpretar que todas as demais
tramas se passem em épocas mais ou menos contemporâneas ao século XIII.
Admitimos também outra possibilidade. Como exempla, os poemas devem ser
atemporais no que concerne a edificação a que se propõem. Todavia, em alguns casos, seria
impossível ou desinteressante desvincular certas narrativas da tradição em que elas se inserem.
Acreditamos que, no caso do mil. VIII, a intenção era vincular o máximo possível o milagre ao
modelo de vida religiosa da Ordem de Cluny, por meio das repetidas menções a São Hugo como
o idôneo legitimador da veracidade da história e do desfecho de Geraldo, que foi ter uma vida
reta, alcançando a Salvação no cenóbio cluniacense. Além do mil. VIII, duas das narrativas se
passam em um mosteiro, um deles explicitamente caracterizado como beneditino. Porém, em
todas as narrativas o lugar dos pecados é secular,56 reforçando o empenho narrativo em ligar a
salvação decorrente dos milagres ao monasticismo, segundo a Regra de São Bento.
Para alguns autores, o trânsito dos protagonistas dos MIL entre o sagrado e o profano
pode ser lido como uma analogia da concepção medieval de homo viator. De acordo com a
cultura cristã medieval, quando Adão pecou no Paraíso, perdeu seu estado de retidão devido ao
Pecado Original, mas com a Encarnação e a crucificação de Cristo, a humanidade saiu de um
estado de alijamento de Deus, no qual estava subjugada pelo Diabo, sendo redimida pela
misericórdia divina. Em vista disso, o destino final do homem seria a Salvação, contudo, ainda
seria preciso que o homem viesse a este mundo como um viajante, sendo posto a prova,
redimindo-se e fazendo por merecer o Paraíso (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v. 2, p. 353-355;
GARCÍA DE CORTÁZAR e AGUIRRE, 1994, p. 28-30). Assim, por exemplo, o mil. II coloca
o rio como fronteira entre vida religiosa e perdição mundana e é nele que o monge morre, ali
ficando sua alma em disputa entre demônios e Maria. No mil. VIII, Geraldo estava em
peregrinação, ato que materializa o conceito de homo viator. No mil. XX, a relação se dá com
a jornada do monge bêbado, que saiu de uma adega, lugar de coisas mundanas, e foi até a capela
do mosteiro, local espiritual. Quanto mais ele se aproximava da igreja, se arrependia
progressivamente frente aos castigos que sofria, alcançando a salvação pela misericordiosa
Maria, vencedora sobre o Diabo, bem como pela confissão e pela mudança de conduta (CACHO
BLECUA, 2006).
56
O rio nos arredores no mil. II, a adega externa à clausura no mil. XX, os campos da estória do lavrador e a
encruzilhada no caso de Teófilo (MIL 81, 270-271 e 778).
46
Portanto, os aspectos morais e/ou religiosos da ambientação dos cinco poemas são os
mesmos desta regra de vida religiosa, isto é, a valorização da obediência, da castidade ou da
virgindade, do ascetismo e do isolamento do mundo. Nos MIL, a validade deles se estende ao
mundo secular, como no mil. VIII, no qual Geraldo pede ao falso Tiago pelo castigo prescrito
pelos abades. Infringir as normativas de vida nos espaços monásticos, se distanciar deles, ficar
a mercê de Satanás, ser salvo por Maria e retornar a observância indefectível dos preceitos
beneditinos, finalmente, obtendo a Salvação. Esta dinâmica referente às ações dos protagonistas
e sua relação com o ambiente narrativo espelha a estruturação do enredo. Por isso, podemos
afirmar que no espaço se projetam os conflitos vividos pelos personagens.
Até aqui, vimos como as representações satânicas dos MIL relacionam-se com o conflito
e a estrutura do enredo, com as demais personagens, com tempo e com o espaço nas narrativas.
Em vista de tudo isso, podemos sintetizar a mensagem dos cinco poemas nos seguintes pontos.
Apresentam-se os problemas das tentações diabólicas, carnais, materiais e seculares
como impedimento de uma vida religiosa satisfatória (no sentido amplo). Sucumbir a estas
tentações deixou o ser humano vulnerável às traiçoeiras investidas e felonias satânicas, que
podiam ser fatais, ocasionando até a sua morte e subsequente Danação. Somente a devoção
sincera e bem observada, tratada como serviço ou vassalagem à Maria, serviu como escapatória
dos poderes do Diabo e de seus seguidores. Mais do que isso, tal devoção também foi correção
definitiva para as loucas atitudes que estas tentações podiam causar, incluindo suas
consequências neste mundo e no Além. A pessoa agraciada, para manter o Diabo afastado e
fazê-lo amargar uma derrota completa, devia fazer tudo o que a santa prescreveu para continuar
contando com a proteção dela. Uma das prescrições mais comuns, e que ela considerou
indispensável, é que o agraciado pelo milagre confessasse verdadeiramente os seus pecados e
tomasse a penitência prescrita pelo confessor. Em casos mais extremos, como o de apostasia,
não bastou o arrependimento para quem procurou outras crenças que foram demonizadas, como
o judaísmo e a feitiçaria. Maria demandou que a pessoa confirmasse com sinceridade a sua
crença na fé cristã ortodoxa. Uma maneira garantida que o narrador apontou para a correção da
pessoa e remissão dos seus pecados seria servir, ou seja, devotar-se a Maria, ingressando em
um mosteiro beneditino e vivendo o resto de sua vida observando a Regra de São Bento.
47
Em nossa opinião, esta mensagem é bastante didática e esta seria uma das finalidades
dos MIL. Para o homem se proteger do antagonismo diabólico, ele deve seguir as normas
morais do monasticismo beneditino e do culto mariano. Desta forma, as representações
diabólicas são associadas a certas práticas para condená-las. Como uma reação, o oposto destas
práticas é incentivado, algumas vezes implicitamente. Todavia, na maioria dos casos, as práticas
positivas que se opõem às demonizadas são explicitadas pelo narrador, reforçadas por Maria e
exemplificadas pelos protagonistas. A Tabela 3 mostra a finalidade didática da relação entre
representações e práticas nas narrativas em que o satânico está presente nos MIL.
Acreditamos que a ênfase dada aos preceitos da regra de São Bento como modelo de
vida seja devido à ligação que o autor Gonzalo de Berceo manteve com cenóbios riojanos. No
caso dos MIL, sobretudo, com o mosteiro beneditino de San Millán de la Cogolla, porque nesta
instituição se dá uma forte associação entre o beneditismo monástico e o culto à Maria.
O culto mariano teve um primeiro impulso na antiguidade, entre os séculos II e V,
mantendo-se aparentemente estagnado até que sofreu uma grande expansão nos séculos XII e
XIII, impulsionado pelos monges beneditinos de Cluny e Císter. Sobretudo no século XII, com
Bernardo de Claraval, influente abade cisterciense, a natureza humana de Maria é ressaltada e
usada como argumento para seu papel de principal advogada da humanidade. Assim, a fé e a
devoção a ela e seus desígnios, bem como a Igreja, seriam nesse discurso o caminho mais seguro
para a salvação (MANSILLA, 2004).
Na Península Ibérica, o culto mariano esteve presente desde a época visigótica.
Idelfonso de Toledo escreveu um famoso tratado em defesa da virgindade de Maria ainda no
século VII. Considerado santo, Idelfonso é o protagonista do primeiro poema dos MIL,
48
57
Ao ponto de alguns estudiosos sugerirem que se Berceo não se inspirou (copiou) diretamente São Bernardo de
Claraval, mas ao menos teria sido conhecedor de seus escritos mariológicos (ULI BALLAZ, 1974). Gonzalo de
Berceo chegou a representar São Bernardo como personagem em um de seus escritos, o Duelo de la Virgem. O
abade de Cister é sacado como figura de autoridade para atestar concepções mariológicas, de forma muito parecida
como é feito com Hugo de Cluny no mil. VIII. Para mais detalhes, conferir Antunes Jr. (2010, p. 110-115).
49
como ainda era mais frequente no século XIII);58 composição por meio da técnica de
amplificação, que aumentou a dramatização e a comicidade textuais da hagiografia frente a seus
antecessores latinos (ANCOS, 2009, p.162); emprego frequente de linguagem coloquial e
conotações (eufemismos e simbolismos); e uma narração ativa, que se comunica diretamente
com uma audiência suposta todo o tempo, recorrendo a marcas típicas da oralidade. Estas
leituras levariam os exempla e a exortação de devoção à Virgem Maria para um público além
do meio eclesiástico ou dos letrados, englobando os paroquianos de Berceo e todos aqueles que
passassem pelo mosteiro em peregrinação a Santiago de Compostela. Apoiamos nossa
afirmação na localização do monastério de San Millán de la Cogolla e também da igreja em que
Gonzalo atuava como pároco, distante não mais do que dois quilômetros do referido cenóbio.
O mosteiro de San Millán situa-se em La Rioja Alta, ao sul de Nájera, e data do século
X, embora a tradição ligada ao culto do seu santo padroeiro afirme que este o fundou ainda no
século VI. O seu período de maior prosperidade foi durante os séculos X e XI, quando foi
ampliado e dividido em mosteiro de San Millán de Yuso e de Suso (Debaixo e de Cima). A
instituição foi poderosa e influente chegando a ter uma lista de 108 mosteiros fundados por ou
submetidas a ela (DIAGO HERNANDO, 1996, p. 85-98). Possuía importância geográfica, no
controle e defesa das terras retomadas aos mouros, e econômica, desempenhando funções como
a organização de mercados. Tamanho prestígio deve-se ao fato de que Millán (ou Emiliano),
pastor que teria vivido entre os séculos V e VI, e se tornado ermitão, fora proclamado padroeiro
do Reino de Castela após a vitória dos cristãos sobre os mouros na Batalha de Simancas, em
923, atribuída a várias intervenções milagrosas suas. O Mapa 1 ajuda a ter uma ideia da
localização estratégica do cenóbio. Nele pode-se ver a o avanço militar cristão entre os séculos
X-XI. San Millán está localizado logo a leste de Burgos, exatamente aonde a fronteira chega
em 866 e começa avançar na etapa que vai até 913.
Porém, já no século XII, as doações começaram a migrar para outros centros de
peregrinação, para as cidades e para a reorganização do clero secular de La Rioja. 59 No século
XIII, como mostra o Mapa 2, a frente de batalha dos cristãos contra os muçulmanos já havia
avançado sobre outras terras mais ao sul, fazendo com que as funções militares e econômicas
desempenhadas pelo mosteiro já não fossem tão necessárias.
58
Das 136 hagiografias ibéricas que o projeto Hagiografia & História levantou para seu primeiro banco de dados,
que cobre o período entre os séculos XI e XIII, 104 foram escritas em latim, contra somente 16 escritas em
castelhano (SILVA, 2009, p. 162).
59
Para mais detalhes sobre a redução na arrecadação de bens pelo mosteiro de San Millán do século XII para o
XIII, ver a introdução que Brian Dutton faz ao texto da Vida de San Millán de la Cogolla na edição da Obra
Completa de Gonzalo de Berceo organizada por Uría Maqua (1992), bem como os estudos de García de Cortázar
e Aguirre (1969) ou de García Turza (1998) sobre o domínio senhorial do mesmo monastério.
50
60
Na verdade, por guardar as relíquias do padroeiro de Castela, San Millán já era um destino de peregrinação no
reino por si só. Ele compunha junto com Nájera e Santo Domingo de um triângulo de pontos de peregrinação que
ficou conhecido como o “Caminho Francês de Baixo”. A grande circulação de peregrinos teria um dos motivos
para a ampliação de San Millán em mosteiro de Suso e de Yuso (SÁINZ RIPA, 1994, passim).
51
que a demonização nem sempre é a tônica quando se fala do judaísmo nos MIL. As demais
representações judaicas e, a mensagem do mil. XXV, de que Deus não quer a morte dos
pecadores, mas a sua remissão, mostram que os judeus não estão além da conversão para o
hagiógrafo.
Gonzalo de Berceo teve formação mais ampla que a maioria dos sacerdotes e monges,
tendo circulado por vários espaços religiosos e culturais. Ao compor seus escritos, utilizou-se
dos conhecimentos adquiridos nos estudos universitários para produzir um discurso igualmente
comprometido com a moral de vida ascética do clero regular e com a pregação pastoral do clero
secular. Portanto, ele ocupou dois lugares institucionais, o de hagiógrafo dos santos de um
mosteiro e o de padre, fundamentais para a elaboração das representações que fez do Diabo.
Em resumo, o Satanás dos MIL tem como suas principais características a polimorfia,
seus traços vis de personalidade, sua capacidade de se manifestar no mundo físico e sua posição
de realeza entre os demônios e seus vassalos humanos. Contudo, não são feitas menções à sua
aparência, exceto pelos seus disfarces. O Diabo nos MIL não leva os seres humanos a pecar,
exceto pelo mil. II. Porém, ele pode causar grandes males, inclusive a Danação eterna, para
aqueles que já se encontram em pecado. Pecar nas narrativas significa estar em desacordo com
certas concepções ortodoxas cristãs e, sobretudo, com a moral defendida pelo modelo de vida
monástico beneditino. Ambas são legitimadas nas narrativas pela autoridade de Maria, santa
que sempre vence o Diabo e seus comparsas, protegendo os seus devotos, tidos como vassalos
ou servos. Redimir-se dos pecados sempre é possível até mesmo no caso de judeus. Geralmente,
basta que se obedeçam as ordens da Virgem no cumprimento dos sacramentos da confissão e
da penitência. As finalidades de Berceo ao realizar estas representações diabólicas seriam criar
uma ameaça controlada – que quanto maior, mais eficaz se tornava, justamente porque sempre
é vencida. Com isso, ao mesmo tempo em que incentivava a correção moral dos eclesiásticos e
dos leigos, atendia aos interesses propagandísticos do Mosteiro de San Millán de La Cogolla, e
incitava à segregação do povo judaico em Castela.
52
2. O Antigo Invejoso Inimigo: as representações demoníacas no Liber Mariae de Juan
Gil de Zamora
O Liber Mariae de Juan Gil de Zamora, doravante abreviado com LM, é a segunda parte
do livro conhecido como Liber Ihesu et Mariae, datado entre 1278 e 1284. Foi redigido em
latim, na forma de prosa, e seu local de origem é Castela, mais precisamente o Convento
Franciscano de Zamora.1 O LM é uma vida da Virgem Maria referenciada na Patrística e no
pensamento de eclesiásticos anteriores. Está dividido em 18 tratados, sendo que no décimo
sexto há 88 narrativas, cada uma contendo um breve relato de um milagre, distribuídas entre
seis capítulos.
Os originais do LM foram perdidos no século XVIII. A cópia MS. 9503 foi realizada
entre o final do século XIII e início do XIV. Localiza-se na Biblioteca Nacional de Madrid,
estando quase completa, exceto por três páginas que foram extraviadas, além do folio inicial
que, certamente, como em outras obras do autor, deveria conter uma dedicatória (VÍLCHEZ,
1954 p. 35). Já a cópia MS. 957 está na Biblioteca do Palácio, em Madrid, porém contém apenas
a primeira parte do Liber Jhesu et Mariae, ou seja, o Liber Ihesu.2
Supostamente, Juan Gil de Zamora, o autor do LM, teria tomado contato com narrativas
de milagres marianos quando esteve em Paris cursando Teologia. Ou ainda, na corte de Afonso
X, em algum convento, mosteiro ou igreja de Zamora e localidades próximas. Porém, nenhum
documento conhecido foi considerado pelos especialistas como fonte direta do LM. Maria Rosa
Vílchez chega a indagar se o MS. 110 da Biblioteca Nacional de Madrid3 não teria sido fonte
do LM, porque além da semelhança dos conteúdos, ambos apresentam os mesmos erros de
transcrição. Contudo, ela acaba por admitir ser impossível determinar se o MS. 110 seria a fonte
do LM. Devido às muitas semelhanças, seria muito plausível a possibilidade de que o LM e o
1
Zamora está situada no noroeste espanhol, tendo como capital a cidade homônima. Suas terras estão divididas
entre planícies e planaltos áridos e os vales dos rios Duero e Valderaduey. A sua flora é marcada pela presença de
azinheiras, cerquinhos e pinheiros mansos. Na fauna predominam as espécies aquáticas e de aves ligadas aos rios
de seu entorno. Do ponto de vista agrícola a terra é considerada de baixa produtividade. Assim como La Rioja,
também era uma área estratégica e fortificada, antes contra os mouros e depois, devido às disputas territoriais entre
cristãos.
2
Para este trabalho foram utilizadas duas edições críticas do LM, ambas baseadas no Ms. 9503. A de Fidel Fita,
publicada na forma de três artigos, apresenta o texto no idioma original de redação, enquanto a de Francisco
Rodríguez Pascual traz uma tradução para o espanhol moderno.
3
Este é o mesmo MS. 110 apresentado no capítulo anterior. No caso dele realmente ter inspirado o LM, esta
hagiografia e os MIL possuem uma fonte comum.
54
MS. 110 fossem cópias de um terceiro manuscrito desconhecido, fonte comum para ambos.4
Devido à inexistência de uma fonte conhecida do LM que possa ser cotejada com o mesmo,
torna-se inviável a determinação da técnica estilística empregada na sua redação.
As versões do LM para os milagres marianos são, por um lado, bem numerosas, porém
concisas e sintéticas, muito similares em tamanho às versões latinas em prosa anteriores ao
século XIII. Por isso, pode-se pensar que o autor do LM compôs uma versão menos criativa,
em termos de ampliação, porém com maior fidelidade às fontes a que recorreu para escrever
sua obra. Por outro lado, é importante salientar que uma versão, seja mais longa ou mais curta,
é composta por escolhas do que manter, acrescentar, retirar e, principalmente, alterar. Tais
escolhas só podem ser compreendidas à luz do contexto histórico, por isso o LM também pode
ser considerado uma apropriação criativa. Ele apresenta muitos elementos da religiosidade da
Ordem dos Frades Menores (OFM) no seu texto, enquanto que todas as suas possíveis fontes
seriam anteriores ao surgimento desta ordem. Sendo assim, o LM seria uma das primeiras
versões franciscanas para os milagres marianos, uma atualização do texto das suas fontes
desconhecidas para o século XIII, tendo sido criativamente apropriada de fontes que eram
representações ligadas a outros interesses institucionais. Para se entender como foi feita esta
apropriação criativa é necessário se destacar, ainda que em linhas gerais, o contexto histórico
de surgimento da OFM e sua proposta de vida religiosa.
Durante os séculos XII e XIII, a moral do clero secular estava desacreditada pela
sociedade em geral, devido à ostentação de riquezas e exemplos de má conduta. Neste contexto,
práticas de religiosidade alternativas às convencionais, tornavam-se atrativas, sobretudo porque
enfatizavam a pregação e a vida baseada no exemplo dos apóstolos. Algumas destas práticas
surgiram no seio da Igreja, como as diversas reformas da vida religiosa; outras se originaram
fora dela e foram por ela condenadas, como os movimentos cátaros e valdenses; ou
incorporadas, como o movimento franciscano, que Juan Gil de Zamora integrava.5
A Ordem dos Frades Menores foi iniciada por Francisco de Assis em 1209, sendo este
o motivo dos seus membros serem comumente conhecidos como franciscanos. Ela baseava sua
4
Ao versar sobre a inserção do LM na mariologia medieval, alguns autores cogitam a hipótese de que todas as
coleções de milagres mariológicos do século XIII teriam tido uma fonte comum chamada de Mariale Magnum,
contudo isto não passa de especulação, já que nenhum avanço foi feito no sentido de provar tal hipótese
(MARCHAND, 2004, p. 115). Para compensar a falta de informações sobre as possíveis fontes do LM, os
estudiosos enfatizam a sua influência sobre o que veio depois, citando o LM como fonte direta das Cantigas de
Santa Maria, compostas em galaico-português, por Afonso X, rei de Castela, também no século XIII. Pérez-Embid
Wamba chega a apresentar os índices das obras e um quadro comparativo dos milagres presentes no LM e nas
Cantigas de Santa Maria (2002, p. 354-361).
5
Mais sobre a reação da Igreja aos movimentos que a contestavam pode ser encontrado em BOLTON, 1983,
passim, e GARCÍA TURZA, Javier, 1996. p. 13-28.
55
espiritualidade na imitação do que o grupo entendia ter sido a vida de Jesus e dos apóstolos,
principalmente a partir da leitura dos Evangelhos. Esta imitação deveria ser praticada por meio
de uma religiosidade em nível pessoal. Desta forma, os frades dedicavam-se à pregação de teor
moral e penitencial, sobretudo nos ambientes urbanos; à vida comunitária conventual, mas sem
o isolamento literal do mundo, o que seria contrário às suas pretensões pastorais, e à
mendicância como forma de ascese, pela abnegação dos bens materiais. Tudo isso cumprido,
em obediência à Igreja Romana, e em subordinação direta ao Papa (MERLO, 2005, p. 19-40).
Os franciscanos pregavam a vita apostolica em oposição às tentações materiais e carnais
do modo de vida citadino laico, ascendente no século XIII, graças à revitalização da urbanização
no Ocidente. Contudo, também criticavam e admoestavam os eclesiásticos quanto ao seu
comportamento, devido ao que consideravam como a quebra do celibato, a ostentação de bens
materiais, a simonia e o nicolaísmo, mas sempre respeitando os dogmas e a hierarquia clerical,
preocupando-se em manter-se dentro dos parâmetros da ortodoxia. 6
Em vista de tudo que foi exposto até aqui, privilegiamos neste capítulo relacionar os
tópicos da nossa análise com as concepções que os frades menores medievais tiveram a respeito
deles. Com isso esperamos enriquecer o nosso trabalho e amenizar a repetitividade do estudo
das duas hagiografias causado pelas muitas semelhanças que elas possuem entre si.
A autoria do LM é atribuída a Juan Gil de Zamora (1241-1318),7 oriundo da cidade
homônima, como informa em uma de suas obras. 8 Não se conhece muito sobre sua origem, mas
alguns estudiosos afirmam que ele era de berço nobre (FERRERO HERNÁNDEZ, 2002, p. 8).
Não sabemos ao certo quando Gil ingressou na Ordem dos Frades Menores, mas os seus
primeiros escritos informam que em 1260 ele já era custódio em Zamora (RUCQUOI, 1996, p.
71). Posteriormente, ele assumiu o cargo de professor no studium do convento franciscano de
sua cidade natal. Foi também diácono da paróquia de Santo André. Por volta de 1295 tornou-
se vicário e, em 1300, ministro da Província Franciscana de Santiago,9 a qual os franciscanos
zamoranos estavam subordinados. Exerceu este cargo até sua morte (FERRERO
HERNÁNDEZ, 2002, p. 9-17). Foi em Zamora que ele passou a maior parte de sua vida
(VÍLCHEZ, 1954. p. 22).
Gil provavelmente iniciou seus estudos na Universidade de Salamanca, como é
informado na sua obra Dictaminis Ephitalamium. Posteriormente, no início dos anos 1270, foi
6
Sobre o franciscanismo no século XIII, ver, dentre outros, Alberzoni (1999) e Iglesia Duarte (1996).
7
Pérez-Embid Wamba afirma que ele nasceu antes de 1229 (Ibid., p. 303).
8
No prólogo de Liber de praeconiis civitatis Numantiae, dedicada ao Infante Sancho.
9
Em 1300, a Província Franciscana de Santiago estendia-se por todo o oeste da Península Ibérica, abarcando os
territórios da Galícia, de Portugal e do antigo Reino de Leão (RUCQUOI, 1996, p. 68-69).
56
enviado pelos franciscanos para estudar na Universidade de Paris, chegando ao grau de doutor
em Teologia, título com o qual figura na documentação a partir de 1278.10 Ele foi responsável
por uma ampla produção bibliográfica, sobre diversos temas, como medicina, música, moral,
poesia, história, hagiografia etc. 11
Após regressar de Paris, em fins da década de 1270, Gil tornou-se membro da corte
afonsina, com quem manteve boas relações até sua velhice (RUCQUOI, 1996, p. 71). Foi
colaborador de Afonso X, o Sábio, em seu projeto cultural. 12 Atuou ainda como “scriptor”,
secretário régio e preceptor do futuro Sancho IV. Talvez, por isso, Juan Gil tenha apoiado
Sancho IV quando ele teve que disputar o trono com os seus sobrinhos, filhos de Fernando de
la Cerda, seu falecido irmão mais velho (PASTOR GARCÍA, 1997, p. 57-70). Ainda que não
sejam conhecidas repercussões negativas da opção de Juan Gil, discute-se se isto não foi uma
dissidência da parte do zamorano. Os franciscanos ibéricos ficaram a favor do Rei Sábio, que
tinha deixado seu reino para os netos em testamento. Pelo progresso de Gil na hierarquia
franciscana nas décadas seguintes, e pelo tom dos seus escritos a época, o mais provável é que
ele tenha tentado se posicionar como um contemporizador na questão da sucessão real
(DACOSTA, 2006, p. 102-103).
Apesar de o LM ser redigido em latim, de forma alguma ele se propõe a ser um texto de
difícil entendimento. A escrita de Gil de Zamora é leve e objetiva, mesmo no caso das narrativas
mais longas, pontuada aqui e ali pelo uso de conotações, de linguagem figurada, de alegorias,
de eufemismos, de adjetivos ou locuções adjetivas como epítetos e de cenas do cotidiano das
pessoas comuns, além de uma quase imperceptível comicidade.
Encontramos no LM a intenção edificante hagiográfica em cada uma das suas narrativas,
por isso as classificamos como contos. Achamos mais correto afirmar que o gênero literário do
LM é o gênero narrativo, porque nele se narram feitos marianos que podem ser equiparados aos
de uma heroína, 13 mas em prosa e não em verso, diferenciando-o da épica.
No LM, o foco narrativo é mais discreto. Ele não é identificado com a pessoa do autor,
embora Juan Gil se identifique como escritor do LM. Possivelmente, em decorrência disto, o
10
Segundo Dacosta Martínez, as dedicatórias presentes nas obras de Gil permitem traçar considerações sobre seu
período em Paris (DACOSTA MARTÍNEZ, 2006. p.101).
11
A saber: Vita Sancti Isidori Agricolae, Legendae sanctorum et festiuitatum aliarum, Prosodion, Ars Dictandi,
Sermones, Liber Dictaminis Ephitalamium, Liber illustrium personarum, De praeconiis ciuitatis Numantinae, De
praeconiis Hispaniae, Ars musica, De Trifaria medicina, Historia Naturalis e Contra venena et animalia venenosa.
12
Este rei teria encarregado Gil de Zamora de escrever um documento, apêndice do LM, conhecido como Officium
Almifluae Virginis, o qual ele teria usado como base para as suas Cantigas de Santa Maria (FERRERO
HERNÁNDEZ, 2002, p. 21).
13
De maneira semelhante aos MIL, como defendido por García (2006, passim).
57
narrador não busca em terceiros a autoridade para comprovar a veracidade dos milagres. Apesar
de heterodiegético,14 onisciente e parcial, o narrador não é intruso. Ele permite que sua presença
seja percebida apenas quando introduz o texto, informando laconicamente a localização da
narrativa milagrosa no LM e sua sinopse e fechando os contos com breves expressões de louvor.
Nos demais momentos, ele raramente se pronuncia, a não ser para descrever personagens,
lugares e ações.
A ocorrência de discurso direto no LM é diretamente proporcional à extensão dos
contos. No menor, o discurso é indireto. Progressivamente, os diálogos vão surgindo no clímax
e no desfecho das narrativas maiores. Na mais longa delas, as conversas entre as personagens
aparecem desde o desenvolvimento da trama e há um breve monólogo interior, durante o qual
o protagonista se lamuria e ora. Porém, ressaltamos que em todos os casos só as personagens
principais falam.
Porque os contos são muito sintéticos,15 o narrador preocupa-se com a recepção da lição
de moral, às vezes repetida no começo e no fim da narrativa. Consequentemente, ele relega a
descrição espaço-temporal a nada mais do que o indispensável. As partes mais detalhadas dos
milagres são as cenas do desenvolvimento e do clímax. O desfecho é um pouco maior que a
introdução, porque o narrador o utiliza para louvar Maria, Jesus ou a Trindade. Geralmente,
todo o restante do texto é sumarizado. Em todos os casos o tempo objetivo flui em prolepses
(flashfowards) e iterativamente. A única ocorrência de tempo subjetivo é o monólogo interior
supracitado. A ambientação é feita de forma franca, fornecendo os índices espaciais essenciais
para que o enredo prossiga coerentemente.
14
Está em terceira pessoa, não é um dos personagens e vê os fatos de fora.
15
Uma rápida olhada no Anexo B mostra que quase todas as narrativas do LM não possuem mais de uma página
de tamanho.
58
(Tratado XVI, Cap. V, mil. XIV).16 Previamente às análises das narrativas, elaboramos resumos
de cada uma, incluindo os pontos principais e os detalhes que consideramos mais importantes
nelas.17
O milagre Santa Maria roba al Demonio el alma de un monje pecador trata de um
monge sacristão mentiroso, que, influenciado pelo Diabo, se entregou à luxúria. Numa noite,
quando saiu escondido do mosteiro, foi empurrado pelo Diabo em um rio dos arredores e
morreu. Em decorrência dos seus pecados, os anjos não puderam fazer nada a respeito quando
os demônios se apossaram da alma dele. Contudo, o sacristão sempre reverenciava e saudava
Maria quando passava pelo seu altar, entrando ou saindo da igreja, por isso ela interveio a seu
favor. Ela apelou ao julgamento de Cristo, que decidiu que o sacristão voltaria à vida. Assim,
ele poderia se redimir e obter a Salvação, como fez.
No conto Santa Maria y el alma del romero, um padre de nome Geraldo, na manhã de
início de uma peregrinação para Compostela, dormiu com a sua concubina. Pouco tempo
depois, ele foi interceptado no caminho pelo Diabo disfarçado de Santiago. Este o convenceu a
se castrar e se degolar para que pudesse reaver o prêmio eterno perdido devido aos pecados.
Encontrado violentamente morto pelos outros romeiros, foi abandonado, pois eles temiam ser
acusados de roubo, por ganância ou algum outro motivo. Quando o Diabo, e sua companhia,
levavam a alma do romeiro do Céu, o verdadeiro Santiago contestou o direito do Diabo sobre
a alma de Geraldo. O santo alegou que o referido padre só se suicidou porque fora enganado.
Santiago apelou para o julgamento de Maria. Ela decidiu pela ressureição de Geraldo, para que
ele pudesse se penitenciar e expiar os seus pecados. Ele, então, foi viver em um mosteiro
cluniacense, a serviço de Maria por muito tempo.
O milagre El labrador ladrón conta sobre um lavrador ganancioso, com o hábito de
desrespeitar as demarcações de terras de seus vizinhos para unir as terras deles às suas. Quando
ele morreu sua alma foi disputada por demônios e anjos. Os demônios puderam citar muitas
más ações do lavrador, enquanto os anjos puderam citar apenas algumas boas obras. Até que
um dos anjos se lembrou de que o lavrador tinha devoção pela expressão Ave Maria, sempre
saudando a santa desta forma. Ouvindo isso, os demônios que já se consideravam vitoriosos,
deixaram a alma do lavrador e partiram com a aprovação de Jesus, intermediada por Maria.
16
É importante lembrar que os títulos apresentados para as versões zamoranas dos milagres marianos são aqueles
atribuídos pelo editor Francisco Rodríguez Pascual na sua edição do LM, já que o documento originalmente não
trazia títulos de autoria de Juan Gil de Zamora.
17
Lembramos a todos aqueles que desejarem ler os contos completos que eles se encontram transcritos ao final da
dissertação, no Anexo B.
59
Em Santa Maria salva un monje, fala-se de um monge por quem Maria se dignou a
mostrar que era seu servidor por excelência. Por instigação diabólica, ele se embriagou na
despensa do mosteiro. Já de noite, quando se dirigia à igreja, passando pela clausura, foi atacado
pelo Diabo nas formas de touro, de cão e de leão. Maria salvou o monge nas três vezes, na
primeira e na segunda apenas ameaçando o Diabo, mas na terceira açoitando-o na porta da
igreja. Vencido por três vezes e muito afetado pelas chibatadas, ele partiu dali para nunca mais
voltar. Depois disso, Maria pegou o monge pela mão, curando-o instantaneamente da sua
embriaguez. Ela o colocou no leito, reconfortando-lhe. Recomendou ainda que, na manhã
seguinte, o monge procurasse um companheiro da comunidade para com ele se confessar. Antes
de partir, no meio de luzes, Maria se identificou para o monge. Ele passou a viver ainda mais
fervorosamente e devotamente a serviço da Virgem, com a ajuda de Jesus, a quem o narrador
dedica um breve louvor ao fim do conto.
Na narrativa Teófilo, Santa Maria y el pacto con el Demonio, conta-se sobre Teófilo,
um vigário de uma cidade da Cilicia, que tinha muito bom comportamento. Quando o bispo
local morreu, as pessoas de lá, desejaram que ele fosse o sucessor, mas ele declinou da oferta.
Pouco depois, alguns membros do clero que voltaram à cidade, instigaram o novo Bispo a
destituir Teófilo do vicariato. Tentado pelo Diabo com pensamentos insensatos, ele procurou
um judeu conhecido por saber feitiços. De noite, este o levou até a praça da cidade. Ali, Teófilo
se encontrou com o Diabo, para quem ele vendeu sua alma, renegando Jesus e Maria como seus
senhores e tornando-se vassalo de Satã.
O vigário recuperou tudo que tinha e muito mais, porém Deus colocou nele um espírito
de arrependimento e penitência. Ele pediu ajuda a Maria perante o altar de um templo dedicado
a ela. Depois de dez dias de mortificações, a santa lhe atendeu relutantemente. Mas ela se
decidiu a ajudá-lo, porque acreditou no seu arrependimento e na confissão de fé que ele fez
recitando o Credo ortodoxo. Em mais duas visitas, que também aconteceram de noite,
intervaladas por três dias, Maria conseguiu resolver todos os problemas de Teófilo, inclusive
recuperando o trato que ele assinara com Satã. Teófilo se confessou publicamente em um
domingo na missa do novo bispo. Quando o contrato foi queimado pelo prelado, o rosto de
Teófilo se revestiu de luz. Ele se despojou de seus bens, despediu-se de todos, encomendou sua
alma, morrendo três dias depois no lugar onde viu Maria, sendo enterrado lá. O narrador faz
uma glorificação à Maria e a Jesus.
Deixando de lado algumas exceções, que comentaremos adiante, juntando tudo que é
recorrente nas cinco narrativas, formulamos a proposta de enredo sistematizada na Tabela 4.
Nela também apresentamos a estruturação dos contos que é feita linearmente.
60
18
Lembramos que o foco central dos LM não deixa de ser o culto mariano, porém Maria é essencial para a trama
como uma personagem secundária. As histórias são sobre humanos (o monge sacristão, Geraldo, o lavrador, o
monge bêbado e Teófilo), que são antagonizados pelo Diabo e recebem a ajuda de Maria.
19
A respeito disto, Teófilo é a exceção, pois ele tinha um excelente comportamento antes de cair em tentação.
20
No texto original em latim, a expressão usada pra indicar o estado mental de Teófilo quando procura o feiticeiro
Judeu é mente contritum, mente quebrada. No texto traduzido para o espanhol moderno, a expressão é “abatido de
mente” (JUAN GIL DE ZAMORA, 1885, p. 61, 2007, p. 65-66).
61
Muitos dos pecados dos protagonistas estão relacionados com seus corpos (a fornicação
do sacristão, o concubinato de Geraldo, a embriaguez do monge). Porém, nenhuma vez o físico
destas personagens é explicitamente relacionado com a Salvação delas. Entretanto, os corpos
deles ainda podem ser um meio de serem castigados pelas suas faltas ou de conseguirem expiá-
las.21 Por outro lado, existem oportunidades em que eles indicam aspectos positivos dos
humanos.22
Na concepção franciscana, o corpo é pensado ambiguamente. Ele é o cárcere da alma e
este aprisionamento é visto negativamente, creditando-se a ele muitos dos pecados que
impossibilitam a ascese espiritual. Por isso ele pode até ser mortificado, mas somente como
penitência. Todavia, o corpo também é uma criação de Deus e por isso não pode ser considerado
como ruim em absoluto. Francisco de Assis foi bem cuidadoso em estabelecer limites para isso,
por exemplo, falando do corpo como o “irmão corpo” e revogando prescrições dos seus vigários
sobre o jejum, enquanto esta na Terra Santa.23 O corpo podia ser positivado porque sintomas de
santidade podem se manifestar nele. Nesse sentido, o santo de Assis foi precursor, nas
concepções de milagres relacionados ao corpo, da temática dos estigmas (LE GOFF;
SCHMITT, 2006, v. 2, p. 210; MERLO, 2005, p. 40-42).
21
Por exemplo, o monge bêbado que é atacado pelo Diabo, Geraldo que fica castrado para sempre e a penitência
de Teófilo que inclui bater com sua cabeça no chão (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 71 e 97).
22
O rosto do vigário é humilde quando ele se confessa para Maria e uma luz brilhante como o sol lhe ilumina a
face quando ele comunga, após queimar o pacto com o Diabo (Ibid., p. 70 e 72).
23
Segundo o verbete Corpo por Caroli (1993, p. 110-114).
62
24
Teófilo possui bens, mas goza de um grande prestígio social por conta de seu cargo de vigário (JUAN GIL DE
ZAMORA, 2007, p. 64). O lavrador claramente é um camponês, como mostram o seu ofício e as menções a sua
rusticidade (Ibid., p. 171-172). Em uma romaria, o padre Geraldo levava bens que bastariam para justificar uma
acusação de latrocínio contra seus companheiros. Mas, nada indica que ele seja nobre, apesar da tradução
questionável do latim “ferrum” para o espanhol moderno “espada” (Id., 1885. p. 88).
25
Nas histórias do monge sacristão e do monge bêbado o narrador silencia sobre a repercussão dos milagres. No
caso de Geraldo, que no LM é um sacerdote, não há a parte, presente nos MIL, em que o romeiro vai até
Compostela. A história salta diretamente para a menção de seu ingresso na vida monástica, que é feita sem alarde,
em uma breve sentença. O narrador diz apenas que Geraldo ingressou em um mosteiro cluniacense, sem menções
a São Hugo, e que teve uma vida longa servindo Maria (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 97).
63
a serviço de Maria na qualidade de vassalos e, sua devoção a ela, é equiparada a uma vida
religiosa correta.
No LM, os comportamentos pecaminosos dos protagonistas revelam por oposição qual
seria o comportamento correto que eles deveriam ter. Mas, para Teófilo, Maria ainda pede que
ele confirme sua crença na ortodoxia, o que ele faz recitando o seguinte Credo: ele crê, adora e
glorifica a Trindade, equivalente nas três pessoas; a Encarnação de Cristo, por meio do Espírito
Santo e de Maria; que Jesus veio para a remissão dos pecados humanos; a Paixão, ressureição
e ascensão de Cristo em corpo e alma; que Jesus retornará em glória para julgar os vivos e os
mortos, não como um acusador, mas segundo a consciência de cada um, e o fogo que examina
cada um segundo a necessidade (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 70).
Embora no LM, o ingresso do protagonista em uma ordem monástica não seja exaltado
como garantia de proteção futura contra o Diabo e seus subalternos, a confissão e a penitência
continuam sendo destacadas como os passos inicias indispensáveis da remissão dos pecados
que leva a Salvação (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 69 e 116).
As representações diabólicas do LM assumem três formas precisas: o Diabo, os
demônios e o vassalo judeu de Satã, que é intermediário de toda a transação de venda da alma
de Teófilo.
O Diabo é caracterizado como um antigo e invejoso inimigo do gênero humano (JUAN
GIL DE ZAMORA, 2007, p. 65 e 96). Ele é capaz de causar danos físicos às pessoas vivas.
Embora na estória do monge bêbado Maria não permita que ele machuque o monge, na narrativa
do sacristão fornicador é Satã quem o empurra no rio, onde o religioso acaba se afogando
(JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 80).
No LM, o narrador diz que ele pode se transfigurar em Anjo da Luz, quando este assume
a aparência de Santiago (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 96). Quando é representado como
touro, cão e leão, ele chega a ser chamado de “o Diabo que muda de forma”, em latim versipellis
diabolôs (JUAN GIL DE ZAMORA, 1885, p. 105, 2007, p. 115). Na forma de touro, ele ficou
de enorme tamanho, corria e queria investir contra o monge com seus chifres. Na forma de cão,
ele era furioso e demasiado terrível. Na de leão, ficou desmesurado, rugia e atacava como se
fosse devorar o monge (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 115).
Jefferson Eduardo dos Santos Machado realizou uma pesquisa de História Comparada
sobre a simbologia moralizante dos animais, em bestiários medievais e nos sermões do
franciscano Antônio de Lisboa/Pádua. Este santo ibérico viveu no século XIII, falecendo em
1231, uma década antes de Juan Gil de Zamora nascer. Seu trabalho traz algumas considerações
de grande ajuda para compreendermos como os primeiros textos franciscanos se apropriavam
64
O leão simbolizava ideias opostas. Sua ideia é a da majestade e soberania, embora esta
possa degenerar-se em soberba tirânica. Portanto, ele era associado respectivamente com Cristo
e com Satã (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 538-540; LE GOFF; SCHMITT, 2006,
v.1, p. 66).
Os bestiários medievais atribuíam três significações morais para o leão. O animal
apagava suas pegadas para despistar os caçadores. Assim fez Jesus quando encarnou por meio
de Maria. E assim os cristãos deviam proceder para despistar o Diabo. Quando caçava, este
animal circundava suas presas, para que suas pegadas deixassem-nas sem saber de onde ele
atacaria. Da mesma forma agia o Diabo com os homens, sendo que as tentações são as pegadas
dele. Esta fera ressuscitava seus filhotes natimortos, após três dias, com um rugido em sua boca.
Isto era uma clara alusão a ressureição do Filho como plano do Pai para a redenção da
humanidade, que ressuscitaria dos seus vícios por meio de Jesus (MACHADO, 2007, p. 98-
99).
Antônio de Pádua moralizou o Leão, mais uma vez em um sermão sobre a confissão.
Nele admoestava que a confissão deve ser feita com sinceridade, porque só assim teriam a força
de espantar os espíritos malignos que tentam os homens (MACHADO, p. 146). Uma vez mais
o LM sintoniza-se com estas significações. O Diabo instiga o cenobita a se embriagar e depois
o ataca. E, pelas reações do monge bêbado no desfecho do seu conto, acreditamos que ele não
fosse um arrependido desonesto (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 116).
No LM, nada é dito sobre a aparência própria de Satã. Portanto, somente duas
características físicas dele são expressas nesta hagiografia. A polimorfia, isto é, a capacidade
de mudar de forma, que deixa em aberto o rol das suas representações, possibilitando sua
associação com quaisquer pessoas, grupos, instituições ou práticas (LINK, 1998;
MUCHEMBLED, 2004; NÚÑEZ GONZÁLEZ, 2007; e RUSSEL, 2003). E a sua capacidade
de interagir com o mundo material. Esta lhe permite punir os pecadores, já neste mundo, até
com a morte, como no caso do sacristão. Em contrapartida, demonstra que ele pode ser
gravemente ferido, ainda que seja por Maria, mesmo quando está nas suas formas mais
poderosas (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 115).
No milagre do monge bêbado do LM, nas três aparições que o Diabo faz, ele é etéreo.
Primeiro, o narrador o descreve como uma ameaça, depois como uma visão e, por último, diz
que ele se esvai como fumaça, quando finalmente é derrotado (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007,
p. 115). Destarte, colocando-se juntos todos os simbolismos de suas características físicas com
as suas características psicológicas e morais, as representações do satânico no LM, quando
66
tratam dos poderes do Diabo, decididamente preocupam-se mais com um arquétipo do que com
retratar uma ameaça real.
No milagre de Teófilo do LM, Satã apresenta-se como um governante orgulhoso. Ele
diz contar com criados e soldados, que odeia Jesus e Maria. Ele é acompanhado de um séquito
de seguidores, vestidos de túnicas brancas e portando muitos candelabros, que o aclamam como
Príncipe. O Judeu o chama de patrão e de senhor. Mesmo quando é idolatrado (o vigário atira-
se aos seus pés), ele se recusa a ajudar quem é vassalo da Virgem e de Cristo. Exige uma
renúncia dos senhores prévios para poder ajudar Teófilo (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p.
66).
Mas, nesta hagiografia, o Diabo é um velhaco enganoso, que fica gozoso de se apoderar
da alma de alguém como presa, alegando ter direito sobre as almas daqueles que passaram a
vida nas más obras, se suicidaram ou apostataram (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 80, 96
e 71), mesmo que tenha sido ele quem lhes tenha inspirado, instigado ou tentado a pecar (JUAN
GIL DE ZAMORA, 1885, p. 61, 73 e 104, 2007, p. 65, 80 e 115). Ele chega a possuir (introivit,
em latim) o corpo de Teófilo no momento que o pacto demoníaco é assinado. Aliás, eis mais
um estratagema malogrado do Diabo, pois o narrador deixa claro que tudo que aconteceu com
o vigário, após o acordo, foi vontade da providência divina (JUAN GIL DE ZAMORA, 1885,
p. 62, 2007, p. 66).
Não fosse pelo seu sucesso ao incitar os humanos a pecar e pela responsabilidade na
morte do sacristão, ambos confirmados pelo narrador, poderíamos pensar que o Diabo não
possui poder algum. Nas narrativas, o Diabo é o adversário por excelência, mas sempre um
derrotado, exatamente porque se utiliza de mentiras e artifícios. Assim como os outros
demônios, ele está submetido à autoridade de Maria e de Jesus, como pode ser visto em todos
os contos. Ele nunca oferece resistências às intervenções marianas, embora confronte os anjos
e Santiago. A maior prova disso é a distinção feita por Juan Gil de Zamora, também autor de
um espelho de príncipes, 26 entre os graus nobiliárquicos do Diabo, de Jesus e de Maria.
Enquanto o primeiro é apenas um Príncipe, o segundo é o Altíssimo Rei Jesus e a terceira é a
Senhora do Mundo e Rainha do Céu (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 65-66 e 69).
No LM, os demônios andam em multidão e compartilham as mesmas características,
por isso são personagens tipo. As representações dos demônios emulam as do seu líder, ainda
26
Livro de um gênero literário que consiste em recomendações morais e políticas, geralmente baseadas nas
virtudes cristãs, que se seguidas supostamente formarão o governante perfeito. As principais virtudes de um bom
governante seriam: obedecer a Deus e servir a Igreja; assegurar a justiça e a paz para seu povo; prover as
necessidades deste (LE GOFF; SCHMITT, v. 2, p. 401). Gil compôs o De praeconiis Hispaniae dedicado ao
Infante D. Sancho.
67
que eles sejam bem menos poderosos, logo não nos repetiremos analisando-as. Contudo, as
citamos: eles argumentam que têm direito sobre as almas dos que passam sua vida em más
ações; conhecem todas as faltas dos pecadores; são espíritos imundos e perversos; e estão
submetidos às regras e a autoridade de Jesus e de Maria, em decorrência disto não são ousados
nas suas investidas contra seus devotos (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 80, 96, 172).
O Judeu ou Hebreu, no LM, é profissional da arte diabólica e alega que o Diabo é seu
patrão e senhor. É o intermediário de toda a transação com Satã. Apesar deste e Teófilo estarem
no mesmo local, o judeu faz a mediação da conversa dos dois. O narrador relata que o Hebreu
mantinha contato com Teófilo, para lembrar-lhe a quem ele devia a recuperação e ampliação
do seu prestígio. Ímpio, malvado, execrável e odioso ao Senhor, o feiticeiro 27 Judeu submergiu
a muitos no fosso da perdição e na perda da fé. Ele se aproveita do estado confuso de Teófilo,
que no seu monólogo, o culpa, e não ao Diabo, pela instigação e persuasão de renegar Jesus e
Maria (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 66).
Em outras narrativas do LM, as representações judaicas continuam a apresentar judeus
hostis à fé cristã. Eles morrem ou são massacrados pelos cristãos em pogroms como castigo
pelas suas ações. No mil. II do cap. VI, supostamente, durante uma procissão para celebrar a
festa da Assunção de Maria, uma voz atribuída a Virgem é ouvida dos Céus queixando-se do
“deicídio” judaico, que causara grandes dores a Maria. A voz acusou os judeus de Toledo,
aparentemente em grande número, de estarem causando novamente muitas dores à Maria.
Liderados pelo Arcebispo, os cristãos iniciam um pogrom, justificado no texto pelo achado de
um boneco de cera usado para simular a crucificação de Jesus. Todos os judeus são mortos para
a confusão da sinagoga e glória de Maria (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 81-82). E no
mil. VI do cap. VI, conta-se de um judeu que ficou contrariado ao ver uma imagem de Maria
pintada num quadro na parede de uma casa. Instigado pelo Diabo, ele tirou a imagem da parede,
a atirou em uma fossa sanitária, defecou em cima dela, e sumiu sem deixar vestígios. O narrador
garante que ele teve uma morte infame e que foi abandonado ao espírito maligno, como pena
pelo crime que cometeu contra Maria e Jesus. Depois de achada por um cristão zeloso, que a
limpou, a imagem começa a fazer milagres (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 103-104).
Porém, não ocorrem mais associações na narrativa entre os judeus com o Diabo. Há apenas uma
ocorrência de um judeu que foi instigado por Satã, exatamente como são os protagonistas
cristãos, no milagre da imagem mariana roubada e atirada na fossa.
27
Para mais sobre a relação entre feitiçaria e judaísmo no medievo consultar Le Goff e Schmitt (2006, v. 1, p. 423-
435) e Trachtenberg (2001, p. 57-75).
68
Contudo, outras três narrativas terminam com o encantamento dos judeus perante as
ações milagrosas da Virgem, o que faz eles se converterem à fé cristã. No mil. VII do cap. I,
narra-se a história de um menino judeu, que, enquanto voltava da escola, acabou por assistir
uma missa de Páscoa, comungando nela e ficando encantado por uma imagem da Virgem.
Quando o seu pai descobriu o que ele fizera, furioso, atirou-o a um forno. No final do relato a
Virgem salvou o garoto, seu pai foi sentenciado a morrer da mesma forma que tentara matar o
filho. Comovidos com o ocorrido, todos os judeus se converteram (JUAN GIL DE ZAMORA,
2007, p. 73-74). No mil. III do cap. VI, conta-se sobre um cristão de Bizâncio que, para obter
fama e prestígio, gastou tudo o que tinha mais o que pegou emprestado. Falido, ele pegou
empréstimo com um judeu. O judeu não é representado pejorativamente em princípio, só exigiu
um fiador. O devedor colocou Jesus como fiador, dando publicamente a imagem de Maria da
igreja local como calção para o judeu. A dívida foi paga miraculosamente. No desfecho da
história, o cristão teve sua fé recompensada e o judeu se converteu impressionado (JUAN GIL
DE ZAMORA, 2007, p. 92-95). No mil. IV do cap. VI, os judeus se arrependeram de terem
vendido uma sinagoga para os apóstolos, indo até César para tentar recuperá-la. Receosos, os
discípulos de Jesus, liderados por Pedro pediram ajuda à Maria. Ao verem uma imagem da santa
na igreja, temerosos e respeitosos, os judeus desistem (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 97-
99).
Juntamente com o milagre de Teófilo, as narrativas citadas formam o conjunto de todas
as representações judaicas do LM. Portanto, o contraste da quantidade de menções às
conversões com as de demonizações ou hostilidades demonstra que as narrativas estão mais
inclinadas para a primeira opção.
O LM faz a difusão de uma religiosidade mariana mais pessoal e centrada na relação
espiritual direta entre a santa e o devoto protagonista. Um exemplo disto é que, no conto do
monge bêbado, ela conduz o religioso pela mão para colocá-lo no leito. Este contato físico entre
Maria e o religioso também é revelador da santidade da Virgem, porque o narrador afirma que
o monge se curou da bebedeira imediatamente após este ato (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007,
p. 115). Outro indicativo de que a religiosidade mariana do LM possui as características citadas
é a descrição bem mais humanizada de Maria, que realça seus traços físicos, ainda que a chame
de visão por duas vezes. A santa é descrita como uma jovem, uma virgem dulcíssima, mais bela
que uma rosa e mais luminosa que as estrelas do firmamento. Seu rosto é inefável, tem uma voz
suave, lábios de ternura e uma cabeleira luzente sobre seus ombros (JUAN GIL DE ZAMORA,
2007, p. 71 e 115). Contudo, no que diz respeito à corporeidade mariana, uma vez mais o LM
69
28
Uma rápida comparação comprova isto. No conto do sacristão, Maria intervém a favor do monge apelando ao
julgamento de Cristo, que decide pela volta do monge a vida. Neste caso, a salvação do protagonista é atribuída à
Maria. Já no caso do romeiro, o santo que faz a aintervenção é Tiago e o que julga é Maria, mesmo assim o narrador
credita à Virgem no desfecho da narrativa.
29
Por exemplo, no conto do monge bêbado, o narrador diz que Maria possui palácios no Céu (JUAN GIL DE
ZAMORA, 2007, p. 116). No caso de Teófilo, o vigário refere-se a ela como Senhora do Mundo e Rainha do Céu.
O narrador afirma que ela vive e reina com Jesus pelos séculos infinitos (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 73).
70
ainda ensina o que o pecador precisa fazer para que ela possa interceder por ele, e cobra que
não reincida em seus erros. O exemplo de Teófilo é o que melhor elucida este ponto. Depois do
vigário se penitenciar por dez dias, Maria, indignada, aparece para ele e diz que é preciso um
tempo maior de contrição para que Jesus, um pai piedoso e juiz justo, o perdoe. Após ouvir
mais apelos de Teófilo, ela exige que ele confesse que renegou a Jesus e que também recite o
Credo. A partir deste momento, a santa muda sua postura, porque acreditou que a confissão do
protagonista foi sincera. Então, a resposta que ela dá ao vigário é a seguinte:
Eis que, pelo batismo que recebeste através do meu Filho e Senhor Nosso Jesus Cristo,
e pela tremenda compaixão que sinto por ti, crendo nas tuas palavras me acercarei
àquele e lhe rogarei em teu favor, humilhada a seus pés até que se digne a aceitá-lo
(JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 70).
Para concluir o exemplo, em uma passagem mais adiante, quando só faltava recuperar
o pacto, a Virgem diz que Teófilo fora perdoado e que deveria cumprir suas palavras de
arrependimento porque ela foi testemunha dele (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 71).
As demais personagens sobrenaturais que são representadas no LM figuram ajudando a
potencializar as atribuições de Maria. Os Anjos conhecem as boas ações das pessoas, mas são
limitados quanto a poder ajudá-las, se os bons feitos dos humanos estiverem em menor
quantidade que os seus pecados (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 80 e 172). Isto não é um
impedimento para a Virgem. Santiago, chamado pelo narrador de bem-aventurado Apóstolo,
considera Geraldo seu peregrino e denuncia o engodo demoníaco. Porém, ao levar o impasse
que se cria entre ele e o Diabo ao juízo de Maria, acaba recebendo méritos secundários pelo
destino do romeiro (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 97). Apesar de parecer diminuída, a
representação do santo em uma coleção de milagres marianos não é gratuita e poderia ser muito
útil aos franciscanos de Zamora, como discutiremos na próxima parte deste capítulo.
Os outros humanos que são representados no LM são todos personagens tipo.30 Quanto
aos laicos, eles não possuem praticamente nenhuma descrição e só reagem a determinados
30
Personagens pouco detalhadas e complexas, facilmente identificáveis pelas suas características típicas e
invariáveis compartilhadas por todo o grupo a que pertencem (GANCHO, 1991, p. 16).
71
31
Os peregrinos companheiros de Geraldo apenas fogem perante o mistério da morte violenta dele, com medo de
serem responsabilizados (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 96). Os moradores da cidade de Teófilo se comovem
com a compaixão divina e cantam depois que o pacto é incinerado (Ibid., p. 72).
32
Nada se descreve sobre os monges companheiros do sacristão fornicador, somente que eles ficaram intrigados
com o seu afogamento. Não há referências a um abade na versão do LM, o narrador apenas diz que o monge
fornicador era sacristão.
33
Exceto pelo milagre do lavrador, que narra toda uma vida de pecados, e o de Geraldo que peca pela manhã
(JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 96 e 171-172).
72
mais severamente punidos (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v. 2, p. 536-537). Um exemplo disto,
já citado, é como o Diabo pôde matar o sacristão fornicador empurrando-o no rio.
Pela forma negativa como o clero secular aparece no LM, analisamos como a
religiosidade franciscana representava a vida no século com uma série de impedimentos a vida
espiritual das pessoas, sobretudo as eclesiásticas. Ainda dentro dos parâmetros desta
religiosidade, as representações dos monges no LM não colocam a “fuga do mundo” praticada
nos monastérios como uma forma eficaz de se prevenir das tentações diabólicas. Como visto, o
monge bêbado se embriagou e foi atacado pelo Diabo dentro mosteiro. Da mesma maneira, o
sacristão não estava livre da tentação da concupiscência dentro do cenóbio e ele fugia para o
século para pecar. Assim sendo, podemos afirmar que, nos contos estudados, o espaço se opõe
aos protagonistas e projeta o conflito das narrativas.
Em Zamora, a presença da Ordem dos Frades Menores data da década de 1220. Segundo
os Annales Minoris, o primeiro convento da cidade foi fundado em 1246. 34 A escolha de Zamora
como um dos primeiros núcleos franciscanos pode ser explicada precisamente porque se tratava
de um grande centro urbano em um ponto de articulação entre duas rotas principais para
Compostela.
Esta cidade, já no século IX possuía importância militar pela sua posição fronteiriça,
como pode ser visto no Mapa 1, em anexo. Neste mesmo século ela acabou sendo destruída
pelos mouros. Foi reconstruída e com a vitória dos cristãos na Batalha de Simancas, em 939,
converteu-se em capital da região. Porém, no século XI, pela segunda vez ela foi vencida e
reconstruída. Mas em meados deste mesmo século, a cidade consolidou-se como núcleo cristão,
recebendo um grande contingente de francos. No século XII constitui-se como um importante
espaço urbano, mesmo que graças ao triunfo cristão na Batalha de Las Navas de Tolosa, em
1212, a fronteira já tivesse avançado muito mais para o sul, como pode ser visto no Mapa 2, em
anexo. Suas muitas construções, especialmente as igrejas e os palacetes, edificadas nos séculos
XII e XIII, levam a crer que fosse uma cidade de importância religiosa, política e econômica,
com intensa circulação de pessoas (FERRERO FERRERO, 2088, p. 9-44).
Zamora também é a última cidade do caminho conhecido como “via del Plata”, um
itinerário de romaria jacobeia, que pode ser visto no Mapa 5, em anexo. Esta rota era usada por
quem vinha do sul da península, partindo de Mérida (que passou ao domínio cristão em 1230,
com as vitórias de Afonso IX de Leão). Posteriormente, o ponto de partida passou a ser mais
ao sul, depois que Sevilha, em 1248, foi conquistada por Fernando III, o santo, avô de Sancho
IV, de quem Juan Gil foi preceptor, como já destacamos. De Zamora, havia duas opções: seguir
para norte, tomar o Caminho Francês e se juntar aos romeiros oriundos de além-pireneus; ou ir
diretamente para Compostela, rumando a noroeste via Ourense.
Levar o Evangelho aos infiéis era um aspecto muito valorizado da religiosidade
minorítica; o próprio Francisco rumou para a Terra Santa com este intuito em 1219 (MERLO,
2005, p. 35-36). Na Península Ibérica, o missionarismo dos frades menores entre os infiéis se
manifestou precocemente. A expedição franciscana de 1219 à Península Ibérica, após
providenciar instalações para os frades em Toledo, que passara ao domínio cristão em 1085,
conseguiu partir dali para Valência e Sevilha, que estavam na época ainda em poder dos
mouros, e chegar a Ceuta, onde cinco frades menores foram martirizados em 1220. 35 Em 1226,
34
Em 1260, a comunidade franciscana foi trasladada para outro prédio (FERRERO HERNÁNDEZ, 2002, p. 10).
35
Existem notícias de uma suposta peregrinação à Santiago de Compostela que Francisco de Assis teria realizado,
antes de 1220, acompanhado de alguns outros membros do grupo inicial de frades menores. Diz-se que sete destes
75
uma nova missão partiu de Toledo, direcionando-se para os territórios muçulmanos, desta vez
composta por franciscanos e dominicanos (MERLO, 2005, p. 35; GARCÍA ORO, 1988, p. 49-
50).
Nas décadas de 1230 e 1240, a retomada de Mérida e Sevilha pelos cristãos, que
proporcionou a formação da “vía del Plata” (mostrada no Mapa 5, em anexo), pode ter feito
destas cidades uma alternativa a Toledo como ponto de partida para as missões minoríticas em
Granada e no norte da África. Apesar de não termos encontrado informações que corroborassem
esta possibilidade, não acreditamos que ela deva ser descartada completamente. As rotas de
peregrinação não serviam como caminho apenas para os romeiros, pelo contrário, geralmente
eram estradas seguras e muito movimentadas pelas quais optavam trilhar todo tipo de viajantes
medievais. 36 É possível pensar que os franciscanos que desejavam pregar entre os mouros
poderiam seguir a “via del Plata”, no sentido oposto ao de Compostela, para chegar às cidades
cristãs fronteiriças do sul da península e de lá partir para Granada ou até mesmo para o norte
africano.
Assim, a localização de Zamora, em um ponto de articulação entre estradas do norte e
do sul ibérico, poderia servir também às aspirações missionárias da OFM entre os infiéis, ao
mesmo tempo em que atendia a demanda desta ordem de se estabelecer próxima às rotas
jacobeias.
Entre todos que moravam ou circulavam por Zamora, uma compilação de milagres
marianos, na qual Maria sempre sai vitoriosa contra um Diabo que só faz mal para aqueles que
realizam práticas condenadas pelo franciscanismo, tinha um forte apelo propagandístico para
os frades menores, podendo ter ajudado na consolidação da ordem localmente por dois motivos.
Primeiro porque o culto mariano era forte em Zamora, onde se preservavam as relíquias de São
Idelfonso de Toledo, que, no século VII, escreveu um famoso livro em defesa da virgindade da
santa e promoveu a celebração da festa da Anunciação na Península Ibérica. Segundo porque a
mariologia franciscana do LM não deixa de se ligar ao culto local deste santo, o qual figura
como protagonista de uma das narrativas da hagiografia, que conta como ele é recompensado
por Maria com presentes milagrosos pela inserção da festa da Anunciação no calendário
litúrgico ibérico (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007, p. 61-64).
teriam se destacado do grupo e rumado para o sul peninsular intentando chegar até o Marrocos para pregar entre
os mouros. Lá eles teriam sido martirizados. Portanto, seriam dois os grupos de mártires franciscanos que
realizaram trabalho pastoral na península e no norte da África e que teriam sofrido o martírio neste continente
(GARCÍA ORO, 1988, p. 45).
36
Para mais detalhes sobre as viagens no medievo ver Ferreira Priegue (1994), García de Cortázar y Ruiz de
Aguirre (1994) e Ruíz Goméz (1994).
76
Como era formado em Teologia, Juan Gil conhecia muitas das reflexões teológicas sobre
a figura de Maria, como os tratados presentes no LM permitem concluir. Esta formação,
provavelmente, é a responsável pelo autor também não confrontar em momento algum a
ortodoxia referente aos pontos centrais da piedade mariana (CAROLI, 1193, p. 407-415;
PEDROSO, 2003, passim). No final do século XIII, Gil se tornou Ministro da Província e o LM
mais um recurso a sua disposição para consolidar os interesses da OFM em Zamora.
Levando-se em conta que o LM foi escrito em latim e que Gil foi professor no studium
do convento franciscano de sua cidade natal e da corte de Afonso X, poderia se dizer que sua
versão dos milagres marianos tivesse um público-alvo restrito, limitado aos letrados e ao clero,
sobretudo os cortesões de Castela e os seus alunos franciscanos. Contudo, estes últimos seriam
justamente os novos pregadores franciscanos zamoranos, o LM teria servido como matéria de
inspiração para eles. Devido à mobilidade destes frades entre seus conventos e a localização de
Zamora, acreditamos que o LM tenha alcançado um público bem mais amplo.
Especificamente no caso das representações diabólicas, a correção dos costumes
pretendida pelo trabalho pastoral de Gil se abatia sobre o clero secular e monástico na forma de
pesadas críticas. Todavia, estas não se configuram como uma contradição à submissão dos
frades menores à hierárquica eclesial. Isto porque elas devem ser entendidas como sinais de
uma concorrência, e não de uma guerra, entre a OFM e os outros dois segmentos eclesiásticos.
Antes de serem ataques, as representações dos eclesiásticos vitimados pelo Diabo do LM
poderiam ser uma defesa. Da parte do clero secular, a presença franciscana em Zamora poderia
ser incômoda, pois os franciscanos tinham uma liturgia diferente daquela dos capítulos locais,
autonomia jurídica, juízes eclesiásticos próprios e subordinação direta ao papado (GARCÍA
ORO, 1988, p. 53-56). Depois da autorização papal dada em 1281 para os franciscanos atuarem
como confessores, pregar e fazer a cura das almas, esta deixou de ser uma atribuição exclusiva
do clero secular. Quanto aos religiosos, a preferência pelo minorismo diminuía a entrada de
noviços e de bens nos mosteiros nas formas de doações, de heranças ou de dotes.
Porém, as representações diabólicas do LM encontram sua melhor explicação na
propaganda que o zamorano e seus discípulos poderiam desenvolver. As técnicas de predicação
franciscanas se preocupavam em se adaptar e atender às demandas espirituais de um vasto
público, que incluía grupos sociais velhos e novos no século XIII. Os franciscanos queriam
levar sua mensagem aos citadinos, corrigir a conduta do clero com suas advertências, converter
os infiéis e combater os hereges (GARCÍA ORO, 1988, p. 57-58). Apresentar um Diabo capaz
de instigar e agir sobre os eclesiásticos que não se comportavam de acordo com as premissas
77
franciscanas, que eram reafirmadas por Maria no texto, seria uma estratégia de conversão de
leigos, sacerdotes e monges aos ideiais de espiritualidade minorítica, que abriu espaço para
homens e mulheres, leigos ou eclesiásticos em sua ordem. 37 O fato dos protagonistas serem
todos anti-heróis apresentava um modelo de obtenção da Salvação, que não deixava de cobrar
o zelo ascético e devocional, porém era mais facilmente imitável do que os santos indefectíveis
costumeiramente representados em outras hagiografias medievais. Este modelo tinha muito
mais apelo porque incluía a imperfeição humana, que podia ser redimida pelos dogmas da
confissão e da penitência.
Quanto às representações judaicas do LM, vimos que a hagiografia tinha mais
aspirações de conversão dos judeus do que intenções de demonizá-los. Atribuímos isto a
coabitação dos espaços urbanos castelhanos medievais pelos judeus e franciscanos, como
ilustra a comparação entre os Mapas 3 e 4, em anexo. Sublinhamos que em Zamora a presença
judaica era acentuada. A religiosidade franciscana dava grande importância à ação missionária
entre os infiéis, logo, o LM se mostrava central ao partilhar dos interesses da OFM na península
ibérica uma vez mais.
Contudo, no LM não há uma crítica à realeza associando o Judeu feiticeiro com um
Diabo rei. O Diabo é apenas um príncipe, os reis, e por isso mais poderosos e vencedores sobre
ele, são Maria e Jesus. Seguramente, isto se deve não só às relações que Juan Gil mantinha com
o Rei Sábio e Sancho IV, mas também ao apoio que os franciscanos receberam, na forma de
doações, proteção e privilégios, dos reis de Castela, desde o tempo de Fernando III na época da
instalação franciscana na península. 38
Em resumo, o franciscano, teólogo e integrante da Corte de Afonso X, Juan Gil de
Zamora, representou no LM um Diabo que age no mundo material; não possui aparência física
própria definida, mas é capaz de muitos disfarces por causa da sua polimorfia; tem uma
personalidade traiçoeira e é príncipe entre os demônios e seus vassalos humanos. O Diabo no
LM instiga as pessoas a pecar, causando-lhes grandes males, inclusive a Danação eterna.
37
O minorismo se divide em três ramos ou ordens. A OFM, composta por homens religiosos, foi a primeira delas
a ser fundada. Em 1212, com a conversão de Clara de Assis aos ideais de Francisco, começou o processo de
formação da Ordem de Santa Clara, inicialmente conhecida como Ordem de São Damião, porque este era o santo
padroeiro do convento onde as primeiras clarissas viveram. O ramo feminino do minorismo vive na clausura dos
seus conventos, não participando do mundo como o ramo masculino, embora partilhe com este dos mesmos
preceitos de ascese e pobreza. Por fim, há a Ordem Terceira, cujo nome oficial é Ordem Franciscana Secular. Ela
é composta principalmente, por leigos e leigas, que procuram seguir o exemplo de Francisco na sua vida cotidiana,
isto é, no seio de suas famílias, casamentos, profissões etc.
38
Para mais detalhes sobre a relação dos franciscanos com a realeza castelhana no século XIII consultar García
Oro (1988). Especificamente sobre a relação de Juan Gil com os reis ver Dacosta (2006).
78
Nos últimos dois capítulos, empregamos a técnica de análise de narrativa para examinar
os significados e as finalidades das representações diabólicas nos MIL e no LM. Neste terceiro
capítulo apresentamos a comparação entre o que já foi exposto, utilizando a metodologia da
História Cruzada.1 Para tanto, combinamos os elementos da comparação clássica aos estudos
das transferências culturais2 para produzir uma análise historiográfica que abarcasse itens
comparativos situados em temporalidades sincrônicas e diacrônicas.
Nosso objetivo foi o processo ativo e dinâmico das interações e das transferências entre
as representações das hagiografias. Para alcançá-lo utilizamos como ponto de cruzamento as
normativas das atas dos concílios de Latrão IV (1215), Valladolid (1228) e Peñafiel (1302), tal
como estabelece à História Cruzada. Desta forma, não tomamos as representações diabólicas
que figuram nos relatos hagiográficos analisados como isoladas ou sem referências externas
comuns. Pelo contrário, consideramos que tais representações interagiam reflexivamente entre
si, apesar de terem se mantido diferenciáveis o bastante para serem comparadas.
Como primeiro passo da comparação, sintetizamos as características formais das
narrativas analisadas na Tabela 7, porque muitas delas são fundamentais para a compreensão
dos significados e finalidades das representações demoníacas. Consideramos, em especial, a
formação e o estado de vida dos autores, a datação, os lugares sociais de redação, a técnica ou
estilo de escrita, o idioma de redação e o foco narrativo das hagiografias.
Destacamos que tanto as narrativas dos MIL quanto as do LM possuem um aspecto
fundamental do enredo em comum: a verossimilhança. Tal aspecto está diretamente relacionado
com a probabilidade das representações condenarem ou incentivarem certas práticas, como
também aos limites das apropriações criativas ou seletivas. A verossimilhança dos enredos para
os seus receptores contemporâneos garantia-se na lógica medieval da crença em milagres. Os
milagres eram entendidos como aqueles eventos da ordem do sobrenatural limitados às
especificidades restritivas cristãs, ou seja, de autoria sempre e unicamente atribuída ao poder
de Deus, mesmo que fosse realizado por meio de emissários seus, como Maria, outros santos
1
Segundo Werner e Zimmermann (2003).
2
Comparação clássica entendida como possuindo uma lógica de análise essencialmente sincrônica que lida com
objetos de análise historicamente constituídos. Os estudos de transferências culturais tratam dos processos de
transformação devidos aos fenômenos de deslocamentos e apropriações culturais entre os objetos analisados ao
longo de um período determinado (Ibid., p. 93).
80
3
Como explicado nas p. 22-23.
4
Discutido nas p. 54-55.
5
O termo Católica, aqui, designa a Igreja universal liderada pela cúria romana.
81
de Trento, realizado já no século XVI. (2005, p. 640). Alguns estudiosos afirmam ainda que
esta reunião conciliar foi exemplo e produto do ápice da proeminência que o papado conseguiu
alcançar na Igreja Católica e na sociedade no século XIII, ainda que esta não tenha durado muito
se encontrando bem diminuída ao começo do século XIV (DUFFY, 1998, p. 99-115;
FOREVILLE, 1973, p. 127-130).
O concílio foi convocado por iniciativa do Papa Inocêncio III, em 1213, motivada por
dois objetivos principais: a recuperação da Terra Santa e a reforma da Igreja. Foram convidados
bispos ocidentais e orientais, abades e reis cristãos. Devido às dimensões da reunião proposta
ela só foi viabilizada em 1215, sendo realizada em três sessões com duração de um dia e
contando com o comparecimento de 412 bispos e cerca de 800 abades (BARRIO; PAREDES;
RAMOS-LISSÓN; SUÁREZ, 2005, p. 638).
Quanto à participação dos eclesiásticos ibéricos, o número de bispos somou 23, que
também foram recebidos por Inocêncio III, em uma sessão especial, para discutir sobre a
primazia da sé de Toledo sobre as metropolitanas de Braga, Compostela, Tarragona e Narbona
(FOREVILLE, 1973, p. 58-60).
Em torno dos eixos dos seus dois objetivos principais, Latrão IV proclamou 71 cânones,
mas em nossas análises somente nos focamos naqueles referentes ao segundo objetivo do
concílio, isto é, a reforma da Igreja. Podemos afirmar que tal reforma era pretendida sob a
liderança do papado, porque os próprios cânones expressam claramente a supremacia da Igreja
romana sob as demais, seja no Ocidente ou no Oriente (can. 1, 4 e 5, que tratam do Credo, da
insubordinação do clero grego ao latino e da hierarquização dos patriarcas de Roma, Bizâncio,
Alexandria e Jerusalém). Além disso, o conteúdo das determinações formuladas harmoniza-se
com a concepção teológica de Inocêncio III. Esta seria mais voltada para assuntos práticos,
como a moralidade do laicato, a celebração da liturgia e a correção da vida cristã (DUFFY,
1998, p. 112).
O segundo eixo ou objetivo de Latrão IV reúne uma variedade de temáticas que, uma
vez categorizadas, ajudam a compreender as práticas que a Igreja romana aprovava ou
reprovava.6 Seis cânones tratam de questão de fé: estabelecem a doutrina ortodoxa (can. 1);
declaram a prerrogativa papal de canonizar os santos (can. 62); determinam a obrigatoriedade
da comunhão anual, quando o fiel deve se confessar e penitenciar para redimir os seus pecados,
6
As demais temáticas referentes à reforma da Igreja dividem-se em quatro preocupações do papado: centralização
do governo da Igreja por Roma (can. 4-5, 9, 13, 23-26, 57-58, 60); a não intervenção dos poderes seculares (can.
25 e 43-45); a administração do patrimônio da Igreja (can. 29, 32-34, 46, 53-56, 59 e 61); e a justiça eclesiástica
(can. 35-38, 41-42 e 47-49).
82
e que o sigilo confessional nunca deve ser quebrado (can. 21); e dão combate às heresias (can.
2 e 3). Quanto aos sacramentos fala-se ainda da segurança e da higiene na conservação das
hóstias (can. 20).
Outros vinte e seis cânones abordam a correção moral do clero e dos leigos. Determinam
que se organizem concílios provinciais e capítulos gerais monásticos periodicamente para a
fiscalização dos desvios comportamentais dos eclesiásticos (can. 6 e 12) e como estes devem
ser corrigidos e fiscalizados (can. 7 e 8). Dentre estes desvios condenados estão: a incontinência
sexual, sobretudo no caso dos ordenados (can. 14); a embriaguez e a gula (can. 15); a
administração de negócios seculares, o uso de roupas inadequadas e/ou luxuosas e o
comparecimento a pantomimas, jograis, jogos e tavernas (can.16); a negligência em relação às
cerimônias religiosas (can. 17); o envolvimento em qualquer atividade de derramamento de
sangue, bem como portar armas (can. 18), e o armazenamento de objetos profanos nas igrejas
(can. 19). Para o combate à simonia foi dada uma atenção especial em quatro cânones (can. 63-
66).
Quanto aos laicos os pontos tratados são: a posse legítima de bens (can. 40), bem como
a restituição daqueles que foram roubados (can. 39); a prioridade do cuidado com a alma frente
ao dos corpos para os enfermos (can. 22), e as questões relativas ao matrimônio, revisando-se
e diminuindo-se os graus de parentesco que impediam o casamento (can. 50), condenando os
realizados clandestinamente, ou seja, sem a presença de um padre (can. 51) e os falsos
testemunhos nas causas matrimoniais (can. 52).
A temática da nomeação para os cargos eclesiásticos e para o exercício da pregação está
diretamente relacionada com a correção dos costumes, porque esta depende daquela para ser
levada a cabo. A idoneidade e a capacitação em obras e palavras são os requisitos para alguém
ser ordenado, eleito para algum cargo ou escolhido como pregador (can. 10, 28, 30- 31). Os
ordenados deviam receber a instrução condizente com a sua função (can. 27) e juntamente com
os demais membros do clero deveriam se dedicar aos estudos. Para isso, cada catedral deveria
ter um professor de Gramática e cada igreja metropolitana um de Teologia (can. 11).
Por fim, mais quatro cânones são dedicados aos contatos judaico-cristãos. A usura
praticada pelos judeus é vista como nociva aos cristãos e por isso deveria cessar. Além disso,
qualquer bem que tivesse se tornado posse dos credores continuaria devendo dízimo à Igreja
Católica (can. 67). Os judeus deveriam usar um traje distintivo e não poderiam aparecer em
público aos domingos. Segundo o concílio, neste dia da semana eles usavam suas melhores
roupas, escarniam dos cristãos e ultrajavam a Paixão de Cristo dançando com alegria. Para
83
combater isto, a Igreja Católica solicita a intervenção dos príncipes seculares, que deveriam
castigar os judeus com penas apropriadas (can. 68). Os judeus não poderiam exercer qualquer
poder sobre os cristãos e, por isso, ficavam proibidos de ocupar quaisquer cargos públicos (can.
69). Aqueles que tivessem se convertido ao cristianismo não deveriam praticar seus ritos
antigos, devendo ser incentivados a abandoná-los (can. 70).
Temos notícias de que perto das datas em que os MIL e o LM foram compostos
celebraram-se dois concílios em Castela, o de Valladolid, em 1228, e o de Peñafiel, em 1302.
O primeiro, contou com a presença de todos os bispos castelhanos e leoneses e foi convocado
por João de Abbeville, Cardeal de Sabina, que desempenhou a função de legado papal na
Península Ibérica, entre 1228 e 1229 (TEJADA Y RAMIRO, 1861, T. 3, p. 324). Como
representante do papa, o Cardeal teria se ocupado, entre outras coisas, de ditar disposições
diretas sobre os sacramentos e a vida clerical, dirimir pleitos e disputas jurídicas, ordenar a
criação de escolas catedralícias e a dotação de estudantes e exigir a celebração de capítulos
periódicos das ordens monásticas. Porém, seu objetivo principal teria sido difundir e instituir
as disposições de Latrão IV na península Ibérica (GARCÍA ORO, 1988, p. 38).
Exatamente por causa disto, Valladolid afirma a proeminência hierárquica da Cúria,
chamada de Corte de Roma (can. 16). O primeiro dos seus dezenove cânones ordena que em
todas as reuniões conciliares ou sinodais posteriores, bem como aquelas entre os monges e os
cônegos regrantes (can. 13), as disposições de Latrão IV, que é denominado nessas atas como
Concílio Geral (can. 1, 4, 12, 13), sejam guardadas e observadas. Na verdade, são tantas as
passagens que se eximem da determinação das penas para as infrações, estabelecendo que elas
deveriam ser consultadas em Latrão IV, que a compreensão da ata de Vallodid fica
comprometida sem o conhecimento da ata do outro concílio.
Contudo, a normatização que Valladolid visava empreender não era uma simples
transcrição daquela de Latrão IV. Devido à falta de autoridade para legislar sobre alguns
assuntos ou as circunstâncias particulares do clero castelhano-leonês, na ata de Valladolid não
constam algumas das determinações da reunião lateranense, enquanto outras são enfatizadas.
Não há nada em seu texto sobre os pontos do Credo ortodoxo, o combate à heresia, sobre
canonização, sobre matrimônio laico, por exemplo. Por outro lado, este concílio é estritamente
focado em assuntos práticos relativos à Igreja local, inclusive prevendo punições até mais
severas para algumas infrações. Centra-se ainda nas normas para os eclesiásticos, só dedicando
atenção para os laicos nos poucos casos em que seus assuntos se relacionam diretamente com
os da Igreja.
84
À luz destas considerações, listamos o que Valladolid estabelece quanto à correção dos
costumes e sobre as práticas que pretendia incentivar ou coibir. 7 Desta forma, prescrevia os
cuidados no armazenamento e limpeza de tudo que fosse relacionado à Eucaristia (can. 6), e
que os padres deveriam admoestar os leigos a se confessarem e comungarem uma vez por ano
para escaparem do Inferno (can. 7). Prevê também as reuniões periódicas para a fiscalização
dos desvios (can. 1), que são os seguintes: o concubinato público entre os ordenados (can. 4); a
gula e a embriaguez, os ofícios mundanos desonestos, a participação em festas e jogos, a
presença nas tabernas, o estabelecimento de sentenças de morte, o porte de cuchiellos ou armas
e o viajar com luxo (can. 5); o trajar-se inadequadamente ao seu estado de vida (can. 5, 13 e
18); a simonia (can. 12); a posse de materiais particulares entre os monges e que eles durmam
ou comam fora da clausura (can. 13). As atas também prescrevem a pena capital para os
eclesiásticos condenados por roubo, furto, homicídio, sequestro de mulheres e falsificação de
moedas (can.14).
Quanto à nomeação para os cargos apenas cita que os filhos bastardos dos eclesiásticos
não poderiam ser ordenados (can. 4). Sobre a cura das almas define que, nas igrejas catedrais e
conventuais, deve ser escolhido dentre os varões mais idôneos e letrados alguém para pregar e
confessar (can. 2). Aqueles que recebiam benefícios eclesiásticos deveriam ao menos se
alfabetizar em latim, ou perderiam seus rendimentos. Já aqueles que quisessem se aprofundar
nos estudos poderiam gozar dos benefícios, mesmo enquanto estivessem afastados das suas
funções (can. 3). A questão judaica é abordada brevemente no 9º cânone, que determina que os
judeus deveriam pagar o dízimo dos bens cristãos em sua posse e usar roupas distintivas.
O concílio de Peñafiel de 1302 foi convocado e presidido pelo Arcebispo de Toledo D.
Gonzalo Diaz Palomeque e contou com a presença dos seus sufragâneos de Palência, Segóvia,
Sigüenza, Osma, Cuenca e procuradores dos bispos de Jaen e Córdoba. A convocação deveu-
se à necessidade da correção da disciplina clerical, mas principalmente por causa das infrações
à imunidade eclesiástica (confisco de bens, violência, desrespeito jurídico e ingerência sobre
nomeações). Como estas foram causadas pelos ministros reais, antes das 15 determinações
conciliares serem promulgadas, firmou-se uma concórdia entre Fernando IV e o mesmo
arcebispo, acompanhado de outras lideranças eclesiásticas, 8 na cidade de Valladolid, no ano de
1295 (TEJADA Y RAMIRO, 1861, T. 3, p. 324). Este concílio também estava sintonizado com
Roma. Ele estipula que os bispos façam seus subordinados conhecerem as Constituições do
7
O Concílio de Valladolid também trazia determinações sobre a não intervenção dos poderes seculares na Igreja
(can. 11 e 17) e a administração dos bens e da justiça eclesiásticos (can. 8, 10, 15, 19; e 16).
8
Entre eles os bispos de Astorga, Tuy, Badajoz e o abade de Valbuena.
85
papa Bonifácio VIII (can. 6) e atesta que todas as queixas contra as ingerências e abusos do
poder secular contra o clero (can. 6-7 e 13-15) já tinham sido citadas e condenadas em Latrão
IV e/ou Valladolid. Destacamos quanto a isso o cânone 14, que afirma que seria covardia usar
de violência contra os eclesiásticos, porque eles foram proibidos de usar armas por Jesus.
Com objetivos tão específicos, a reunião não discutiu nada sobre o Credo, as heresias,
canonização ou casamento. Mas Peñafiel é o único dos concílios que estudamos que dedica
alguma atenção à religiosidade mariana. No cânone 11, alega que a festa de São Idelfonso de
Toledo deveria ser celebrada com ofício duplo porque Maria, mãe do Salvador Jesus, desceu
dos Céus após sua Ascenção para presenteá-lo devido à defesa que o santo fez da virgindade
mariana. No cânone 12, estipula ainda que, para garantir a proteção da santa, diariamente se
reze a oração Salve Rainha em todas as igrejas, após as completas.
Nas matérias dogmáticas, dá atenção significativa à eucaristia e à confissão. Repreende
a negligência na administração da eucaristia aos moribundos, o que lhes atrapalha em obter a
Salvação (can. 3), e recomenda que os sacerdotes mesmo, ou pessoas idôneas, amassem o pão
da hóstia (can. 8). Proíbe veementemente a quebra do sigilo confessional (can. 5) e que os
sacerdotes deem a eucaristia para um fiel sem ouvir antes a sua confissão (can. 4). Esta última
proibição é feita sob a alegação de que muitos fiéis, envergonhados dos seus pecados, diziam
que já tinham se confessado com os mendicantes para se esquivar deste sacramento.
Quanto à correção dos costumes, ele está de acordo com as determinações de Latrão IV
e/ou Valladolid. Condena que todos os ordenados deixem de rezar as horas canônicas (can. 1),
que tenham concubinas publicamente (can. 2) e a usura, no geral, citando o concílio de Latrão
III (can. 9). Sobre os judeus, determina que os que quisessem se converter não deveriam perder
os seus bens, porque isto seria um impedimento à conversão (can. 10).
Em resumo, até este ponto vimos que as atas dos três concílios fazem parte de um
mesmo projeto normatizador empreendido pela Igreja Católica liderada pelo papado, que ao
menos no nível da formulação canônica obteve um grau satisfatório de inserção no Reino de
Castela. Mesmo as diferenças pontuais entre elas não configuram contradições a respeito das
práticas pretendidas ou coibidas pelas lideranças eclesiásticas de Roma e de Castela. Por isso,
consideramos que as determinações de Latrão IV, Valladolid e Peñafiel podem ser tomadas em
conjunto como um ponto de cruzamento na comparação entre as representações diabólicas dos
MIL e do LM.
Contudo, a concordância e a repetição do conteúdo dos cânones destes três concílios,
por um período de quase um século (1215-1302), pode indicar que no nível do cumprimento
das normativas se obteve pouco ou nenhum êxito no reino castelhano durante o século XIII.
86
Cabe ressaltar que o texto das atas menciona principalmente os eclesiásticos de baixo nível
hierárquico ou os leigos como os infratores. As autoridades da Igreja Católica e local ditam e
referendam as determinações conciliares, nunca são citadas como executoras das práticas
condenadas e na maioria dos casos só estão passíveis de sanções por causa delas se forem
coniventes ou negligentes no zelo de corrigi-las.
Tabela 8 – Estruturação do enredo das narrativas com representações diabólicas nos MIL e no LM
Hagiografias MIL LM
Nas primeiras estrofes dos poemas, o O narrador dá a localização do texto dentro
narrador pede a atenção do público, do LM e uma sucinta sinopse da estória. Em
apresenta o protagonista e delimita o tempo seguida, o tempo e o espaço da mesma são
e o espaço narrativos. delimitados.
Introdução
O protagonista levava uma vida reta, exceto O protagonista é apresentado, juntamente
por um motivo que, no desenvolvimento, com seus defeitos comportamentais e sua
colocará todo o enredo em movimento. qualidade de devoto de Maria. Ele também é
um eclesiástico.9
Devido à falha inicial do protagonista, o O protagonista sucumbe a alguma instigação
Diabo atua deixando-o ainda mais alijado ou investida diabólica ficando
de Deus. completamente desamparado.
Desenvolvimento Também é possível que o protagonista Comumente, isso significa que ele está
morra e que sua alma fique em disputa entre morto e com sua alma em disputa entre
agentes do bem e do mal, com a vitória agentes do bem e do mal. Estes últimos
pendendo mais para este último lado. parecem mais próximos da vitória.
Maria intervém em defesa dos seus devotos Maria interfere protegendo os seus devotos
(servos), sempre conseguindo livrá-los do (servos), sempre os salvando do Diabo ou de
Diabo ou de seus subordinados. seus subordinados.
Clímax Porém, o que ela consegue não é a Salvação Mas ela consegue apenas uma segunda
imediata do pecador, mas sim uma segunda chance para que eles se penitenciem e se
chance para que ele possa se penitenciar e redimam. Não há Salvação imediata do
se redimir. pecador.
O protagonista passa a ter uma vida ainda Depois que o protagonista está salvo, ele
mais correta a serviço de Maria, geralmente cumpre as exigências marianas, todo o seu
em um mosteiro, obtendo a Salvação comportamento se torna exemplar a serviço
Desfecho
quando chega sua hora de morrer dela. Quando morre, o protagonista
novamente. consegue a Salvação. Não há exaltação da
vida monástica.
Neste sentido, os MIL e o LM estão de acordo com as atas conciliares. Porém, eles
divergem entre si em pequenos detalhes na estruturação dos enredos, gerando significados
diferentes para as representações diabólicas que cada hagiografia apresenta, com o intuito de
atender as suas distintas finalidades. A comparação destes detalhes com os cânones de Latrão,
Valladolid e Peñafiel produz uma série de desdobramentos. Entretanto, para analisa-los antes
precisamos retomar a estruturação das tramas, apresentadas na Tabela 8.
9
Exceto pelo caso do lavrador avarento.
87
Nos MIL, os protagonistas têm estados de vida mais diversificados e possuem um bom
comportamento, porém, devido a alguma falha sua, permitem que o Diabo e seus subordinados
atuem. No LM ocorre o contrário, a maioria deles é do clero e mal comportada, podendo ser
tentada por Satã. Após a atuação de Maria, que é igual nas duas hagiografias, mais uma
divergência ocorre, desta vez nos desfechos dos protagonistas. Nos MIL, viver uma vida reta a
serviço de Maria significa ingressar em um mosteiro beneditino, já que todos os protagonistas
que viveram até muitos anos depois dos milagres terem acontecido, obtiveram a Salvação
fazendo isso. Portanto, nada nesta forma de vida religiosa precisa ser modificado, o que deve
mudar é o comportamento pessoal dos protagonistas que estavam em desacordo com ela. O LM
não exalta o monasticismo, pelo contrário, ao apresentar monges que sucumbem às tentações
dentro dos monastérios, mostra que uma vida de serviço a Maria não necessariamente seria uma
vida cenobítica. O mesmo acontece com o padre Geraldo e o vigário Teófilo. Logo, no LM,
ocorre a definição de algumas práticas positivas e negativas que, respectivamente, já não são
tão claramente associáveis ou incongruentes com o clero secular ou monástico.
Da mesma forma que fizemos nos capítulos anteriores, com a estruturação do enredo
podemos identificar quais foram os pecados dos protagonistas. Porém, com a comparação da
Tabela 9, fica claro que as faltas, em princípio idênticas, acabam condenando práticas diferentes
devido a algumas divergências no estado de vida dos protagonistas dos MIL e do LM.
Para terminarmos esta etapa do nosso estudo comparado ente os MIL e o LM,
precisamos apenas cruzar as práticas que cada um condena com os cânones que destacamos
quando tratamos das intenções de correção dos costumes de Latrão IV, Valladolid e Peñafiel. A
Tabela 10 mostra este cruzamento em relação aos MIL.
88
Já afirmamos que não pensamos que as críticas feitas por Gil a padres ou monges se
configurassem como uma hostilidade, mas que elas seriam apenas admoestações que deixavam
transparecer a concorrência de propostas diferentes para se realizar objetivos comuns. Ao
finalizarmos esta etapa da nossa comparação cruzada esperamos ter demonstrado isto. As sutis
diferenças que apontamos entre os dois textos, permitem enxergar neles diferentes finalidades
que encontram o seu sentido nas ligações institucionais dos seus autores. Contudo, se
comparadas com o referencial externo das determinações canônicas das atas conciliares, as
narrativas com presença diabólica de ambas as hagiografias mostram-se em sintonia com o
projeto normatizador das Igrejas romana e castelhana.
90
Observamos que uma das práticas demonizada nos MIL e no LM não foi mencionada
pelos concílios, isto é, a questão do suicídio. Sobre ela, não encontramos qualquer referência
nos cânones, nem mesmo no can. 1 de Latrão IV, que traz a formulação do Credo da ortodoxia.
Isto se tornou um grande questionamento nosso que pretendemos responder com pesquisas
futuras.
Nos MIL e no LM, as práticas condenadas pelas ligações institucionais distintas dos
autores, almejando algumas finalidades diferentes, não devem as suas sutis incongruências
apenas às diferenças no estado de vida dos protagonistas das narrativas. De fato, como vimos
nos capítulos anteriores, nos contos, o antagonismo que a presença diabólica exerce é
indispensável para o conflito, o desenrolar do enredo e a mensagem dos poemas e textos. Se os
protagonistas e os antagonistas não são exatamente iguais nos MIL e no LM, consequentemente,
os conflitos não são os mesmos e os problemas apresentados nas histórias também não. O caso
que melhor exemplifica isto é o de Geraldo, o romeiro de Santiago. Existe uma diferença muito
grande entre, a história de um leigo que dorme com uma companheira de romaria antes de
iniciar a viagem, e a de um padre que faz o mesmo, só que com a sua concubina. Pois bem,
histórias diferentes significam mensagens diferentes. Já apontamos algumas considerações
sobre este ponto no item anterior deste capítulo e voltaremos a ele mais a frente. Por agora, nos
concentraremos nos antagonistas, isto é, no Diabo e no Judeu.10
A Tabela 12 mostra o cruzamento da caraterísticas do Diabo nos MIL e no LM com o
que é dito sobre ele nas atas conciliares de Latrão IV, Valladolid e Peñafiel. Entre as
hagiografias, a principal diferença que se nota é sobre o papel de Satã nos pecados dos homens.
Outras pequenas dessemelhanças podem ser percebidas em três pontos: a personalidade
diabólica, que nos MIL é mais eloquente; a capacidade de agir no mundo físico, que é maior no
LM, no qual ele mata o monge sacristão; os diferentes títulos dados ao Diabo, pois nos MIL
recebe o título de rei, enquanto no LM é chamado de príncipe.
Até então, Gonzalo de Berceo era o autor que mostrou mais concordâncias com as atas
conciliares, mas quando cruzamos o primeiro ponto que destacamos com as informações dos
cânones, constatamos um desacordo entre estas e as representações diabólicas dos MIL. Quanto
10
Não faremos uma comparação entre os demônios, porque como demonstrado nos capítulos anteriores suas
características estão todas contidas e potencializadas na figura do seu líder Satã.
91
aos demais pontos, sendo eles iguais ou desiguais entre as hagiografias, todos eles vão muito
além do que se fala sobre o Diabo na profissão de fé cristã (o can. 1 de Latrão IV é o que
apresenta o Credo). Como os autores puderam desenvolver tanto as suas representações
diabólicas e se manter concordantes com as atas conciliares a respeito das práticas condenadas?
Recorremos à historiografia sobre Satã em busca de respostas.
11
Todos publicados pela Cornell University Press, seus títulos são: The Devil: Perceptions of Evil from Antiquity
to Primitive Christianity (1977); Satan: The Early Christian Tradition (1981); Lucifer: The Devil in the Middle
Ages (1984); Mephistopheles: The Devil in the Modern World (1986); e The Prince of Darkness: Radical Evil and
the Power of Good in History (1992).
12
Russell apresenta um conjunto de pontos sobre as representações satânicas que ele considera importantes para
se realizar uma história do Diabo satisfatória. Estes pontos são repetidamente abordados em todos os seus livros.
São eles: a queda, os poderes, as funções, a aparência, os traços de personalidade e o papel desempenhado pelo
Diabo. No geral, esses pontos são explorados por ele, traçando uma trajetória de desenvolvimento ou de mudanças
pelas quais passaram ao longo da história, dentro dos recortes dos seus livros, em todo tipo de representação e
suporte. Por exemplo, trata das influências pagãs na caracterização do diabo; da literatura sagrada e apócrifa; dos
comentários teológicos dos grandes pensadores das religiões do Livro (judeus, cristãos e muçulmanos), das
92
demais estudiosos.
Russell parte do que chama de História dos Conceitos. Nessa perspectiva, o
encadeamento do desenvolvimento cronológico de um conceito seria o tema central do labor
historiográfico. Assim, ele não se preocupa em relacionar as mudanças ocorridas nas
representações de Satã com as mudanças históricas, porque elas já estariam embutidas nas
transformações do conceito ao longo do tempo. Bastaria apenas estudar as alterações no
conceito em relação ao seu estado anterior ou posterior para dar conta das transformações
sociais. E o conceito que o autor estuda por meio das representações diabólicas é o Mal. Mesmo
que tente fazer discussões a respeito, o autor parece sempre partir do pressuposto de que o Mal
é um daqueles conceitos que todos sabemos exemplificar, mas ninguém consegue definir.
Como, na perspectiva dele, o Diabo é a personificação do Mal criada pelos homens de forma
mais definida, estudá-lo seria um caminho válido para definir o conceito que lhe interessa nos
seus trabalhos.
No seu livro que trata do período medieval, Lúcifer – O Diabo na Idade Média,13 Russel
considera que o primeiro cânone de Latrão IV seria uma resposta teológica da Igreja endereçada
à heresia cátara (2003, p. 182).14 Esta heresia tinha uma concepção dualista da Criação,
atribuindo tudo que era bom e espiritual ao poder de Deus e tudo que era mau e material ao
Diabo (2003, p. 177-181).
A estas concepções teria se oposto o dominicano e escolástico Tomás de Aquino (1225-
1274). Para este teólogo, Satã tem existência real – ainda que o Mal, que ele personifica, não a
tenha – porque como tudo que existe, ele é criação divina e toda criação divina é boa porque
Deus é perfeito. Seguindo essa linha de raciocínio, a imperfeição ou mal seriam inexistências,
afastamento de Deus. Apesar de estar quase que em uma posição oposta a Deus (quase, porque
se fosse totalmente não existiria), o Diabo não representa uma ameaça. Isso porque, para
assegurar o monoteísmo do cristianismo, a ortodoxia concedeu poderes ao Diabo, mas sempre
deixou claro que Deus era o único e verdadeiro poder do universo (2003, p. 185-196). Ainda, o
Diabo e seus demônios atacariam os humanos para tentar constranger os planos de Salvação
que Deus fez para a humanidade com a Encarnação. Deus permite que o Diabo tente e castigue
os homens, mas ele não poderia causar os pecados, embora os encoraje. Além de submetidas à
anuência divina, todas as ações diabólicas seriam limitadas pelas leis da natureza. Desta forma,
ele não pode fazer nada além destas restrições, mas pode tentar usá-las a seu favor,
15
Lembramos que esta é a única exceção, no caso dos MIL, referente ao Diabo poder instigar os humanos a pecar.
94
questão da animalidade, polimorfia e da omissão sobre uma aparência inerente a Satanás. Para
tanto, achamos pertinente citar o livro Diabo – A máscara sem rosto (1998), de Luther Link,
americano professor do departamento de literatura da Universidade Aoyama Gakuin, em
Tóquio. Este autor estudou as representações diabólicas enfocando as artes plásticas, como a
pintura e a escultura. Para ele, o Diabo é esquivamente definido na tradição cristã quanto à sua
forma e à atribuição dos seus poderes, seja na teologia, na literatura ou nas artes plásticas. Seu
uso com finalidades normalizadoras da moral acontecia justamente por meio da indeterminação
de parâmetros comuns para as suas representações, isto é, da sua polimorfia. Assim, ele
funcionaria como uma espécie de máscara sem rosto, que poderia ser imposta a qualquer pessoa
ou grupo que afrontasse o status quo. Ou seja, Satã era visto como Outro indesejado. Link
demonstra, utilizando-se de exemplos do início ao fim do livro, que as representações do Diabo
e daqueles que eram indesejados eram espelhadas de acordo com os interesses de seus autores.
Para ele, se Satã for uma imagem do Mal, ele é do que a Igreja definiu como sendo o Mal (p.
193-205, passim).
Concordamos com a linha de pensamento de Link e julgamos que ela se aplica ao caso
dos MIL e do LM, ainda que sejam obras literárias. A forma física de Satã e seus possíveis
significados simbólicos nas narrativas estão diretamente relacionados com as finalidades de
Berceo e Juan Gil. Porém, como mostra nossa comparação cruzada entre as narrativas e as atas
conciliares, acrescentamos que nas hagiografias o Diabo não é só o espelho de quem, mas
também daquilo que a Igreja Católica considerava como sendo indesejado.
Todavia, Link faz um estudo histórico da longa duração das representações diabólicas
nas artes plásticas, seu objeto é o por quê da indefinição das reproduções pictóricas da imagem
de Satã, não as concepções teológicas cristãs medievais sobre a variabilidade destas. Para
finalizarmos esta questão, citaremos dois textos.
O primeiro é o livro Satã – Uma Biografia (2008), de Henry Ansgar Kelly, também
professor emérito da Universidade da Califórnia e autor de estudos sobre a História e Literatura
na Idade Média e no Renascimento. Nele, o autor coteja as passagens bíblicas em que o Diabo
aparece com as representações que teve na teologia, literatura ou outras formas de arte.
Satã possuía uma biografia original, que estaria contida em livros atualmente
considerados bíblicos.16 Esta não o colocava como inimigo, mas sim como um subordinado de
Deus. Satã, palavra que significa adversário em hebraico, designa no Antigo Testamento apenas
16
Para chegar a estas conclusões Kelly analisa principalmente os livros do Genesis, Números, I e II Samuel, I
Reis, Crônicas, Jó e Zacarias todos do Antigo Testamento nas versões judaicas e na tradução para o grego
conhecida como Septuaginta.
95
uma entidade submetida a Deus e parte da sua “corte celestial”, que vaga pelo mundo,
desempenhando ora a função de acusador ora a de carrasco da humanidade. Contudo, devido
ao Deus que aparece no Antigo Testamento ser na maioria das vezes o responsável pela punição
dos homens, Satã ainda não era considerado a personificação do Mal, como Russell propõe. Ele
era apenas alguém que cumpria seu trabalho, mesmo que tal ocupação não fosse vista com bons
olhos (p. 203-207). Com os primeiros séculos do cristianismo, esta primeira versão da biografia
de Satã teria sido substituída por outra composta pela Patrística, sobretudo tendo como base os
escritos de Orígenes de Alexandria e Agostinho de Hipona. A nova biografia de Satã teve como
objetivo conciliar o Satã veterotestamentário, bom funcionário da corte celestial, com o
Adversário neotestamentário de Jesus. É nesta segunda versão que se basearia não só o
pensamento medieval, como também todas as demais representações diabólicas feitas ao longo
dos séculos (p. 227-236). Para Kelly, o Diabo, com seus epítetos e aparência, passando pelos
seus poderes e atribuições dentro da teologia cristã, até seus múltiplos usos como discurso no
seio da sociedade, sempre foi configurado por aqueles que possuíam proeminência na
formulação do pensamento ortodoxo (p. 311-332, passim).
Destacamos que nenhuma explicação é dada no sentido de relacionar as representações
do Diabo com as ligações institucionais dos seus autores e nem de como elas poderiam ser
usadas para atender a seus interesses. O autor está preocupado somente em construir uma
biografia de Satã mais próxima e condizente com o texto bíblico, na esperança de que isso
também retifique nossa perspectiva sobre a natureza humana, retirando a culpa pelo mal de uma
figura externa e colocando-a como responsabilidade da própria humanidade (KELLY, 2008, p.
368).
Por isso, recorremos ao segundo texto, o verbete Diabo, do Dicionário Temático do
Ocidente Medieval, no qual são trabalhadas as crenças medievais sobre Satã, tanto as
eclesiásticas quanto as laicas, desde o início do cristianismo até aproximadamente fins do século
XV. O autor deste breve texto de síntese é Jérôme Baschet, historiador medievalista francês,
professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vinculado a Escola dos Annales,
seguindo, sobretudo, as ideias de Jacques Le Goff.
Para Baschet, as crenças em Satã tiveram uma presença intensa na sociedade medieval
e estiveram continuamente ligadas às questões de poder. Um exemplo disso seriam as
concepções da Igreja Católica como um corpo que teria Cristo por cabeça, cuja antítese seria
um corpo formado por todos aqueles que ela considerava como seus adversários encabeçados
por Satã (2006, p. 329). O Diabo seria um contramodelo que deveria sempre ser pensado em
função dos poderes que o controlavam, como as figuras divinas ou santas e as autoridades
96
eclesiásticas ou seculares. Por meio das representações, estes poderes se colocavam como
protetores e se reafirmavam através da vitória contra um mal absoluto, que quanto maior fosse
mais os engrandeciam. Nesse sentido, o Diabo poderia ser pensando como um elemento de
unificação dos cristãos contra inimigos comuns (2006, p. 330). Vale destacar que Russel
também considera que, na Idade Média Central, as características do Diabo comporiam o
arquétipo de um antimodelo, que contrastaria com Cristo, a Virgem e os santos, como uma
cartilha de como não proceder (2003, p. 261).
Estas considerações finais sobre as representações diabólicas remetem-nos ao feiticeiro
Judeu. Ele é o segundo antagonista destacado nas análises das narrativas aparecendo
precisamente no papel de outro indesejado associado ao Diabo, por relatos que, como já vimos,
estavam em concordância com a normatização social desejada pela Igreja, ao menos no caso
dos cristãos. Mas a demonização do Outro foi uma invenção cristã? Ironicamente, a resposta é
não.
Elaine Pagels, Ph.D. pela Universidade de Harvard e professora de religião na
Universidade de Princeton, demonstra em uma série de três artigos intitulada The Social History
of Satan (1991; 1994; 2006), que os judeus teriam sido os precursores da demonização. Segundo
a autora, eles utilizavam este recurso com duas finalidades. Em primeiro lugar, contra os
estrangeiros e crentes de outras religiões, ou seja, contra quem viam como o Outro. E, em
segundo lugar, os diferentes grupos religiosos do judaísmo se atacavam desta forma
mutuamente, uns acusando os outros de não observarem corretamente os preceitos desta
religião.17 Em outro livro seu, intitulado The Origin of Satan (1995), Pagels mostra como os
cristãos se apropriaram desta ideia usando-a contra os judeus e pagãos. Conforme o cristianismo
foi se distanciando das suas origens judaicas nos primeiro séculos depois de Cristo, a
demonização dos judeus pelos cristãos passou das acusações de não observância da verdadeira
fé para a condenação do Outro (p. 179-186).
Demonização é termo escolhido por Peter Stanford para descrever a associação que a
Igreja faz entre a figura do Diabo e seus opositores ou detratores, acusando-os de uma série de
práticas condenáveis. Ele, que é um jornalista britânico, ex-editor do The Catholic Herald e
autor de livros religiosos com temáticas católicas, fala sobre isto no livro O Diabo: Uma
Biografia (2003). Para ele, o processo de demonização, ao qual a Igreja submetia seus detratores
17
Esta segunda situação apresentada pela autora americana possui certo grau de semelhança com as passagens em
que Gil de Zamora critica os padres e os monges no LM. Porém, como já dissemos repetidas vezes, não
consideramos que estas críticas chegassem ao nível da hostilidade, muito menos ao daquela necessária para que
tais críticas se configurassem como demonizações.
97
e opositores, seguiu um padrão repetitivo, desde os primeiros tempos do cristianismo até os dias
atuais, geralmente com a ortodoxia atribuindo-lhes práticas religiosas, quase sempre
inverossímeis, que ultrapassavam os limites da sexualidade, violência e legitimidade aceitas no
seio da sociedade (p. 76-80).
Tabela 13 – O tratamento dado aos judeus nos MIL, no LM e nas atas conciliares
Cânones conciliares MIL LM
Ímpio, malvado,
Mentiroso, falso, traidor e
execrável e odioso ao
cheio de vícios.
Senhor.
Conhecedor de
Conhecedor de feitiçaria.
feitiçaria.
Vassalo do Diabo, que
chamava de rei, e confrade
Vassalo do Diabo, que
Latrão IV: Proíbe a usura dos judeus onerosa aos dos demônios. Guiado por
chama de príncipe.
cristãos. Eles devem se vestir distintivamente, não Satã, fazia o mal com
aparecer em público no domingo e devem ser dedicação.
castigados por escarnir dos cristãos e celebrar neste Mau conselheiro.
Mantinha contato com
dia. Não podem ocupar cargos públicos. Os judeus Empenhava-se em enganar
Teófilo, para lembrar-
convertidos devem ser exortados a abandonar seus a todos provando o que
lhe a quem ele devia a
antigos ritos (can. 67-70). dizia guiado por Satanás.
recuperação e ampliação
Por isso, todos cumpriam o
do seu prestígio.
Valladolid: Judeus não estão isentos dos dízimos dos que ele dizia.
bens cristãos em sua posse. Devem usar roupas Aproveita-se da confusão Aproveita-se da
distintivas (can. 9). de Teófilo. confusão de Teófilo.
Intermediário na
Peñafiel: A usura, no geral. Que os bens dos judeus Intermediário na assinatura assinatura do pacto com
do pacto com o Diabo.
não sejam confiscados deles depois de convertidos o Diabo.
(can. 9 e 10). Antes do caso de
Antes mesmo do caso de Teófilo, submergiu a
Teófilo, ele já havia matado muitos no fosso da
muitas almas. perdição e na perda da
fé.
Alguns outros casos de
Nenhum outro caso de
demonização. O número de
demonização, a maioria
menções a conversões não
é de conversão judaica.
supera o de hostilidades.
Em vista de tudo que estivemos discutindo até aqui sobre o Diabo e sobre demonização,
sobretudo a judaica, apresentamos a Tabela 13. Ela traz o cruzamento entre as representações
judaicas nas narrativas com presença diabólica dos MIL e do LM e as atas conciliares que
estudamos. A Tabela 13 mostra que a demonização judaica que ambas as hagiografias fazem é
extremamente semelhante. Sendo assim, igualmente se distinguem das determinações
conciliares que traz uma visão bem diferente do assunto judaico. Prioritariamente, elas estão
preocupadas com o aspecto econômico da presença judaica entre os cristãos. Depois em mantê-
los segregados pela distinção das suas vestes. Em último lugar, em convertê-los e fazer que a
sua conversão seja eficaz. Somente Latrão IV, vai acusar os judeus de afrontas aos cristãos, mas
sem chegar a demonizá-los. Podemos explicar as acusações de feitiçaria satanista com o padrão
98
de demonização proposto por Stanford. Mas e quanto aos outros elementos da caracterização
dos judeus?
Durante o medievo, os judeus foram vistos pelos cristãos com condescendência,
pragmatismo ou com hostilidade. Potestades clericais e laicas do século XIII, como o Papa
Inocêncio III e o rei de Castela Afonso X, justificavam a tolerância da convivência entre judeus
e cristãos, argumentando que eles teriam prestado um testemunho involuntário, documentado
no Antigo Testamento, da verdade da religião cristã (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.2, p. 40).
Porém, a convivência não deveria se dar em termos igualitários, porque o povo judaico era
responsabilizado pela crucificação de Cristo, além de se recusar em aceitar Jesus como messias.
Assim, eles situavam-se em uma posição irremediavelmente à margem da Cristandade, termo
que na Idade Média mesclava os conceitos de civilização e humanidade, circunscrevendo-os na
religião cristã (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.1, p. 476; TRACHTENBERG, 2001, p. 11-31).
Por isso, a permanência judaica entre os cristãos deveria ser praticada como uma espécie de
cativeiro, no qual eles pagariam por este crime, sendo aviltados continua e perceptivelmente.
Logo, toda relação judaico-cristã deveria demonstrar a enfermidade do povo judaico,
derivando daí muitas das recorrentes proibições clericais e laicas sobre judeus assumirem
cargos públicos, casarem-se com mulheres cristãs ou possuírem escravos desta mesma fé, ou
ainda terem que usar sinais distintivos etc. Desta forma, as autoridades medievais procuravam
regulamentar o contato judaico-cristão, condenando o uso da violência e as perseguições. Para
a Igreja, isto comprometeria o tratamento tolerante, mas aviltante, além de que dificilmente
poderia se acreditar na veracidade das conversões forçadas (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.2,
p. 41-42).
Quanto aos reis (e demais poderes laicos), geralmente, os judeus eram colocados sob
sua proteção e tidos como parte das suas propriedades, por isso qualquer mal causado a eles
seria um dano ao patrimônio real (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.2, p. 42). Mas a proteção
dada aos judeus possuía também interesses econômicos. Eles eram necessários pelas atividades
comerciais, bancárias e usurárias que desenvolviam, as quais beneficiavam seus protetores por
meio dos impostos cobrados sobre elas. A usura era condenada pela Igreja, exceto quando se
emprestava a juros para estrangeiros. Desta forma, ainda que se atribuísse mais uma indignidade
aos judeus, podia-se permitir que eles praticassem a usura com os cristãos, contanto que os
credores não onerassem seus devedores (LE GOFF; SCHMITT, 2006, v.2, p. 42-43). Contudo,
mesmo o cumprimento dessas atividades indignas para os cristãos não costumava ser o bastante
para garantir a boa convivência entre judeus e cristãos e, usualmente, fatores econômicos ou as
99
divergências culturais entre os dois grupos faziam que as próprias autoridades, que haviam
oferecido segurança e sustento aos judeus, expulsassem-os e confiscassem seus bens.
Assim sendo, durante o medievo, o povo judaico era religiosamente segregado, mas
necessário economicamente, por isso o consideramos como marginalizado pela cristandade. 18
A necessidade de um grupo marginalizado que desempenhasse as atividades comerciais e
monetárias diminuiu ao longo da Idade Média Central até desaparecer no início da
Modernidade. Nos séculos XII e XIII, a revitalização comercial e o aumento da urbanização no
Ocidente Medieval, fez com que o comércio voltasse a ser um setor fundamental da economia,
obrigando a Igreja a repensar suas normas de condenação dessas atividades, deixando de
considerá-las um pecado tão grave. Desta forma, os judeus passam a ser não só um povo
apartado da cristandade, mas também um forte concorrente econômico de alguns dos setores
sociais urbanos (LE GOFF, 1981, passim).
Na Península Ibérica, o antijudaísmo vinha desde o período visigótico19 e podemos dizer
que as representações judaicas dos MIL encontram seu significado nele. Havia uma grande
presença de comunidades judaicas na península Ibérica, como mostra o Mapa 3, em anexo,
sendo bem provável que o contato judaico-cristão, na maior parte do tempo, fosse pacífico ao
invés de violento, seguindo as premissas de tolerância de Agostinho de Hipona, em prol da
conversão (FELDMAN, 2011, p. 458; LE GOFF; SCHMITT, v. 2, p. 40-41). No período
visigodo, isto geraria uma proximidade entre estes povos, que seria preocupante para reis e
eclesiásticos, por causa do proselitismo judaico e das tentativas fracassadas de conversão
(SILVA, 2009, p.260). Isto explicaria a recorrência de legislações para controlar as relações
entre judeus e cristãos, e até as conversões coletivas forçadas (FELDMAN, 2007, p. 17-24),
que apenas ajudaram a piorar a suspeição da qual os judeus eram alvos (STOCKING, 2000, p.
118-144). Porém, em geral, os judeus resistiram ao aculturamento cristão, apesar dos séculos
de convívio e das numerosas legislações sobre o contato judaico-cristão que tentaram subjuga-
los política, cultural e economicamente. Somado a isto, os moçárabes tradicionalmente
acusavam o povo judaico de colaboracionismo com a ocupação muçulmana da Península
Ibérica, tomando-os como uma espécie de inimigo infiltrado (CANTERA MONTENEGRO,
18
Segundo Geremek, quem está à margem da sociedade não poderia estar de fora dela. Para ele seriam quatro os
eixos de marginalidade: o econômico; o social (que engloba o político); o espacial ou ecológico; e o cultural (que
circunscreve o religioso). Como vimos até aqui, judeus seriam excluídos pelos cristãos nos âmbitos cultural e
social, mas eles seriam necessários à sociedade cristã na esfera econômica. Portanto, a situação do povo judaico
no medievo cabe dentro do nosso conceito de marginalizado (1987, p.185-190).
19
Sobre as relações dos visigodos com os judeus ver González-Salinero (1999, p. 137) e Stocking (2000, p. 118-
144).
100
1998, p. 14-15). Isto é exatamente o que o Judeu vassalo de Satanás é nos MIL e no LM, ele
vive na cidade onde Teófilo mora e, de lá, ele opera o mal cumprindo as ordens do seu suserano.
Entre os séculos XI e XIV, em Castela, os judeus ainda eram tolerados pela Igreja e
foram financeiramente necessários à Coroa, contando com algum nível de proteção por parte
dela (FELDMAN, 2011, p. 459). De fato, pode-se considerar que os judeus eram bem próximos
da realeza, sobretudo durante o reinado de Afonso X, quando participaram da “Escola de
Tradutores de Toledo”. Contudo, no mesmo período, gradualmente, o povo judaico vai sendo
mais marginalizado até o ponto da demonização. A revitalização urbana e os avanços militares
contra os mouros teriam reacendido divergências culturais e econômicas entre cristãos e judeus,
culminando em uma série de críticas a proteção real que os últimos recebiam (FELDMAN,
2011, p. 464, passim). Por isso, ao fim do segundo capítulo, consideramos que a finalidade de
Berceo, ao representar um Diabo como rei que tem um vassalo judaico, fosse fazer uma crítica
ao contato próximo que a realeza castelhana mantinha com os judeus.
Consideramos que a demonização judaica do LM possa ser compreendida por meio da
relação que judeus e franciscanos possuíam com as cidades centromedievais. Na Península
Ibérica, conforme as cidades foram se tornando mais importantes, a concentração das
comunidades judias peninsulares cresceu proporcionalmente (LE GOFF; SCHMITT, v2, p. 47).
É provável que a demonização do Judeu no LM fosse uma temática pastoral que visasse à
comunicação com alguns grupos sociais urbanos da Castela medieval que já viam concorrentes
econômicos entre o povo judaico.
Contudo, os frades menores também davam atenção especial à conversão dos judeus na
sua missão de pregação. Acreditamos que, em Castela, eles também tenham se empenhando
nisso porque, como se pode observar comparando os Mapas 3 e 4, eles coabitavam as mesmas
cidades, incluindo Zamora. Além disso, no terceiro capítulo, vimos que no conjunto das
representações judaicas do LM, só uma narrativa demonizava os judeus, enquanto outras três
apresentavam-os como convertidos em seus desfechos. No pensamento franciscano, converter-
se significa “afastar-se do pecado” por meio da penitência (CAROLI, 1993, p. 101), que é
justamente a situação contada no milagre de Teófilo do LM. De fato, este não é o caso do
feiticeiro e nem de outros judeus em algumas das demais narrativas do LM, mas as
representações judaicas paradoxais do LM acompanham as contradições da situação do povo
judaico na Península Ibérica medieval. Todavia, apesar da demonização do Judeu do milagre
de Teófilo, elas deixam transparecer uma significativa abertura a possibilidade de conversão
decorrente de seu caráter franciscano.
101
Como MIL e LM são textos mariológicos, como já foi demonstrado na análise das
narrativas, a santa que sempre derrota o Diabo é Maria. No caso dos MIL, o papel de reforçador
do culto mariano que o antagonismo diabólico desempenha fica ainda mais destacado pelas
longas exortações que o narrador faz nos desfechos dos poemas. No LM, isto também se dá,
mas de outras maneiras: por meio das breves glorificações que o narrador faz à Virgem, a Jesus
e à Trindade; dos muitos epítetos que a santa recebe no conto de Teófilo; ou ainda pelos créditos
que Maria recebe sozinha pela Salvação do romeiro Geraldo.
Gostaríamos de frisar que em ambas as hagiografias o culto mariano possui dos tipos de
praticantes. Os leigos, que são geralmente chamados de devotos e ficam sob a proteção de
Maria, e os eclesiásticos, que a santa considera como vassalos que estão a serviço dela. Os
textos mariológicos que analisamos somente apresentam manifestações gestuais e rituais da
devoção mariana. Em geral, eles são iguais nos MIL e no LM e, como recomenda Peñafiel,
repetidos cotidianamente pelos protagonistas, como mostra a Tabela 14. Nos MIL e no LM,
estas manifestações devocionais fazem Maria exercer sua autoridade real, derivada da
103
Os elementos centrais da fé
Latrão IV: Credo (can. 1). Combate às heresias (can. 2 e 3).
ortodoxa.
Latrão IV: determinam a obrigatoriedade da comunhão anual,
quando o fiel deve se confessar e penitenciar para redimir os seus
pecados, e que o sigilo confessional nunca deve ser quebrado (can.
A necessidade indispensável 21).
do dogma da confissão e da Valladolid: os padres deveriam admoestar os leigos a se confessarem
penitência como formas de e comungarem uma vez por ano para escaparem do Inferno (can. 7).
remissão dos pecados. Peñafiel: Proíbe veementemente a quebra do sigilo confessional (can.
5) e que os sacerdotes deem a eucaristia para um fiel sem lhe tomar
antes a confissão, mesmo que eles aleguem ter se confessado com os
frades (can. 4).
Em todos os concílios as autoridades nunca aparecem como infratoras.
A obediência à hierarquia da
São diversas as menções a subordinação das demais Igrejas à Romana
Igreja.
em todos os concílios.
Latrão IV: os eclesiásticos não devem usar roupas inadequadas e/ou
A abnegação e uma vida luxuosas (can. 16) e não podem acumular dos benefícios eclesiásticos
cristã como uma vida de (can. 29).
serviço ao próximo. Valladolid: os eclesiásticos não devem viajar portando armas ou com
luxo (can. 5).
Os concílios valorizam a idoneidade. Ela é citada repetidamente como
A honestidade e a fidelidade
uma característica fundamental na nomeação para cargos, função de
nas relações sociais
juiz, de pregador etc.
horizontais e verticais.
Latrão IV: 10, 30-31. Valladolid: can. 2. Peñafiel: can. 8.
No caso do LM, como mostra a Tabela 16, também ocorre uma semelhança quase que
total entre as atas conciliares e as práticas incentivadas nas narrativas. Contudo, com a proibição
de se criarem novas ordens religiosas do can. 13 de Latrão IV, os interessados em seguir uma
vida religiosa deveriam escolher entre aquelas já existentes. Tal situação se coloca como mais
um motivo para justificar o didatismo do LM como difusor do franciscanismo em Zamora.
Ademais, não há nada entre os preceitos franciscanos que contradiga as aspirações de reforma
dos costumes pretendida pelas Igrejas romana e castelhana. Pelo contrário, em muitos dos casos,
como o da abnegação e o da obediência à hierarquia eclesiástica, o pensamento minorítico está
em perfeita sintonia com as atas conciliares. No LM, Maria também promove os sacramentos
da confissão e da penitência nas histórias do monge bêbado e de Teófilo. Vale sublinhar que,
no milagre do vigário, ela chega a ensinar o passo-a-passo de como se confessar para obter o
perdão pela apostasia.
Neste ponto, já consideramos que, nos MIL e no LM, Maria representa os interesses
normatizadores da Igreja contidos nas atas conciliares. Nas narrativas que ela protege os
humanos do antagonismo diabólico, ela determina procedimentos iguais aos que as Igrejas de
Roma e de Castela prescreviam para a remissão dos pecados e a obtenção da Salvação. Contudo,
não consideramos que ela seja uma personificação da Igreja Católica, uma afirmação que
necessitaria de muitos desdobramentos para ser justificada. Preferimos dizer algo que não é
menos significativo, mas, no entanto, é muito mais simples: quando contrastada com o Diabo e
seus seguidores, Maria tem seu culto reforçado por estes e atua como porta-voz da normatização
social pretendida pela Igreja Católica. Como argumento em defesa desta nossa opção,
apresentamos a Tabela 17, na qual cruzamos a confissão de fé que a santa exige de Teófilo nas
duas hagiografias com o Credo de Latrão IV. Ela demonstra que ambas as versões estão
exatamente de acordo com a ata conciliar.
Com estas considerações sobre o papel de Maria como protetora contra o Diabo e seus
subordinados, encerramos a nossa comparação entre as representações diabólicas dos MIL e do
LM, segundo a metodologia da História Cruzada. Em seguida, passaremos à nossa Conclusão
final, retomando as conclusões parciais de cada um dos capítulos, articulando-as para,
primeiramente, averiguar se nossas hipóteses se comprovam e, finalmente, para responder a
questão da nossa problemática de pesquisa.
Conclusão
1
Lembramos que o registro das rotas de romaria para Santiago podem ser vistas no Mapa 5, em anexo.
108
populacional, surgiram ou passaram a se destacar, nas cidades, agentes sociais que foram
fundamentais para atender às demandas das novas relações sociais que começaram a se
desenvolver. Entre eles podem ser citados as proto-corporações de ofícios, os chamados
burgueses (mercadores e/ou usurários), os universitários e os mendicantes.
Um dos impactos deste incremento demográfico teria sido a intensificação da circulação
de ideias em geral, documentada a partir do século XI, proporcionada pelo aumento dos
deslocamentos humanos (ocupação de mais terras para o plantio, viagens comerciais,
peregrinações, etc...). Por meio desta, as manifestações culturais e religiosas, tanto clericais
quanto laicas, começaram a se expandir, assumindo as formas mais variadas, como, heresias,
milenarismos ou iniciativas de vida religiosa nos moldes neotestamentários por parte do laicato
(BOLTON, 1983); o surgimento das primeiras universidades (VERGER, 1990); e festas ou
outras manifestações culturais – como o Carnaval e o “renascimento folclórico”, encabeçado
pela nobreza leiga (BÜHLER, 2006).
A ata de Latrão IV mostra que a Igreja Católica tentou lidar com as manifestações
culturais e religiosas citadas de maneiras diferenciadas. As heresias e os milenarismos foram
imediatamente condenados. O Carnaval e os diversos elementos do “renascimento folclórico”
foram enquadrados ou tolerados por um tempo. As ordens mendicantes (franciscanos,
dominicanos etc...) e as universidades foram postas a serviço da própria Igreja Católica.
As concordâncias que identificamos entre as determinações de Latrão IV, Valladolid e
Peñafiel mostraram que a Igreja de Castela também se preocupava com a regulação das relações
sociais. Entretanto, para a Igreja Católica e local a principal resposta que ela podia dar às
demandas dos novos agentes sociais e ideias do período, passava por uma reforma institucional
de cunho disciplinar da própria Igreja, como vimos pela ênfase que este ponto recebeu nos três
concílios.
Neste sentido, porém, observamos que a repetição de certas determinações, por um
espaço aproximado de um século de intervalo entre a celebração das três reuniões, poderia
significar que o comportamento desejado pelas Igrejas Católica e local não estava sendo
seguido. Em vista das finalidades didáticas de Berceo e Juan Gil, da dinâmica das
representações da sociedade do Além e deste mundo nas narrativas e da concordância entre a
aprovação ou condenação das práticas nas hagiografias e nas atas conciliares, concluímos que
aquelas tinham um caráter complementar a estas no tocante ao projeto normatizador da Igreja
liderado pelo papado. As narrativas hagiográficas tentavam conscientizar as pessoas com suas
mensagens edificantes, prometendo recompensas em outra vida para os cumpridores das
111
normas conciliares. Enquanto que os cânones apenas informavam as punições imediatas para
aqueles que infringissem o que neles estava estipulado. O cristão modelar seria o mesmo nas
hagiografias e nos concílios, fosse ele exemplar por temer penas e sanções terrenas ou que o
Diabo e seus seguidores impedissem a sua Salvação.
Frisamos que se mantendo dentro da ortodoxia, tanto os MIL quanto o LM se utilizavam
da concordância que tinham com as normativas conciliares como um meio de reforçar seu
próprio prestígio e/ou criticar seus adversários internos, aproximando a si mesmos ou
afastando-os do projeto normatizador que as Igrejas de Roma e de Castela tentaram
implementar. Isto foi viável porque, a despeito das suas similaridades e do respeito à teologia
ortodoxa, as representações diabólicas dos MIL e do LM possuem pequenos detalhes
divergentes entre si. E estes, como vimos, são resultantes dos lugares sociais dos autores e da
redação dos documentos, bem como dos interesses imediatos daí derivados. Tais detalhes
alteravam os sentidos do que foi representado, proporcionando oportunidades de apologias ou
de críticas veladas, explicáveis porque as vinculações eclesiásticas e sociais dos autores eram
concorrentes em muitos aspectos.
A moral do clero – e também sua faceta mais rígida, a moral monástica – um dos pontos
centrais da narrativa, estava desacreditada pela sociedade em geral no século XIII, devido à
ostentação da riqueza dos mosteiros e igrejas e a exemplos de má conduta. Em vista disto, as
funções dos sacerdotes, como pregadores que levavam os ensinamentos cristãos às pessoas, e
dos monges, como “médicos das almas”, responsáveis pelas orações que deveriam salvar a
todos os membros da sociedade, ficavam enfraquecidas. Isto abriu espaço para tentativas
alternativas de salvação como a religiosidade franciscana, que desde a sua fundação se baseava
em grande parte na pregação e, posteriormente, passou a exercer a cura das almas (administrar
os sacramentos da confissão e da penitência).
Contudo, salientamos que apesar das críticas, não seria correto afirmar que existia um
clima de hostilidade generalizada entre mendicantes e as demais ordens canônicas. A OFM não
teria conseguido se expandir sem a anuência e o auxílio dos bispos, bem como dos governantes
laicos. Devido a uma série de normativas, administrativas ou religiosas, papais ou da própria
ordem, eles só podiam se estabelecer em algum lugar com o consentimento destas autoridades
(MERLO, 2005, passim).
Assim, ao fim desta dissertação, chegamos à conclusão final de que os sentidos e
finalidades das representações diabólicas nos MIL e no LM ligavam-se, respectivamente, à
moral do monasticismo beneditino e do franciscanismo, visando atingir interesses
propagandísticos destas formas de religiosidade e à correção dos costumes, sobretudo entre os
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los liberados de las fauces de la muerte.
El primer milagro habla de cierto monje librado del peligro de una y otra muerte.
Hubo un monje en cierto cenobio que desempeñaba el oficio de sacristán. Era muy mentiroso y por
inspiración diabólica algunas veces se abrazaba en los ardores de la lujuria; sin embargo, amaba enormemente a
la almiflua Madre de Cristo, y cuando pasaba ante su santo altar siempre la saludaba con reverencia diciendo:
‘Dios te salve, María, llena eres de gracia, el Señor es contigo’. Había cerca del cenobio un río que el susodicho
fraile atravesaba cuando se apresuraba a satisfacer su concupiscencia. Una noche en que quería ir a su pecado
acostumbrado, saludó, como acostumbraba, delante del altar, a la almiflua Madre de Jesús, y después abrió las
puertas de la iglesia y marchó hacia el río antes indicado. Mientras pretendía atravesarlo, fue empujado por el
diablo, cayó en él y, nada más caer allí, pereció. En seguida una multitud de demonios se apoderó de su alma,
deseando llevarla al infierno. Pero también, por la piedad de Dios, los ángeles se acercaron a ver si podían llevarle
algún consuelo. Cuando llegaron, los demonios hablaron con estas duras palabras: “¿A qué habéis venido? No
tenéis parte en esta alma, pues nos ha sido concedida por derecho a causa de las malas obras que ha realizado’.
Mientras los ángeles no tenían ninguna buena obra que oponer a estas palabras, de repente he aquí que llegó la
Santa Madre de Dios y con noble autoridad dijo a los demonios: ‘¿Por qué, espíritus perversos, os apoderasteis de
esta alma?’ Le respondieron: ‘Porque encontramos que había pasado su vida en malas obras’. Pero ella dijo: ‘Es
falso lo que decís. Pues sé que cuando se dirigía a cualquier parte, primero me saludaba, y al volver, actuaba de la
misma manera. Y si sostenéis que os hacemos fuerza, sometámoslo al juicio Del supremo Rey’. Y como disputaran
entre ellos, agradó al Altísimo Señor, por los méritos de su Santísima Madre, que el alma del fraile regresara al
cuerpo hasta que hiciera penitencia por sus faltas.
Entretanto, llegó la hora en la que se convoca a los frailes a cantar maitines. Y al producirse un retraso en
dar la señal, algunos de los frailes, levantándose, buscaron al susodicho sacristán. Al no encontrarlo, se dirigieron
hasta el río y lo encontraron después sumergido en el agua. En tanto sacaban su cuerpo del agua, se extrañaban
pensando por qué circunstancia le habría sucedido aquello. Y cuando hablaban entre sí dando múltiples opiniones,
he aquí que el sacristán de un modo admirable, surgió de la muerte se puso de pie vivo entre ellos y contó a los
frailes lo que le había sucedido, y de qué modo había escapado con el socorro de la Madre de Dios. Después de
esto no sólo abandonó aquel vicio con el que solía deleitarse, sino que sirvió fervorosamente a Dios y su santa
Madre María; tras terminar su vida con buenas acciones entrego su alma también en paz, bajo el patrocinio de
Jesucristo, hortanar de vida, al que corresponde el honor y la gloria por los siglos infinitos. Amén.
El milagro de María, Madre nutricia del Altísimo Rey Jesús, cuarto de los que tratan sobre los liberados
de las fauces de la muerte, habla de uno que se había cortado los genitales y la garganta.
Gerardo, cuando todavía estaba con hábito secular, deseó dirigirse a la catedral de Santiago. Y tras
preparar lo necesario para el viaje, al amanecer del día en que debía emprender el camino con sus compañeros,
durmió con su concubina, vencido por el placer de la carne. Y cuando un poco tiempo después iba de camino con
sus compañeros, el diablo, antiguo enemigo que deseaba enganarlo, y que algunas veces se transfigura en ángel de
luz, se mostró a él bajo la apariencia del bienaventurado apóstol Santiago y le dijo: ‘Has de saber que ya no puedes
conseguir la salvación a cambio de las malas acciones que has hecho, a no ser que hagas lo que voy a decirte.
Primero córtate los genitales y después suicídate, y a cambio de esto obtendrás de Dios el premio eterno’. Y
Gerardo, pensando que verdaderamente era Santiago quien le mandaba tales cosas, cogió una espada, se cortó los
genitales y por último se hirió a si mismo pasando la espada por su garganta. Sus compañeros, cuando oyeron que
estaba a punto de morir y lo vieron ensangrentado y llevado violentamente al último suspiro, lo abandonaron Y
huyeron con rapidez, por miedo de que se dijera que lo habían matado por ambicionar su dinero o por alguna otra
circunstancia.
Después que habían huido de aquel difunto, el antiguo enemigo, que lo había engañado, se apoderó de su
alma en compañía de sus servidores, muy gozoso de haber tomado tal presa. Cuando los mensajeros de Dios
atravesaban la iglesia de San Pedro de mala manera, vino a ellos Santiago Y dijo a la cohorte demoníaca: ¿Por qué
cogisteis el alma de mi peregrino?’ Los diablos citaban cuanto de malo podían y que además se había suicidado.
Pero Santiago les contestó: ‘Sabéis ciertamente que no vais gozar de su muerte. Pues lo engañasteis bajo mi
apariencia, e hizo esto porque creía ingenuamente que me estaba obedeciendo. Y si os oponéis a esto, vayamos al
juicio de la almiflua Madre de Cristo’.
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Y cuando llegaron por este motivo ante la Santa Madre de Dios e inquieron lo que le parecía bien de este
asunto, la santa Virgen, llena de piedad, juzgó que el alma debía volver al cuerpo para que hiciera penitencia y
pudiera expiar los males que había hecho. Y así, por los méritos de la santa Virgen María y del apóstol Santiago,
el alma volvió al cuerpo. Y el hombre, resucitado, se encontró sano y tan solo había quedado como vestigio la
cicatriz donde había sido seccionada la garganta. Pero no fueron restituidos los miembros viriles, salvo un pequeño
orificio por el que orinaba por exigencia natural. Finalmente, el hombre se hizo monje y vivió en el monasterio
cluniciacense mucho tiempo, sirviendo a la nutricia Madre, especial defensora de los miserables.
El quinto milagro de la Virgen María, Madre nutricia del Altísimo Rey Jesús, trata de un seglar que por
la devoción que tenía a la expresión Ave María fue arrebatado a las fauces del infierno.
Había un seglar dedicado al trabajo del campo y ocupado en los otros afanes mundanos. Éste mientras
atendía a muchas acciones depravadas y mientras araba su tierra, robaba cuanto podía de la tierra de sus vecinos,
pues traspasando sus lindes unía la tierra de otros a sus yugadas. Sin embargo, a menudo tenía en la mente a la
Santa Madre de Dios y muchas veces, como hemos dicho más arriba de otros, la saludaba devotamente de la
manera que sabía. Cuando este labrador murió, acudieron los demonios confiando en apoderarse de su alma.
También se presentaron los ángeles. Cuando éstos mostraban a favor de él unas pocas obras buenas, los demonios
empezaron a mostrar en su contra muchas malas. Y cuando pensaban, llenos de gozo por esto, que habían vencido,
uno de los ángeles alegó que solía saludar a Santa María con devoción. Al oír esto los espíritus inmundos, en
seguida dejaron la citada alma del hombre, y se retiraron con la aprobación del almifluo Rey Cristo a través de su
Madre, manantial de vida, Reina de los cielos y medicina de todos los miserables que tienen fe. A quien
corresponde el honor y la gloria por los infinitos siglos de los siglos. Amén.
El milagro de María, Madre nutricia del Altísimo Rey Jesús, segundo del cuarto capítulo, trata de un
monje liberado del diablo.
En un convento vivió hace tiempo un monje al que Nuestra Señora se dignó en gran medida mostrar que
era su servidor por excelencia. Ocurrió en una ocasión que, por instigación del diablo, el monje había bebido tanto
en la despensa que se creía estaba casi por completo sin sentido. Al anochecer, cuando salió de la despensa
borracho y se dirigió a la iglesia por el claustro, se le apareció el diablo en forma de un toro de enorme tamaño que
corría y quería embestirlo con sus cuernos. Entonces he aquí que vio de repente que, ante él, se presentó de pie
una joven, hermosa de cara y que lucía sobre los hombros su cabellera, y tenía en la mano derecha una vara, e
increpando al diablo por qué hacía tales cosas a su servidor, le mandó que se apartara rápidamente y no intentara
hacer1e algún mal mayor. Tras ser dichas estas palabras, desapareció la amenaza del demonio y la visión de la
hermosísima Virgen. Luego, al continuar e1 camino tomado y acercarse a la iglesia, el demonio saltó contra él,
como un perro furioso y demasiado terrible. Pero la joven citada, como antes se le había aparecido, se hizo presente
y rechazando al demonio lejos de él, lo hizo ir libre. Y así también se apartó la visión del diablo y la de la
hermosísima joven. Finalmente, más seguro por la expulsión del demonio y el consuelo de la Virgen, entra en la
iglesia a la que se dirigía. Tras entrar, se presenta de nuevo, más terrible que antes, el enemigo de género humano,
como un león desmesurado, que le rugía y atacaba como si fuera a devorarlo en ese momento. Pero la joven, que
lo había librado en la primera y la segunda ocasión, acudió antes que le hiciera algún mal; y con la vara, que llevaba
en la mano, azotó al diablo diciendo: ‘Ya que no has querido obedecerme, mereces recibir esto por ahora; pero en
el caso de que te atrevas aún más a volver junto a éste, soportarás castigos mayores aquí y en la eternidad’. Y así
el diablo que cambia de forma, vencido por tres veces y afectado además por los latigazos, se disipó al momento
como el humo y no compareció más allí. Después la joven tomó al monje de la mano.
Inmediatamente el monje se restableció y recuperó la lucidez como si no hubiera bebido nada; la joven,
llevándolo de la mano, avanzó paso a paso con él y lo llevó hasta el lecho por una escalera. Una vez allí los dos,
la joven abrió la cama, acostó al monje, reclinó la cabeza de éste sobre la almohada, le hizo la señal de la cruz en
la frente y dijo: ‘Mañana por la mañana te ordeno que busques a aquel, que suele ser llamado por tal nombre,
conocido y compañero tuyo, y amigo mío por su servicio, y le haces una confesión sin reservas; y ten cuidado en
no tardar en cumplir lo que te mande’. Entonces el monje, ya muy recuperado, respondió muy humildemente de
este modo a su, por así llamarla, nodriza. ‘Oh Virgen dulcísima, deseo servirte de todo corazón. Pero te ruego, si
te agrada, que a mí, tu siervo, antes de que te vayas, me indiques quién eres tú que me has concedido tantos
beneficios’. Y ella respondió: ‘Se me llama María, Madre de Dios; por esto había podido ayudar a sus siervos’. El
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monje íntimamente asombrado, con gran alegría de su corazón, tras oír estas palabras de labios de tal ternura,
completamente inflamado en fervor de la dulzura de la gloriosa Madre del Señor, eleva sus manos al cielo con el
entusiasmo concitado por la fe y tiernamente y con alegría le besa los pies e intenta adorarla y abrazarla como a
su Salvadora y Madre de su Señor. Pero la casta Madre del Señor, por supuesto Madre de misericordia y piedad,
esperanza de los humildes y consuelo de los miserables, puesto que ya le había concedido un gran beneficio,
mientras el monje creía que la agarraba, vuela de repente hacia el cielo y más hermosa que una rosa y más brillante
que las luminarias del cielo, se retira a sus palacios. El monje que había visto estas cosas, e incluso las había oído,
dio innumerables gracias a Dios y a su Madre nutricia por tan grandes beneficios recibidos y, a continuación,
empezó a amarla fervorosamente de todos los modos y a servirla más devotamente, con la ayuda del almifluo Hijo
de la nutricia Madre, el cual, Dios, vive y reina con el Padre y el Espíritu Santo por los siglos infinitos.
El milagro nº 14 de María, Madre nutricia del Altísimo Rey Jesús, contenido en el quinto capítulo, trata
de la conversión de Teófilo.
Hubo en una ciudad de Cilicia cierto vicario de la santa Iglesia de Dios, de nombre Teófilo, notable por
sus costumbres y su trato, que dirigía excelentemente la grey de la Iglesia de Cristo con completa moderación; de
tal manera que su obispo vivía gozosamente libre de toda preocupación de la iglesia y del pueblo entero gracias a
él. Y, en efecto, desde el más noble al menos importante, todos lo amaban, pues se ocupaba complacientemente de
los huérfanos, las viudas y los pobres. Sucedió, pues, que el obispo de aquella ciudad, llamado por Dios, murió; e
inmediatamente todo el clero y el pueblo apreciando de hecho al vicario y conociendo su diligencia, decidieron de
común acuerdo elevarlo a obispo. Y tras tomar la decisión dirigieron una carta al metropolitano. Recibida esta y
averiguadas las virtudes del vicario, el metropolitano aprobó con buen ánimo la propuesta y ordeno que el citado
vicario fuera traído a su presencia para promoverlo al episcopado. Éste, cuando recibió las cartas y encargos del
metropolitano, al principio aplazó la ida rogando a todos que no le obligaran a ser obispo, diciendo que para él era
suficiente continuar como vicario y manifestando que era indigno de un cargo de tan gran honor. Pero no estando
de acuerdo el pueblo, fue llevado al obispo metropolitano; recibido por éste con alegría, Teófilo se postró en tierra
y abrazado a sus pies le suplicaba que no consumara en él nada de esto, pues conocía que, por sus pecados, era
indigno de un puesto tan importante. Y como estuviese agarrado a los pies del obispo durante un largo rato, éste
aceptó un plazo de tres días para meditar el asunto. Después del tercer día, convocándolo a su presencia, el obispo
comenzó a advertirle que prestara su asentimiento a la voluntad del pueblo, invocando que era digno de este cargo.
Él no obstante, proclamaba que era indigno por completo del puesto de tan importante sede. Viendo, pues, el
obispo tanta insistencia en su renuncia, pues estaba claro que no queda aceptar el cargo, lo despidió y promovió a
otro al puesto de obispo en lugar de aquel.
Un tiempo más tarde, después de la ordenación del nuevo obispo, algunos de entre el clero, que habían
vuelto a la ciudad, instigaron al obispo a que depusiera a Teófilo y nombrara vicario de la iglesia a otro. Hecho
esto, ocurrió que Teófilo, que había renunciado a un cargo superior, pasó a ocuparse solamente del cuidado de su
casa. Entonces, el taimado y envidioso enemigo del género humano, que había contemplado a éste varón vivir
modestamente y dedicarse a las buenas obras, empezó a tentar con pensamientos insensatos el corazón de Teófilo,
introduciendo en él el deseo del vicariato y la envidia de la ambición transformó su manera de pensar de modo que
codiciara más que la divina la gloria humana, y apeteciera más la estima transitoria que la celestial hasta tal punto
que pidiera ayuda a los hechizos.
Había, también, en aquella ciudad un judío impío y malvado; profesional del arte diabólica, que ya había
sumergido a muchos en la pérdida de la fe y en el foso de la perdición; a casa de éste se acercó por la noche Teófilo,
inflamado por una gloria vana, y quemado por un enorme deseo de ambición, y tras golpear la puerta le suplicaba.
Viéndolo tan abatido de mente, aquel hebreo odioso al Señor lo introdujo en casa y le dijo: ‘¿Por qué razón has
venido a mi casa?’. Entonces él, arrojándose a sus pies, le decía: ‘Te lo pido, ayúdame, mi obispo me ha conducido
al oprobio y ha obrado una y otra vez contra mí’. Aquel execrable judío le respondió: ‘En la próxima noche, a esta
hora, ven a mi casa y te conduciré hasta mi patrón que te ayudará en lo que quieras’. Teófilo al oír estas palabras
quedó muy agradecido y volvió a casa del judío a la noche siguiente. El impío hebreo lo condujo a la plaza de la
ciudad y le dijo: ‘Veas la que veas y oigas la que oigas no te asustes y en ningún caso hagas la señal de la Cruz’.
De repente, una vez que lo había prometido solemnemente mostró a unos vestidos con clámides blancas y
portadores de multitud de candelabros que aclamaban a un príncipe sentado en el centro. Eran el diablo y sus
ministros. Aquel siniestro hebreo, tomando a Teófilo de la mano, lo condujo hacia aquella vergonzosa reunión, y
el diablo le dijo: ‘¿Para qué nos has traído a este hombre?’ respondió el judío: ‘Oh mi señor, lo traje aquí porque
ha sido perjudicado por su obispo y solicita vuestra ayuda’. El diablo continuó: ‘¿Qué ayuda daré a un hombre que
sirve a su señor? No obstante, si desea ser mi criado y ser contado entre nuestros soldados, yo le ayudaré de modo
que pueda conseguir más que antes y mandar a todos, incluso a su obispo’. El judío, dándose la vuelta dijo al
desgraciado Teófilo: ‘¿Has oído lo que te ha dicho?’. Respondió Teófilo: ‘Lo he oído y haré lo que me diga con
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tal que me socorra’. Y empezó a besar los pies del diablo y a rogarle. Entonces el diablo dijo al hebreo: ‘Que
reniegue del Hijo de María y de esta misma, porque me son odiosos; que firme por escrito que renuncia a uno y
otra para siempre, y después, que pida lo que quiera’. Entonces Satanás entró en el vicario y éste respondió:
‘Reniego de Cristo e de su Madre’ y escribiendo por su propia mano la renuncia, tras lacrarla, la selló con su
proprio anillo. Y se retiraron de la perdición con inmoderado contento.
A la mañana siguiente, el obispo, movido según creo por la providencia divina, volvió a llamar con todo
honor a aquel que él mismo había torpemente destituido, y lo nombró vicario mayor, concediéndole en presencia
del clero y del pueblo el cargo de la tesorería de la iglesia y de las propiedades que pertenecían a ella y a todo el
pueblo, y fue de nuevo elevado a un honor doble del que había sido encomendado antes, tanto que el obispo
proclamaba que había pecado porque había echado a persona tan idónea por los informes de otros, y había
promovido al cargo a otro inútil y menos idóneo. Pero en cuanto Teófilo repuesto en la función primera, empezó
a tomar decisiones y elevarse por encima de todos, siendo obedecido y servido por todos tras un poco tiempo con
nerviosismo y temor. El execrable hebreo frecuentemente hablaba a escondidas con el vicario y le decía: ‘¿Has
visto cuan rápidamente encontraste beneficio y remedio de mi parte y de la de mi patrón?’. Y aquel contesto: ‘Lo
sé y doy gracias a vuestro encuentro’. Como se jactara de este modo y permaneciera en su foso de apostasía, el
creador de todas las cosas y redentor nuestro, Dios, que no quiere la muerte del pecador, sino que se convierta y
viva, recordando su anterior comportamiento y cuan fielmente había administrado su iglesia, especialmente
respecto a las viudas, los huérfanos y los pobres, no apartó los ojos de su criatura, sino que le dio un punto de
penitencia y un espíritu de arrepentimiento; y Teófilo, vuelto hacia Dios, empezó a afligirse par la situación en que
se encontraba, se dedicó al ayuno y a las continuas oraciones, puso del ante de los ojos de su mente el temor a la
muerte y el horror a la gehena y prorrumpió con estas palabras de gemido y dolor: ‘¡Mira, miserable alma mía!
¿De qué modo has sido derribada, vendida, cautivada y derruida? ¿En qué ruina has caído? ¿En qué naufragio has
sucumbido? ¿Con qué cieno has sido embadurnada? ¿En qué puerto encontrarás refugio? ¿A qué remedio acudirás?
¡Mírame miserable, que tras echarme yo mismo la zancadilla y arruinarme con mi propia decisión, no puedo
levantarme!’. Y después de que durante un tiempo hablara con su alma y otras muchas cosas, él piadoso y
misericordioso Dios, que no desdeña a su propia criatura, sino que acepta a los que suplicantemente se convierten
a É1, restableció el alma de Teófilo con la esperanza de su recuperación. Una vez restablecida, Teófilo dijo con
lágrimas: "Aunque a Cristo, Hijo de Dios, nacido de la Inmaculada siempre Virgen María, yo infeliz lo he negado
desgraciadamente, por instigación y persuasión del maligno judío, no obstante, iré a la misma gloriosa Madre del
Señor, y con todo el corazón y el alma mía le suplicaré, y sin descanso le haré oraciones y ayunos en su venerable
templo, hasta que sea capaz de encontrar la misericordia de Dios por la santa intercesión de María". Y de nuevo
decía: "¿Pero, con qué labios me atreveré a solicitar su benignidad? Lo ignoro. Sé que falté contra ella gravemente.
¿Cómo principiaré mi confesión? ¿De qué manera para manifestar mi conciencia, intentaré mover mi impía lengua
y mis manchados labios? ¿Sobre qué pecados esperaré primero la indulgencia? Soy tan miserable que si
temerariamente me anticipara a hacer esto, un fuego que bajara del cielo me abrasaría, porque el mundo no
soportaría los males que yo, el más miserable, he cometido. ¡Mira miserable alma mía! Levántate de las tinieblas
que te apresaron y echándote a sus pies suplica a la Madre de nuestro Señor Jesucristo, porque ella tiene poder
para poner remedio a este pecado".
Después de meditar todo esto en su interior y tras dejar los estorbos fatigosos de este siglo, se arrodillaba
públicamente con toda la devoción de su insignificancia en el santo venerable templo, presentaba sus súplicas sin
descanso a la Inmaculada y gloriosa siempre Virgen María, se dedicaba a los ayunos y vigilias y rogaba ser
redimido apartado de tal culpa y arrancado de aquella apostasía que había cometido. Y así persistió en oración y
estuvo en vela durante diez días y sus correspondientes noches y, después de cumplirse aquellos días, en medio
del silencio de la noche se le apareció la Madre de Cristo, manantial de vida, consoladora de los afligidos, refugio
de los miserables y redentora de los cautivos. En la misma aparición la nutricia Madre le dirigió estas Palabras:
‘¿Cómo te atreves temerariamente a Implorar la piedad celestial después de haber cometido una iniquidad tan
grande? Tú no solo me negaste con boca sacrílega, sino que además, lo que más abomino, negaste a mí mismo
Hijo Jesús. Necesitas suplicar la piedad divina durante más tiempo si deseas seguir la remisión de los pecados.
Pues mi Hijo no solo es un padre piadoso, sino también un juez justo’.
A esto respondió Teófilo: "Sé, Señora del mundo y Reina del cielo, que he errado indignamente; pero
más grande es la misericordia de tu Hijo que mis miserias; pues Él mismo según os muchos ejemplos que tenemos
de los Santos Padres, concede la remisión de los pecados a los que verdaderamente los confiesan". Finalmente,
tras confesarlo éste la santa y venerable Señora, Madre de Dios, bendita de alma y cuerpo, que posee la singular
libertad de pedir ante Aquel al que parió, que es conocida como consuelo de los atribulados, compasión de los
afligidos, vestido de los desnudos, báculo de la vejez, protección sólida de los que acuden a ella, que favorece a
todos los cristianos con santo y piadoso corazón, respondió así a Teófilo. "Confiesa, hombre, que el Hijo que yo
parí y tú negaste es Cristo, Hijo de Dios vivo, que vendrá a juzgar a vivos y muertos; y yo le rogaré a favor tuyo
para que se digne volver a aceptarte".
A esto dijo Teófilo: "¿Y de qué modo empezaré, oh bienaventurada Señora, a confesarlo algún día, yo
que soy miserable e indigno y tengo una boca sucia y manchada con la que negué a tu Hijo Señor nuestro? Yo que
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no solo me eché la zancadilla con los vanos deseos de este siglo, sino que he profanado el remedio de mí, alma,
me refiero a la venerable cruz, y el santo bautismo que recibí, por haber escrito con mi propia mano la amarguísima
apostasía?".
Le contestó la Santa e Inmaculada Madre de Dios Virgen María: ‘Tú acércate a Él y confiésalo; pues Él
es misericordioso y aceptará las lágrimas de tu arrepentimiento y las de los que se acercan a Él con buena intención.
Además, Dios, el que existe, se dignó aceptar la carne de mí, débil soporte de su deidad, para salvar a los
pecadores".
Entonces Teófilo, con toda reverencia y humildad, con cara sumisa proclamo lo siguiente a grandes voces:
‘Creo, adoro y glorifico en la Santa Trinidad a un único Señor nuestro, Jesucristo, Hijo de Dios vivo, nacido del
Padre antes, de los siglos, que se dignó hacerse hombre en los últimos días, concebido del Espíritu Santo y de la
Santa e Inmaculada Virgen María, y ha venido para la salvación del género humano; confieso que él es Dios y
hombre por completo, que se dignó sufrir por los pecadores, fue escupido y abofeteado, y extendió sus manos
sobre el leño que da vida, dando su vida como buen pastor, y fue sepultado y resucitó y ascendió al cielo con la
carne que tomó de ti castísima, y vendrá con su gloria para juzgar a vivos y muertos y dará a cada uno según sus
obras no como un acusador de gente sino por medio de la conciencia que nos acusa o nos excusa a partir de las
mismas obras delatadas, y el fuego que examina a cada uno según sea necesario. Confieso esto con el corazón y
con la boca; veneró a éste, lo adoro y lo abrazo. Y con esta garantía implorante, oh Santa y Inmaculada Virgen
Madre de Dios, me ofrezco a tu Hijo nuestro Señor; no desdeñes mi súplica, que he sido raptado, zancadilleado y
engañado; sino que líbrame de las iniquidades que me apresaron y del remolino tormentoso que me posee, a mí
que miserablemente he sido privado de la gracia del Espíritu Santo’.
Y tras decir esto, como tomando alguna satisfacción de él la santa Madre de Dios, esperanza y consolación
de los cristianos, redención de 1os que yerran, camino único de 1os que se levantan hacia ella, fuente de los que
disfrutan, refrigerio de los pobres, consuelo de 1os pusilánimes y mediadora de todos, le dijo: ‘He aquí que por el
bautismo, que recibiste através de mi Hijo y señor nuestro Jesucristo, y por la tremenda compasión que siento por
ti, creyendo en tus palabras me acercaré a aquel y le rogaré a favor tuyo, humillada a sus pies hasta que se digne
aceptarte’. Y cuando el día empezó a lucir, se apartó de él la Santa e Inmaculada Virgen Madre de Dios.
Teófilo durante tres días rogaba al Señor con empeño, golpeaba la tierra frecuentemente con la cabeza,
permanecía en el mismo venerable templo sin comida, llenaba el lugar con sus lágrimas y no dejaba de mirar la
clara luz y el inefable rostro de nuestra gloriosa Señora María Madre de Dios, aguardando de ella la esperanza de
su salvación. Y así de nuevo se le apareció con rostro sonriente y ojos alegres, la protección y el consuelo de los
que se refugian en ella, la que fue alimentada en el Sancta Santorum, y con voz suave le dijo: ‘Hombre de Dios,
es suficiente la penitencia que has mostrado al Salvador de todos y Creador tuyo. He aquí que ante la petición mía
aceptó tus lágrimas y asintió a tus preces siempre que observes, lo que prometiste a mi Hijo siendo yo testigo,
hasta el día de tu muerte’. Y él respondió: ‘Oh, Señora mía, lo observaré y no pasaré por alto tus palabras, porque
tú eres, después de Dios, mi protección y mi defensa, y porque confío en tu ayuda no dejaré de lado lo que he
prometido y confesado. Pues sé, sé que tú eres la protección de los hombres. Pues, ¿quién, oh Señora mía, Virgen
Inmaculada, esperó en ti y fue confundido o qué hombre pidió tu clemencia y fue abandonado? Por ello yo, pecador
e impío, pido la eterna fuente de tu benignidad, emplea en mí, errado y engañado, que he sido hundido en lo
profundo del cieno, las entrañas de tu misericordia para que tenga fuerzas de recuperar aquella execrable carta de
mi apostasía y aquel nefando recibo lacrado por el diablo que me engaño; pues esto es lo que sobre todo cosquillea
mi misérrima alma’.
De nuevo lloró en gran manera Teófilo durante tres días seguidos y rogaba a la misma única esperanza
de los hombres, a la Virgen Inmaculada, que se dignara aceptar su penitencia. Así, después de estos tres días, la
Santísima Virgen se le apareció de nuevo en sueños y le presentó el papel del recibo, que tenía el sello de cera, y
lo puso sobre su pecho. Él, despertando del sueño y contente por el resultado, hasta tal punto se estremeció que
casi se le descoyuntaron las articulaciones de todos sus miembros.
A la mañana siguiente, que era domingo, se dirigió a la iglesia en la que el obispo con todo el pueblo
estaba presente, y se postró a los pies del obispo después de la lectura del santo evangelio y le descubrió y reveló
toda la historia de su impiedad, como ha sido relatada más arriba. Le puso de manifiesto todo por orden en
presencia del pueblo en la reunión de la iglesia y tendió al obispo la carta manuscrita y sellada, pidiendo vivamente
que se leyera en presencia de todos. Así todos los clérigos y los seglares fueron conmovidos por la gran compasión
de Dios y dieron gracias a Dios, que con tanta piedad se digna recibir a los que se refugian en É1, aunque sean
enemigos. El obispo, lleno de gozo, clamaba: ‘Venid todos los fieles, glorifiquemos la piedad de nuestro Señor
Jesucristo. Venid todos, ved sus admirables milagros. Venid los amados por Cristo; considerad que Él no desea la
muerte del pecador sino su conversión. Venid y ved las lágrimas que piden el perdón de los pecados. Venid todos
los cristianos, examinad las lágrimas que remueven la ira de Dios. Venid, mirad cuánto puede el llanto del alma y
la contrición del corazón. ¿Quién no admirará, hermanos, la inefable paciencia de Dios? ¿Quién no quedará atónito
ante su inenarrable caridad?’. Entretanto, mientras el obispo decía estas cosas, Teófilo yacía postrado. Después de
rezada una oración de alabanza, el obispo mandó que se levantara y le ordenó quemar aquella nefandísima y
execrabilísima carta en presencia de todos, lo que aquel cumplió sin demora. Las gentes al ver el execrable
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manuscrito y el recibo de la apostasía que ardía en el fuego, empezaron a clamar con gran profusión de lágrimas
durante bastante rato Kyrie eleison. Y el obispo, haciendo una seña con la mano para que callaran, dijo: ‘La paz
esté con vosotros’. Y celebró la solemne introducción de la misa. Después de la terminación de los misterios
sagrados, y tras haber recibido Teófilo el misterio sagrado de la comunión, su cara al momento brilló como el sol.
Al ver todos la súbita transfiguración dé este hombre, glorificaban más a Dios, que solo hace grandes maravillas;
y alabaron largamente a la bienaventurada María, que lo liberó de una execrable promesa.
Teófilo, feliz, se apartó a aquel lugar en que había visto la bienaventurada visión y permaneció como
clavado en él durante tres días. Después de estes tres días dio un beso a los hermanos para despedirse, distribuyó
de la mejor manera posible todas sus cosas entre los necesitados y pobres, encomendó su alma a la Santa Trinidad
y a la bienaventurada Madre de Cristo, su libertadora, y terminó felizmente el último día de su vida en el mismo
lugar en que había visto la visión y allí mismo pasó a la vida eterna, cuando Dios dispuso. Su cuerpo sepultado en
el mismo lugar espera la estola de la gloria futura. A la cual se digne conducirnos la Virgen Madre del Hijo,
manantial de vida, que con su Hijo vive y reina por los siglos infinitos. Amém”.
Anexo C – Mapas