Você está na página 1de 169

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia

Kelly Dias Vieira

ESQUIZOANALISTAS: O QUE FAZEM?


Uma cartografia da clínica esquizoanalítica na Psicologia

Belo Horizonte
2021
Kelly Dias Vieira

ESQUIZOANALISTAS: O QUE FAZEM?


Uma cartografia da clínica esquizoanalítica na Psicologia

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Roberta Carvalho Romagnoli

Área de Concentração: Intervenções Clínicas e


Sociais

Belo Horizonte
2021
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Vieira, Kelly Dias


V658e Esquizoanalistas: o que fazem? Uma cartografia da clínica esquizoanalítica
na Psicologia / Kelly Dias Vieira. Belo Horizonte, 2021.
169 f. : il.

Orientadora: Roberta Carvalho Romagnoli


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Guattari, Félix, 1930-1992. 3. Psicólogos -


Formação profissional. 4. Prática profissional. 5. Psicanálise. 6. Psicologia
clínica. 7. Cartografia. 8. Subjetividade. 9. Capoeira. I. Romagnoli, Roberta
Carvalho. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 159.964.2
Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086
Kelly Dias Vieira

ESQUIZOANALISTAS: O QUE FAZEM?


Uma cartografia da clínica esquizoanalítica na Psicologia

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Roberta Carvalho Romagnoli

Área de Concentração: Intervenções Clínicas e


Sociais

__________________________________________________
Profª. Drª. Roberta Carvalho Romagnoli – PUC Minas (Orientadora)

__________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Pereira Passos – UFF (Banca Examinadora)

__________________________________________________
Prof. Dr. Domenico Uhng Hur – UFG (Banca Examinadora)

__________________________________________________
Profª Drª. Tereza Cristina Peixoto – UFMG (Banca Examinadora)

__________________________________________________
Prª Drª. Maria Luiza Marques Cardoso – PUC Minas (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 05 de julho de 2021


Dedico esta tese às minhas sobrinhas Alice Vieira e
Marina Vieira, às minhas irmãs Helen Dias e Daniele
Dias, à minha mãe Rosilene Dias, às minhas avós Edith
Rosemburg e Leonídia Mesquita, as minhas bisavós
Noemia Passos, Maria Dolores Dias, Ana Rita Martins e
Diolaria Vieira e a todas as mulheres que as
antecederam.
AGRADECIMENTOS

Abracei o mar na lua cheia, abracei


Abracei o mar
Escolhi melhor os pensamentos, pensei
Abracei o mar
É festa no céu é lua cheia, sonhei
Abracei o mar
E na hora marcada dona alvorada chegou para se banhar
E nada pediu, cantou pra o mar (e nada pediu)
Conversou com mar (e nada pediu)
E o dia sorriu
Uma dúzia de rosas, cheiro de alfazema
Presente eu fui levar
Nada pedi, entreguei ao mar (e nada pedi)
Me molhei no mar (e nada pedi) só agradeci

Maria Bethânia, uma de minhas cantoras brasileiras favoritas, lançou em 2015 um disco
chamado Abraçar e Agradecer, em que maravilhosamente ela interpreta a composição de Vevé
Calazans e Gerônimo. Ao som dessa bela canção, numa noite de lua cheia e bem pertinho do
mar, escrevo essas linhas de agradecimento.
Certamente que a primeira pessoa que desejo agradecer é a orientadora desta tese. Roberta
Romagnoli, sou muito grata à sua aposta, partilha, confiança e generosidade sempre presentes
em nossa relação, desde que se deu esse bom encontro em 2001, ainda na graduação! Os anos
vão se passando e você continua a extravasar alegria e contaminar a todos que te cercam com
essa energia frenética que nos motiva, impulsiona e encoraja a seguir!
Agradeço aos professores que aceitaram prontamente ao meu convite para compor as bancas
de qualificação e de defesa desta tese: Eduardo Passos, Domenico Hur, Tereza Peixoto, Maria
Luiza Cardoso e também às professoras que serão suplentes à banca de defesa, Luciana Kind e
Valéria Andrade, pela disponibilidade e generosidade.
Agradeço ao grupo de “orientação da Roberta” e aos orientandos de mestrado e doutorado que
ingressaram junto comigo e também aos “agregados” sempre bem-vindos às nossas discussões,
trocas e aprendizados: Tulíola, Larissa, Ana Luiza, Bruna, Fabiana Fadul, Henrique, Ana,
Enrico, Janete, Luiza, Luigi, Tereza, Luciana, Paula, Fabiana, Mônica, Camila, Wagner e aos
novatos que chegam para manter a roda em movimento.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas por oferecer com muita
qualidade atendimento cuidadoso, orientações assertivas, aulas potentes e sobretudo acolhida
amistosa. Agradeço especialmente a Marcelo e Diego por me socorrerem em todos os sufocos
e pela paciência com que sempre atenderam aos meus pedidos!
Agradeço a cada um dos grupos e coletivos que se multiplicaram durante o doutorado e que
vem contribuindo para minha formação na academia, na clínica e na vida:
Ao grupelho: Renata, Gláucia, Carla, Luizinho, Libéria, Wagner, Neilton, Maria Carolina, Vini,
Tuli, Davi, Pedro, Flávia, Bruna, Fernando, obrigada pelo bom encontro, pelas festas, pelas
produções e experimentações que fizemos juntes e por poder contar com as colaborações, apoio
e cuidado de vocês!
Ao grupo de supervisão rizomática: Marcelo, Érika, Bárbara, Carol, Henrique e Luciana
obrigada, pela nossa parceria e pela escuta atenta e zelosa que contribui tanto para esse desafio
cotidiano de sustentar uma clínica do cuidado.
Ao grupo de supervisão clínica da coletiva Mulheres da Quebrada: Marinete, Laís, Elen, Derli,
Vitor, Thiago e o recém-chegado Arthur - vocês me enchem de alegria e potencializam o meu
desejo pela clínica a cada encontro que fazemos!
Ao trio de supervisão clínica: minhas queridas amigas Williana e Paula, obrigada por me
acolherem tão generosamente e por esse espaço de supervisão tão alegre e potente.
Ao grupo de supervisão clínica com Edu, Williana, Sílvia, Mônica, Míriam e Joana, obrigada
por me oferecerem a oportunidade de aprender tanto!
Ao grupo de estudos em Esquizoanálise: André, Tarso, Arthur, Vitor e Dandara, é muito mais
possível sustentar essa escolha teórica na companhia de vocês!
Ao grupo de escritas feministas: Pri, Ju, Lu, Fêr e Paulinha o que seria desta pesquisadora sem
o apoio de vocês? Não tenho palavras pra exprimir o tamanho da minha gratidão a todas vocês
pelo tempo dedicado a cada leitura, pela escrita coletiva, pela amizade e por ver operar uma
possibilidade de escrita viva, que certamente só se faz coletivamente! Que bom poder produzir
essa tese junto a vocês!
Agradeço ao Sapos e Afogados: Ju, Renatinha, Lu Mendes, Felipe, Regina, Ed, Ludmila,
Rogério, Jack, Lídia, Vivi, Imaculada e Beth por todo o período que estivemos juntes nesse
brejo amoroso, louco e solidário! Se não fosse por vocês eu nunca andaria sob uma perna de
pau e nem perderia o medo de cursar o doutorado!
À Formação Livre em Esquizoanálise, pela confiança e aposta na transmissão do Esquizodrama
como ferramenta interventiva às/aos esquizoanalistas.
A minha amiga Regina, agradeço pela parceira de tantas horas, risadas, taças de vinho nos
bastidores de uma peça teatral, nas manifestações pela democracia e pela luta antimanicomial,
no 1º de maio em Paris!
À minha amiga à Renata Arruda, agradeço pelo apoio e amizade inabaláveis pelos caminhos da
academia e para além deles! Você com certeza é minha terceira irmã!
À Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassu, agradeço pela capuêra que me fez jogar!
Ao querido Barulhista, agradeço por me presentear com a capa artística desta tese, desenvolvida
a partir das afetações produzidas pela leitura do meu texto.
Aos meus pais Marcus e Rosilene, às minhas irmãs Helen e Daniele e ao meu irmão Bruno,
obrigada por me apoiarem em todos os meus sonhos e por se fazerem presentes em minha vida
tanto nas conquistas quanto nos obstáculos.
Aos meus sobrinhos queridos Bernardo e Gabriel e às minhas sobrinhas Marina e Alice,
obrigada por todo o carinho, delicadeza e amor que me oferecem!
Ao André Rossi, meu companheiro, meu amor e o único que posso abraçar nesses duros
momentos pandêmicos que temos vivido em nosso país, agradeço pela parceria, pelo incentivo,
pelo cuidado (comigo e com meu texto) e por me apresentar uma visão mais otimista da vida!
Agradeço pelo bom humor, por você ter ficado amigo do Bantu e pelo amor que sinto todos os
dias ao seu lado!
Agradeço a bolsa de estudos da CAPES por me auxiliar para a produção desta pesquisa e nesses
tempos tão sombrios, agradeço ao Deus de Espinosa!
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.

Antonin Artaud
RESUMO

O presente estudo realiza uma analítica da Esquizoanálise enquanto possibilidade clínica para
a área de conhecimento e intervenção da Psicologia. A partir da própria experiência clínica da
pesquisadora e das experiências colhidas em dez entrevistas com profissionais da Psicologia
que se orientam pela ética-estética-política da Esquizoanálise em sua prática clínica, foi
construída uma cartografia do funcionamento desta práxis. Por meio de causos, memórias,
experiências e afetos, esta cartografia inicialmente discutiu a produção de subjetividade
sustentada pela Esquizoanálise, articulando-a num pequeno histórico referente à formação em
Psicologia no Brasil, bem como as questões contemporâneas como a pandemia de Coronavírus
e a situação política, social e econômica brasileira. Por meio do diálogo não só de leituras que
versam sobre a teoria esquizoanalítica, mas também contribuições teóricas importantes como a
do feminismo negro, por exemplo, discute-se as relações existentes entre a formação e a
compreensão do que é subjetividade para as/os profissionais de Psicologia e sua prática e
experimentações clínicas. No intuito de apresentar possíveis trajetórias à/ao psicóloga/o que
deseja buscar na Esquizoanálise uma possibilidade de atuação, elencou-se e discutiu-se alguns
aspectos que são comuns à prática da/o esquizoanalista, assim como o que seriam seus
princípios ou tarefas elementares, articulando-as à prática da Capuêra Angola. É apresentada e
discutida ainda a ferramenta teórico-metodológica-técnica do Esquizodrama como
possibilidade de intervenção para a clínica esquizoanalítica. Este percurso destaca a necessidade
de se trabalhar com uma clínica que acolha a complexidade e a heterogeneidade dos processos
de subjetivação.

Palavras-chave: Esquizoanálise; Clínica esquizoanalítica; cartografia; Psicologia;


Esquizodrama; Capuêra Angola.
ABSTRACT

This study analyzes Schizoanalysis as a clinical possibility for the field of knowledge and
intervention in Psychology. From the researcher’s own clinical experience and from the
experiences gathered in ten interviews with Psychology professional who are guided by the
ethics-aesthetics-politics of Schizoanalysis in their clinical practice, a cartography of the
functioning of this praxis was built. Through causos, memories, experiences and affections, this
cartography initially discussed the production of subjectivity supported by Schizoanalysis,
articulating a brief history regarding in undergraduate Psychology in Brazil, as well as
contemporary issues such as the Coronavirus pandemic and the Brazilian political, social and
economic situation. Through the dialogue not only of readings that deal with schizoanalytic
theory but also important theoretical contributions such as black feminism, for example, the
relationship between education and the understanding of subjectivity for Psychology
professionals and their practice and clinical trials is discussed. In order to present possible
trajectories to the psychologist who wishes to seek in Schizoanalysis a possibility of acting,
some aspects that are common to the schizoanalyst’s practice were listed and discussed, as well
as what would be their elementary principles or tasks, articulating them to the practice of
Capuêra Angola. The theoretical-methodological-technical tool of Schizodrama is presented
and discussed as a possibility of intervention for the schozoanalytic clinic. This path highlights
the need to work with a clinic that embraces the complexity and heterogeneity of subjectivation
processes.

Keywords: Schizoanalysis; Schizoanalytic clinic; Cartography; Psychology; Schizodrama;


Capuêra Angola.
RESUMEN

El presente estudio realiza un análisis del Esquizoanálisis como posibilidad clínica para el área
de conocimiento e intervención de la Psicología. A partir de la propia experiencia clínica de la
investigadora y de las experiencias recogidas en diez entrevistas con profesionales de la
Psicología que se orientan por la ética-estética-política del Esquizoanálisis en su práctica
clínica, fue construída una cartografía del funcionamento de esta práxis. Mediante relatos,
memorias, experiencias y afectos, esta cartografía inicialmente discutió la producción de
subjetividad sustentada por el Esquizoanálisis, articulándola a un pequeño histórico referente a
la formación en Psicología de Brasil, bien como a cuestiones contemporáneas como la
pandemia del Coronavirus y la situación política, social y económica brasileña. A través del
diálogo no solo de lecturas que exponen sobre la teoría esquizoanalítica, sino también de
contribuciones teóricas importantes como la del feminismo negro, por ejemplo, se discuten las
relaciones existentes entre la formación y la comprensión de lo que es subjetividad para las/los
profesionales de psicología y su práctica y experimentaciones clínicas. Con el propósito de
presentar posibles trayectorias a la/al psicóloga/o que desea buscar en el Esquizoanálisis una
posibilidad de actuación. Se recopilaron y discutieron algunos aspectos que son comunes a la
práctica de la/el esquizoanalista, así como lo que serían sus principios o tareas elementales,
articulándolas a la práctica de la Capuêra Angola. A su vez, es presentada y discutida la
herramienta teórico-metodológica-técnica del Esquizodrama como posibilidad de intervención
para la clínica esquizoanalítica. Este recorrido destaca la necesidad de trabajar con una clínica
que acoja la complejidad y la heterogeneidad de los procesos de subjetivación.

Palabras clave: Esquizoanálisis Clínica esquizoanalítica; Cartografía; Psicología;


Esquizodrama; Capuêra Angola.
RÉSUMÉ

La présente étude analyse la schizoanalyse comme une possibilité clinique pour le domaine de
la connaissance et de l’intervention en psychologie. À partir de l’expérience clinique du
chercheur et des expériences recueillies lors de dix entretiens avec des professionnels de la
psychologie qui sont guidés par l'éthique-esthétique-politique de la schizoanalyse dans leur
pratique clinique, une cartographie du fonctionnement de cette praxis a été construite. À travers
des histoires (causos), des souvenirs, des expériences et des affections, cette cartographie a
d'abord discuté de la production de subjectivité soutenue par la schizoanalyse, articulant une
petite histoire concernant la formation en psychologie au Brésil, ainsi que des problèmes
contemporains tels que la pandémie de COVID-19 et la situation politique, sociale et
économique brésilienne. À travers le dialogue non seulement de lectures qui traitent de la
théorie schizoanalytique, mais aussi d'importantes contributions théoriques telles que celle du
féminisme noir, par exemple, les relations possibles entre la formation et la compréhension de
la subjectivité, selon les perspectives des professionnels de la psychologie ont été discutées
autant que ses pratiques et ses expérimentations cliniques. Afin de présenter des trajectoires
possibles au psychologue qui souhaite chercher dans la schizoanalyse une possibilité d'action,
certains aspects communs à la pratique du schizoanalyste ont été répertoriés et discutés, ainsi
que leurs principes ou tâches élémentaires supposés, en les articulant à une pratique de Capuêra
Angola. L'outil théorico-méthodologique-technique du Schizodrame est présenté et discuté
aussi comme une possibilité d'intervention pour la clinique schizoanalytique. Ce cheminement
met en évidence la nécessité de travailler avec une clinique qui embrasse la complexité et
l'hétérogénéité des processus de subjectivation.

Mots-clés: Schizoanalyse ; Clinique schizoanalytique ;Cartographie ; Psychologie ;


Schizodrame ; Capuêra Angola.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1: Esquizodrama on-line….…………………………………………………...…127


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AT Acompanhamento Terapêutico
AI-5 Ato Institucional nº5
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CAPSi Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil
CEP Comitê de Ética em Pesquisa
Comitrate Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais
FIES Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior
FAPEMIG Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais
IBRAPSI Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições
IFG Instituto Félix Guattari
IGB Instituto Gregorio Baremblitt
L@gir Laboratório de Grupos, Instituições e Redes Sociais
MST Movimento dos Trabalhares Rurais Sem Terra
OMS Organização Mundial de Saúde
PEC Proposta de Emenda à Constituição
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPSUS Programa de Pesquisa para o SUS
ProUni Programa Universidade para Todos
PUC Pontifícia Universidade Católica
RMBH Região metropolitana de Belo Horizonte
SGDHCA Sistema de Garantia dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente
SUS Sistema Único de Saúde
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFOP Universidade Federal de Ouro Preto
Unicamp Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ou “passar um cafezinho” ................................................................. 18

Causo: “Esquizo” o quê? ................................................................................... 22

2 A PESQUISA CARTOGRÁFICA ................................................................................. 24

2.1 Para a escrita desta tese: um dedo de prosa ............................................................. 24

2.2 A entrevista como causo .......................................................................................... 33

2.3 Entre pontos e linhas: caminhos traçados na cartografia ...................................... 37

Causo: A separação entre a Psicologia a Cultura ............................... 50

3 A SUBJETIVIDADE E A FORMAÇÃO: A CLÍNICA ESQUIZOANALÍTICA


COMO RESISTÊNCIA À REPRODUÇÃO DE UM SUJEITO UNIVERSAL NO
CAMPO PSI ...................................................................................................................... 51

3.1 Sobre a subjetividade e a clínica “esquizo” ............................................................ 51

3.2 Alguns aspectos políticos que atravessam a formação em Psicologia no “Brasil” 59

3.3 Trajetórias, memórias e afetos: deslocamentos formativos ................................... 71

Causo: A psicóloga de rua.................................................................................. 81

4 ESQUIZOANALISTAS: O QUE FAZEM? .................................................................. 83

4.1 A que/quem serve a clínica? Os princípios de uma clínica esquizoanalítica e suas


experimentações ou os acontecimentos comuns na clínica esquizo ............................. 83

4.2 Esquizoanalistas estudam.......................................................................................... 94

4.3 Esquizoanalistas consideram a perspectiva corporal na clínica ............................. 100

4.4 Esquizoanalistas criam dispositivos clínicos ........................................................... 103

4.5 Esquizoanalistas realizam trabalhos grupais ......................................................... 106

4.6 Esquizonalistas participam de supervisão clínica .................................................... 108

4.7 Esquizonalistas fazem Esquizodrama .................................................................... 110

Causo: O Esquizodrama e a alegria ............................................................. 112


5 SOBRE O ESQUIZODRAMA .................................................................................... 113

5.1 O que é o Esquizodrama? ...................................................................................... 113

5.2 O funcionamento do Esquizodrama...................................................................... 117

5.3. Klínica com K e as Klínicas do Esquizodrama .................................................... 120

5.4 Experimentações Esquizodramáticas ................................................................... 124

6 IN (CONCLUSÕES) PROVISÓRIAS ........................................................................ 133

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 141

APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ................................. 149

APÊNDICE B – Termo de autorização de imagem (Fotos) ........................................ 152

Anexo A - Fragmentos coletivos de uma pandemia (corpoescritas de nós) ................... 154


1. INTRODUÇÃO ou “passar um cafezinho”

Não pretendo generalizar, mas tem duas coisas que acontecem muito corriqueiramente
no estado de Minas Gerais: passar um cafezinho e contar causo; aliás tem três tem o pão de
queijo também. A construção deste texto foi regada a muitas e muitas doses de café, alguma
parcela menor de pão de queijo (porque agora moro em Niterói/RJ) e alguns causos. Fui
afirmando essa mineiridade aos poucos, no percurso desta pesquisa, na construção desta escrita.
Mineiridade que se associa ao meu corpo e aflora em meu texto na apresentação e condução
do tema desta pesquisa: a Esquizoanálise e o funcionamento de sua clínica. Conexão que se dá
pela minha história, por como me formei e também pela minha prática, minhas relações.
A Esquizoanálise proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) em sua vasta obra
conjunta se sustenta em rigorosos arcabouços conceituais e se orienta por um paradigma que
chamamos de ético-estético-político. Abarcando contribuições de áreas distintas como
filosofia, antropologia, história, geografia, artes, entre outras, e a partir de um olhar para a
complexidade e numa perspectiva transdisciplinar, ela opera por um método analítico que está
sempre em movimento e mutação, questionando o modo de produção capitalista e a sua
produção de subjetividade.
Deste modo, a produção de subjetividade na perspectiva da Esquizoanálise, não está
limitada aos contornos individuais de um sujeito, mas implica também em um olhar para o
fora, exterior ao sujeito e é composta por forças e formas que estão sempre presentes de modo
imanente.
A Esquizoanálise pulsa pela sua diferença. Ou seja, ela pode ter sotaques, pode habitar
diferentes territórios. A chegada desse corpo de pensamento em nosso país aparece em um
primeiro momento em áreas variadas: as Artes, as Letras, a Geografia e também a Psicologia,
já numa proposta mais interventiva. Embora fecunda e plena de possiblidades, sua prática ainda
é pouco estuada enquanto perspectiva clínica. Desse modo, para além das contribuições que
espero promover à área a partir da discussão e apresentação de pistas ou linhas de trajetória (ao
invés de pontos de partida) para psicólogas/os que desejem conhecer e/ou utilizar a vertente da
Esquizoanálise em seu percurso clínico, a realização desta pesquisa se justifica pelo fato de
ainda serem escassas as produções científicas que associem a Esquizoanálise à prática clínica
da Psicologia.
Em pesquisa realizada em fevereiro de 2020 em três importantes bancos de dados - a saber,
Scielo, PepSic e Lilacs/BVS - a partir dos descritores psicologia, Esquizoanálise e formação,
18
foram recuperados apenas seis artigos apresentados respectivamente no Scielo (dois artigos,
sendo um deles encontrado também nos demais bancos de dados), Pepsic (dois artigos, sendo
um deles encontrado também nos outros bancos de dados) e Lilacs (seis artigos, sendo que dois
apareceram em duplicidade, totalizando então quatro artigos que abordavam o tema), no recorte
temporal entre os anos de 2000 e 2014 que foi a publicação mais recente.
Neste pequeno recorte amostral já é possível observar o que se tem percebido em
relação a nossa temática, que é o fato de grande parte dos textos que abordam a Esquizoanálise
serem textos mais teóricos que se empenham em abordar “conceitos”, reflexões e impressões
da obra de Deleuze e Guattari sem abordar a experiência prática, ética e estética da
Esquizoanálise enquanto possibilidade de experimentação clínica da Psicologia, o que reforça
a validade deste estudo.
Nesse contexto, esta tese pretende discutir “mineiramente” a prática profissional da
Psicologia que se orienta pela Esquizoanálise, destacando aspectos formativos, sociais,
culturais, econômicos, teóricos e técnicos, políticos, além de apresentar alguns aspectos
comuns a essa prática e seu funcionamento. A tese é composta por quatro capítulos e também
quatro causos, que se destacam e antecedem cada um dos capítulos.
O primeiro causo: “Esquizo” o quê? Abre o trabalho e antecede o capítulo que trata da
metodologia escolhida para a realização desta pesquisa: a cartografia. O capítulo apresenta três
subdivisões. A primeira parte trata da escrita, ou da escrita que desejei desenvolver durante o
texto: uma escrita que se pretendeu fluida, livre e em primeira pessoa na maior parte do tempo.
Uma escrita feminista também. Todas as oportunidades possíveis de privilegiar o gênero
feminino, no modo de escrever, foi utilizado, então sempre “a” / “o” serão notados. Esta opção
foi feita por uma questão de princípio. Desde criança, leio livros que são escritos privilegiando
o gênero masculino. Sempre pensei que os livros eram todos escritos por homens e,
politicamente, decidi afirmar o gênero feminino em primeiro lugar nesta tese. Outro
posicionamento que vale ser ressaltado em relação às autoras e autores citados e referenciados
é que toda vez que utilizo os nomes de autoras/es pela primeira vez, incluo seu primeiro nome,
no intuito de dar visibilidade às suas produções. Aqui também é apresentando detalhadamente
como se deu esse trabalho: quantas pessoas foram entrevistadas, como se deu o contato com
elas e o que se buscou acessar, privilegiando as intensidades. Neste sentido, a segunda parte
trata do causo e de como ele foi utilizado como parte integrante da metodologia de pesquisa.
A terceira e última parte do capítulo aprofunda-se na conceituação teórica e uso da cartografia
nesta pesquisa, em seu rigor e sua fluidez, apresentando passo a passo cada aspecto que deve
ser considerado no que diz respeito à realização de uma pesquisa cartográfica.
19
O segundo causo, intitulado: A separação entre a Psicologia a Cultura, abre o capítulo
seguinte, propondo uma questão importante à prática da Psicologia e que infelizmente vemos
com alguma frequência que é sua quase total desconexão com a realidade cultural, social e
econômica do país. Para isto, são abordados temas relacionados à produção de subjetividade
na contemporaneidade a partir da perspectiva da Esquizoanálise, bem como questões
relacionadas à formação em Psicologia, à pandemia de Coronavírus, à situação política e
econômica do Brasil por meio das leituras feitas sobre os temas, dos relatos das entrevistas
realizadas, pelas memórias desta autora que vos fala e por contribuições teóricas importantes
como a do feminismo negro por exemplo. Este capítulo também se subdivide em três partes
que se costuram: a primeira dedica-se à subjetividade a partir da perspectiva da Esquizoanálise,
a segunda pelos atravessamentos políticos referentes à formação em Psicologia no Brasil e a
terceira aborda as trajetórias, as memórias e os afetos desta pesquisadora e as observações feitas
nos deslocamentos dos processos formativos.
O capítulo seguinte se dedica à questão central desta tese: afinal, o que fazem as/os
esquizoanalistas? Anterior a ele, o causo “A psicóloga de rua” já aponta para outras formas de
funcionamento da Psicologia: na rua. Inicialmente, o capítulo trata do que compreende como
os princípios da clínica “esquizo”, considerando que ela se orienta pelas três tarefas propostas
por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010; 2011; 2012): as tarefas destrutiva de raspagem e
positivas cartográfica e conectiva. São apresentados também os aspectos colhidos por meio das
entrevistas e para além delas, que dizem respeito a uma clínica orientada pela Esquizoanálise.
Deste modo, foram elencados seis aspectos comuns à prática da/o esquizoanalista que são:
estudar, considerar a perspectiva corporal na clínica, criar dispositivos clínicos, realizar
trabalhos grupais, participar de supervisão clínica e fazer Esquizodrama. Todos estes aspectos
são explanados cuidadosamente e é feita ainda uma aproximação entre o funcionamento das
tarefas da Esquizoanálise à prática de Capuêra Angola.
Considerando que o Esquizodrama é uma ferramenta singular, além do desejo de que
ele possa ser difundido e transmitido, decidi por dedicar um capítulo para tratar exclusivamente
do tema. Este capítulo, o último, é aberto pelo causo “O Esquizodrama e a alegria”. É
apresentada essa ferramenta interventiva baseada na Esquizoanálise, seu funcionamento, suas
tarefas que se inspiram nas tarefas da Esquizoanálise, suas Klínicas, suas possibilidades de
experimentação. Na primeira parte, estão as explicações do que é o Esquizodrama e sua
transmissão, além de um pouco da biografia de seu criador. Nas sessões seguintes, destaca-se
seu funcionamento e as Klínicas e ao final, algumas experimentações feitas a partir do
Esquizodrama.
20
Finalmente, apresento as In(Conclusões) provisórias desta tese fazendo um apanhado
do que foi discutido ao longo do texto e afirmando a clínica esquizoanalítica como
possibilidade potente de intervenção no âmbito da Psicologia, constatando que o objetivo desta
pesquisa foi alcançado, já que o que se desejava era apresentar essa vertente teórica e seu
funcionamento em ato. Segue ainda, em anexo, um texto construído coletivamente por um
grupo de pesquisadoras, grupo de escritas feministas, do qual faço parte e que contribuiu
grandemente para a construção desta pesquisa.
Em seguida, desejo uma boa leitura!

21
Causo: “Esquizo” o quê?

No ano de 2018, três amigos brasileiros passeavam pelas ruas de


Montevidéu no Uruguai, num dia que tinham livre antes de
ingressarem no congresso internacional de Esquizoanálise que
foram participar. Vale ressaltar que nenhum dos três falava bem
o espanhol. Na caminhada pela Cuidad Vieja, avistaram um local
que chamou a atenção dos três: uma construção de esquina, antiga
e bela que não dava bem para identificar se se tratava de uma
loja, um museu ou um bar. Em algum momento o trio avistou a
placa Centro Cultural e resolveu entrar. Havia muitos objetos
antigos, instrumentos musicais curiosos, bibelôs, painéis,
quadros, tudo muito interessante. De repente um homem que era o
guardião do lugar se aproximou e daí se iniciou uma conversa em
espanhol da parte do homem e “portunhol” da parte dos três que
se esforçavam pra se comunicar.
- ¿Son brasileños?
- Si, pero no mucho. Eles respondem. (Talvez já um pouco
envergonhados com o fato de o Brasil estar prestes a ser
governado por um presidente de extrema direita radical).
- ¿Qué?
- Si, si, somos brasileiros.
- ¿Qué hacen ustedes aquí?
- Viemos para um congresso.
- ¿Congreso? Congreso de qué?
- Congresso de Esquizoanálise.
- “Esquizo” ¿qué?
Coitados, já estava difícil conseguir pedir um café da manhã
“hablando” a língua dos “hermanos”, imaginem explicar o que era
Esquizoanálise? Os três começaram a falar ao mesmo tempo e uma
das falas se destacou.
- Ah, é um tipo de filosofia.
- ¿Filosofía? Tengo una filosofía. Filosofía de la mosca y
la abeja.

22
- E como “és” esta filosofía?
- Te explicaré. La mosca es virulenta, se esparce, se mescla,
transita por todos lados, lugares sucios, todo tipo de
lugares, esparce enfermedades e la abeja no lo es, es buena,
es constructora. ¿Lo entiendes?
- Si.(Eles respondem). E daí, o homem pergunta para cada um
deles:
- ¿Qué prefieres? La mosca o la abeja?
- Mosca.
- Mosca.
- Mosca.
- ¿Qué? Comes mierda?

23
2 A PESQUISA CARTOGRÁFICA

2.1 Para a escrita desta tese: um dedo de prosa

Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever,
portanto, emerge como um ato político; Grada Kilomba

Tenho pensado e conversado muito sobre a escrita. Escrita das coisas que pensamos, o
compromisso da escrita, escrita sem compromisso, escrita de cartas, escrita acadêmica, escrita
da vida, escrita de si. Conversamos numa reunião do grupelho 1, grupo de estudos e práticas em
Filosofia de que faço parte, que queríamos escrever de outras formas. Na primeira pessoa. De
preferência na primeira pessoa. Porque é tão importante que seja ouvida e lida a voz de quem
fala. Do nosso jeito. De um jeito mais livre, menos formatado, que pudéssemos nos colocar.
Um jeito preta, um jeito “bycham”, um jeito guerreiro, maquínico, um jeito dançante, um jeito
que alivia, um jeito que acalma, um jeito que chora, às vezes um jeito que dói. Do jeito que faz
sentido pra gente! Do nosso jeito. Do meu jeito. Tenho conversado nos espaços acadêmicos e
fora deles, de como a escrita pode libertar e que quando ela é capturada pelos modelos
burocráticos, rígidos, fixos, ela pode ter sua potência diminuída. Queremos uma escrita que
aumente nossa potência, que considere as afetações produzidas no percurso, no processo. É
assim que quero escrever e, para isso, pretendo convidar/convocar algumas parcerias para
composições possíveis. Inicialmente, chamo Fucô (Foucault) para conversar.
Em A escrita de si, Michel Foucault (2004) faz um apanhado das funções ocupadas pela
escrita durante a história, mais precisamente nos dois primeiros séculos do império greco-
romano. Realizando uma análise pregressa, o autor aponta que anteriormente ao cristianismo
já se podia observar “a função da escrita na cultura filosófica de si” (FOUCAULT, 2004, p.
145), embora esta funcionasse com valores radicalmente diferentes e metodologias diversas.

1
grupelho é um grupo de estudos e ações em filosofia e educação que tem como objetivo investigar as possíveis
conexões entre as chamadas Filosofias da Diferença e as questões que concernem à Educação. O intuito do grupo
é produzir conhecimentos que contribuam com a investigação e problematização da educação pensada
transversalmente pela filosofia, incumbindo-se de encarar a imposição da necessidade de se pensar de outra forma
as mesmas questões, criar novos problemas que movimentem o pensamento, entendendo pensar como
experimentação. Trata-se de estudar maneiras de pensar e agir sobre os problemas da contemporaneidade que
concernem à Educação, com os quais os saberes-fazeres de uma filosofia da diferença possam contribuir
criativamente, demarcando uma posição política. O grupo que está inscrito no CNPQ é coordenado pela profa.
Dra. Renata Lima Aspis, da FaE/UFMG e conta com a participação de pesquisadores de diversas áreas do
conhecimento e de várias universidades.

24
Foucault nos apresenta os hypomnêmata, que funcionavam como livros de anotações variadas
utilizados por um público culto. Neles, poderiam estar presentes impressões pessoais,
fragmentos de leituras, reflexões feitas a partir de discursos proferidos que se tivesse assistido,
memórias, contas, observações de situações cotidianas. Serviam de lembrete que auxiliava para
consultas e redações posteriores, pois neles estavam presentes subsídios para a possível
formulação de um tratado, argumentos para evitar e/ou se proteger de problemas difíceis como
doenças, pragas, luto, etc. e, por isso, deviam estar sempre à mão para ler, reler, refletir.
Foucault afirma que os hypomnêmata não devem ser confundidos com um diário pessoal, pois,
o objetivo dos hypomnêmata compreendia substancialmente a “constituição de si”
(FOUCAULT, 2004, p. 149) a partir da composição de tudo o que se havia lido, ouvido e
apreendido. A correspondência também é abordada pelo autor como uma prática de escrita de
si. Parafraseando Sêneca, Foucault (ibid., p.149) afirma que quando escrevemos, lemos o que
vamos escrevendo do mesmo modo que ao dizermos qualquer coisa ouvimos o que estamos a
dizer. A carta, que exerce duplamente a função de oferecer conselhos, reflexões e ensinamentos
tanto ao remetente quanto ao emissor, aproxima-se dos hypomnêmata fazendo da
correspondência uma oportunidade de aprendizados mútuos. Ainda que haja aproximações
entre estas práticas de si, a carta oferece a possibilidade do escritor se fazer presente no
momento mesmo em que o remetente a recebe, pois a leitura atualiza um reencontro preciso e
imediato entre o escritor e o leitor. Na carta, para além de uma constituição de si, a partir de
observações e impressões do discurso de outros - como o que é registrado nos hyppomnêmata-
há uma escrita genuína, autêntica, subjetiva e até mesmo uma certa exposição, ou uma abertura
que o escritor dá ao leitor sobre si mesmo. Na carta, ocorre também uma troca, uma partilha e
a “narrativa de si é a narrativa da relação consigo mesmo” (ibid., p. 157). O relato epistolar de
si mesmo, tanto no que se refere às interferências da alma e do corpo (a saúde, a doença), como
às atividades de lazer (os hábitos, o cotidiano), assim como o exame de consciência são
exercícios de si. A escrita funcionava então como um treinamento de si e tinha incumbência
etopoiética, ou seja, operava como transformadora da verdade em ethos, numa perspectiva
imanente como nos propunham os filósofos com os hyppomnêmata e a correspondência.
Jorge Ramos do Ó e Julio Aquino (2014) apresentam um panorama da trajetória
intelectual de Foucault, relacionando-a à questão da escrita tema que transversaliza toda sua
vida e obra. Os autores trazem fragmentos de textos e entrevistas concedidas por Foucault e
analisam cuidadosamente o envolvimento e a postura do pensador em relação a este ofício da
escrita que, de acordo com a problematização proposta, se aproxima tanto de um marco
autobiográfico como também da intensificação de um pensamento crítico e da produção de
25
novas maneiras de existir. Afirmam também que Foucault sempre se interessou pela escrita,
pela linguagem, e mais precisamente pelo discurso, porém, interessava-se não pela estrutura
linguística e sim pelo discurso dito, aquele que molda/fabrica as sociedades. A construção e
naturalização de verdades, de universais era o que o autor perseguia, criticava e pretendia
problematizar e discutir em suas investigações. Havia também, por parte dele, uma crítica
contundente ao conhecimento produzido pela academia, admitido como único, como verdade
absoluta a ser seguida e reproduzida, papel este que ele nunca desejou que suas obras
ocupassem.

Para quem não se cansou de afirmar que sempre se atinha aos fenômenos que se
passava nele e por ele, era quase automática a necessidade de sublinhar que suas
narrativas, embora de vocação crítica e envolvidas com situações as mais das vezes
identificáveis na atualidade, apenas transportavam formas de questionamento, sem
jamais proporem-se a fazer lei, oferecer ensinamentos ou precauções em relação a
determinada prática ou forma de organização da vida humana (Ó; AQUINO, 2014,
p. 217).

A escrita de Foucault impulsiona a pensar em outras formas de existência, novas,


inéditas, fora dos padrões, das convenções preestabelecidas num exercício ético-estético que
possa fazer do escrever um modificar a si mesmo já que, de acordo com Ó e Aquino, o “projeto
foucaultiano é, outrossim, todo ele atravessado pela consciência de que o saber se constrói
unicamente no deslocamento, na transformação e na ultrapassagem dos problemas já refletidos
e ensaiados por outrem” (Ó;AQUINO, 2014, p.218), considerando que a prática da escrita
deveria estar completamente conectada a uma arte de existir que consiste num trabalho
ininterrupto de distanciamento de si mesmo, de um desprendimento e questionamento do que
se sabe de antemão, e que deve ser feita de maneira curiosa e crítica concomitantemente, em
direção ao inusitado.
Como produzir um texto acadêmico que dê conta desta proposição, desta invenção?
Uma produção que seja capaz de transformar a si mesma, propondo uma escrita que se faça
alegre, conectiva, que aumente nossa potência de agir, que faça passar além do conhecimento
adquirido a partir das leituras feitas e refeitas durante o processo, também uma posição ativa
de abandono do ressentimento. Esta não é uma tarefa fácil. Leila Machado (2004) apontou essa
dificuldade na produção acadêmica:

Na maioria das vezes a escrita “científica” deixa poucos rastros das inúmeras
implicações que a teceu. As dúvidas, os impasses, as noites mal dormidas, as páginas
em branco na tela do computador ficam para trás compondo uma memória que se
quer esquecida ou uma ferida que se quer cicatrizada ou uma espécie de diário de
“erros” superados. (MACHADO, 2004, p.147).

26
Magda Dimenstein e João Paulo Macedo (2009) apresentam uma proposta de escrita
acadêmica que se faça uma “escrita-potência”, que abarque um posicionamento ético, estético
e político. Ético porque transformador, perseguidor da diferença; estético porque inovador e
propiciador de processos inventivos; e político porque capaz de ativar forças que transgridam
a ideia de verdade e de neutralidade. Escrita como Exercício de liberdade (Dimenstein;
Macedo, 2009, p.154), liberdade de produzir desvios, invenção na escrita e na vida, de modo a
não se aprisionar nas estruturas antiprodutivas e entristecedoras que muitas vezes a academia
impõe. Os autores dialogam com intercessores do campo das artes como Frida Kahlo e Arthur
Rimbaud, por considerar que estes foram habilidosos ao, a partir de suas próprias experiências
de vida, seus encontros, seus desvios, propor outras formas de (se) escrever. Escritas viscerais,
intensas, capazes de entrelaçar as existências e produzir rachaduras em quem lê e em quem
escreve. Para alcançar essa escrita libertária e contagiante, parece ser necessário entrar em
contato com universos impessoais, imateriais, inumanos, mas também acessar nossas
potências, nossas lutas, nossas alegrias e nossa indignação, aquilo que nos aproxima de nós
mesmas, mas também aquilo que nos distancia, nos diferencia.
Conceição Evaristo pariu um conceito que muito dialoga com uma escrita nessa
perspectiva: escrevivência-, conceito que perpassa toda a sua obra. Segundo Luiz Henrique
Oliveira (2009), a escrevivência é formada por três elementos: corpo, condição e experiência.
Corpo, mas não qualquer corpo, trata-se aqui do corpo de uma mulher negra em sua experiência
subjetiva de existência; esta condição diz respeito a um “processo enunciativo fraterno e
compreensivo com as várias personagens que povoam a obra” OLIVEIRA, 2009, p. 3) e a
experiência refere-se à sua vivência. Trata-se de uma política de escrita, um operar a partir e
através da própria escrita, uma escrita de si. Em um pequenino texto chamado Da construção
de becos, prefácio à terceira edição de Becos da Memória, seu primeiro livro e que levou vinte
anos para ser publicado pela primeira vez, Conceição Evaristo nos fala sobre a originalidade
de seu estilo de escrita: “Insinuo, apenas, que a literatura marcada por uma escrevivência pode
con(fundir) a identidade da personagem narradora com a identidade da autora. Essa con(fusão)
não me constrange” (EVARISTO, 2017, p. 12).
A escrita diarística e dilacerante de Frida Kahlo, a escrevivência impactante de
Conceição Evaristo, os relatos trazidos da experiência de todos os profissionais que entrevistei,
as discussões e reflexões feitas no grupo de orientação do doutorado, os aprendizados dos
grupos de estudo e dos grupos de supervisão, os afetamentos produzidos nos grupos de escrita

27
(escritas feministas e escritas dissidentes)2 e as minhas próprias vivências na condição de uma
psicóloga que também realiza uma clínica de orientação esquizoanalítica, inspiram e permeiam
esse trabalho e ainda que não se trate de um texto literário, pretendo escrevivê-lo.
Assim, na produção de dados dessa cartografia, pretendo pôr em diálogo as memórias
de minhas experiências formativas e profissionais, os relatos, as emoções e os afetos
produzidos durante as entrevistas que realizei. Nessa direção, é necessário iniciar a análise da
implicação. Roberta Romagnoli (2014) nos apresenta o conceito de análise implicação para a
pesquisa-intervenção, trazendo as correntes de pensamento que a propuseram e os contextos
em que isso foi feito. Na contramão de um apelo à neutralidade e objetividade ainda existente
nas pesquisas acadêmicas, a análise de implicação serve principalmente para destacar a
impossibilidade de se fazer uma pesquisa de “fora”, sem se aproximar, se afetar, se misturar
com o campo. A autora fala do “pesquisador implicado”, que é aquele que tem um
compromisso intrínseco de analisar sempre provisoriamente e de forma ético-política as
relações de poder existentes, inclusive e necessariamente, as que o atravessam. Ainda que o
conceito de análise da implicação possa ser abordado e compreendido a partir de enfoques
diferentes (Socioanálise e Esquizoanálise), sendo que a Socioanálise se baseia na ideia dialética
de que a realidade estudada se transforma a partir das contradições que emergem e são
observados e denunciados pelos analisadores e a Esquizoanálise se orienta pela ideia de
imanência em que a realidade é produzida, se movimenta e se sustenta processualmente a partir
de encontros, devires e agenciamentos que fazem eclodir o novo, é importante que se tenha em
vista que o conceito de implicação não é o mesmo que dedicação, engajamento, investimento
do pesquisador, como comumente é confundido. Essa leitura o afasta de sua proposta principal
que é tanto a de denunciar “que aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de
uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão
imbricados nessa relação” (ROMAGNOLI, 2014, p. 47), quanto a de considerar que “a

2
O grupo escritas feministas é um coletivo de seis mulheres pós-graduandas (mestrado e doutorado) de diferentes
áreas e de três universidades (PUC Minas, UFMG e UFF), que se uniu com o objetivo de proporcionar/criar
colaborações mútuas para com os processos de escrita das dissertações e teses de cada uma. O grupo se encontra
com frequência variável e todas as participantes leem as produções das colegas, discutem, acolhem e se apoiam
mutuamente nessa difícil tarefa da escrita acadêmica, além de produzir textos coletivamente. O grupo escritas
dissidentes é formado por pós-graduandos (mestrado e doutorado) de diversas áreas, da UFMG e PUC Minas e
pela professora Renata Lima Aspis (Faculdade de Educação – FaE/UFMG). Para nossos encontros, lemos textos
previamente selecionados, principalmente das filosofias da diferença, mas também sobre outros temas de interesse
do grupo como feminismo, antirracismo, decolonialidade, que possam trazer potência e velocidade às nossas
buscas de criar outras formas, próprias, de escrever e de pesquisar. A partir dos afetamentos de cada leitura,
produzimos textos individual ou coletivamente, que são compartilhados com todos nos encontros, exercitando
uma outra metodologia de produção de conhecimento e pesquisa, mais voltada à busca de expressão singular
desde as bibliografias estudadas, do que a reprodução destas. O grupo se encontra com frequência quinzenal e
ambos os grupos se encontram de maneira remota atualmente.

28
imanência está presente em todas as realidades, em qualquer campo de pesquisa, integrando
não só as instituições, mas todo e qualquer processo, toda e qualquer relação do indivíduo com
os grupos e a sociedade, estabelecendo relações incessantes entre modelos, formas e forças” (
ibid., p. 49). Neste sentido, a análise da implicação é produtora de conhecimento,
desestabilizações, transformações, invenções que passam sempre pelo pesquisador, pela
pesquisa, pelo campo, na medida em que esse está incluso no processo e não fora dele.
Durante a produção dessa tese, fui percebendo progressivamente que as lembranças
marcantes do meu período formativo enquanto psicóloga e a experiência profissional que
adquiri em seguida estavam ainda intensas e compunham de maneira muito forte minha prática
clínica e de pesquisa. Entretanto, produzir uma tese é fazer uma proposição, conforme apontou
um dos membros da banca de qualificação deste trabalho. Afinal, o que eu estava a propor?
Essa foi a indagação. E, a partir dela e num cuidado de não produzir um texto somente
autobiográfico, me permitindo ser atravessada pelas formas e forças que compõem essa
profissão, e interessada em conhecer as histórias que compuseram as formações e práticas de
outras/os colegas psicólogas/os que trabalham com essa mesma temática, decidi que seria
muito importante a realização de entrevistas, ainda que essas apareçam aqui também enquanto
causos. Segundo consulta feita ao Michaelis (2015), o verbete causo corresponde a “narração,
geralmente oral e curta, que relata um acontecimento verdadeiro; caso, conto, história. Algo
que já aconteceu; acontecido, caso, sucedido”. Havia ainda, de minha parte, uma necessidade
de investir em uma tentativa de abordar e trazer a teoria esquizoanalítica, ou alguns dos
conceitos supercomplexos propostos por Gilles Deleuze e Félix Guattari de uma maneira que
pudesse contribuir para uma compreensão mais fácil, mais acessível à leitora e ao leitor.
Percebo que existe uma carência de produções - acadêmicas ou não - nesse sentido, o que pode
promover que muitos aventureiros nessa teoria-filosofia-práxis desistam já nas primeiras
páginas lidas dessa vasta e densa obra.
Esta pesquisa foi se construindo processualmente, conforme a metodologia escolhida
propõe e conforme as inquietações e as desterritorializações e reterritorializações vivenciadas
por esta pesquisadora que vos fala, modificando e ampliando os interesses. A princípio desejei
construir uma pesquisa que tratasse da subjetividade na contemporaneidade a partir da
perspectiva de Deleuze, Guattari e Foucault, mas a formação também estava presente em
minhas inquietações, assim como a Esquizoanálise, a clínica e o Esquizodrama. Decidi que
faria contato com o local que considero uma referência em formação em Esquizoanálise,
Análise Institucional e Esquizodrama, o Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte - IFG.
Preciso informar que tenho um acesso privilegiado ao IFG, que foi também minha escola de
29
formação e que tem em seu currículo mais de 20 anos dedicados a essa temática. Pensamos, eu
e a orientadora dessa tese, que nossos primeiros informantes (informantes zero) seriam os
egressos do IFG. Fiz contato com Gregorio Baremblitt, psiquiatra argentino fundador do
Instituto, e estive com ele para explicar-lhe do que se tratava a pesquisa. Tenho conhecimento
de um desejo antigo de Gregorio de que se criasse/fizesse uma “mala direta”, ou seja, um
compilado com todos os contatos dos egressos das formações do IFG, principalmente das
turmas de pós-graduação, para fazer novas conexões, saber por onde andam, o que estão
fazendo, quais os efeitos da formação e se estão fazendo Esquizodrama. Foi uma ótima
conversa e foi, inspirada por esse último apontamento, que pensei em colocar o Esquizodrama
como um dos pontos de interesse nas entrevistas em relação à prática esquizoanalitica.
Para dar início a esse processo, optei por uma metodologia muito utilizada em pesquisas
na área de saúde coletiva, a amostragem em bola de neve (snowball). O primeiro passo a ser
dado nesse método é selecionar um certo número de pessoas que fazem parte da população-
alvo a ser pesquisada; no caso dessa pesquisa, psicólogas/os que compreendem que suas
práticas são orientadas ou se inspiram na Esquizoanálise. Essas pessoas, que também podem
ser chamadas de “sementes” ou informantes zero, são incumbidas de indicar a partir de seus
contatos outros indivíduos para a amostra. Segue-se, assim, sucessivamente até que se alcance
o tamanho amostral que se deseja. Os primeiros entrevistados são o ponto de partida da
pesquisa e formam a onda zero, os entrevistados indicados pelos primeiros constituem a onda
um e assim por diante.
João Oswaldo Dewes afirma que

[...] a amostragem em bola de neve é um método que não se utiliza de um sistema de


referências, mas sim de uma rede de amizades dos membros existentes na amostra.
Este tipo de método baseado na indicação de um indivíduo de um ou mais outros
indivíduos é também conhecido como método de cadeia de referências (DEWES,
2013, p. 7).

Uma das especificidades desta proposta metodológica é o fato de ela oportunizar o


acesso a populações desconhecidas, raras ou que não foram identificadas previamente. No
mesmo texto, Dewes apresenta um exemplo de utilização da amostragem que contribui para
sua compreensão, ao apresentar uma pesquisa que pretendia acessar a população de usuários
de drogas injetáveis de determinada localidade. Para alcançar esse público, uma metodologia
de pesquisa tradicional poderia utilizar como alternativa contactar os serviços de saúde que
atendem a essa população. Ainda assim, não se chegaria facilmente à população desejada, já
que muitos usuários de drogas injetáveis não são acompanhados pelos serviços de saúde; além

30
disso, outros fatores, como a criminalização do uso de drogas e o preconceito em relação a esse
público também poderia dificultar o processo de pesquisa. Dessa forma, o uso desta
metodologia poderia facilitar o acesso ao público desejado justamente porque o método supõe
existir uma afinidade, alguma característica semelhante entre os membros da população, o que
possibilita que um entrevistado possa identificar outros membros para serem os próximos
entrevistados. A possibilidade de os primeiros entrevistados indicarem as próximas pessoas a
serem entrevistadas proporciona maiores chances de acesso ao público desejado.
Considerando o público-alvo da pesquisa, o caráter incipiente e insurgente da clínica
esquizoanalitica, que faz com que poucas/os psicólogas/os se denominem esquizoanalistas, a
escolha pela amostragem em bola de neve se fez opção bastante relevante, pois esse não era
um público de fácil identificação.
Nessa linha, pode acontecer também de uma onda ou um número de informantes não
produzir uma nova onda de contatos novos, quando os primeiros informantes - as “sementes”
- não fazem a indicação de outras pessoas. Quando isso ocorre, inicia-se novamente o processo
e buscam-se outros informantes “sementes”, que, por sua vez, vão indicar outros entrevistados.
Acessei os primeiros egressos da formação realizada pelo IFG a partir de uma lista de
contatos e meu interesse era o de seguir para os próximos entrevistados a partir da metodologia
amostragem em bola de neve. A primeira entrevistada (Entrevista 1) participou da primeira
turma de formação do IFG e indicou outra psicóloga que trabalha com Esquizoanálise
(Entrevista 2). A segunda entrevistada não indicou outra psicóloga que trabalhasse nessa
perspectiva, o que me fez retornar aos egressos do IFG. Esta pessoa entrevistada (Entrevista
3), por sua vez, também compôs as primeiras turmas do IFG e novamente não indicou outro
profissional. Compreendendo que não se tratava de uma pesquisa que buscasse apenas egressos
do IFG, considerando que para a cartografia, mais importante que a quantidade de participantes
em uma pesquisa é a qualidade e intensidade das entrevistas realizadas, e após ter feito duas
tentativas de iniciar a onda zero a partir dos egressos do IFG, decidi contactar a partir de minhas
redes pessoais e profissionais outras formações em Esquizoanálise. Foi assim que cheguei à
Formação Livre em Esquizoanálise, que acontece no Rio de Janeiro. Eu havia participado como
professora convidada desta formação com a temática do Esquizodrama e fiz um convite aos
alunos (egressos ou não) que concedessem as entrevistas. As entrevistas de número 4 a 9 foram
compostas por esses profissionais, que compuseram a segunda tentativa de iniciar uma nova
onda zero de participantes. A última entrevista realizada surgiu por meio de uma outra
indicação a partir de contatos feitos desde as minhas redes e fazia parte dessa tentativa de iniciar
outra onda de entrevistados. Como o contato foi disparado concomitante ao contato com a
31
Formação Livre em Esquizoanálise, a pessoa entrevistada não participava dessa formação.
Após a realização das dez entrevistas e a intensidade que emergiu nesses encontros, decidimos
que já havia material suficiente para compor a pesquisa e que não havia mais necessidade de
expansão a outros entrevistados.
Em artigo recente, Domenico Hur (2021) analisa e discute alguns conceitos encontrados
na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari que contribuem para a pesquisa em Ciências
Humanas. O autor aborda a cartografia, a perspectiva háptica e a lógica das intensidades no
método esquizoanalítico de pesquisa. Como a cartografia será mais detalhada adiante,
discorrerei apenas sobre a perspectiva háptica e a lógica das intensidades. Em relação à
perspectiva háptica, trata-se de uma expansão do alcance da visão óptica para os outros
sentidos, uma visão ampliada que não se faz apenas com os olhos, mas com todo o corpo, com
todos os sentidos presentes. Os métodos de pesquisa tradicionais comumente se concentram na
visão e audição do pesquisador; nessa perspectiva, ao contrário, o pesquisador precisa ir
tateando, precisa sentir as vibrações e deixar-se afetar, já que

[...] utilizamos o corpo como instrumento de coleta de dados, abrindo-o às afetações


das mais distintas espécies. Afetos, sons, ruídos, cheiros, movimentos, deslocamentos
e cansaços [já que estes] tornam-se índices investigativos do processo. É o(a)
pesquisador(a) implicado(a) e situado(a) em seu campo. Assim não atualizamos
somente narrativas, mas também forças e afetos, deslocamentos, velocidades e
lentidões (HUR, 2021, p.7-8).

A lógica das intensidades se relaciona à análise dos dados, análise qualitativa que na
cartografia não deve se restringir à frequência com que determinado elemento aparece nas falas
dos entrevistados, pois a quantidade de aparições pode sim refletir que aquele assunto, aquele
elemento, está em evidência, mas pode refletir também apenas certa repetição do mesmo,
exprimindo pouco sentido e relevância à pesquisa realizada.
Hur (2021) afirma que, na obra de Deleuze e Guattari, intensidade aparece como
sinônimo de força, de potência, mas, principalmente como sinônimo de diferença. Em uma
pesquisa que se realiza na perspectiva da Esquizoanálise, que, não fortuitamente, também é
conhecida como Filosofia da Diferença, rastrear as intensidades significa então rastrear a
diferença, o que há de novo, de inédito, de rachadura, de desvio, já que se trata da produção de
conhecimento e não reprodução do mesmo. Por isso, numa cartografia as perguntas, os
caminhos, as direções, são essencialmente provisórias; a proposta é construirmos mapas. É por
isso também que o percurso que fiz, a trajetória percorrida e que compõe em parte essa tese, se
fez priorizando a intensidade.

32
Um ponto curioso e muito interessante observado na realização das entrevistas,
principalmente nas primeiras, foi o fato de os entrevistados não indicarem outros possíveis
entrevistados. Isto se deu em quase todos os casos, não por não terem a quem indicar, mas
porque eles indicaram pessoas com outras formações profissionais. Recebi indicação de
filósofas/os, atrizes/atores e artistas que se orientavam pela Esquizoanálise, mas, como o
escopo dessa pesquisa, trata da prática, e principalmente a clínica da psicologia, acabei por
seguir o caminho descrito acima. Houve ainda a indicação de psicólogas que já haviam sido
entrevistadas por mim, a indicação de que eu entrevistasse a professora orientadora dessa tese
e ainda duas colegas de doutorado, inclusive uma delas cursava o doutorado no mesmo
programa de pós-graduação que faço parte. O que considero mais interessante, já em uma
análise de minha implicação em relação a feitura dessa pesquisa, é o reconhecimento de que a
ideia de neutralidade me atravessou em alguns momentos, ainda que eu tenha me empenhado
para me afastar dela, e, nesse caso, operou quase como um hábito, um cacoete, pois, devido à
minha proximidade com essas três pessoas, minha orientadora e as duas amigas, nem cogitei a
hipótese de entrevistá-las. Muitas vezes, as linhas duras nos marcam sem que possamos
perceber, sustentando movimentos de reprodução de uma ciência na qual o rigor se sustenta na
neutralidade e na objetividade.

2.2 A entrevista como causo

Durante a realização das entrevistas, fui percebendo pouco a pouco que eu estava
escutando histórias, casos, causos. As entrevistas, que ocorreram a partir da orientação da
cartografia, conforme será melhor detalhado à frente, foram se construindo e foi se abrindo
diante aos meus olhos, meus ouvidos, meu corpo, um universo à parte. Houve relatos da
formação de cada um dos entrevistados, como aconteceu, onde, quando; houve relatos de casos
atendidos e acompanhados; houve discussão política, histórias tristes, histórias alegres,
histórias emocionantes e emocionadas, afetos, histórias de superação, de criação, invenção, de
desafios, coincidências, críticas, presença, intensidade. Escutei de alguns que o exercício de
refletir sobre a própria prática tinha provocado movimento em sua clínica, o que aponta para
uma característica da pesquisa-intervenção, além de reforçar que a escolha da cartografia não
foi fortuita, já que se trata de uma produção, de um pesquisar que se constrói atento aos
movimentos e aos deslocamentos dos territórios. Em uma das entrevistas, recebi um texto

33
elaborado exclusivamente para subsidiar nossa conversa, cujo conteúdo trazia detalhes sobre o
funcionamento do trabalho dessa psicóloga. O texto, que me foi entregue ao final da entrevista
num gesto delicado de cuidado continha, para além das informações, o interesse declarado por
ela em contribuir com a pesquisa. Escutei de outros que tiveram receio, ansiedade que
antecedeu a entrevista, como foi apontado na sexta entrevista:

Eu já estava pensando: Nossa o que a Kelly vai perguntar? Vai testar meus
conhecimentos sobre Esquizoanálise? Não vou saber responder nada! Risos
(Entrevista 6).

Seguindo a cartografia, a perspectiva háptica, a lógica das intensidades (HUR, 2021),


percebi que uma ideia inicial que eu tinha tido de coletar “núcleos argumentais” a partir das
falas que emergissem das entrevistas e utilizá-las como ponto de partida para problematizar a
investigação não fazia mais sentido, já que cada história singular acessada nos encontros
apresentava um transbordamento de experiências e uma riqueza tão grande de intensidade e de
proliferação de vozes que não se poderia mais pensar na ideia de interrompê-las por saturação.
Não houve saturação de informações em torno de um problema, a lógica mudou para a
multiplicação conectiva em torno do tema da formação e prática “psi”, conectando causos e
entrevistas, multiplicação e conectividade.
Nos encontros houve dispositivos de subjetivação, processos de singularização, em
busca de sustentar a dimensão coletiva. Nas palavras de Guattari,

o termo ‘coletivo’ deve ser entendido aqui como uma multiplicidade que se
desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém de uma
pessoa, junta a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica de afetos, mais do
que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos (GUATTARI, 2012, p.19).

Assim, as entrevistas e minhas memórias se atravessaram, se emaranharam e fizeram


uma composição para esta tese: coletiva e intensa. Eu estava certa de que queria entrevistas e
não tabelas, então, assim como os causos que decidi inserir no texto após uma discussão com
o grupo de mulheres (escritas feministas), além de extratos literais dos relatos feitos, também
parte das entrevistas aparecem no texto como causo, costurando o texto, como se fosse um
“dedim de prosa”, um causo mineiro. Causos que emergem como uma enunciação coletiva,
rastros de intensidade que afloram no território já determinado pelas entrevistas. Inicialmente
pensei em nomeá-las, mas, para garantir o anonimato dos entrevistados, decidi por numerá-las
de acordo com a ordem que ocorreram. Outro fato importante que vale relatar é que elaborei
uma escrita, tipo um diário de campo, após a realização das entrevistas. Em alguns momentos,

34
isso ocorreu imediatamente após, em outros, apenas longos períodos mais tarde, ocasião em
que eu ouvia novamente os áudios das gravações feitas durante as entrevistas, após a pesquisa
ter sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CEP da PUC Minas. Todas as pessoas
entrevistadas concordaram com a gravação das entrevistas e firmadas por meio do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido –TCLE, conforme consta em anexo.
O causo, que nos dicionários de língua portuguesa aparece equivalente a fatos, casos,
acontecimentos, numa pesquisa um pouco mais aprofundada, aparece como uma linguagem
específica e marginal, local, transmitida principalmente a partir da oralidade e característica de
um povo, principalmente o povo caipira, da zona rural. Em uma análise sociolinguística que
aborda regionalismo e variação linguística a partir dos causos contados por Geraldinho 3 no
estado de Goiás, Julienni Sousa e Luana Lopes apontam que

A língua portuguesa apresenta uma rica diversidade e complexos sistemas


linguísticos que vão se adequando às necessidades daqueles que deles se utilizam.
Mesmo assim, as variantes linguísticas, por vezes, são alvo de avaliações valorativas
ou depreciativas. O conflito causado por tais avaliações pode contribuir para a
manutenção ou para o desaparecimento de traços linguísticos, o que torna tais
questões sempre atuais e significativas para aqueles que se dedicam aos estudos
sociolinguísticos. O foco da nossa investigação está no falar caipira, uma variante
comumente rotulada como inadequada e associada a indivíduos ditos “sem cultura”,
distantes dos padrões estabelecidos pela norma culta (SOUZA; LOPES, 2019, p. 64).

As autoras apontam que as variações linguísticas, como a linguagem caipira, por


exemplo, não são fenômenos aleatórios e são fortemente influenciados por fatores diversos,
como os sociais, os estilísticos e os avaliativos. Elas afirmam também que a diversidade
linguística sofre influência de diferenças geográficas, de classe, relacionadas aos níveis
educacionais, à categoria profissional, à faixa etária, dentre outras e se expressam em sua
continuação histórica, de modo que as mudanças temporais fazem parte da história das línguas.
Sem a intenção de fazer uma afirmação de cunho universalizante, porém, enquanto
mineira, nascida em Belo Horizonte e moradora da região metropolitana e de cidades do
interior do estado por muitos anos, posso afirmar que o causo, ou o contar causo, é um hábito
presente no cotidiano de Minas Gerais e está atrelado a certa singularidade, certa
particularidade local que marca a cultura de seu povo, uma “mineiridade”. Para Gláucia Batista,

3
Geraldo Policiano Nogueira, conhecido como Geraldinho, foi um contador de causos e típico sertanejo do
interior de Goiás, que ficou famoso na década de 1980 quando foi descoberto artisticamente por um apresentador
de televisão e passou a contar seus causos na mídia, fazendo grande sucesso. Para mais informações, ver: SOUSA,
Julienni Lopes de; LIMA, Luana Nunes Martins de. Regionalismo e variação linguística: uma reflexão sobre a
linguagem caipira nos causos de Geraldinho. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 72, p. 63-82,
abr. 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0020-38742019000100063&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 15
nov. 2020.

35
o valor dos causos “para os contadores, está na função de valorização e de preservação de um
modo de vida, de pensar ou, em outras palavras, na constituição de uma identidade que se
constrói na resistência à massificação cultural que despersonaliza, própria da globalização, e
na memória” (BATISTA, 2007, p. 111). Contudo, o causo não somente produz uma cultura
que escapa da cultura das classes dominantes, o causo também faz circular vida, interferências
cotidianas em modos de vida endurecidos.
Os causos que compõem esse texto foram extraídos tanto das entrevistas como da
experiência e memória da pesquisadora e selecionados a partir da relação que estabelecem com
os propósitos da pesquisa e a temática apresentada. A tentativa foi de apresentar à leitora e ao
leitor, ainda que em pequenos fragmentos, a intensidade acessada e que provocou tantas
desestabilizações e novas composições de vida em meu percurso de pesquisa, em minha
subjetividade e, certamente, nas subjetividades que também foram afetadas pelos encontros
provocados pelas entrevistas.
Ao final desse trabalho, consta em anexo um texto produzido coletivamente pelo grupo
“escritas feministas” e construído a partir de fragmentos que iam se conectando como uma
colcha de retalhos, fazendo-se e se desfazendo a todo o tempo a partir de nossos encontros.
Assim também se deu a produção desta tese, em um fiar e desafiar constantes que foi
alinhavando afetos, experimentações e memórias, cortes, emendas, linhas e pontos como um
tecido nas mãos de minha mãe ou de minha avó paterna, como observei tantas vezes no decorrer
da vida no ofício de costureira exercido por ambas.
Se o causo é uma narrativa oral, não ficcional, utilizado para a manutenção de uma
língua, da memória e da cultura de um povo, se está localizado no tempo e no espaço,
diferentemente do conto, se envolve liberdade de criação, já que é impossível prever seus
desfechos ou enredos e se se relaciona com aspectos da subjetividade de quem o conta e de
quem o escuta como sustenta Batista (2007), justifica-se o uso dos causos desvelados nas
entrevistas ou as entrevistas enquanto causos, justamente por esse gênero discursivo da tradição
oral estar imbricado na subjetividade desta pesquisadora mineira e em sua maneira de contar e
escrever não somente essa tese, mas a experiência de vida, numa afirmação dessa mineiridade.
Desse modo, foram selecionados então, os aspectos ou causos das entrevistas que se relacionam
com a memória da pesquisadora em uma composição dialógica e ilustrativa da temática
trabalhada: a prática clínica da/o esquizoanalista.
Seguindo as orientações ou pistas da cartografia, aspectos dessa abordagem podem ser
percebidos durante todo o texto, já que esse diálogo singular e intensivo - acessado por meio
das entrevistas, os fragmentos de minhas memórias e vivências profissionais e pessoais,
36
aspectos teóricos, discussões críticas, afetamentos e análises construídas durante a realização
da pesquisa, incluindo aí a experimentação de uma escrita que possa se fazer mais libertária,
política, considerando as dificuldades, as alegrias, a procrastinação, a distração e as
transformações transversais vivenciadas na pesquisa e na vida desta pesquisadora - foi
considerado. Para esta metodologia, pesquisa e vida são inseparáveis.

2.3 Entre pontos e linhas: caminhos traçados na cartografia

Para estudar a prática clínica da/o psicóloga/o em articulação com a formação em


Psicologia, poderíamos nos dedicar à análise do currículo dos cursos de Psicologia, as
normativas que estabelecem o ensino em Psicologia, suas regulamentações, as leis, enfim, as
questões formais ou burocráticas que tangem a formação; porém, ainda que eu acredite que
sejam importantes as discussões sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação
em Psicologia no Brasil, principalmente as mudanças veiculadas em 2011, e a que e a quem
serve e tem servido a profissão em nosso país, penso que nos limitarmos aos estudos das leis e
normativas parece reducionista no caso específico desta pesquisa. Ainda mais se considerarmos
que a instituição Educação é uma das instâncias mais conservadoras da sociedade, sustentando
poucas ações realmente transformadoras de seu modelo vigente, apostando ainda muito
timidamente em novas proposições, sustentando-se nas ciências duras, nas ciências naturais,
pouco apostando num paradigma emergente da ciência, como nos propõe Boaventura Santos
(1993), o que contribui para uma desqualificação dos estudos das humanidades ou Ciências
Sociais. Por esse motivo e pelo seu olhar ímpar a uma ideia de subjetividade que não é estanque,
pois se liga com o fora, com a exterioridade, dentre tantos outros, fiz uma opção de pesquisar
a formação e a prática da Psicologia de inspiração/orientação esquizoanalítica por meio do
método cartográfico e fazer contato, aproximar e entrevistar profissionais que podiam dizer de
sua prática profissional, localizando os efeitos de sua formação nessas práticas. É preciso
salientar que estamos nos referindo à prática clínica, onde quer que ela seja praticada.
A pesquisa tradicional, assim como a ciência, tal como usualmente praticada desde a
modernidade, priorizam formas de se pesquisar muito calcadas na neutralidade, na obtenção
de resultados, sínteses, respostas objetivas que partem de um saber (da/o pesquisadora/or) para
um não saber (do objeto e campo de pesquisa) para, assim, coletar e obter conclusões; a

37
cartografia, a partir de uma perspectiva rizomática propõe: pique! Não faça raiz! Considere, ou
melhor, acolha a invenção, as forças que estão fora do sujeito interior, a percepção, as
sensações, as multiplicidades inerentes ao campo, ao corpo da/o pesquisadora/or e do que é
pesquisado que se conectam, desconectam, afastam-se, aproximam-se ininterruptamente na
construção do processo de pesquisa. Compreender o corpo da/o pesquisadora/or, da/o
cartógrafa/o, e o que ele traz de memória, percepções, pensamentos e afetos são cruciais para
o processo de pesquisa na cartografia para promover e sustentar um novo fazer na pesquisa,
que se constrói muito mais potente, e necessariamente rizomático.
É a partir da biologia e da botânica que Deleuze e Guattari (2011) se orientam para
apresentar a concepção de rizoma, fazendo uma alusão ao funcionamento distinto de três tipos
de raiz (pivotante, fasciculada e rizoma). Os autores argumentam que o modo de pensar
tradicional, racional tem um funcionamento arborescente, binário, dicotômico, dual. A “árvore
do conhecimento” (raiz pivotante) é sustentada por uma unidade, seu tronco, e se espalha pelos
galhos compondo um sistema de pensamento que opera por um modelo transcendente do qual
se origina todas as interpretações da realidade em um movimento de simplificação. A raiz
fasciculada inicialmente passa a impressão de não ter uma direção, uma centralidade, por conta
de suas raízes múltiplas, que são inseridas na raiz pivotante. Aqui podemos ver um pensamento
mais contemporâneo, produto da modernidade; entretanto, esse modelo não rompe com o
dualismo, apenas coloca outros sistemas de pensamento em ação, mas ainda
sobredeterminando a realidade e o processo de conhecer, operando ainda por uma lógica
transcendente. No rizoma, por outro lado, não há uma unidade central, principal, de onde se
originaria sua extensão, pois não é possível identificar seu início ou fim e o sistema de
pensamento opera por imanência sustentando a complexidade. Assim como observamos no
desenvolvimento de um gengibre, um tubérculo, ele transborda, se dissemina, contamina todo
o entorno, não é uno, nem múltiplo, é multiplicidade que não unifica e nem totaliza. Pode ser
acessado de qualquer ponto, não há que se buscar sua origem. É a incidência da multiplicidade
(n -1), “[...] qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É
muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.
22). Ou seja, o rizoma estabelece conexões entre diversos elementos que possuem dimensões
próprias e conservam suas diferenças.
Para adentrarmos a perspectiva cartográfica e sua inspiração rizomática, optei por
apresentar a seguir um percurso textual que aborda alguns elementos que acredito serem
cruciais para compreensão, funcionamento e sustentação metodológica da cartografia. Esses
elementos cruciais que merecem nossa atenção e destaque são: 1) a discussão do corpo na
38
cartografia; 2) o funcionamento da entrevista no contexto da cartografia, 3) o estabelecimento
de um vínculo de confiança nesta perspectiva de pesquisa; 4) a análise dos dados na pesquisa
cartográfica; e, finalmente, 5) a validação da pesquisa.
Flávia Liberman e Elizabeth Lima (2015) afirmam que o corpo da/o pesquisadora/or
que se propõe a uma pesquisa cartográfica deve ser compreendido em sua capacidade de afetar
e ser afetado pela experiência que se constrói durante a pesquisa. Ao contrário do que se pensa
hegemonicamente na forma clássica da ciência, de que a/o pesquisadora/or deve apenas
observar o seu objeto de pesquisa para dele coletar informações, exercendo um lugar de
neutralidade, as autoras afirmam que a cartografia propõe que se estabeleça uma relação entre
pesquisadora/or (e seu corpo) e os outros corpos humanos e inumanos que a/o pesquisadora/or
encontrar em seu percurso de pesquisa. O percurso, o caminho, a trajetória da pesquisa é
construída durante o caminhar, e, portanto, é preciso considerar que a construção é coletiva e
não individual, apenas da/o pesquisadora/or. Para tanto, numa cartografia, é necessário se
“preparar” um corpo que se faça disponível, sensível, permeável, capaz de suportar as
adversidades, as desestabilizações do caminho para deixar passar novas possibilidades de
expressão e invenção, enfim, novas composições, entre o corpo da/o pesquisadora/or, o campo
e a vida, que são compreendidos de forma imanente. Liberman e Lima propõem cinco guias
que podem orientar o trabalho cartográfico no que diz respeito ao corpo e/na pesquisa. A
primeira guia indaga: o que pode um corpo? Apoiando-se nesse importante questionamento de
Espinosa, as autoras propõem que o corpo da/o cartógrafa/o se sustente em sua capacidade de
afetar e ser afetado, pois, quanto mais o corpo puder ser afetado, maiores serão as possibilidades
de se compor bons encontros, ou seja, os encontros que podem aumentar nossa “potência de
ser, agir e pensar” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 185). Isto só é possível, como dito
anteriormente, pela capacidade do corpo cartógrafo em estar disponível, sensível, permeável e
atento aos encontros e suas composições, sejam quais forem. A segunda guia: o corpo como
pulso trata de considerar o corpo em todas as suas dimensões, não priorizando nem a razão nem
a emoção, pois são interdependentes, compõem-se, e todos os aspectos são importantes e
merecem atenção num processo de pesquisa. A terceira guia sugere afirmar a potência da
materialidade dos corpos. Propõe-se que os corpos estão em constante processo de
autoprodução, e por isso, apostar na potência de sua materialidade implica ir além da
materialidade finita do corpo, apostar em sua potência de fazer composições com o ambiente,
conexões, experimentar, conhecer e produzir novos mundos. A quarta guia propõe se colocar
à espreita, ou seja, estar atento ao inesperado, ao emergente, ao pequeno, minucioso, que pode
ficar invisível caso o cartógrafo não acesse em seu próprio corpo sensações, memórias,
39
pensamentos e afetos que possam acompanhar o processo de pesquisa. Trata-se de fazer uma
“com-posição” (ibid.), ou seja, não estar apenas na posição de observar, mas de compor,
conforme propõem as autoras, de estar junto, atento e em posição não hierárquica, de modo a
contribuir para a passagem de fluxos. A quinta guia diz da invenção de práticas e dispositivos
de produção de um corpo cartógrafo. Aqui, as autoras propõem que se criem, se inventem
práticas que tornem o corpo cartógrafo mais capaz de se abrir aos acontecimentos, aos afetos,
às intensidades. Sugerem que nos instalemos em um território e que busquemos nele conexões
com as linhas de fuga, com aquilo que podem propor novas composições ao território,
aumentando sua potência ao mesmo tempo que aumenta a potência da/o pesquisadora/or, já
que ambos são reinventados num processo de territorialização e desterritorialização imanentes.
Construindo a pesquisa por meio dessa metodologia, decidi, conforme apontado
anteriormente, realizar entrevistas com profissionais da Psicologia que reconhecem que suas
práticas são influenciadas ou inspiradas pela Esquizoanálise. Entretanto, como se daria uma
entrevista na cartografia? Para Sílvia Tedesco, Christian Sade e Luciana Caliman (2013), a
entrevista na cartografia não tem como direção o acesso restrito às informações, mas sim à
experiência vivida no encontro entre entrevistadora/or e entrevistada/o, já que a pesquisa
cartográfica visa o acompanhamento de processos e a/o entrevistadora/or não tem a intenção
de obter dados e representá-los. Ainda que a troca de informações possa acontecer no processo
da entrevista, não é este seu objetivo ou função. A função da entrevista na cartografia seria
acompanhar o traçado de forças e formas que se compõem nesse encontro. Afetos,
intensidades, ritmos, entonações, variações, embaraços estão presentes e são imanentes a
entrevistadora/or e entrevistada/o e tudo o que surge nesse encontro deve ser considerado, sem
se fazer uma separação entre conteúdo e expressão, pois, quando se privilegia essa binarização,
corre-se o risco de escutar apenas informações, capturando e reduzindo a potência da entrevista.
A experiência da fala, para os autores, diz respeito ao escape de uma fala que se faça unívoca,
aprisionada a verdades pré-estabelecidas, a palavras de ordem, a reducionismos, respostas
prontas. A experiência de falar traz elementos que vão além do que é dito com palavras
(conteúdo e expressão). Existe algo no processo de dizer, de falar, de conceder uma entrevista
que pode ser percebido naquilo que não é dito, ou naquilo que é dito de forma acelerada ou
lentificada, naquilo que engasga, que muda de ritmo, de entonação. Segundo os autores, o que
interessa à entrevista na cartografia está na colheita dos dados, ou dos efeitos, daquilo que surge
na experiência de dizer e que são efeitos produzidos e compartilhados naquela experiência
singular da conversa que se estabelece no decorrer de uma entrevista. Há uma “pluralidade de
vozes” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013, p. 315), e essa pluralidade diz respeito às
40
intensidades que atravessam esse momento da conversa, já que falam “junto” ao sujeito
entrevistado não apenas as palavras que ela/e diz, mas também seu corpo, seus anseios, as
instituições, além da relação de acolhimento e também de confiança que pode ser estabelecida
ou não entre entrevistadora/or e entrevistada/o.
Em uma das entrevistas que realizei e que aconteceu presencialmente, vivenciei uma
experiência de um encontro tão intenso que se estendeu até o momento de registrar em meu
diário de campo aquilo que foi acessado. Este pequeno relato a seguir traduz um pouco dessa
intensidade:

Quase um mês se passou da realização dessa entrevista até eu conseguir organizar


minhas ideias e afetos para alcançar a coragem de escrever esse diário de campo. A
coragem a que me refiro diz da maneira intensa que essa entrevista me afetou. Precisei
coragem! Tentei escrever na semana seguinte a entrevista, mas não foi possível
porque caí em pranto ao iniciar a leitura do texto que essa entrevistada redigiu para
mim e me entregou na ocasião. Um texto que aborda sua prática, sua maneira de
trabalhar, além de fragmentos de casos atendidos por ela desde 1983. Magnífico,
objetivo, sincero, intenso o texto. Precisei de umas quatro tentativas para conseguir
chegar ao final da leitura e conter o choro ao mesmo tempo. Fiquei e ainda estou
pensando que tipo de bruxaria essa pessoa fez, que tipo de bruxaria fizemos, ou, o
que se passou ali naquele encontro. Vamos lá! (Diário de Campo, entrevista 2).

Fato interessante sobre esses apontamentos que se referem ao corpo e a entrevista na


cartografia é a diversidade do que pôde ser acessado nas entrevistas que foram feitas nos locais
propostos pelos entrevistados, em seus consultórios e as outras, a maioria delas que ficou
condicionada ao modo on-line, primeiro devido à distância física mesmo de um dos
entrevistados, já que estávamos em estados diferentes do país e depois, devido à pandemia de
Covid-19 anunciada pela Organização Mundial de Saúde - OMS em março de 2020. Apenas
duas das entrevistas foram realizadas presencialmente. Destas, ainda estão presentes na
memória o cheiro do lugar, o caminho percorrido pela cidade para chegar ao local marcado, as
cores da decoração de cada consultório, a sensação que misturava alegria e ansiedade antes de
chegar, a afirmação da pesquisa. Nas entrevistas realizadas de modo on-line, os corpos com
movimentos restritos devido à mediação da tela do computador, do celular, as interrupções e
falhas na internet estiveram presentes, mas, não impossibilitaram seus fluxos. Ao fundo dos
áudios gravados, vez ou outra ouve-se um carro de som de um supermercado que anuncia
ofertas, o barulho do bater de uma porta fechada abruptamente pelo vento, as minhas falas e as
falas das/o entrevistadas/o se misturando devido ao atraso do envio de dados embaralhando
sentidos e fazendo surgir risadas em ambas as partes, latidos de cachorros, sons, ruídos. A partir
das últimas entrevistas, outros elementos estiveram presentes: Está tudo bem com os seus? Tem
conseguido fazer o isolamento social? Há quanto tempo está em casa? Foram perguntas

41
trocadas, além de dados sobre o avanço da pandemia nas cidades, no país, acrescidos de um
descontentamento e preocupação com o desgoverno da Presidência da República brasileira e
dos governantes de alguns estados e municípios devido ao alastramento em massa da pandemia.
Ainda que on-line, os corpos estiveram presentes, corpos mais cansados talvez, mais
preocupados, mas, corpos resistentes, atentos e sensíveis às trocas, aos diálogos, aos afetos.
Entretanto, se eu pudesse escolher, queria mesmo era sentir o cheiro, o sabor dos encontros
presenciais.
A perspectiva de entrevista na cartografia apresentada pelos autores supracitados,
estabelece um diálogo profícuo com a ideia de rizoma, conceito crucial para a Esquizoanálise.
Deleuze e Guattari sugerem “seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar
a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n
direções, com direções rompidas” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 28). Somente a partir
dessa perspectiva é que uma entrevista cartográfica, ou melhor, uma entrevista na cartografia
funcionaria, já que esta não prevê um caminho pré-determinado que teria apenas a pretensão
de verificação da hipótese estabelecida antes da realização da pesquisa, e sim direções e
propostas infinitas que se constituem a partir e no encontro com o campo. Algumas das pessoas
que entrevistei, por não saberem inicialmente que se tratava de uma pesquisa cartográfica,
principalmente os que participariam da entrevista on-line, colocaram-se disponíveis para
responder ao “questionário”, imaginando que haveria apenas perguntas e respostas a serem
feitas. Ao início de todas as entrevistas realizadas, apresentei rapidamente o método
cartográfico, ainda que a maioria já o conhecesse e sustentei junto deles essa perspectiva de
entrevista.
Outra questão extremamente relevante na pesquisa cartográfica é o estabelecimento de
um vínculo de confiança entre os membros da pesquisa, algo que só é possível quando se pode
construir um plano de experiência comum. Christian Sade, Gustavo Ferraz e Jerusa Rocha
(2013) em um texto que fala sobre o ethos da confiança na pesquisa cartográfica, afirmam logo
na introdução do texto que muitas pesquisas, ao não considerarem o viés da construção de
confiança entre pesquisadora/or e pesquisado, promovem um afastamento entre seus
participantes que impede que as singularidades e o plano da experiência sejam acessados ou
compartilhados. A crítica dos autores é de que as pesquisas que trabalham numa perspectiva
de verificação, quantificação e neutralidade, impossibilitam que seus voluntários possam falar
de si a partir da própria experiência singular em relação ao aspecto estudado. A função da
confiança na cartografia seria promover transformações, produção de conhecimento coletivo e
compartilhado, aumentando com isso a potência de agir das/os participantes e promovendo
42
novas conexões e possibilidades; emergência de novas subjetividades. Para esta, aposta na
construção de vínculos, buscam-se não vínculos pessoais, identitários e sim vínculos que se
constroem a partir de atravessamentos virtuais, coletivos e a vivência de uma sintonia que seja
comum às/os participantes. É preciso que se utilize de dispositivos coletivos de pesquisa e “os
dispositivos precisam cultivar a confiança, pois, confiança demanda tempo, temporalidade na
qual se estabelece a sintonia afetiva e o engajamento que nela se baseia. O que põe em questão
a regulação dos vínculos (...)” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2013, p. 292). Os autores trabalham
algumas questões como a recalcitrância em pesquisas com humanos, que passa a ser
considerada, para além da questão epistemológica, como uma forma ética de agir, reconhecer
e valorizar a experiência do outro, sendo incorporada pela pesquisa, agindo a favor do trabalho
e sendo considerada “junto”, coletivamente, cultivando uma experiência compartilhada de
confiança no grupo. Apresentam ainda a ideia de sintonia entre participantes, que se dá não
pelo formato racional e lógico, mas pela casualidade da virtualidade presente nos encontros,
como sendo algo que pode favorecer o estabelecimento de vínculos. Com isso, abordam a
questão do contrato, que não deve consistir apenas a efetivações burocráticas, mas sim na
construção coletiva de conhecimento, que faz dos “pesquisadas/os” co-autoras/es de sua
própria história. É preciso considerar também, a partir de uma leitura mais atenta, que há um
engajamento necessário para a prática coletiva em pesquisa e o caráter de intervenção da
cartografia que só pode ocorrer de forma mais eficaz a partir do momento em que é estabelecida
essa confiança. A construção do plano de experiência comum pode se dar à medida que todas
essas situações descritas acima venham a funcionar de forma a favorecer construções
efetivamente coletivas e partilháveis a todos os participantes.
Em relação à análise de dados a partir do método cartográfico, Deleuze e Guattari
(2011) afirmam que “Escrever nada tem a ver com significar, mas, com agrimensar,
cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir”. Este trecho, encontrado no texto
Introdução: Rizoma, conecta-se com a proposta de análise na cartografia. Letícia Barros e
Maria Elizabeth Barros (2013), ao abordarem a perspectiva da análise na pesquisa cartográfica,
afirmam que assim como na escrita, como assinalam os pensadores franceses, analisar nada
tem a ver com significar, representar ou até mesmo encontrar uma solução, já que o que é
passível de análise é justamente o “problema” que se constitui no decorrer da pesquisa e que é
acessado conjuntamente e compartilhado por todas/os as/os participantes, sejam elas/es
pesquisadoras/es e/ou os pesquisadas/os. A análise, que traz em seu corpo: análise da
implicação, análise de participação, objetividade, subjetividade e articulações possíveis, busca
acessar os efeitos construídos coletivamente, a proliferação de sentidos e sua capacidade de
43
provocar reposicionamentos nas/os participantes e não respostas obtidas a partir de um dado
que estaria pronto, a priori, anteriormente e separadamente da pesquisa.
Nesta perspectiva da análise na cartografia que se processa o tempo todo no decorrer
da pesquisa, algumas ações foram tomadas, na medida em que se alcançava, que se acessava
questões e problematizações não necessariamente explícitas no começo da pesquisa, mas que
foram surgindo e sendo elaboradas e analisadas durante sua realização. Um exemplo
importante a ser citado se refere ao meu próprio processo de racialização, ou da possibilidade
de conscientização e afirmação da minha condição de mulher negra, psicóloga, esquizoanalista
e pesquisadora que ganhou força durante o processo de realização desta tese e do doutorado.
Relatei no início do capítulo que entrevistei dez pessoas; porém, no início da pesquisa, não me
atentei para o fato de perguntar às entrevistadas e ao entrevistado (foram nove mulheres
participantes da pesquisa e um homem) sobre sua autodeclaração racial. Esse fato passou
desapercebido, como passou desapercebido também para mim a imprescindibilidade de me
reconhecer e me afirmar enquanto uma mulher negra e a importância sobretudo política deste
ato, já que vivenciei tantos episódios em que essa condição foi dissimulada pela
“passabilidade” autorizada pela ideologia do colorismo 4 quanto a outros diversos episódios de
racismo no cotidiano.
No primeiro ano do meu ingresso no doutorado, fui convidada a participar da Semana
da Psicologia e realizar uma prática de Esquizodrama para alunos da graduação em outra
unidade da PUC. Ao chegar na unidade, estacionei meu carro no estacionamento reservado aos
alunos, já que também estava na condição de aluna de doutorado da instituição e não no
estacionamento reservado aos palestrantes, aos visitantes, ainda que também estivesse
ocupando essa função na ocasião. Ao terminar a atividade, a professora que me convidou para
realizar a prática e uma das alunas que auxiliava na organização do evento propuseram que
tomássemos um bom cafezinho com pão de queijo numa lanchonete em frente à universidade.
Foi uma tarde agradável e estávamos contentes conversando sobre a atividade, que havia sido
muito potente. Ao retornarmos à PUC, estávamos, eu e as colegas supracitadas, ambas de pele
branca, e eu fui impedida de entrar na unidade. O segurança que estava à portaria, pediu meus
documentos, mesmo que eu estivesse com o crachá do estacionamento em mãos. Argumentei
que participava do evento e ainda que era aluna da instituição, mesmo assim fui constrangida

4
O colorismo é uma ideologia, assim como o racismo, que cria um sofisticado sistema classificatório e hierárquico
entre o povo negro, de modo a atribuir qualidades e fragilidades às pessoas negras a partir de uma valoração
relacionada ao seu tom de pele. Os efeitos mais marcantes do colorismo, a meu ver, são a despotencialização da
luta antirracista e a contribuição para a manutenção de práticas racistas na sociedade (DEVULSKY, 2021).

44
com sua abordagem racista e desastrosa que buscava “documentos que comprovassem que eu
poderia acessar a unidade” e afirmava que aquele era um procedimento feito a todas as pessoas.
Entretanto, as duas colegas não precisaram apresentar suas carteirinhas ou documentos. Talvez
essa tenha sido a primeira experiência de racismo explícita que vivenciei, desde que tive
consciência e pude nomeá-la adequadamente. As colegas, vendo meu constrangimento e
nervosismo, ficaram atônitas. Só pude entrar depois de mostrar minha carteira de estudante de
doutorado da PUC. Dessa vez, tomei providências de fazer uma reclamação na ouvidoria da
PUC, ali na mesma hora. O chefe da segurança foi chamado para conversar comigo e eu, já
bastante abalada emocionalmente, apontei de longe, atendendo ao seu pedido, o segurança que
havia me abordado. O chefe da segurança me fez um pedido de desculpas, disse que essa não
era a orientação da universidade e que tomaria providências sobre o ocorrido.
Antes de terminar essa tese, fiz novo contato com todos os entrevistados e pedi a eles
que me dissessem sobre sua autodeclaração racial. A análise na cartografia, sempre presente
no processo, possibilitou que fosse feita esta articulação. A situação violenta que vivenciei,
fortalece para mim, a importância de legitimar o espaço na pós-graduação para pessoas negras.
É essencial para nosso país que pessoas negras ocupem esses lugares. Na minha família, sou a
primeira a chegar ao doutorado. Sobre a autodeclaração racial, nove das dez pessoas
entrevistadas responderam ao meu chamado ulterior. Sobre as respostas, sete entrevistadas/o
se autodeclararam brancas/o, uma delas preferiu não declarar, respondendo à minha pergunta
com uma compreensão de que é pertencente à raça humana e apenas uma entrevistada se
autodeclarou negra. Só as respostas a essa pergunta já me animariam a escrever outra tese, mas
por ora, afirmo que acredito ser crucial para produção acadêmica, sobretudo a brasileira,
considerar dados de pesquisas que abordam questões raciais.
Tradicionalmente em pesquisas nas ciências humanas, adota-se uma postura em que a
objetividade deveria ser acessada genuinamente, já que se pode obtê-la a partir de análise de
dados coletados. Distanciando-se desta tendência, Letícia Barros e Maria Barros (2013)
apontam que a objetividade não se define em contraposição à subjetividade constituída por
representações e a separação entre elas só contribui para um afastamento do sentido de
experiência, que não determina o que é subjetivo ou objetivo aprioristicamente. Amparadas por
autores e pesquisadores como Whitehead, Wahl e Despret, as autoras dizem da importância da
experiência na pesquisa, justamente porque ela corresponde a um acesso à realidade, ou aos
dados, tal qual eles nos são dados no fazer da pesquisa, já que compreendem que estes não são
ofertados de antemão. Assim, “a objetividade, aqui, é a da própria experiência em seu aspecto
criador” (BARROS, L.; BARROS, M, 2013, p. 379). As autoras afirmam que à medida em que
45
a/o pesquisadora/or se deixa afetar pelo campo, há uma coemergência da experiência e que
nesse sentido é que se constata a inseparabilidade entre sujeito e objeto. Se objeto e sujeito não
se separam, se não há um sem o outro, esses efeitos podem ser percebidos na medida em que
se processa a experiência de pesquisar na cartografia, pois, observadora/or e observado
articulam-se singularmente no decorrer do processo, construindo uma obra multifacetada que
pode e deve ser analisada conjuntamente por todas/os a/os envolvidos. Segundo as autoras “a
análise ‘na’ pesquisa é inseparável da análise ‘da’ pesquisa” (ibid.,, p. 384). É nessa perspectiva
e, considerando a análise das intensidades como defendida por Hur (2021) que essa pesquisa
cartográfica foi se construindo, pois, a partir das intensidades acessadas nas entrevistas e na
vida desta pesquisadora é que surgiu a possibilidade de trazer para o texto o que foi contado e
percebido, inclusive enquanto causo.
O ethos analítico, na pesquisa cartográfica, se sustenta a partir de uma perspectiva da
pesquisa enquanto intervenção, enquanto acompanhamento de processos; por isso, um
processo essencial, e pela dissolução do ponto de vista da/o observadora/or, ou seja, se o
processo é construído conjuntamente pela/o pesquisadora/or, participantes e o campo, não é
possível se pensar em uma pesquisa, que vá apenas coletar e analisar dados em etapas distintas
e codependentes. Na cartografia, surgirão questões, incômodos, recalcitrância,
reposicionamentos que não estavam previstos e que devem ser acolhidos, compartilhados e
problematizados por todos na medida em que a pesquisa se constrói. É uma construção não
abstrata, gera efeitos, quebra com a lógica clássica da neutralidade e se constitui numa ligação
estreita entre análise-clínica e política, que, para a cartografia, são inseparáveis.
Para finalizar, mas não concluir, faz-se necessário trazer também a questão da validação
da pesquisa na cartografia. “O bom e o mau são somente o produto de uma seleção ativa e
temporária a ser recomeçada” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 26). Essa afirmação de
Deleuze e Guattari (2011) se relaciona estreitamente à questão da validação na cartografia
conforme apresentam Eduardo Passos e Virgínia Kastrup (2013). Assim como na perspectiva
da análise discutida acima, a cartografia aqui também é considerada enquanto intervenção.
Passos e Kastrup apontam que a realidade da pesquisa se constrói na medida em que se dá o
acompanhamento desse processo num plano coletivo de forças.
Neste sentido, para a validação da pesquisa, os autores sugerem diretrizes que a/o
pesquisadora/or deve considerar, que são a autoavaliação, a avaliação pelas/os participantes e
a avaliação em pares. A autoavaliação é a avaliação que deve ser feita continuamente pela/o
própria/o pesquisadora/or e deve considerar não só uma escuta e um olhar mais atento ao
campo, mas todo um corpo sensível a novos problemas que possam ser trazidos pelas/os
46
participantes; a avaliação pelas/os participantes determina a participação das observações
das/os participantes em relação à pesquisa que se realiza, sendo que suas contribuições devem
ser acolhidas e não excluídas em nome de qualquer neutralidade e a avaliação por pares consiste
em se propor que outras/s pesquisadoras/es possam acompanhar o processo de realização e
escrita da pesquisa considerando sempre se a participação de todas/os as/os envolvidas/os está
de fato sendo respeitada, no sentido de promover produção de novas subjetividades,
interferências, recalcitrância, afetos. Quando é possível essa configuração e a/o pesquisadora/or
se utiliza destas dimensões, tanto os fenômenos inventivos quando os reprodutivos comporão
a análise e validação da pesquisa. Os autores apontam que determinadas formas de produzir
conhecimento privilegiam ainda os resultados obtidos sobre o observado pelas/os
observadores, o que pode contribuir a um olhar restrito do que se propôs pesquisar, ou fiel ao
ponto de partida inicial da pesquisa. Passos e Kastrup (2013) trazem também em seu texto,
experiências de pesquisa em que as/os participantes tinham questionamentos diferentes do que
havia sido pré-selecionado pelas/os pesquisadoras/es, mas que foram acolhidos e incluídos no
processo constante de análise da pesquisa, podendo-se obter assim, a partir da colheita de dados
e do estabelecimento de um plano comum entre participantes da pesquisa, a transformação
tanto do campo como da intervenção produzindo efeitos que foram gerados pelos processos
disparados. Assim, as “interferências”, a reprodução ou a recalcitrância , ou seja “o mau”, “o
que não deu certo”, que em outras formas de pesquisar seriam excluídas ou ocultadas no
momento da validação, tanto quanto as transformações, as invenções e as recomposições
capazes de produzir novas subjetividades, formas de ver o mundo, ou seja “o bom”, “o que foi
percebido como positivo”, são duplamente consideradas, não separadas e são incluídas no
processo de produção da pesquisa, não privilegiando-se uma nem outra, já que partimos na
cartografia de uma posição não dicotomizante da vida e a reconhecemos como mutável, fluida
e passível de endurecimentos e flexibilidades, imanentemente.
O acesso ao plano coletivo de forças é essencial ao procedimento metodológico da
cartografia. Segundo Passos e Kastrup (2013), ao se acompanhar processos, para além de
descrever dados, há que se considerar que esse plano de forças se constrói e desconstrói
variadas vezes e essa construção não é individual, da/o pesquisadora/or, mas coletiva. Acessar
esse plano de forças é o que possibilita à/ao pesquisadora/or colaborar para a composição de
processos de produção de subjetividade. A cartografia, sendo pesquisa-intervenção, promove
conhecimento porque interfere nesse campo de forças, que se dá durante a realização da mesma.
A/O pesquisadora/o precisa ter uma atenção concentrada e aberta, operar num plano
problemático, se concentrar no caminho que vai percorrer na produção da pesquisa e não em
47
metas pré-estabelecidas, trabalhar numa perspectiva de colheita de dados, ao invés de coleta
de dados, acessar e habitar o plano de experiência das/os participantes e considerar que a
produção de realidade ocorre ali, na hora que se realiza o encontro. “No lugar do controle, o
contato” (PASSOS; KASTRUP, 2013, p. 402) são apontamentos importantes dos autores à/ao
cartógrafa/o que deve considerar também que a avaliação se faz durante todo o processo de
pesquisa e não somente ao final e que pode e deve utilizar de instrumentos de autoavaliação,
avaliação pelos participantes e avaliação por pares para que se possa alcançar o rigor necessário
para a validação da pesquisa no ponto de vista da cartografia.
Nessa perspectiva, Passos e Kastrup propõem três indicadores para a validação da
pesquisa cartográfica: o acesso à experiência, a consistência cartográfica e a produção de
efeitos. No que diz respeito ao acesso à experiência, consiste em acessar processos, ao invés
de se buscar objetos supostamente dados. A experiência se constrói, não é individual, de um
sujeito, é acontecimento, é agenciamento coletivo e deve ser falada de dentro e não sobre ela,
saindo do viés representacional. A consistência da pesquisa diz respeito principalmente à
avaliação da rede de atualizações que se fizeram possíveis por meio da realização da pesquisa,
de como foi composto o plano da realidade, quais agenciamentos foram possíveis. Não se trata
de correspondência e representação, e sim de se buscar reverberações comuns aos dados
colhidos a partir das intervenções feitas, observando-se, assim, “uma relação entre a
perspectiva teórico-conceitual, a constituição do manejo dos dispositivos, a orientação
(guidance) da produção de dados e os resultados ou efeitos observados” (ibid., , 2013, p.405).
No que tange à produção de efeitos, considerando a validação da pesquisa cartográfica e a
compreendendo como interventiva e participativa, os autores propõem que essa avaliação seja
distribuída, sendo que o que se busca é o efeito, as articulações que foram possíveis nas redes
que compuseram o campo da pesquisa.
No que se refere à validação da pesquisa cartográfica apresentada nesta tese, todos os
textos produzidos para compor cada capítulo, além de terem sido compartilhados e discutidos
com a orientadora desta tese, foram compartilhados e discutidos também com as pesquisadoras
que compunham o grupo de escritas feministas, que liam e contribuíam com a pesquisa
paulatinamente. Assim como no causo, que busca uma manutenção da memória e experiência
numa comunidade, o compartilhamento dos textos com outras pesquisadoras, para validação
da pesquisa, buscou os efeitos e também a sustentação na comunidade de experiência
esquizoanalitica por meio principalmente das trocas, das entrevistas e dos causos.
Importante ressaltar que a cartografia se apoia em uma leitura própria da subjetividade
que dialoga com a clínica esquizoanalítica. Essa leitura parte de um campo conceitual
48
complexo, minucioso e fecundo que considera cuidadosamente implicações contemporâneas e
históricas que influenciam a construção da subjetividade como o Capitalismo Mundial
Integrado (CMI) apresentado por Guattari (1991) ou ainda conceitos elementares propostos
conjuntamente por Deleuze e Guattari (2011), como linhas, fluxos, intensidades, rizoma, para
citar alguns. Para estes autores, a subjetividade tem uma complexidade que remete não só à
interioridade, mas a situações, acontecimentos que se autoproduzem a todo instante. Deste
modo, nos atentaremos mais cuidadosamente a essa perspectiva ou maneira de compreender a
subjetividade no capítulo seguinte.

49
Causo: A separação entre a Psicologia a Cultura

Um dia, em um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico,


quando a gente ainda chamava assim os equipamentos das políticas
públicas de saúde mental, numa cidade de Minas Gerais, duas
psicólogas conversavam. Uma conversa assim à toa, sobre seu
trabalho, sobre clínica:
– Minina, atendi uma vez em meu consultório uma pessoa que
frequentava a Cultura Racional. Aprendi tanto sobre esse culto
a partir da escuta e do encontro com essa pessoa!
– Uai, o que é isso? Eu nunca ouvi falar.
– Sério? É aquela do Tim Maia.
– Eu não conheço. Nunca ouvi falar. Eu achava que só existiam
crentes e católicos.
– Então você nunca soube da existência de religiões de matriz
africana?
– Não.

50
3 A SUBJETIVIDADE E A FORMAÇÃO: A CLÍNICA ESQUIZOANALÍTICA COMO
RESISTÊNCIA À REPRODUÇÃO DE UM SUJEITO UNIVERSAL NO CAMPO PSI

3.1 Sobre a subjetividade e a clínica “esquizo”

Para se discutir a Esquizoanálise em uma perspectiva clínica, precisamos nos atentar


para a maneira como a subjetividade é abordada neste campo conceitual. Na Psicologia, são
muitas as possibilidades de compreensão da subjetividade, que se diferem em cada abordagem
e que direcionam a condução clínica dos casos, a direção do tratamento, de acordo com a
orientação de cada uma delas. Dada a complexidade do seu objeto de estudo, a Psicologia
mantém lado a lado essas leituras e dialoga com domínios conexos. Na Esquizoanálise, são
muitas as colaborações da filosofia, da antropologia, da história, da geografia, das artes, entre
outras que auxiliam a pensar a questão da subjetividade, principalmente porque esta concepção
não se limita aos contornos individuais de um sujeito, mas implica em um olhar para a
complexidade e para o fora, algo exterior ao sujeito. Vou tratar aqui da concepção que Deleuze
e Guattari dão ao tema, mas também das contribuições de Foucault, que muito se dedica em
sua obra a esta temática. Em diversas ocasiões, lemos essas elaborações dos autores mescladas,
agrupadas, ou até mesmo como sinônimos; entretanto, ainda que haja muitas aproximações
entre os pensamentos de Deleuze e Guattari com a ideia de produção de subjetividade e de
Foucault com os modos de subjetivação, e que muitas vezes essas apareçam inadvertidamente
em textos acadêmicos como idênticas, penso ser importante apresentá-las mais cuidadosamente
aqui, principalmente porque elas não se excluem, são afins e contribuem para uma
compreensão mais ampla do tema.
Sonia Mansano (2009), ao abordar as questões sobre sujeito, subjetividade e modos de
subjetivação nas obras de Foucault, Guattari e Deleuze, elucida que se trata de uma produção
incessante que ocorre a partir dos encontros diversos que experimentamos (com o social, a
natureza, as invenções) e que provocam efeitos em nossos corpos e nas nossas formas de viver.
Nessa perspectiva, a subjetividade é também multiplicidade, constituída por atravessamentos
históricos e sociais, vida pulsante e inventiva:

A matéria-prima que compõe as subjetividades são variáveis e historicamente


localizadas. Há todo um investimento que busca nos convencer dos perigos presentes
nas tentativas de romper com os valores capitalistas de referência, como se eles
garantissem algum tipo de segurança ou ordem. A recusa, assinalada por Guattari,
envolve uma aproximação da dimensão desejante da vida, para que, conectados a ela,

51
possamos inventar novas maneiras de experimentar e perceber os encontros
(MANSANO, 2009, p. .112).

Essa leitura da subjetividade a que se refere a autora no trecho acima, que envolve
historicidade, variabilidade, singularidade e a “dimensão desejante na vida”, conforme aponta
Guattari, tem grande interlocução com a proposta foucaultiana e é a partir das contribuições de
Foucault que pretendo iniciar. Em sua tese de doutorado, Rosilene Pereira realizou um trabalho
minucioso sobre a questão do sujeito em Foucault e nos aponta que este tema é tratado pelo
autor de diferentes formas no transcorrer de sua obra:

Trata-se de restituir o liame entre a questão da subjetividade e a história, visada no


interior de sua obra, ao considerar as diferentes fases e as respectivas dominâncias
(epistêmicas, políticas, éticas), e também visada do exterior, ao confrontar épocas ou
períodos em seus respectivos contextos e que a obra se propõe a reconstruir. Aqui e
lá, ao se referir ao sujeito, o que interessa é determinar seu modo de subjetivação,
como se tornou sujeito legítimo deste ou daquele discurso (...) Trata-se em suma de
uma história da subjetividade, em que as palavras sujeito, subjetividade e homem se
equivalem ou estão conectadas (PEREIRA, 2012, p. 11-12).

Em concordância com a afirmação acima, Esther Díaz (2012) nos diz que Foucault se
ocupa dos modos de subjetivação nas três etapas de sua obra. Tanto na fase em que se preocupa
com o saber, a verdade, denominada de Arqueologia, quanto nas fases seguintes, quando se
preocupa prioritariamente com a questão do poder, na fase chamada Genealógica, e ainda na
última fase, em que sua preocupação sobre o poder dá lugar à reflexão sobre a ética.
Na fase denominada de Arqueologia, ou Arqueologia do Saber, conhecida ainda como
o Primeiro Foucault, que perpassa um período entre 1954 a 1970, o autor se pergunta o que é
o saber, considerando de forma substancial a influência das diferentes construções históricas
para os processos de subjetivação. Interessa-se pela História, mas não uma História tradicional,
mais comum aos historiadores, e sim por uma História Arqueológica, como se retirasse do
fundo das estantes das mais antigas bibliotecas, os livros empoeirados, esquecidos, e os
resgatasse, ressignificasse, propondo uma nova leitura. Preocupa-se ainda com o discurso.
Neste período, obras importantes são gestadas pelo autor, como História da Loucura, O
Nascimento da Clínica e As palavras e as Coisas, trazendo novos objetos de estudo, como o
louco. Segundo Pedro Souza e Reinaldo Furlan; é nesta fase que “Foucault desconstrói noções
universalistas como a de homem, loucura ou sexualidade, pois dissipa a pretensão de
universalidade em fundamentações históricas datáveis e analisáveis” (SOUZA; FURLAN,
2018, p. 327).
Na segunda fase, denominada Genealogia, Genealogia do Poder ou Segundo Foucault,
que se inicia no ano 1971 e vai até 1978, o autor também produz obras importantes, como

52
Vigiar e Punir e História da Sexualidade I. Nesta fase, o foco de seu trabalho está nas reflexões
sobre o discurso e o poder e, certamente, as interferências deste nos processos de subjetivação:
“Não há discurso sem poder” (DÍAZ, 2012, p. 87). O autor se dedica à reflexão de como essas
relações de poder funcionam, como agem e transmutam os indivíduos e seus corpos na
constituição da subjetividade.
Já no Terceiro Foucault, ou na fase da Ética e Estética da existência, o autor se dedica
às dimensões éticas do sujeito e as implicações decorrentes na subjetividade. Esta fase se inicia
em 1978 e vai até 1984. As obras mais importantes deste período, em que o autor trata do
sujeito ético, são História da Sexualidade, volumes II e III, O Uso dos Prazeres e O Cuidado
de Si. Há que se considerar ainda os inúmeros cursos proferidos por ele, dentre eles, o Governo
de Si e dos Outros em 1983, que contribuíram grandemente para a compreensão deste e de
outros temas propostos e discutidos pelo autor. Souza e Furlan (2018) afirmam que, nesta fase,
seu interesse principal está no “cuidado de si” e nas “técnicas de si” na cultura greco-romana.
Em 1984, na Ética do Cuidado de Si como Prática de Liberdade, Foucault (2004)
afirmava que o cuidado de si na cultura greco-romana constituiu algo que atravessou todo o
pensamento moral desde os primeiros diálogos platônicos. Ocupar-se de si, conhecer a si
mesmo, “formar-se, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que poderiam
arrebatá-lo” (FOUCAULT, 2004, p. 268) era indispensável para a prática adequada da
liberdade. A liberdade, cara aos gregos, significava não apenas não ser escravo (de governantes,
de outros povos, outras cidades ou de suas próprias paixões), e relacionava-se intrinsecamente
à ética (conhecer a si mesmo, mas também às regras, condutas, princípios, verdades e
prescrições) e à política, pois, governando a si mesmo e cuidando de si mesmo,
consequentemente, cuida-se também dos outros. Deste modo, “Uma cidade na qual todo mundo
cuidasse de si adequadamente funcionaria bem e encontraria nisso o princípio ético de sua
permanência” (ibid., p. 271). As técnicas de si correspondiam a ações que os indivíduos
pudessem realizar por eles mesmos em determinada época e local, em seus corpos,
pensamentos, atitudes, que os transformassem a ponto de acessar certa pureza, perfeição e
felicidade. A subjetividade aqui nesta fase é compreendida como uma

[...] tentativa de fazer da própria vida uma obra, uma obra de arte, uma obra bela que
poderá ser lembrada como tal pela posteridade. Surge uma nova figura de
racionalidade: não mais aquela que exclui suas negatividades (o louco, por exemplo)
para poder firmar-se enquanto luz e positividade, ou, não mais aquela que investe
essas mesmas negatividades do ponto de vista do poder normativo, mas uma razão
que, apenas no desdobramento de si mesma e no cuidado com esse desdobramento,
adquire a potência de dizer a verdade (SOUZA; FURLAN, 2018, p. 332).

53
A mirada para a subjetividade e os modos de subjetivação encontram variadas nuances
na obra deste autor. O próprio Foucault nos esclarece que o motivo pelo qual dedicou seu
trabalho não teria sido apenas analisar o fenômeno do poder nem fundamentar tal análise, mas
sim, “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos
tornam-se sujeitos” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.231). Em relação à produção do sujeito
na contemporaneidade, Mansano (2009) traz à tona que Foucault aborda ainda em sua obra
lutas políticas necessárias contra todas as formas de opressão, dominação e exploração dos
indivíduos, que os coloca em situação de submissão, sujeição e desigualdade. Essas lutas se
relacionam com os modos de subjetivação e as possibilidades de resistência. Nas palavras da
autora

Resistir hoje se torna uma ação política quando, por exemplo, recusamos o
individualismo já tão naturalizado em nosso cotidiano e insistimos nos encontros,
fazendo circular as invenções microssociais de novas formas de vida que não se
revertem em regras universais obrigatórias. A regra universal, ao pretender englobar
a totalidade dos indivíduos, comprometendo-os com a obediência, simplesmente
inviabiliza o contato com a diferença e com a criação de novas possibilidades de
existir (MANSANO, 2009, p. 114).

Assim como para Foucault, Deleuze e Guattari (2011) também partem de uma noção
de subjetividade que extrapola o universal, o pronto, o que está dado, pois esta é compreendida
levando em consideração sua complexidade e deve ser considerada em sua amplitude. Essa
perspectiva se opõe à lógica dualista, dicotômica e a reducionismos simplistas que muito se
destacam enquanto verdades absolutas na ciência moderna, por exemplo (SANTOS, 1993). Na
concepção dos autores, a subjetividade e a subjetivação são coletivos e heterogêneos, e não
apenas psíquicos. Seu funcionamento se dá pela confluência de determinações heterólogas e
heterogenéticas, assim como pela grande incidência do acaso e a existência de linhas que a
compõe, sendo estas as linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga, ou linhas de
segmentaridade, maleáveis e de fuga ou ruptura (CASSIANO; FURLAN, 2013).
Pensar numa subjetividade composta por linhas é afirmar sua provisoriedade, sua
porosidade, é propor uma superação da velha dicotomia entre causa e efeito, entre sujeito e
objeto. São linhas, são composições provisórias, porque feitas e desfeitas a todo instante, e que
também se alteram, modificam a partir dos encontros que fazem, sendo que, em alguns
momentos, algumas dessas linhas podem estar em destaque, se sobressair, de acordo com as
conexões que fizer, sendo possível experimentar momentos de rigidez, mas também de
aberturas. Os três tipos de linhas propostos pelos autores funcionam de maneira diferente e se
entrelaçam.

54
Sobre as linhas duras/segmentaridade, Deleuze e Guattari (2012) afirmamSomos
segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. (...) Somos
segmentarizados binariamente, a partir de grandes oposições duais: as classes sociais,
mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças, etc. Somos
segmentarizados circularmente, em círculos cada vez mais vastos, em discos ou
coroas cada vez mais amplos, à maneira da "carta" de Joyce: minhas ocupações, as
ocupações de meu bairro, de minha cidade, de meu país, do mundo... Somos
segmentarizados linearmente, numa linha reta, em linhas retas, onde cada segmento
representa um episódio ou um "processo": mal acabamos um processo e já estamos
começando outro (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 92).

O funcionamento das linhas duras se dá pela codificação, classificação (gênero, classe,


grau). São binárias, dicotômicas, hierárquicas e produzem enrijecimento, lentidão, cristalização
dos territórios. Transitam pelo plano de organização. As linhas flexíveis afetam a subjetividade
criando zonas de indeterminação e agenciamentos. Produzem movimentos, pequenas
transformações, novidades, diferenças, intensidades. Transitam pelo plano de consistência, de
imanência e possibilitam os fluxos de desterritorialização, decodificação, desestratificação e
desaxiomatização. As linhas de fuga são as propiciadoras da conexão com o fora, com a
exterioridade. São promotoras de fissuras, desestabilizações, irrupções do novo, do inventivo,
do inédito, do devir. Movimentam-se rapidamente provocando “desarrumações” e assim o
fazem quando em conexão com as linhas flexíveis, nos planos de imanência, os de consistência
e os de variação. As linhas de fuga geram e conectam agenciamentos coletivos de enunciação
potentes capazes de inventar novos territórios existenciais. As linhas duras, flexíveis e de fuga
são imanentes, coexistem, conectam-se simultaneamente, fazendo essas composições.
Destarte, a partir dessa concepção que é feita de linhas, cortes, fluxos, forças e
intensidades que são complexas, heterogêneas e processuais, se produz subjetividades que não
estão prontas. Não vão de um ponto ao outro com o objetivo de alcançar alguma meta, alguma
evolução. Essa composição está em constante movimento, construindo-se e desconstruindo-se
infinitas vezes, sendo impossível limitá-la ou reduzi-la a apenas uma de suas possibilidades e
afetações, que são infinitas. Neste sentido,

[...] ao invés de pensar um sujeito de contornos limitados e fechado em si, a partir do


qual a subjetividade brota, melhor seria pensar no cruzamento de múltiplos
componentes de subjetivação que se ligam e religam e acabam influenciando a
constituição da subjetividade (PARPINELLI; SOUZA, 2005, p. 480).

Guattari e Suely Rolnik (2013) falam sobre a subjetividade e sua relação com a história.
Os autores apontam ser necessário que se faça uma distinção radical entre o os conceitos de
indivíduo e de subjetividade e afirmam que o indivíduo é fruto de uma produção em série, em
massa, modelado, egóico e consequentemente limitado. Já a subjetividade não está passível a

55
totalização no indivíduo, pois é produzida, fabricada no registro social e atravessada e
composta por elementos diversos (psíquicos, corporais, virtuais, econômicos, maquínicos,
políticos, afetivos, inventivos, rizomáticos, etc). Outro ponto central para a produção de
subjetividade, segundo Guattari (1991,) é o estatuto modelar do Capitalismo Mundial Integrado
– CMI. Nesse sentido, o autor aponta que:

Talvez o mais específico seja a ideia de integração subjetiva, ao tentar redefinir o


capitalismo mundial de hoje como uma instância de poder que não é exercida no
plano do visível – a economia, as relações internacionais, etc. – mas, em primeiro
lugar, no plano da subjetividade e cuja finalidade fundamental não é o controle, mas
a produção de subjetividade (GUATTARI, 1991 p. 27, tradução nossa).5

O capitalismo é um modo de produção que organiza essa produção de subjetividade


para que ela o reproduza. A integração que o autor fala é o projeto de dominação subjetiva e
reprodutiva. A verdadeira matéria/produto com a qual o capitalismo trabalha é a subjetividade,
no sentido de que a serialização, os modelos, a representação, o ideal, são caminhos para se
manter uma passividade acrítica e passível de manipulação. Dessa forma, o “Deus Mercado”
controla tudo, é quem dita as regras, o que/quem vale mais, o que/quem vale menos, quem deve
ser protegido, quem deve ser descartado, os “enlutáveis” Jutith Butller (2015), os “matáveis”
Achille Mbembe (2018).
A Esquizoanálise se orienta por um paradigma que chamamos de Ético-estético-
político, mas também clínico. E esse paradigma que orienta essa práxis, atenta-se sobretudo e
sobremaneira à questão da produção de subjetividade. Rolnik (2019) aponta que o paradigma
ético, estético, político e clínico – conforme sustentado pela Esquizoanálise –, vem combater
um paradigma compartilhado há muito por todos nós, paradigma este antropo-falo-ego-
logocentrico, ou seja, antropo porque coloca o ser humano, a humanidade em primeiro lugar,
em posição hierárquica a todos os outros seres que compõem a natureza e o meio ambiente;
falo porque coloca o homem (macho) como mais importante que as mulheres, centrando em
sua condição fálica sua superioridade; ego porque privilegia o indivíduo capitalista consciente
e suas neuroses em detrimento ao sujeito singular e as coletividades; e logocêntrico porque
coloca a razão acima da desrazão, a neurose acima da loucura, o saber científico, cartesiano
acima do saber popular e tradicional. A Esquizoanálise se associa ou cria uma visão de mundo

5
“Quizás lo más específico sea la idea de integración subjetiva, al intentar redefinir el capitalismo mundial de hoy
como una instancia de poder que no se ejerce en el plano de lo visible – la economía, de las relaciones
internacionales, etc. – sino, en primer lugar en el plano de la subjetividad y cuya finalidad fundamental no es el
control, sino la producción de subjetividad”.

56
a partir de um método analítico em constante transformação, que argui o modo de produção
capitalista e que entende que o capitalismo, o colonialismo produz subjetividade para além da
família e da neurose.
Uma das psicólogas entrevistadas discorreu sobre a noção de subjetividade pela qual
se orienta em seu trabalho clínico. Essa compreensão se aproxima e dialoga bastante com a
leitura aqui discutida, principalmente por ser considerada um dos pontos categóricos para a
realização de seu trabalho, sua prática:

Acho que a coisa principal é a ideia de questionar essa subjetividade atual. Então,
quando a Esquizoanálise com toda a base de estudo na história humana, de identificar
que essa subjetividade foi produzida e é histórica permite que você possa criticá-la,
né! Isso abre perspectivas. Te dá ideia de que pode ser diferente e então: como
trabalhar pra ser diferente? Acho muito curioso eles identificarem as formas de
soberania, como mudou, como foi acontecendo e também a ideia que não é só
histórica, datada, mas a coisa é processual, caminha, tá sempre sendo construída, tá
sempre sendo transformada numa subjetividade que nem a nossa, não existe só essa
parte que a gente critica. Coexistem outras possibilidades. Te dá uma possibilidade,
uma expectativa boa. Você sente uma consistência nos textos deles. São reflexões
baseadas em muitos campos. Você vê que tem um sentido. E é uma engrenagem que
se repete em tudo. Não é só na subjetividade. Te dá uma segurança de que se está
falando de alguma coisa importante. Acho que essa perspectiva aparece quando eles
tomam essa ideia da Filosofia do virtual poder se atualizar. Como esse virtual pode
ser atualizado? Pra mim, ficou a ideia dos prés existirem assim como matérias, mas
ainda não são substâncias, energias, formas, mas existem. A física quântica descobriu
isso nos prótons, elétrons, os percursos imprevisíveis, os arranjos. Eu: os desvios.
Entrevistada 2: Sim, os desvios. Eu acho que ver isso na subjetividade é muito
importante (Entrevista 2).

Se essa compreensão do ser humano parte da lógica da complexidade e da imanência,


em que a subjetividade não está dada, pronta, desde o momento em que nascemos; ela é
construída, produzida, faz composições, decomposições, faz bons e também maus encontros
durante seu percurso, alguns pontos importantes devem ser considerados. Deste modo, o
território vai contribuir para a produção da subjetividade – se nasci no campo ou na cidade, na
periferia ou na zona sul, numa comunidade quilombola ou numa aldeia indígena; a classe social
a que pertencemos vai contribuir para a produção da subjetividade –se tenho condições
financeiras para acessar determinados itens, determinados bens, ou se estou privada de acessar
até mesmo a alimentação mínima necessária para sobrevivência – ou quem trabalha na rua e
quem faz home office nesse período de pandemia, por exemplo); o meio ambiente vai contribuir
para a produção de subjetividade. Que tipo de ar eu respiro? Que tipo de água eu bebo?
Questões estas passíveis de discussões infindáveis porque, pelo avanço do desmatamento da
Amazônia e a presença constante das indústrias e mineradoras no Brasil por exemplo, parece
mesmo que o planeta está com tempo contado, como tem nos alertado Ailton Krenak (2019) e

57
como já nos alertava Guattari (1990); a cor da nossa pele contribui para a produção da
subjetividade. Se você é branco ou se é negro ou indígena nesse país, e em muitos outros países
no mundo, infelizmente, vai determinar muito do que se vai ter que enfrentar ou não no decorrer
de toda sua vida, como afirmam Grada Kilomba (2019) e Mbembe (2018); as questões de
gênero vão contribuir para a produção da subjetividade. Nascer biologicamente mulher ou
homem infelizmente, principalmente para nós que vivemos em um país em que o patriarcado
e o machismo são estruturais e transgeracionais, determinará muitos dos enfretamentos e
dificuldades do que se vai viver em toda sua trajetória de vida – exposição ou não a alguns
tipos de violência, reconhecimento intelectual – Quem tem mais tempo para estudar, os homens
ou a mulheres? De quem são os salários mais altos: dos homens ou das mulheres?
A orientação sexual vai contribuir para a produção da subjetividade como afirma Paul
Preciado (2018).6 Em relação a esse ponto, lamentavelmente temos conhecimento de que o
Brasil é o país que mais mata e violenta as pessoas LGBTQIA+ no mundo. O acesso ou o tipo
de acesso que se tem à educação, à cidade, ao encontro com a arte, com a música, com a
natureza, tudo isso vai contribuir para a produção de subjetividade. Desse modo, podemos
perceber que os marcadores de sexo, raça, classe, etnia, posição geográfica se confrontam com
a ideia de um sujeito universal, ainda presente de forma dominante em nossa formação e muitas
vezes também no exercício profissional. Embora cada vez mais negada, a separação do sujeito
e do social ainda persiste.
A princípio parece óbvio que se essas questões e tantas outras interferem e contribuem
diretamente para a produção da subjetividade, elas necessariamente chegam aos nossos
consultórios, assim como também aos serviços das políticas públicas de saúde, de assistência
social e outros – que são atualmente responsáveis pela contratação de uma fatia enorme de
profissionais da nossa área – mas também nas empresas, nas escolas, ou onde quer que a
Psicologia esteja inserida. Entretanto, o que percebi em minha prática profissional e nos
diálogos com “psis” pelos serviços em que atuei, foram condutas e atuações que nem sempre
consideravam as questões supracitadas. Parecia a mim que muitos profissionais da Psicologia
não tinham consciência, ou não acessavam, ou não estavam dispostos a acessar algumas
discussões que se atentavam para essa complexidade que envolve a produção de subjetividade,

6
Sobre orientação sexual e produção de subjetividade, Paul Preciado em seu Testo Junkie aponta como as
mudanças do capitalismo vão transformar as questões relacionadas ao “sexo”, “gênero”, “sexualidade”,
“identidade sexual” e “prazer” em objetos de gestão política da vida assim como essa gestão em si mesma é levada
a frente pelas novas dinâmicas de “tecnocapitalismo avançado, da mídia global e das biotecnologias”
(PRECIADO, 2018, p. 27). Preciado cunha o termo farmacopornográfico para definir os aparatos da indústria
tecnocientífica contemporânea em controlar, “tratar”, medicalizar e orientar as ações dos sujeitos, inventando um
certo tipo de sujeito e o reproduzindo mundialmente.

58
reproduzindo um modelo de sujeito universal. Uma pergunta que sempre esteve presente para
mim era: até que ponto isso se relaciona à formação?

3.2 Alguns aspectos políticos que atravessam a formação em Psicologia no “Brasil”

O Brazil não conhece o Brasil. O Brazil nunca foi ao Brasil. O Brazil não merece o
Brasil. O Brazil tá matando o Brasil. Do Brasil SOS ao Brasil.
Aldir Blanc e Maurício Tapajós

Para abordar um pouco da história da formação em Psicologia no Brasil, é preciso


contextualizamos, ainda que modestamente, alguns aspectos políticos importantes que
atravessaram a nossa História. Brasil está escrito entre aspas no subtítulo desse capítulo porque
sabemos que quando se fala em Brasil, um país que tem dimensões continentais, não é possível
homogeneizar. De que Brasil falar? Existem muitos “Brasis” nesse Brasil. Somos um país
populoso. O Censo Demográfico do IBGE, que deveria ser realizado entre os meses de agosto
e outubro do ano de 2020,7 estima, segundo as informações contidas no site desse órgão
governamental, 8 que somaremos pouco mais que 211 milhões de pessoas nesse ano. O Censo
Demográfico, que ocorre a cada década no país, tem o objetivo de “conhecer o nosso povo”,
saber qual o tamanho da população, em quais condições vivemos, qual o nível de escolaridade
das pessoas, as condições de emprego e renda e outros aspectos, para, com isso, planejar mais
precisamente a implementação de políticas públicas e planejar o futuro do país. Infelizmente,
os valiosos dados dos Censos, que poderiam subsidiar uma grande melhoria da qualidade de
vida da população brasileira, raras vezes são utilizados pelo poder público de forma efetiva
para investimentos nos quesitos citados acima e em tantos outros.
Vivemos tempos conturbados no país. Temos vivido uma sucessão de crises nos últimos
anos, crises políticas, econômicas, sociais, ambientais. Vivenciamos uma ditadura civil militar
por mais de 20 anos, entre as décadas de 1960 e 1980; tivemos fracassos econômicos, como o
plano Collor na década de 1990; e, para citar algo mais recente, vivenciamos duas tragédias,

7
Em 17/03/2020 foi informado pelo IGBE que o CENSO 2020, foi adiado para 2021 devido a pandemia mundial
de Corona vírus e COVID-19 que modificou os modos de existência do planeta no início deste mesmo ano. Ver
em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27160-censo-e-
adiado-para-2021-coleta-presencial-de-pesquisas-e-suspensa. Acesso em: 10 maio 2020. Infelizmente, as últimas
notícias veiculadas sobre o CENSO atestam o seu cancelamento pelo governo federal que alega não ter recurso
para sua realização neste ano corrente (2021).
8
Ver: https://censo2020.ibge.gov.br/sobre/numeros-do-censo.html. Acesso em: 15 maio 2020.

59
dois crimes ambientais que mudaram para sempre a história do país com efeitos catastróficos
(o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, na cidade de Mariana, em Minas Gerais no
ano de 2015, e o rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Feijão em Brumadinho, em
2019, no mesmo estado). Penso ser importante ainda citar outro evento recente que tem
influenciado grandemente os modos de existência dos brasileiros, o golpe mais recente. Em
agosto de 2016, assumiu interinamente o cargo de presidente da república federativa do Brasil,
Michel Temer, assim que a então presidenta da república Dilma Roussef sofreu um processo
de impeachment após “grande acordo nacional, com o supremo, com tudo”, conforme proferiu
o então senador Romero Jucá em áudio-denúncia divulgado por diversos veículos de
comunicação do país,9 ou seja, um golpe contra a democracia muito bem arquitetado e colocado
em prática, como pudemos acompanhar e que foi denunciado no documentário lançado em
2019 Democracia em Vertigem, de Petra Costa. No dia 10 de outubro do mesmo ano, foi
aprovada a Proposta de Emenda à Constituição, nº 241, ou, como ficou mais conhecida, PEC
do Fim do Mundo ou PEC da Morte, na Câmara dos Deputados, com 366 votos a favor, 111
contrários e duas abstenções, além de ter sido aprovada no Senado Federal, onde tramitou como
PEC nº55, por 53 votos a favor e 16 votos contrários. Acho importante citar essa PEC porque
sua aprovação culminou no congelamento dos gastos públicos com Saúde e Educação no Brasil
por vinte anos. Digo isto para citar apenas os impactos nos âmbitos da Saúde e Educação, já
que, independente desse congelamento, o Brasil está entre os dez países com maior
desigualdade social do mundo, em que os 10% mais ricos concentram 42% da renda de todo o
país, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019 publicado pelo PNUD –
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento10 e grande parte da população não possui
água tratada, saneamento básico e vive em condições de extrema pobreza e violação de direitos.
Tais fatos se agravam na atualidade, já que estamos vivenciando, desde o mês de dezembro de
2019 até o presente momento (meados de 2021), uma pandemia mundial gravíssima com a
disseminação de um novo vírus (Coronavírus), que desencadeia a doença conhecida como
Covid-19 aos infectados e provoca desde infecções assintomáticas a quadros gravíssimos de
dispneia podendo levar à morte.
O descaso do governo do país é assustador e os dados são alarmantes: no mês de agosto
de 2020, ultrapassamos o número de cem mil mortos, além dos mais de três milhões de

9
Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/24/politica/1464058275_603687.html. Acesso em: 20 maio 2020.
10
Ver: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2019/condicoes-de-partida-podem-
determinar-desigualdades-no-futuro--r.html. Acesso em: 21 maio 2020.

60
contaminados.11 Esses dados correlacionam-se estritamente com o que acabo de mencionar, já
que as principais formas de contenção da disseminação da doença se fazem pela higiene pessoal
(lavar as mãos com água e sabão, usar álcool em gel e outros produtos de limpeza para
desinfetar superfícies), isolamento ou distanciamento social (manter-se em casa e evitar
aglomerações de pessoas) dentre outros “privilégios” dos quais apenas uma parcela da
população do país pode contar. Acrescenta-se a isso um fortíssimo movimento negacionista da
pandemia incitado pelo atual presidente da república, Jair Bolsonaro, que está sendo apontado
pela comunidade internacional como presidente mais ineficiente na condução da pandemia do
Coronavírus e até mesmo apontado como alguém que está a cometer um grande crime contra
a humanidade, tendo sido o primeiro presidente brasileiro denunciado mais de uma vez ao
Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda12. Duas das denúncias, uma delas
protocolada por sessenta e cinco sindicatos e organizações brasileiras e a outra pela Associação
Brasileira de Juristas pela Democracia, referem-se à sua conduta em relação à pandemia, às
atitudes negacionistas e de incentivo a ações que aumentam o risco da proliferação do
Coronavírus, como a relativização do uso de máscaras, a convocação de seus seguidores para
eventos públicos que promovem aglomeração de pessoas, bem como a ingerência dos recursos
do Sistema Único de Saúde - SUS para fins de contenção da pandemia e amenização dos efeitos
da mesma como a compra de medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra o
Coronavírus e o incentivo ao uso desses medicamentos pela população; a divulgação de
notícias falsas sobre a eficácia de um tratamento precoce e ainda por não realizar investimentos
para produção e aquisição de vacinas que já foram aprovadas mundialmente por agências e
órgãos sanitários por serem capazes de diminuir o número de mortes e o agravamento dos
sintomas dos casos de adoecimento por Covid-19. Sobre as vacinas, além de problemas com a
licitação e compra de seringas para a aplicação das mesmas, problemas diplomáticos entre o
Brasil e outros países produtores de algumas vacinas como China e Índia também têm
dificultado bastante a aquisição das mesmas, atrasando ainda mais a imunização da população
brasileira. A escassez de vacinas estrangeiras, junto à falta de insumos para a produção da
vacina brasileira, a CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com a
fabricante chinesa de medicamentos Sinovac Biotech a partir de investimento financeiro do
estado de São Paulo, juntamente a falta de oxigênio nos leitos dos hospitais Brasil afora, além

11
Preferi não atualizar esses dados no corpo do texto, porque a cada releitura, maior a taxa de mortalidade e
contaminação por Covid-19 no país. Os dados da releitura do texto feita 02/02/2021 são: 224.504 mortos e
9.204.731infectados. Os dados de 16/05/2021 são: 436.802 mortos e 15.586.534 infectados.
12
Ver: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/tribunal-penal-internacional-de-haia-aceita-denuncia-contra-
jair-bolsonaro1. Acesso em: 04 fev. 2021.

61
de todos os cortes e desinvestimento do governo federal em ciência e tecnologia no país, são
reflexos de que a pandemia de Coronavírus ainda vai se estender no país e que possivelmente
voltemos a assistir cenas deprimentes, como assistimos em janeiro de 2021, com mortes por
asfixia em Manaus, capital do Amazonas, durante o colapso no sistema de saúde vivenciado, e
infelizmente já previsto. Para além disso, novas variantes do vírus que parecem ser ainda mais
transmissíveis e letais têm sido detectadas em várias partes do mundo, incluindo Manaus, o
que evidencia que uma corrida pela vacinação da população é mais que necessária.
Voltando ao Tribunal de Haia, as outras denúncias contra ao atual presidente brasileiro
se referem a relatos de inúmeros ataques do mesmo aos povos indígenas e tradicionais
brasileiros e ao enfraquecimento da fiscalização e omissão do governo aos crimes ambientais,
como desmatamento e incêndios na Amazônia, o que tem sido amplamente noticiado pela
mídia brasileira13 e internacional, como no jornal francês Le Monde,14 no espanhol El País, 15 e
no estadunidense The New York Times. 16Este último, além de informar sobre o aumento das
queimadas no ano de 2019, chama atenção para o pronunciamento do presidente, que diz que
quem estaria queimando a Amazônia seriam as organizações não-governamentais com o intuito
de atingir a ele a ao seu governo.
Contextualizar a heterogeneidade, a diversidade e a desigualdade brasileiras se faz
importante porque, num país em que a maioria do congresso nacional vota em emendas e
projetos que favorecem a uma elite (os 10% mais ricos, fatia essa em que estão inclusos muitos
políticos) e desfavorece imensamente a maior parte da população (os mais pobres, que
dependem da assistência do Estado para sobreviver), há aí implicitamente (para os mais
desavisados) e escancaradamente (para os mais atentos) algo que se relaciona com nossa
própria história (e condição de país colonizado), não tão distante temporalmente, mas muitas
vezes negada, apagada até os dias atuais.
Ainda sobre a perspectiva do golpe que culminou no impeachment da então presidenta
Dilma Roussef, Rolnik (2018) em seu livro mais recente Esferas da Insurreição, apresenta um
capítulo em que traz detalhadamente os aspectos que, segundo ela, definem uma “nova

13
Ver: https://www.cartacapital.com.br/mundo/em-situacao-inedita-tribunal-de-haia-analisa-denuncia-contra-
bolsonaro/. Acesso em: 08 fev. 2021.
14
Jornal Francês Le Monde classifica as queimadas na Amazônia brasileira como “Um verdadeiro desastre”
https://www.lemonde.fr/les-decodeurs/article/2019/08/21/incendies-en-amazonie-des-photos-hors-contexte-
pour-illustrer-une-catastrophe-bien-reelle_5501408_4355770.html. Acesso em 08: fev. 2021.
15
Jornal espanhol El País noticiou que “A Amazônia brasileira arde em um ritmo recorde”. Ver:
https://veja.abril.com.br/mundo/verdadeiro-desastre-queimadas-na-amazonia-ganham-repercussao-
mundial/https://elpais.com/internacional/2019/08/21/america/1566407770_057777.html. Acesso em: 09 fev.
2021.
16
Ver: https://www.nytimes.com/2019/08/21/world/americas/amazon-rainforest.html. Acesso em: 12 fev. 2021.

62
modalidade de golpe”, que são a união paradoxal dos neoliberais aos neoconservadores e a toda
uma captura e modelagem das subjetividades com o objetivo de fazer triunfar um programa de
governo repleto de problemas e retrocessos, num surto conservador que atacou principalmente
a três públicos alvos (cultura, população LGBTQIA+ e população negra e indígena e,
consequentemente, as terras indígenas e quilombolas).
Somos uma democracia jovem, engatinhando ainda, mal conseguimos dar os primeiros
passos. Ciro Gomes (2016) afirma que se fizermos um pequeno resgate histórico da democracia
no Brasil no pós-guerra, apenas três presidentes democraticamente eleitos terminaram seus
mandatos: Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva.
Acrescento aos três a presidenta Dilma Roussef, que cumpriu pelo menos um dos mandatos
pelo qual foi eleita democraticamente. Nas palavras do autor “no Brasil, a regra é o golpe e o
autoritarismo” (GOMES, 2016, p. 39). Toda essa história, que menciono rapidamente, está
certamente atrelada a problemas estruturais que dizem respeito à colonização, à escravização
do povo negro a partir da diáspora africana, ao massacre do nosso povo originário,17 ao
desmatamento da Amazônia, ao atual extermínio da população negra, ao trabalho precário e
informal, aos desastres ambientais consequência da exploração infinita dos recursos naturais –
que são finitos, e uma predominância da proteção a uma certa “economia”, que enriquece ainda
mais os mais ricos, justificando privilégios tão meritocratas quanto absurdos.
Dito isto, é preciso observar quais aspectos e em que medida esses atravessamentos
políticos interferiram e afetaram o desenvolvimento da Psicologia no país. Em artigo que
apresenta uma perspectiva histórica da profissão, Antônio Gil (1985) relata um pouco dos
primórdios da Psicologia no Brasil. O autor aponta que a prática do psicólogo inexistiu no país
nas três primeiras décadas do século XX. As primeiras ações que ocorreram já na década de
1930 foram os testes psicológicos, que eram utilizados principalmente no âmbito industrial. O
primeiro curso de Psicologia do Brasil surgiu em São Paulo no ano de 1957, porém, apenas em
1962 se deu a regulamentação da profissão. O início da formação e prática da Psicologia foi
marcado por uma disputa em relação aos médicos que queriam exclusividade relacionada às
práticas consideradas terapêuticas e, em seguida, aos profissionais graduados em
Administração, que também queriam exclusividade no que se referia a recrutamento e seleção
e disputaram com as/os psicóloga/os esse lugar.

17
Estima-se que habitavam no Brasil cerca de 40 milhões de pessoas na ocasião da chegada das caravelas
portuguesas em território brasileiro em 1500. Para mais informações: Guerras do Brasil. doc. 1ª Temporada.
Episódio 1. As guerras da Conquista. Brasil, Netflix, 2018.

63
Muitos são os estudos e autoras/es que se dedicam a contextualizar a história da
Psicologia no Brasil e no mundo a partir de diferentes perspectivas, dentre eles, Ana Bock,
Maria Helena Souza Patto, Ana Maria Jacó Vilela, Fernando Luís Gonzales Rey, para citar
apenas quatro, que apresentam estudos bastante relevantes sobre o tema. 18 No primeiro capítulo
de seu livro Psicologia e o Compromisso Social intitulado “A Psicologia e sua ideologia: 40
anos de compromisso com as elites”, Bock (2009) faz críticas contundentes ao que nomeia
como elementos ideológicos da profissão, a saber: a naturalização do fenômeno psicológico e
universalização do sujeito numa Psicologia corretiva associada à patologias; a negação da
intervenção e naturalização da moral social por parte de psicólogas/os e, ainda, uma Psicologia
que parte de uma concepção de sujeito apartado da sociedade; ou seja, os sujeitos são vistos
como responsáveis e capazes de promover seu próprio desenvolvimento, interiorizando cada
vez mais as questões subjetivas e contribuindo para a manutenção de uma cisão entre sujeito e
social. Na ocasião da escrita do texto citado, comemorava-se 40 anos da regularização da
Psicologia enquanto profissão e o que a autora questionava permanece em questão: existe uma
cisão entre sujeito e social em relação às práticas psicológicas?
Para complexificar ainda mais esse questionamento, Cecília Coimbra (1995), em seu
livro-intervenção Guardiães da Ordem, traz aspectos importantes sobre as práticas “psi” e a
produção de subjetividade no Brasil nas décadas de 1960, 1970 e 1980. As análises feitas pela
autora são bastante pertinentes, pois contribuem para nossa compreensão sobre a inserção e
funcionamento da profissão desde aquele momento até a atualidade, já que, assim como a
autora, compreendemos que o exercício da profissão está totalmente conectado com a
complexidade e com o contexto político, histórico e social. Apoiando-se em Guattari e Rolnik
(2013), a autora se utiliza dos termos ‘produção de subjetividade’/’processo de subjetivação
hegemônicos’ ou ‘subjetividade dominante’ para se referir a um modelo de subjetividade que
está estritamente ligado à produção capitalística, e o termo ‘processo de singularização’ para
se referir ao “escape” desses modelos. Ou seja, a subjetividade hegemônica é aquela que mais
se associa à produção em série, como numa linha de montagem industrial em que as diferenças
devem ser suprimidas, pois o que se busca é uma padronização, uma homogeneidade – a ideia
de indivíduo, como citei anteriormente; já os processos de singularização, que são

18
Destaco aqui algumas obras dos autores referidos sobre a temática: O Compromisso Social da Psicologia, Ana
Mercês Bahia Bock, São Paulo: Cortez, 2009; Exercícios de Indignação: escritos de educação e psicologia, Maria
Helena Souza Patto, São Paulo: Casa do Psicólogo,2005, Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no
Brasil, Ana Maria Jacó Vilela, Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, e Sujeito e Subjetividade: uma
aproximação histórico-cultural, Fernando Luís Gonzales Rey, São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.

64
compreendidos como disrupção, é onde é possível quebrar este curso “normal” de produção de
subjetividade padronizada e fazer um desvio à norma, promovendo com isso a afirmação de
outras formas e estratégias de vida, outras sensibilidades, mais complexas, menos reprodutora
de modelos – o que chamei apenas de subjetividade acima, porém, compreendendo-a enquanto
uma produção complexa e singular e em conexão com o exterior. Reitero a importância de me
debruçar à obra de Coimbra, pois sua busca, a partir da análise desses processos de subjetivação
nessas três décadas, tem o intuito de

mostrar como a formação “psi”, em geral, traz certas características modelares


instituídas e tão bem marcadas; como em nossa formação predomina o viés
positivista, onde se tornam hegemônicos os conceitos de neutralidade, objetividade,
cientificidade e tecnicismo; onde, nos diferentes discursos e práticas, o homem e a
sociedade são apresentados como ´coisas em si’´, abstratos, naturais e não produzidos
historicamente” (COIMBRA, 1995, p. ix).

A partir de sua percepção singular e sua implicação, Coimbra vai trazendo


minuciosamente os acontecimentos que marcaram cada década e que contribuíram para a
produção de subjetividades hegemônicas, capitalísticas, mas também para a os processos de
singularização gestados. O final da década de 1950 e início da década de 1960, como sabemos,
foi marcado por um período de modernização e industrialização do Brasil. No governo de
Juscelino Kubistcheck, entre 1956 e 1961, o desenvolvimento econômico e social do país –
como defendido em seu lema de campanha “Cinquenta anos em cinco”, foi responsável não
apenas pela construção da capital Brasília, mas pela urbanização, industrialização e também
pelo crescimento das classes médias urbanas. É focando nas classes médias destas três décadas
(1960, 1970 e 1980) que a autora se dedica a observar os processos de subjetivação vigentes.
Entre 1961 e 1964 “as reformas de base e de desenvolvimento nacional, frente ao
reordenamento monopolista do capitalismo internacional [geram] uma política populista dos
governos nesse período” (ibid., p. 3), que começa a vigorar no país com o surgimento de muitos
movimentos sociais que buscavam promover uma “conscientização popular”, contando
inclusive com apoio governamental. Inspirados pelos efeitos da revolução cubana, os jovens
da América Latina veem cada vez mais forte a necessidade de conscientizar as massas. Surgem
vários movimentos estudantis e intervenções principalmente nas áreas de cultura, arte e
educação. Entretanto, nesse mesmo período, a política de alianças começa a enfraquecer, pois,
“os grupos dominantes aliados aos capitais estrangeiros mostram-se incapazes de formular uma
política autônoma” (ibid., p. 3), há a renúncia de Jânio Quadros, a crise econômica, o aumento
do custo de vida, as crises de recessão que fragilizam o pacto populista entre o governo João
Goulart e os setores populares e isto atrapalha a expansão monopolista do capital estrangeiro.

65
Foi nesse contexto que o Brasil vivenciou, em 1964, o golpe civil-militar e foi instalada a
ditadura militar no país. Já se havia construído desde os anos 1950 a representação do
comunista como um inimigo do Estado, ou seja, alguém que deveria ser combatido e eliminado
e a ideia de um Estado forte e sólido reinava novamente, como na Era Vargas. Para “combater”
a ameaça comunista à sociedade brasileira, Marchas pela Família com Deus e pela Propriedade
foram organizadas no estado do Rio de Janeiro e São Paulo por senhoras da classe média e
média alta, apoiadas por parte da Igreja Católica. Coimbra (1995) aponta que, da mesma forma
que essas subjetividades hegemonicamente conservadoras, capitalísticas e apoiadas pela
ditadura foram gestadas, processos de singularização também foram experimentados,
principalmente por uma juventude universitária de classe média que já participava desses
movimentos sociais e estudantis desde o início dos anos 1960.
A ditadura militar no Brasil é caracterizada por alta concentração de poder no Executivo
Federal, a falácia de tentar “resolver” os problemas econômicos em que o país se encontrava e
pela prisão, tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas19 que foram contrárias ao
regime.20 Sabe-se que o “milagre econômico” atribuído ao período, com o crescimento da
economia, foi também responsável por um imenso endividamento do Estado e a ampliação da
desigualdade social, “heranças” que ressoam no país até os dias atuais.
Coimbra (1995) aponta que, mesmo durante a ditadura, principalmente entre os anos
1964 e 1969 havia uma hegemonia cultural da esquerda no Brasil; porém, a circulação das
ideias não chegava às classes populares. A autora destaca o show Opinião, liderado por Nara
Leão, João do Vale e Zé Keti entre dezembro de 1964 e agosto de 1965 no Rio de Janeiro, com
uma proposta nacionalista-populista. Destaca ainda o Arena Canta Zumbi no ano de 1965, em
São Paulo, com a participação de Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e os
festivais de Música Popular Brasileira em 1965/1966. Cita ainda o programa Fino da Bossa da
TV Record comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues e uma tentativa de defender uma
“autêntica” música brasileira, numa proposta de música que envolvia engajamento popular,
denúncia social e protesto. A ideia era também a de afastar o imperialismo do “rock n’roll”
importado.

Apesar do consentimento, do controle que existe em toda as produções musicais e


literárias da época, há o perigo de se produzirem territórios singulares. Certas
subjetividades podem se tornar singulares, pela negação aos instituídos, pelos novos

19
Os golpes e ditaduras impostas no Chile e no Uruguai em 1973, e na Argentina, em 1976, juntamente à
ditadura brasileira, fazem chegar à soma de 90 mil desaparecidos políticos na América Latina (COIMBRA,
1995).
20
Ver: Verdade 12.528. (Documentário) Direção: Paula Saccheta e Peu Robles. Brasil, 2013 (55 min.).

66
encontros que podem propiciar, tendo em vista, principalmente os talentos que
começam a surgir na música popular brasileira (ibid., p. 9).

A tentativa de se impedir a produção de subjetividades singulares nesta esfera cultural


é lançada e começa a funcionar com a popularização do programa Jovem Guarda, comandado
por Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Dessa maneira, todo o engajamento político de antes sai
da pauta e a influência do rock é potencializada, difundida e muito bem aceita principalmente
pela classe popular, destacando-se as donas-de-casa de classe média e a juventude não-
universitária. Coimbra apresenta também o movimento do Cinema Novo e a introdução que
fez das questões sociais na década de 1960 como um movimento de cisão com o que se
valorizava no cinema na década anterior, que se restringiam aos musicais, comédias e filmes
épicos que copiavam o estilo cinematográfico de Hollywood. Outrossim, a autora afirma que:

É o movimento tropicalista, que marca uma ruptura com o discurso do engajamento,


que recupera a festa e a alegria da esquerda contra a sisudez dos “ortodoxos” e dá o
pulo do gato em relação ao rock, ao iê-iê-iê, às guitarras elétricas e à mídia. Mostram
os “novos baianos” que tudo isso pode ser politizado, pode produzir também
singularidades e não somente subjetividades dominantes (ibid., p. 12).

O tropicalismo, em 1968, traz a marca de uma mistura contracultural que é ao mesmo


tempo alegre e agressiva, inaugurando na esquerda uma nova forma de fazer política, diferente
da tradicional. É também em 1968 que é decretado o AI-5, o momento de maior repressão da
ditadura militar, conhecido como os “anos de chumbo” no Brasil.21 Nos anos que seguiram,
viveu-se no país os anos mais terríveis de violência militar disferida aos opositores ao regime.
A autora aponta o movimento contracultural e também a imprensa alternativa (O Pasquim, A
Flor do Mal, O Bondinho, A Pomba), que rompiam com o modelo jornalístico praticado pela
grande imprensa, como uma possibilidade, à época, de resistir à produção de subjetividades
hegemônicas, fazendo uma linha de fuga ao que estava macropoliticamente instituído.
São produzidas e disseminadas nos anos 70 no Brasil duas figuras: o subversivo e o
drogado, sempre ligados à juventude da época. Este é um fator importante para pensarmos a
disseminação das práticas psicológicas no Brasil, mas não só elas: inclui-se aí a Psiquiatria, a
Psicanálise, e diversas outras terapias, conforme explorado minuciosamente no texto de
Coimbra (1995). Tanto o subversivo quanto o drogado eram figuras vistas como pessoas que
apresentavam problemas psicológicos graves, sérios, principalmente porque suas atitudes não

21
Ver: Narciso em férias. Documentário em que o músico Caetano Veloso narra os detalhes de como se deu sua
prisão e a prisão de Gilberto Gil no período do AI-5.

67
eram compatíveis com o modelo de trabalho e família em vigor. Essas figuras produzidas “São
pessoas que fogem às suas obrigações e questionam os planos e projetos de ascensão social de
suas famílias, por isso, são consideradas doentes (...)” (ibid., p. 30). Com a figura do drogado
e do subversivo, ou seja, os desviantes, produz-se também (como uma subjetividade
hegemonicamente aceita) a ideia de “crise” da família, a sua “desestruturação”; ou seja, se
esses jovens são diferentes, desviantes, a responsabilidade é de suas famílias, que certamente
também têm problemas, sendo a questão tratada estritamente no âmbito familiar, sem relação
com o que se vivia de terrível na sociedade à época como a repressão, a censura, as torturas,
assassinatos, desaparecimentos de pessoas. Vive-se um fechamento da família sobre si mesma,
primeiro pela negação do que acontece fora e uma atenção maior para o que se vive dentro, na
vida privada, e segundo porque o modelo de família que consome, faz investimentos, viaja,
tem ascensão social, é muito fortalecido no período do “milagre econômico”, segundo
Coimbra. Com esse fechamento no privado, no interesse pela própria família, evitando com
isso o contato com os terrores sociais vigentes, surge um grande interesse pelos problemas
relacionados à personalidade:

O que predomina é o “reino do eu”, um eu sempre insatisfeito, exigente, tirânico e


cheio de veleidades. O intimismo está, portanto, fundamentalmente ligado a uma
cultura psicológica – onde tudo é reduzido ao psiquismo – e a uma cultura da
interioridade – onde tudo é reduzido ao privado” (ibid., p.31-32).

Esse trecho traz uma reflexão importante pra mim que sempre me perguntei porque a
Psicanálise havia se reproduzido e disseminado tanto no Brasil. Ela foi necessária. Tanto para
manter de certa forma esse distanciamento entre o que ocorria no público e no privado, ou seja,
na manutenção dessa cisão entre sujeito e social, como também para acolher o sofrimento
daqueles que sofriam individualmente os efeitos desse momento histórico (e que podiam pagar
por esse serviço). É claro que não quero aqui cometer o equívoco de dizer que tudo o que a
Psicanálise fez desde sua inserção no país tenha sido a manutenção dessa cisão e o foco no
sofrimento individual ou na família, pois sei que algumas vertentes da Psicanálise optaram por
se repensar e tem produzido práticas que se conectam com o contemporâneo (Joel Birman,
Cristian Dunker, Hélia Borges, Jô Gondar, dentre outros) e os problemas enfrentados pelo
Brasil de agora. Entretanto, está presente na maioria das entrevistas realizadas alguma relação
dos entrevistados com a “nobre senhora Psicanálise”22 e suas instituições que operavam (e às
vezes operam ainda hoje) de forma opressora, reducionista e muitas vezes classista.

22
Termo utilizado pela primeira entrevistada para se referir à Psicanálise.

68
Em uma das entrevistas, foi compartilhada pela entrevistada uma reflexão que dialoga
com minha percepção sobre o tema. Ela disse que cursou Psicologia nos anos 1970 na
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, que foi esse justamente o momento em que
houve uma modificação no currículo do curso, e que a Psicanálise passou a ser estudada de
forma maciça. Esta entrevistada, que conheceu a Psicanálise ali, em sua primeira formação,
disse ter se encantado por ela, ter se especializado após a faculdade e ter seguido este caminho,
dedicando-se principalmente à leitura psicanalítica de Freud, Lacan e Melanie Klein.
Refletindo sobre sua prática, diz acreditar que o lacanismo intensificou o que a Psicanálise
clássica freudiana já trazia, que era uma exclusão do campo social político. Relatou uma frase,
que atribuiu a Gregorio Baremblitt: “Baremblitt tem uma frase que eu adoro. Ele diz que o
lacanismo chegou ao Brasil como uma espécie de silenciamento da resistência política”
(Entrevista 1). Sobre sua trajetória profissional, relatou que após aproximadamente 6 anos de
clínica, começou a questionar sua própria formação em Psicanálise e a desconexão com a sua
clínica. Diz que dividia o consultório com uma colega e que começaram a pensar em seus
pacientes. “Nossos pacientes chegam aqui com dívidas, usam drogas, nossas pacientes
mulheres funcionam de forma ainda tão convencional nos casamentos e vem fazer terapias.
Trabalham três jornadas e ainda cuidam de filhos” (Entrevista 1). Contou que isso a
incomodava profundamente e que foi após esses questionamentos que se propôs a desenvolver
trabalhos de cunho mais coletivo, criativo, político e social.
Parece importante destacar que essa cisão entre sujeito e social foi bastante fortalecida
no e por esse momento particular vivenciado no território brasileiro. A ditadura silencia. Há
um esvaziamento de tudo o que se relaciona com política, principalmente nas classes média e
média alta. O indivíduo fica em destaque e a psicologização do cotidiano favorece para que se
coloque de um lado a politização e do outro a intimidade familiar, de modo que qualquer
investimento em um significa a negligência ao outro. Investir tempo em discutir política
significava deixar de lado a si mesmo. O silêncio, o adoecimento, o medo eram vistos como
algo de responsabilidade individual (do sujeito ou da família) e “solucionados”, “tratados”,
“resolvidos” pelas práticas psicológicas e pela Psicanálise, que inicialmente tratava
prioritariamente questões individuais, descoladas do social. A solução pra todos os problemas
se dava via práticas psicológicas. As práticas “psi” ficaram mais intensas devido a esse
esvaziamento político e esse afastamento do terror que se estava vivenciando socialmente, além
do fechamento na família. Fechar-se para não ter que lidar com os problemas, os terrores, os
sintomas sociais. A Psicologia trata de tudo, do adulto, da família, da criança, do corpo, do

69
casal, tudo isso de forma neutra e honesta e, com isso, as famílias tornam-se consumidoras das
práticas “psi”. Segundo Coimbra,

Tais discursos que se afirmam “científicos”, e “neutros” produzem na família e na


sociedade em geral, “verdades”, dotadas de efeitos poderosíssimos. “Essas múltiplas
falas dos especialistas “competentes” geram o sentimento individual e coletivo de
incompetência, poderosa arma de dominação. Desta forma, o chamado “discurso da
competência”, os técnicos e os especialistas aparecem como os que entendem do
assunto, possuem o saber, verdadeiros iluminados, detentores do conhecimento
“científico”, “rigoroso”, “objetivo” e “neutro”. O surgimento de tais especialistas e
seu fortalecimento no mundo capitalístico não se dá pela necessidade de
modernização e desenvolvimento da sociedade, mas pela sua função de melhor
controlar, disciplinar, normatizar e neutralizar a divisão social do trabalho,
estruturada sobre a dominação e a submissão (COIMBRA, 1995, p. 37).

Neste sentido, podemos questionar: até que ponto essa lógica do consumo, do
individualismo, essa visão reducionista de mundo e de sujeito que não dialoga com o social é
ainda mantida e sustentada na prática clínica do profissional da Psicologia? A quarta psicóloga
entrevistada, que além de psicóloga clínica, é professora universitária, compartilhou um relato
de sua experiência que aponta para possíveis efeitos dessa visão, relacionando-a principalmente
com a ascensão do capitalismo na contemporaneidade:

Eu acho que pensar esses modos de subjetivação capitalísticos, eles performam


também no consultório, na medida que a gente vê os próprios processos, que são
processos singulares daqueles sujeitos que nos procuram, que vão ali sofrendo.
Sempre que eu falo para os meus alunos que o capitalismo nos faz adoecer, eu dou
exemplos clínicos, porque é disso que se trata, né!? Eu sempre dou exemplo de uma
paciente que chegou para mim no consultório com crise de pânico grave e na primeira
consulta ela me diz que não sabia o que estava fazendo ali, porque precisava de uma
psicóloga. Daí eu proponho que ela me fale um pouco sobre sua vida. Daí ela descreve
a vida dela, fala que acorda todos os dias às sete da manhã, trabalha todos os dias até
dez horas da noite e não tem vida social nenhuma. Daí eu pergunto para ela: você não
sabe que está doente? Aí a justificativa dela é capitalística. Ela diz que ela é a pessoa
mais bem-sucedida da família, a pessoa que mais tem dinheiro, que venceu na vida.
O que é vencer na vida para a gente? Isso é o modo de produção capitalista de ver o
humano, o que é ser feliz, então eu acho que as pessoas são totalmente afetadas por
essa dimensão capitalística, principalmente nos seus modos singulares de sofrimento
e como isso se presentifica na clínica. Eu acredito muito que até a forma que a gente
deseja é produzida por esse sistema capitalista também. Acho que não tem como
dissociar essa parte institucional, das políticas que eu já trabalhei, da forma que eu
trabalho nas políticas públicas, do consultório, dessas questões que são da
singularidade (Entrevista 4).

Rafael Silva e Flávia Carvalhaes (2016), em artigo que aborda a questão da formação
em Psicologia e a atuação da/o psicóloga/o nas políticas públicas, afirmam que as/os
psicólogas/os têm tido dificuldades em atuar nestes contextos justamente porque carecem de
algum elemento na formação que trate das questões culturais, sociais, econômicas,

70
principalmente de maneira mais contundente. Os autores apontam que este fato está bastante
atrelado a uma questão importante à Psicologia, que é o fato de esta construir seu conhecimento
e prática considerando a pesquisa e a intervenção a partir do objeto específico: subjetividade,
e, entretanto, esse objeto ser abordado de formas tão diferentes de acordo com a abordagem
teórica de cada um. Assim, estes autores apontam que as divergências entre as diferentes
abordagens psicológicas contribuem para que a questão seja tratada de forma normalizadora
ou resistente. A Psicologia opera de forma normalizadora quando corresponde aos ideais da
cientificidade, da neutralidade ou do conformismo e adequação, em contrapartida, age de
maneira inventiva ou resistente, quando propõe enfrentamentos, novas formas de atuação,
enfim, quando apresenta e afirma a diferença e não a reprodução.

3.3 Trajetórias, memórias e afetos: deslocamentos formativos

Para a escrita deste texto, faço a todo tempo visitas à memória (coletiva e individual) e
recordo muitos elementos da minha própria formação. Lembro-me que concluí a graduação em
Psicologia na PUC Minas com o auxílio de uma bolsa assistencial oferecida pela instituição.
Naquela época, não faz tanto tempo assim, ainda não estavam disponíveis programas do
Governo Federal, como ProUni,23 para auxiliar pessoas que não ingressaram nas universidades
públicas e não poderiam custear financeiramente seus estudos em universidades particulares,
tivessem esse direito de estudar garantido. O FIES,24 que é um fundo de financiamento à
educação superior, era mais difícil acessar porque o aluno necessitava apresentar um fiador que
se enquadrasse em critérios econômicos que o possibilitasse arcar com a dívida adquirida
durante a formação caso o aluno não conseguisse quitá-la. Estudar na PUC foi excepcional. A
unidade era nova, ficava na região metropolitana de Belo Horizonte - RMBH e integrei a
terceira turma do curso, se não me engano. O programa era bastante plural, os professores eram
muito capacitados e havia desde o início do curso um incentivo à produção acadêmica e a uma

23
Programa Universidade para Todos, lançado 2004 pelo Governo Federal para facilitar o acesso ao ensino
superior para alunos que não tinham meios para custeá-lo. Oferece bolsas de estudos integrais ou parciais da
mensalidade em faculdades particulares.
24
Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior. Programa do Ministério da Educação lançado em
1999 destinado a financiar a graduação na educação superior em instituições particulares para facilitar o acesso
ao ensino superior para alunos que não tinham meios para custeá-lo. Nesse programa, o aluno deve devolver ao
governo, parceladamente e a juros mais baixos, todo investimento financeiro feito pelo governo para custear sua
formação.

71
formação que se fizesse mais generalista quanto fosse possível. Os estágios eram muitos e
muito diversificados. Estagiei em diversos equipamentos e coletivos. Nem sempre consegui
estar regular no curso. Como a bolsa era parcial, havia semestre em que não era possível custear
todas as matérias e elas eram reduzidas e retomadas assim que fosse possível. Com isso, fiz
disciplinas em outras unidades da PUC que também ofereciam o curso, em outros horários,
outros períodos, com outras turmas. As trocas foram intensas. Numa dessas ocasiões, soube de
um incidente grave que ocorreu em uma turma, quando, em uma aula de Psicologia Sócio-
histórica, discutiu-se algum aspecto sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
- MST. O que ocorreu foi que uma das alunas, filha de latifundiários, desferiu ofensas das mais
diversas ao movimento social e a quem o defendia. Houve grande polêmica, discussão,
agressividade e a professora assumiu a função delicadíssima de tentar mediar um conflito que
não era passível de mediação. Parece que a turma se dividiu depois desse embate, se polarizou.
Quando cheguei para essa turma, essa situação ainda estava recente e outras haviam ocorrido.
Coincidentemente, esta mesma aluna teria proferido um ato de injúria racial a um colega. Colhi
um pouco dos efeitos. Trago esse relato para ilustrar que acredito que a formação tem a ver
com isso: diferenças, afetos, conflitos, impasses, complexidade. O processo formativo, a clínica
e a política andam juntos e, com isto, é imperativo que se faça alguns questionamentos: que
profissionais de Psicologia as universidades têm produzido? Qual o efeito dessa formação na
atuação profissional? O que se tem feito na clínica? Será que essa clínica tem perseguido uma
proposta ética, estética e política, independente da abordagem? Preciso destacar aqui que o
interesse central dessa tese está na atuação clínica em Psicologia em suas variadas
possibilidades, destacando-se a perspectiva clínica da Esquizoanálise. Ciente de que a
graduação não necessariamente forma clínicos, o que tem me provocado desde as minhas
primeiras experiências ainda na graduação até minha experiência profissional está relacionado
aos porquês da atuação clínica muitas vezes se apresentar tão desconectada da realidade de
quem atende.
Durante os estágios que realizei na ocasião da graduação, pude assistir a posturas muito
diferentes dos profissionais da Psicologia pelos diversos equipamentos das políticas públicas
que passei. Algumas bastante comprometidas com uma postura clínica que dialogava com
várias das interseções que atravessavam as subjetividades das pessoas que eram atendidas pelos
serviços e outras cristalizadas, padronizadas e pouco inventivas. Em relação às práticas
reprodutivas, surge constantemente um questionamento: quais nomadismos são possíveis?
Estive estagiária em um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS em um município da
RMBH durante dois anos da graduação em Psicologia. No primeiro ano, o estágio consistia em
72
acompanhar todas as rotinas do serviço (as oficinas, as reuniões de equipe, as visitas
domiciliares, os acolhimentos, alguns atendimentos (na presença de um profissional do
serviço), a permanência-dia, a administração medicamentosa e até mesmo a prática de
acompanhamento terapêutico - AT de alguns pacientes. No segundo ano, o estágio consistia
em acompanhar e realizar atendimentos em duplas de estagiários às famílias dos usuários do
serviço, já numa perspectiva esquizoanalítica. Nas duas experiências, éramos acompanhados
tanto por um profissional de referência no serviço, quanto por um professor responsável pelo
estágio na universidade.
Neste primeiro ano de estágio, em que passávamos cinco dias da semana no serviço,
muitas impressões e percepções foram feitas e, dentre elas, comecei a observar uma paciente
que estava em permanência-dia por meses. Lembro-me que ela era bastante demandante, pedia
medicamento, pedia cigarro, pedia para sair do serviço, pedia cobertor, pedia atenção. Sinto
certo desconforto e constrangimento ao lembrar e assumir para mim mesma que ela realmente
era chata. E a chatice dela era visível, percebida por todos. Não era dispensada muita atenção
a ela e aquilo me incomodava muito. Observava aquele tratamento que, na minha opinião, era
displicente. Ela esteve em permanência-dia no serviço durante quase todo o tempo de duração
do estágio. Criei coragem e um dia perguntei a alguém da equipe porque ela era tratada daquela
forma, com respostas rápidas, austeras e negativas quase o tempo todo. Explicaram-me que ela
era uma histérica e que aquela conduta fazia parte do tratamento dela. Eu cursava o quinto
período do curso, se não me engano. Continuei incomodada. Numa das tardes em que eu estava
acompanhando uma oficina de música que acontecia às quartas-feiras, percebi uma grande
agitação que vinha da sala de observação. Essa paciente havia se enforcado no banheiro
feminino. Por sorte, uma técnica de enfermagem conseguiu socorrê-la a tempo de ela
sobreviver àquela tentativa de autoextermínio. Nunca me esqueci dessa situação. Achava
aquela equipe bastante responsável, mas não entendia porque uma postura ríspida e quase sem
afeto poderia contribuir ou compor o tratamento de alguém.
O CAPS era um equipamento grande que atendia muitas pessoas. Tive a oportunidade
de acompanhar a maioria das rotinas de trabalho e realmente aprendi muito sobre saúde mental
lá, sobretudo no acompanhamento contínuo do trabalho dos técnicos de enfermagem, a quem
sou muito grata. Entretanto, isso tudo me fez pensar nesse incômodo que não cedia. Qual seria
o problema? Um dia ouvi no serviço que Lacan dizia: “Se quiser afundar uma histérica, ajude-
a!” Não lembro quem me falou isso. Nunca esqueci essa frase. Estaria a clínica aprisionada a
um tipo de conduta universal que serviria a todas as pessoas? Neutra, apolítica, acrítica,
impessoal? Não estou questionando propriamente o diagnóstico dado ou até mesmo a
73
intervenção feita pela equipe a partir do diagnóstico. O que pretendo questionar aqui é: o que
acontece quando uma mulher negra, paciente de um serviço de saúde mental de uma periferia
de uma grande cidade, faz uma denúncia? A questão centrava-se na falta ou no excesso? Até
que ponto não havia na equipe uma postura reativa a essa paciente, que era chata, poliqueixosa,
demandante e que denunciava com sua presença tantas vulnerabilidades, tantas exclusões
(mulher, negra, periférica, louca, histérica), denunciava e causava incômodo. As direções do
tratamento podem ser definidas de forma reativa? Há direções de tratamento definidas de forma
reativa? Qual a relação entre clínica, política, história nesse caso, se pensamos a clínica como
formação de/para vida, como possibilidade de produção de subjetividade? Deslocar-se da ideia
de uma subjetividade universal e generalizada é considerar os atravessamentos que subjetivam
nossos pacientes e essa mulher negra citada. É pensar que a subjetividade de uma mulher negra
em uma sociedade extremamente desigual, estruturada a partir da escravização e do racismo se
faz diferente da branquitude dominante de quem produziu e produz as teorias em Psicologia.
Várias vulnerabilidades se entrecruzam aqui: gênero, classe, raça, corpo, território, que causam
interferências na dor, no sofrimento, na saúde mental das pessoas. Entendo que problematizar
essas questões é, de fato, para além do discurso, sustentar na prática clínica uma visão que não
pode admitir essa cisão da subjetividade e do social, é dar consistência à singularidade.
Ao refletir sobre essas questões, penso imediatamente nas contribuições que o
pensamento feminista negro poderia agregar no que tange à Psicologia clínica na
contemporaneidade. Embora eu considere de suma importância para o pensamento
contemporâneo e para a sociedade como um todo as discussões e problematizações
estabelecidas pelas teorias e pensamentos feministas e toda a produção desenvolvida pelo
movimento feminista em seu percurso desde o que se configurou como a sua primeira onda
com o movimento sufragista, entre o final do século XIX e início do século XX até as pautas
discutidas na atualidade, não pretendo aprofundar aqui minuciosamente os avanços alcançados
pelo movimento feminista ao longo do tempo, pois essa é uma discussão que merece atenção
acurada e extrapolaria as pretensões dessa tese. Entretanto, acredito ser importante dar destaque
e discutir algumas contribuições do feminismo negro, principalmente pela aproximação dessas
discussões, que atravessam a atividade da Psicologia clínica na atualidade.
Foi em 1851, durante a Convenção dos Direitos da Mulher, no estado de Ohio, nos EUA
que a abolicionista afro-americana, escritora e ativista dos direitos da mulher Sojourner Truth
apresentou um discurso improvisado e impactante em que questionava a condição da mulher
negra e escravizada, conforme afirma Djamila Ribeiro (2017). O discurso de Truth, que ficou
marcado pela enfática frase: “Eu não sou uma mulher?”, apontava a invisibilidade das
74
dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras e o privilégio das mulheres brancas em relação
a elas, já que as reinvindicações das mulheres brancas se concentravam no direito ao voto
feminino e principalmente no direito ao trabalho, atividade que já era exercida há séculos pelas
mulheres negras escravizadas.
É nesse sentido que Amana Mattos e María Elvira Díaz-Benites (2019), ao abordarem
problematizações e questões metodológicas a partir da interseccionalidade, além de focarem
inicialmente nas feministas negras estadunidenses para explicarem esse conceito, também
afirmam a importância do feminismo negro ao denunciar os aspectos que o movimento
feminista estava a levantar como pauta. Afinal, a reinvindicação do voto e de oportunidade de
trabalho que foram as primeiras reivindicações do movimento abarcavam apenas as mulheres
brancas de determinada classe social, escolarizadas, uma vez que as mulheres negras já
trabalhavam e inclusive eram acusadas socialmente de abandonarem seus lares e não serem
boas cuidadoras de seus filhos, justamente por estarem trabalhando fora de casa, cuidando dos
filhos das mulheres brancas.
O feminismo negro, que se consolidou entre as décadas de 1970 e 1980, tem em sua
trajetória contribuições extremamente valorosas, como as das feministas negras estadunidenses
Angela Davis, bell hooks, Patrícia Hill Collins, Audre Lorde, dentre tantas outras. No Brasil,
entre as pensadoras negras que tiveram maior destaque e que felizmente têm tido suas obras
mais conhecidas, reconhecidas e pesquisadas atualmente,25 destacam-se Lélia Gonzales,
Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, para citar algumas. Ao pensamento feminista negro,
interessa denunciar o apagamento da questão racial nas pautas feministas, bem como
empreender uma luta por justiça social, apontando para a necessidade de se olhar, escutar,
perceber as questões relacionadas à interseccionalidade.
bell hooks (2017) relata seu espanto ao ingressar na Universidade de Standford, onde
se graduou em literatura inglesa, e perceber as dificuldades enfrentadas pela academia de
articular os estudos feministas aos estudos raciais. Nascida em época de segregação racial nos
EUA, iniciou sua educação formal em escola exclusiva para negros e apenas no ensino médio
teve a experiência de estudar em escolas mistas para negros e brancos. Na universidade,
encontrou, além da discriminação e racismo, uma “tremenda ignorância pela experiência
negra” (hooks, 2017, p. 162), principalmente ao que se referia às questões de gênero. A autora
relata que enquanto estudante da disciplina Estudos da Mulher, que participou desde que foi

25
Sobre a assunção do pensamento feminista negro no Brasil, ver tese de doutorado de Dulcilei Conceição Lima,
intitulada #Conectadas: O feminismo negro nas redes sociais. UFABC, 2020, conforme consta nas referências
desta tese.

75
ofertada, descobriu que a visão que se tinha do homem negro vitimizado, castrado pelo trauma
da escravidão, humilde e impedido de acessar os privilégios masculinos era completamente
diferente da que havia percebido desde tenra idade observando o papel de destaque que o seu
pai exercia em relação à sua mãe por ser homem, e a desvalorização da figura de sua mãe em
função de ser mulher. A desigualdade de gênero, que não era restrita à sua residência, também
ocorria na comunidade negra e se utilizava de artifícios como a coerção, a punição violenta e
assédio verbal para o mantenimento da dominação masculina, ao contrário do que se acreditava
na universidade e era reproduzido pelas professoras e alunas brancas que mantinham, por
exemplo, um “pressuposto tácito de que, pelo fato de muitas mulheres negras trabalharem fora
de casa, entre os negros, os papéis sexuais eram invertidos” (hooks, 2017, p. 163), além de se
referirem à condição das mulheres de maneira universal, ignorando que com isso tratava-se
apenas da condição da mulher branca. A autora relata ainda que, anos depois, ao se tornar
professora da disciplina de Estudos da Mulher na Universidade da Califórnia, estas dificuldades
de articulação entre estudos feministas e raciais permaneciam no meio acadêmico, pois, em
suas disciplinas, percebia que a maior parte das alunas era composta por feministas brancas
que falavam de uma perspectiva feminista, porém rejeitavam a experiência trazida pelas alunas
negras, que, por sua vez, também tinham resistência em incorporar a perspectiva feminista nas
discussões sobre raça.
Dulcilei Lima afirma que as discussões sobre

gênero, raça e classe constituem o tripé de sustentação do feminismo negro. No


entanto, essa tríade originária frequentemente dialoga, em maior ou menor medida,
com outras categorias, como sexualidade, nação, geração, desde o surgimento do
feminismo negro estadunidense em meados dos anos 1970 (LIMA, 2020, p. 63).

Desta forma, para além das questões relacionadas a gênero e raça, inclui-se
incontestavelmente a discussão sobre classe como marcadores sociais categóricos à discussão
da interseccionalidade. O conceito de interseccionalidade foi utilizado pela primeira vez em
1989 pela jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw, que o define como a articulação entre
diferenças, ou entre diferentes formas de opressão:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p. 177).

76
É importante reforçar, como Lima (2020) destaca, que o surgimento dos conceitos
“categorias de articulação” e/ou “interseccionalidades” pode ser considerado uma resposta à
rejeição da categoria mulher e ao predomínio de um discurso dominante que colocava em
evidência a figura de mulheres brancas, heterossexuais e de classe média alta enquanto
representantes do projeto feminista e, concomitante a isso, promovia a invisibilidade das
mulheres negras, indígenas, lésbicas, pobres e de origens que não fossem ocidentais.
Existem diferentes vertentes e abordagens que definem interseccionalidade que se
relacionam principalmente à interpretação que é dada aos termos “diferença” e “poder” para
cada uma delas. Há ainda uma importante produção recente discutindo o tema a partir dessas
diferentes abordagens. Entretanto, parece consensual que o conceito está estreitamente
relacionado ao feminismo negro e que se refere à articulação ou à intersecção entre marcadores
de diferença e opressões, que se distinguem, mas não se anulam, não se somam e nem se
sobrepõem uns aos outros. O pensamento interseccional dá visibilidade a questões que
comumente eram pensadas isoladamente uma das outras. A atenção à questão racial, de classe
e de gênero vistas articuladamente, promove, a meu ver, uma possibilidade de complexificar a
realidade.
Luciana Oliveira, em tese de doutorado, defendida recentemente na UFF, em que trata
do cuidado a mulheres em situações de violência de gênero, aponta a necessidade ímpar de se
considerar e praticar a interseccionalidade no que diz respeito ao atendimento desse público. A
autora afirma que

essa noção [interseccional] busca apreender a articulação das diferenças que


constituem a diversidade e que com frequência produzem desigualdade. As
categorias gênero, raça, etnia, sexualidade, classe social, geração, deficiência,
nacionalidade, devem ser analisadas em sua articulação compondo a
complexidade da opressão experimentada pelas mulheres que se encontram
em situação de violência (OLIVEIRA, 2020, p 123).

Deste modo, para além da indissociabilidade entre o feminismo negro e a


interseccionalidade coloca-se também a necessidade de se discutir a indissociabilidade
necessária entre o pensamento interseccional e a perspectiva clínica da psicologia aqui
sustentada pela Esquizoanálise.
Se retomamos os dois casos supracitados em que aparecem marcadamente questões
relacionadas a raça, classe e gênero (tanto no caso da usuária do CAPS que fez a tentativa de
autoextermínio quanto no caso da aluna de graduação que atacou verbalmente o MST e disferiu
ofensas raciais a um colega) podemos perceber a dimensão clínico-política da reatividade no

77
que tange à experiência minoritária que denuncia. Localizar nessa dimensão, assim como na
lógica neoliberal, a ideia de sujeito universal, que muitas vezes ainda sustenta nossa prática,
parece ser necessário para que se possa propor uma clínica que esteja mais a favor da vida.
Parece importante que a clínica da Psicologia, e, sobretudo, a clínica da Esquizoanálise se
sustentem, como diriam Deleuze e Guattari, nos fluxos e nos cortes - uma clínica que não seja
neutra, que tenha uma perspectiva decolonial, que não se apoie na lógica neoliberal, que não
gerencie subjetividades a ponto de se adaptarem a um mundo doente que promove guerras e
pandemias.
É preciso, portanto, considerar a dimensão política do sofrimento psíquico. Escutar na
“queixa individual” de cada um, de cada paciente, os aspectos coletivos presentes, os
agenciamentos coletivos de enunciação. É preciso pensar num diagnóstico a partir de todas as
engrenagens possíveis que incidem sobre as vidas (engrenagens machistas, patriarcais,
coloniais, racistas, etc.) que estruturam nossa sociedade. A histérica atendida por Freud,
certamente não é a mesma atendida pelo CAPS que estagiei. Pensando no diagnóstico da
histeria, por exemplo, não seria possível afirmar que se tratava de um sintoma de uma época e
de uma sociedade extremamente patriarcal? Como é possível escutar uma mulher
(especialmente mulheres negras) sem considerar as referidas engrenagens que sustentam um
certo modo de vida? É preciso desindividualizar o sofrimento. Oliveira (2020) parafraseando
Valeska Zanello (2017), nos lembra que a vinculação entre saúde mental e gênero é bastante
significativa em sociedades sexistas como a nossa e que isso muitas vezes é responsável por
uma “vulnerabilização identitária à mediação do ato diagnóstico (que nunca é neutro) e a
própria descrição do transtorno” (OLIVEIRA, 2020, p. 124). Além de favorecer a manutenção
de sintomas e uma patologização da condição de mulher por meio de modelos médicos e
psiquiátricos que as objetificam, coisificam e invisibilizam, naturalizando e classificando
sintomas como próprios das mulheres: as “loucas”, apoiando-se em princípios morais e sociais
de cada época. Sobre a necessidade da observância da questão racial na clínica Fátima Lima,
nos diz que os

processos de subjetivação marcados pela referência em ser mulher e negra e,


consequentemente, por práticas discursivas racistas e sexistas [é] que acabam
produzindo medo, ansiedade, tormentos, entre tantos outros afetos, sensações,
sentimentos que colocam as vidas pretas no âmbito do que podemos tomar – de uma
forma geral – como sofrimentos psíquicos. Essa dupla produção identitária – mulher
e negra – tem produzido pesos, cobranças e experiências que visibilizam a
racialização do gênero e o gendramento da raça (LIMA, 2017, p.72).

78
É preciso questionar: o que escapa? Em uma das entrevistas que realizei, a primeira
delas, a entrevistada me relatou vários aspectos de sua formação. Disse que antes mesmo de
ter concluído o curso de Psicologia, começou a estudar Psicanálise. Entretanto, após alguns
anos de formação e atuação clínica, começou a perceber que sua prática lhe parecia de alguma
maneira desconectada das questões que apareciam em seu consultório, e que isto a estava
fazendo adoecer:

Duas noções me “torturavam”, me preocupavam todo dia no meu trabalho: a noção


de falta e a ideia de neutralidade. Isso era muito doloroso pra mim, ainda que eu era
uma pessoa que tentava praticar a Psicanálise e via muito mérito na Psicanálise. [...]
Eu não aguentava mais a teoria da falta. Eu realmente estava muito doente, inclusive
fisicamente. Tive um problema pulmonar grave, tive uma crise de asma que não
melhorava nunca. Eu vivia mal com a ideia de falta e neutralidade (Entrevista 1).

A entrevistada relatou que a partir desse seu adoecimento, seus questionamentos e


incômodos, foi buscar outras possibilidades e maneiras de intervenção clínica, chegando à
Análise Institucional, aproximando-se do Sindicato dos Psicólogos, participando e
promovendo Cine Debates a partir do sindicado e aproximando-se da Esquizoanálise. Relatou
que algumas questões começaram a fazer mais sentido para ela e que conseguiu “respirar”.

As pessoas fazem parte de alguma coisa enredada, um conjunto de forças que nos
habitam e forças de naturezas diferentes, mas, sempre forças. [...] A ideia de
movimento entrou na minha clínica, porque entrou na minha vida. Eu uso muito a
psicanálise: admiro a nobre senhora Psicanálise, mas uso muito dentro dessa vocação
de Deleuze e Guattari da raspagem, raspagem dos processos identificatórios. Isso me
encanta muito e renova a minha energia. Cada cliente que eu encontro eu falo: pra
onde vai a força? Onde funciona a potência? (Entrevista 1)

Alguns aspectos desses relatos descritos acima, tanto da entrevista realizada quanto da
minha própria experiência enquanto estagiária, aluna de graduação em Psicologia e psicóloga
clínica, fazem-me pensar nas implicações da clínica na atualidade e principalmente no uso das
teorias que escolhemos para orientar nossa prática. Acredito, assim, como situou a entrevistada,
que as forças e as formas estarão sempre presentes e que as teorias podem ser utilizadas tanto
de maneira produtiva e inventiva quanto como reprodutora de uma verdade absoluta, inclusive
na Esquizoanálise.
Os impasses que percebo presentes na clínica atualmente estão de certo modo
relacionados a uma desconexão ou desconhecimento de alguns profissionais em relação à
realidade histórica e política do país, bem como a uma visão demasiado simplista de
subjetividade. O causo que utilizei para iniciar esse capítulo é uma alegoria a algo que

79
infelizmente acontece na clínica. Não estou afirmando aqui que a/o psicóloga/o tenha que saber
tudo, mas acredito que a ignorância em relação à existência de religiões de matriz africana em
um país que tem a maior parte da sua população negra, proveniente da diáspora africana no
período de escravização de seu povo, aponta para um problema não tão recente, que é a
elitização da profissão e possibilidade inclusive de reforçar comportamentos e práticas racistas.
Nas infinitas possibilidades e caminhos que as formações nos conduzem no exercício
clínico da Psicologia, parece a mim inevitável que a clínica de fato tome para si estas questões
supracitadas. Precisa estar atenta e presente a essa discussão; contextualizar criticamente quais
alianças foram feitas; refletir sobre o que a fez avançar e o que atravancou seu exercício;
compreender seus limites; romper definitivamente com a ideia de sujeito universal;
compreender que mesmo ideias libertárias podem promover práticas opressoras e vice-versa;
não almejar ser neutra, afirmar seu compromisso ético, político e social, principalmente em
relação às questões de gênero (somos uma profissão que é massivamente ocupada por
mulheres), raciais (qual é a importância de se desconstruir ou melhor, descolonizar a ideia de
descobrimento do Brasil que aprendemos na escola e do mito da democracia racial por
exemplo?), de orientação sexual (combater quaisquer propostas de terapias de “reversão”
sexual) e de classe (a quem serve, quem pode acessar); desalienar-se; aproximar-se das
questões culturais; ser intercessora, principalmente se nos referimos a uma clínica que se
aproxima da perspectiva esquizoanalítica. Parece que a Esquizoanálise, por toda a sua
compreensão de subjetividade e seu funcionamento, é capaz de possibilitar práticas inventivas,
criativas, libertárias, principalmente se considerarmos as terras brasileiras e suas afinidades
antropofágicas.

80
Causo: A psicóloga de rua

Me veio agora... eu lembrei agora, dessas guias que ficam assim


mais misturadas, não são tão definidas, me veio Dona Martinha.
Eu saí do Consultório na Rua e fui lá visitar ela, depois de um
tempo, fui lá. Até hoje o pessoal está trabalhando e me manda
áudio da Dona Martinha. Ela quer falar com você! E ela é uma
senhora que eu conheci na rua. Ela nem é tão senhora, mas, também
tem isso, o pessoal na rua parece mais senhor do que é, né?
Agora ela deve ter 60 anos, ela nem era tão senhora assim, mas
ela já estava mais acabada. Ela viveu na rua desde sempre. Teve
uma experiência de morar em casa, mas logo na adolescência já
tinha essa coisa de morar cada hora na casa de uma pessoa, uma
hora na casa de um, outra na casa de outro, depois ficou morando
com o marido na rua aí a gente já conhece ela com 50 e poucos
anos e mais de 30 anos de rua. A história é grande, mas vou
resumir. Ela tava muito mal, debilitada, já não tava dando mais
conta de ficar na rua, mas ao mesmo tempo ela não sabia não
ficar mais na rua porque ela aprendeu, então foi um trabalho de
desinstitucionalização ao contrário, para ela ir para uma casa.
Enquanto os pacientes do hospital (manicômio), a gente fica
tentando tirar do hospital para circular pela cidade, com a Dona
Martinha era o contrário, era um trabalho de poder de alguma
forma territorializar ela um pouquinho para ela poder parar num
lugar, conseguir alugar um lugar, conseguir um benefício (de
transferência de renda). Então foi um trabalho que é isso né, a
gente entra na casa das pessoas, conhece a família das pessoas,
conhece as histórias que... é muita coisa! Ai nisso a gente vai
acionando toda uma rede, aí vai na casa que ela já morou de
favor e aí conhece todo mundo né? Desde o traficante que fica
na porta da casa dela e que cuida dela até a parente que não é
nada dela, mas que é mais parente do que os familiares de sangue,
que ela chama de tia, mas que não é tia dela, não é irmã da mãe
dela. E aí você vai entrando na vida das pessoas, né? É muito

81
diferente né, do que se eu atendesse a Dona Martinha no meu
consultório, né? Porque você vai lá no meio da favela, conhece
o pessoal do radinho do tráfico, o vizinho que é chato que ela
ficava lá reclamando e aí todo um trabalho para a gente conseguir
um benefício. A gente não trabalhava nessa direção de tirar
ninguém da rua, mas entendeu que no caso dela isso fazia sentido,
mas foi o sentido que a gente foi construindo ali com ela. Então
era muito diferente para mim também porque era um trabalho de
tirar alguém da rua porque a gente atendia na rua, a gente não
tirava as pessoas da rua, essa coisa meio salvacionista. Foi um
trabalho que você vai se envolvendo muito, né? Aí a Dona
Martinha! Nossa! Eu fico até emocionada falando dela. Lembrando
que eu acho que a última vez que eu estive com ela foi 18 de
maio do ano passado, eu já não estava mais na equipe, mas eu fui
no ato e ela estava lá e a gente tirou uma foto juntas. E é
isso, aí foi um trabalho de comprar fogão, de mobiliar a casa
dela, de ela não conseguir ficar sozinha em casa. Para o CAPS,
eles entendiam ela como psicótica e achavam um absurdo que a
gente nunca tinha entendido que a Dona Martinha era psicótica e
aquilo nunca fez sentido para mim e até hoje não faz. Eles
(profissionais do CAPS) achavam que a gente não tinha feito
nosso trabalho direito de entender que ela era doida e ponto. E
a Dona Martinha para mim essa pessoa é muito da rua, bebia o
“alcoolzinho” dela lá porque ela fazia uso abusivo de álcool, a
cachacinha vermelhinha dela, se alguém desse cocaína ela usava,
ela andava pela casa de todo mundo e pela rua, ela era a pessoa
que todo mundo conhecia na favela. Aí ela é psicótica? Enfim,
isso não fazia sentido para mim. Ela tinha um modo ali de
funcionar e que ela só sobreviveu por isso, por esse modo dela
mais do que um lugar que marca ela como uma incapacidade, era
um lugar que marcou a potência dela, né? Foi com esse jeito
errante que ela foi sobrevivendo.

82
4 ESQUIZOANALISTAS: O QUE FAZEM?

4.1 A que/quem serve a clínica? Os princípios de uma clínica esquizoanalítica e suas


experimentações ou os acontecimentos comuns na clínica esquizo

O que para mim foi mais difícil de começar a clínica nesse formato de trabalho era
ficar sentada na poltrona, eu tinha muita dificuldade. Eu ficava muito desconfortável
de sentar mesmo, eu precisava me levantar, cruzar a perna, me mexer. E aí eu ficava
assim: não sei, gente! Eu sei sentar na calçada, conversar andando (Entrevista 6).

Primeiramente, é preciso ser dito que esta pesquisa não teve a pretensão de responder
à’ pergunta que nomeia esse capítulo e consta no título dessa tese de modo a oferecer um
“modelo” de clínica, um modus operandi que seja capaz de determinar como deve ou deveria
funcionar o trabalho de uma/um esquizoanalista. Afinal de contas, estaríamos na contramão
desta proposta clínica por vários motivos, dos quais destaco um: a singularidade desse
pensamento. Entretanto, vou tentar ao menos trazer algumas pistas, ou caminhos
experimentados por alguns esquizoanalistas que entrevistei (ainda que muitas/os não se
reconheçam assim) e também da minha própria experiência profissional que possam favorecer
uma compreensão do seu funcionamento e apontar para possíveis trajetórias de atuação.
Uma prática psicológica clínica orientada pela Esquizoanálise se sustenta em caminhos
conceituais rigorosos (filosófica, política, ética e sociologicamente) e parte de escolhas
metodológicas inovadoras, como a cartografia e apostas como a saída do consultório, ou
“setting” como a realização de atendimentos em locais não convencionais, a rua, as praças, os
parques, os jardins, etc. Há a inclusão da discussão sobre o corpo no contexto clínico, aspecto
pouco privilegiado por uma clínica mais tradicional, a atenção, ou melhor, a afirmação e oferta
de atendimentos em grupo, além de todas as questões já tratadas aqui como sua compreensão
de subjetividade, a inseparabilidade entre clínica e política, que parece ser um ponto crucial, e
ainda o diálogo com as artes, com a criação e invenção de dispositivos.
Diante dessa complexidade, penso ser bastante relevante explicitar aqui um pouco do
que colhi ou, algumas das impressões marcantes que surgiram a partir das entrevistas com
profissionais da Psicologia que entrevistei no que diz respeito à sua vivência cotidiana de
trabalho clínico. Apresentar essas práticas, além de esboçar de algum modo uma compreensão
acerca dessa pergunta que me foi tão cara e me motivou a realizar essa pesquisa, possibilita
também uma breve “sistematização” do que me parece comparecer/estar presente no exercício
de uma prática que se diga orientada pela Esquizoanálise.

83
Hur (2018), em livro em que compartilha generosamente com as/os leitoras/es os
primeiros passos para se compreender o funcionamento da Esquizoanálise, apresenta o
“método esquizoanalítico de intervenção”. Para o autor, é entre as relações de força, poder e
potência que coexistem macro e micropoliticamente que decorre essa “pragmática ético-
estético-política que atua tanto nas instâncias políticas e sociais quanto nas instâncias psíquicas,
desejantes e afetivas” (HUR, 2018, p. 42). O autor afirma ainda que no projeto político
esquizoanalítico existem duas metas: explicitar as forças opressivas em qualquer âmbito, sejam
elas macro ou micropolíticas e o posicionamento político combativo às máquinas dominantes
que cerceam/limitam a vida e os processos desejantes, e que este método parte de três tarefas
críticas que têm o objetivo de desterritorializar e ressingularizar os agenciamentos aos quais
intervém: tarefa negativa e tarefas positivas.
Nessa direção, no último capítulo de O Anti-Édipo, denominado “Introdução à
esquizoanálise”, Deleuze e Guattari (2010) apresentam as tarefas que consideram ser cruciais
à Esquizoanálise. Penso ser importante explicitá-las e aprofundarmos a discussão um pouco
mais nesse momento, justamente porque, em concordância com o que afirma Hur, tanto a
clínica esquizoanalítica quanto o Esquizodrama, que veremos com mais detalhe no próximo
capítulo, inspiram-se nessas tarefas e em seus desdobramentos, e partem delas para fazer sua
proposta de intervenção. Para os autores supracitados, as tarefas são três: uma tarefa
destrutiva26 e duas positivas, sendo que, a tarefa destrutiva e as positivas são indissociáveis.
A tarefa destrutiva da Esquizoanálise se destina a realizar o que os autores denominam
de limpeza, curetagem, raspagem do inconsciente. A curetagem é a identificação do que se
repete, a partir de uma crítica, para que venha o novo. É uma tarefa anticonservacionista.
Deleuze e Guattari falam da importância de descolonizar o inconsciente e de entendê-lo como
produtivo, tirando-o da lógica da representação ou da neutralidade. “Destruir, destruir: a tarefa
da esquizoanálise passa pela destruição, por toda uma faxina, uma curetagem do inconsciente.
Destruir Édipo, a ilusão do eu, o fantoche do superego, a culpabilidade, a lei, a castração”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 411). Estas destruições são necessárias para a
desconstrução de crenças, representações, cenas e situações pré-determinadas que assujeitam,
modelam, formatam as subjetividades. É preciso contribuir para a recondução do sujeito à
produção, à fábrica, já que na Esquizoanálise não se deve interpretar e sim buscar as máquinas

26
Alguns autores denominam a tarefa destrutiva de tarefa negativa, acredito que por uma questão pedagógica,
para facilitar sua compreensão. Entretanto, Deleuze e Guattari preferem não utilizar esse termo, muito
possivelmente para evitar a associação à dialética. Optei por manter em todo o texto a tarefa como destrutiva e/ou
seus sinônimos e não utilizar o termo “negativa”.

84
desejantes, os fluxos desterritorializados, os elementos moleculares e convocar a
experimentação. Outrossim, os autores apontam que a tarefa destrutiva deve funcionar de
maneira rápida, mas ao mesmo tempo de forma paciente e prudente, com o intuito de desmontar
paulatinamente “(...) as territorialidades e as reterritorializações representativas pelas quais um
sujeito passa na sua história pessoal” (ibid., p. 421).
A primeira tarefa positiva/produtiva da Esquizoanálise consiste em “(...) descobrir num
sujeito, a natureza, a formação ou o funcionamento de suas máquinas desejantes,
independentemente de toda interpretação” (ibid., p. 426). Trata-se de buscar as máquinas
desejantes e localizar o que faz um sujeito sair ou entrar nelas, como funcionam e o que isso
tem a dizer. Esta tarefa deve se ocupar dos agenciamentos maquínicos e moleculares dos
sujeitos, do novo, da diferença. É preciso recusar as grandes máquinas molares e favorecer as
micromáquinas moleculares. É apenas em sua tarefa destrutiva que a Esquizoanálise se atém
ao molar e busca aniquilá-lo. “O esquizoanalista não é um intérprete, e muito menos um
encenador; ele é um mecânico, um micromecânico” (ibid., p. 448), por ser um intercessor da
produção e não da reprodução. Assim,

Em cada caso, trata-se de saber quais são as máquinas desejantes de alguém, como
elas funcionam, com que sínteses, com que entusiasmos, com que falhas
constitutivas, com que fluxos, com que cadeias, com que devires. Do mesmo modo,
esta tarefa positiva não pode separar-se das destruições indispensáveis, da destruição
dos conjuntos molares, estruturas e representações que impedem a máquina de
funcionar (ibid.,, p. 449).

A crítica mais contundente e presente aqui está no representar, já que a busca às máquinas
desejantes passa por esse exercício de perseguir o molecular e afirmar a singularidade, a
diferença, sem se deixar cair na captura edipiana da interpretação. No entanto, perseguir as
máquinas desejantes diz respeito a um trabalho minucioso de mapeamento, de cartografia.
Compreendo que a primeira tarefa positiva da Esquizoanálise pode ser lida como uma
cartografia das máquinas desejantes. É mapeando, cartografando as forças que se pode
construir junto (psicólogo e paciente27) uma empreitada clínica que acesse outras sensibilidades
e possibilite a criação de outros territórios.

27
Apesar de acreditar que o termo “paciente” não seja o melhor para definir aquela/aquele que está em
acompanhamento psicológico, utilizo esse termo durante todo o texto por uma questão de praticidade e ainda
porque o termo “cliente”, muitas vezes usado, me incomoda bastante, por estar muito atrelado a uma relação
mercadológica, de consumo capitalista. Talvez o termo mais adequado fosse “agente” ao invés de “paciente”, já
que esse lugar ocupado nessa perspectiva não é de passividade.

85
A segunda tarefa positiva/produtiva da Esquizoanálise é apresentada pelos autores a
partir de quatro teses. A primeira tese diz que

[...] todo investimento molar é social.[...] não há formação molecular que não seja por
si mesma investimento de formação molar. Não há máquinas desejantes que existam
fora das máquinas sociais que elas formam em grande escala; e também não há
máquinas sociais sem as desejantes que as povoam em pequena escala (ibid., p. 451)

Nessa tese, os autores falam da indissociabilidade entre molar e molecular. Se dissermos


que molar remete às formas e molecular às forças, compreendemos que isso passa tanto pela
produção do sujeito quanto pela produção social. Se o sujeito não é apenas contingencial
(Hume), tampouco apenas racional (Descartes), há que se pensar em um sujeito que é
constituído a partir de condições de possibilidades (Kant), porém, condições que são histórico-
sociais (Foucault). Deleuze e Guattari pensam na constituição de um sujeito complexo, que não
está dado e que jamais poderia ser compreendido como uma contingência pura, pois, na visão
dos autores, há sempre algo que existe (materialismo) e resiste à produção. Há sempre um
terceiro que regula, a depender do momento e configuração social e histórica. Atualmente, é
fácil compreender que essa regulação passa pelo socius capitalista. E isso passa por tudo, por
todas as coisas, já que desejo é produção.

Essa soldadura do desejo com a falta é precisamente o que dá ao desejo fins, objetivos,
intenções coletivas ou pessoais – ao passo que o desejo, tomado na ordem real da sua
produção, comporta-se como fenômeno molecular desprovido de objetivo e de intenção
(ibid., p. 454).

A segunda tese aponta para a necessidade de se fazer uma distinção dentro dos
investimentos sociais entre o investimento libidinal inconsciente de desejo ou de grupo e o
investimento pré-consciente de classe ou interesse. É preciso explicitar que o investimento
libidinal de desejo ou de grupo está ligado ao acesso do plano de produção e atento àquilo que
se efetua, e o investimento libidinal de interesse ou classe está ligado às representações molares
institucionais. Dessa maneira, é possível, por exemplo, que uma organização dita
revolucionária (interesse) possa perpetrar práticas reacionárias (desejo-efetuação) e o contrário
também é possível, embora menos frequente. Para melhor elucidar essa diferença entre os
investimentos, os autores se utilizam da ideia de grupo sujeito e grupo sujeitado proposta por
(GUATTARI, 1987), sendo que o investimento libidinal revolucionário, em que o desejo se
embrenha ao campo social a favor da produção desejante, é relativo ao grupo sujeito. Já no
grupo sujeitado, o investimento libidinal opera a favor de mecanismos de sujeição e repressão

86
do desejo, de hierarquização e subordinação à rigidez, à absorção de mais-valia, à antiprodução.
Para Deleuze e Guattari, um dos princípios mais importantes para a Esquizoanálise é considerar
que “o desejo é sempre constitutivo de um campo social. De qualquer maneira, ele concerne à
infraestrutura, não à ideologia: o desejo está na produção como produção social, assim como a
produção está no desejo como produção desejante” (DELEUZE; GUATTARI, p. 461).
A terceira tese explica que “(...) o investimento libidinal do campo social é primeiro em
relação aos investimentos familiares” (ibid., p. 464). Aqui, os autores marcam novamente a
posição do desejo como algo que está o tempo todo ligado com o fora, que está em relação com
o campo social e que este antecede o investimento familiar, edipiano, como propõe a
Psicanálise. Criticam o que seria uma tentativa de neurotizar a vida, de produzir neuróticos a
partir da edipianização familiar, favorecendo a produção de sujeitos dóceis e resignados, mais
passíveis à repressão social e ao bloqueio das linhas de fuga. A tarefa da Esquizoanálise, com
isto, consiste em

[...] desfazer incansavelmente os eus e seus pressupostos, é libertar as singularidades


pré-pessoais que eles encerram e recalcam, é fazer correr os fluxos que eles seriam
capazes de emitir, de receber ou de interceptar, de estabelecer as esquizas e os cortes
cada vez mais longe e de maneira mais fina, bem abaixo das condições de identidade,
de montar as máquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com outros (ibid.,
p. 480).

A quarta e última tese traz os dois polos do investimento libidinal social - o polo
paranoico, reacionário e fascista e o polo esquizoide revolucionário e faz a distinção entre eles.
O primeiro, o polo paranoico, reacionário e fascista, opera pela sujeição da produção e das
máquinas desejantes aos grandes conjuntos molares, às grandes estruturas que estrangulam as
singularidades, as aprisionam, as regulam, concentram-se nas linhas de territorialização,
bloqueando os fluxos, corroborando com retrocessos e limites cada vez mais fixos e fechados;
grupo sujeitado. Em contrapartida, o polo esquizoide revolucionário opera pela insubordinação
e subversão de potência, pelas multiplicidades moleculares das singularidades, pelos fluxos
descodificados e de desterritorialização, pelas linhas de fuga, produzindo novos fluxos,
inventando seus próprios cortes, transpondo os limites que o faça desagregar da produção
desejante; grupo sujeito. Nessa tese, os autores mencionam ainda sobre a arte e a ciência como
processos que têm potencialidade revolucionária de fazer funcionar máquinas desejantes e
fazer passar fluxos sensíveis, decodificados e desterritorializados, quanto menos tiverem que
se explicar, quanto menos forem submetidas à análise dos especialistas a enunciar o que querem
dizer. Dados esses termos, a segunda tarefa positiva de Esquizoanálise pode ser compreendida

87
como uma tarefa de conexão e inseparabilidade do sujeito e o social, do desejo e o fora e a
produção desejante, do molar e do molecular. Importante ressaltar finalmente que “(...) não há
esquizoanálise que não mescle às suas tarefas positivas a constante tarefa destrutiva de
dissolver o eu dito normal” (ibid., p. 480).
Em uma das entrevistas realizadas, um relato de um caso narrado pode contribuir para a
compreensão das tarefas da Esquizoanálise: raspagem, cartografia/perseguição das máquinas
desejantes e conexão.

Atendi uma adolescente durante um tempo e que era uma menina muito experimental.
Atendi ela desde os 14 anos. Agora ela tem 17. Uma menina muito experimental.
Mudava o cabelo sempre, mudava de cor. Ela se cortava, mas não apenas por uma
ideia de angústia, se cortava por tédio, pela experimentação. Fazia muitas
experimentações sexuais, desde os 12, 13 anos, ela fazia experimentações sexuais até
perigosas, inclusive. Ela conversava muito com a ideia do suicídio. Os pais muito
apavorados com ela, eu também apavorado com ela. Um contato muito difícil, ela
sempre com o celular na mão, quase não me escutava. Uma cliente para mim muito
desafiadora que eu tentava entrar em contato com as maquininhas que ela produzia,
os mundos que ela ativava para pelo menos tentar ser minimamente um interlocutor
entre esses mundos. Aí veio a psiquiatra que atendia e já chegou aqui, sentou, e falou
comigo que ela era boderline. Eu comecei a ficar incomodado porque eu não a leio
como boderline, mas a leio como alguém muito mais experimental. Eu brincava com
ela: vamos fazer você sobreviver à sua adolescência! Porque ela queria beber, ela
queria usar todos os tipos de drogas, ela queria experimentar. Aí a médica me falou
assim: ela vai mal na escola, então ela tem que compensar com outros protagonismos.
Eu também não achava isso. Porque a médica reduz a ideia de que o mais importante
é a escola. Se você vai mal na escola, ou tudo que você faz que você tenta brilhar, é
uma compensação? Eu não achava compensatório. Eu achava que ela efetivamente
produzia outros mundos muito mais interessantes do que a escola. Muito mais
produtivos para ela do que a escola, mas também muito perigosos. [...] Eram as
maquininhas desejantes dela. Nem bom, nem ruim, ela compunha um mundo. Eu
tentava intervir para que ela pelo menos tentasse fazer escolhas que não a destruísse
dentro desse processo. Mas aí, a psiquiatra veio muito nesse sentido, do diagnóstico
(Entrevista 3).

Nesse pequeno trecho da terceira entrevista realizada, dentre tantos outros casos e
causos, pois essa foi uma entrevista que teve pouco mais de duas horas de duração, o caso
relatado, em minha opinião, pode elucidar um pouco do funcionamento dessas tarefas num
contexto clínico. Seu incômodo em relação ao diagnóstico dado pela médica não passa por uma
negação do diagnóstico, mas por uma preocupação com as capturas e limitações que alguns
diagnósticos impõem aos sujeitos; esta seria uma das operações da tarefa destrutiva, nesse caso,
raspar a ideia representativa de que aquelas experimentações ou riscos vivenciados pela
adolescente estivessem diretamente relacionados a uma compensação ou que suas atitudes
estivessem estritamente relacionadas a provocar os pais, aspecto esse apresentado mais
detalhadamente durante a entrevista. Realizar uma mirada de cuidado e paciência, estar junto,
convidando a adolescente a sobreviver a essa delicada fase da vida, considerando suas

88
composições de mundo: cartografar, buscar as máquinas desejantes e considerar as conexões
possíveis para a adolescente experimentadora é, neste caso, uma possibilidade de se observar
o funcionamento das tarefas positivas na clínica da Esquizoanálise.
Vale ressaltar que essas tarefas vão se efetivando numa relação que é construída durante
os encontros que acontecem entre esquizoanalista e paciente e as raspagens às vezes precisam
ser feitas minuciosamente, em traços/cortes cirúrgicos, delicados, porque sabemos que algumas
construções/certezas demoram longos anos para se consolidar e torna-se de certo perigoso
“abalar” estruturas psíquicas, psicossociais. Em outros momentos a “rasteira” é possível e até
bem-vinda, pode funcionar! Na cantiga da Capuêra28Angola, na oralidade dessa
arte/luta/jogo/dança afro-brasileira: “Abalou capuêra, abalou! Abalou, deixa abalar!” Esse é
um coro/ ritornelo cantado em rodas de capuêra que se refere, no meu entender, à compreensão
e aceitação de que alguns abalos vão ocorrer na roda de capuêra e na vida, nessa
processualidade, inevitavelmente. E quando esses abalos ocorrem, é preciso dar passagem,
vivenciá-los.
A rasteira é um golpe de capuêra Angola que consiste em que um dos jogadores estenda
uma de suas pernas rente ao chão, no exato momento do contratempo em que o outro jogador
se move, move os pés e se “dis-trai”, deixando uma de suas bases (um dos pés no chão) frágeis,
levantando-o e oportunizando que seu companheiro de jogo, desfira o golpe, e que, com isso,
aquele que recebeu o golpe caia. A rasteira é um dos maiores ensinamentos da capuêra Angola,
na minha opinião. Na ocorrência da rasteira, os dois jogadores aprendem importantes lições.
Numa aproximação entre capuêra Angola e Esquizoanálise, quem dá o golpe (o
esquizoanalista) é quem tem de estar atento, firme, ágil e forte, para proferir um golpe certeiro,
que se atrasar uma fração, um milésimo de segundo, não provocará a queda, o “abalo” daquela
estrutura construída, e aquele (o paciente) que cai (de bunda no chão, na maioria das vezes) é
aquele que forçosamente, pela queda, tem a oportunidade de perceber o que está à sua volta,
seu entorno, de outra perspectiva, outro ângulo, outra forma e atentar-se, recompor-se, levantar-
se e voltar à roda, ao jogo. Essa experiência desterritorializante vivenciada nesse tombo pode
proporcionar àquele que recebeu a rasteira e caiu uma compreensão mais ampla de como se
coloca na roda, no mundo, na vida, do que o fragiliza e do que o fortalece.

28
Por ser uma praticante dessa arte/luta/jogo/dança afro-brasileira, sustentamos a grafia da palavra conforme é
pronunciada popularmente, pela manutenção da oralidade e também por aproximações do grupo de capuêra que
pertenço, com sede na Ilha de Itaparica/BA, com a tradição e cultura indígena Tupinambá e seu povo,
notadamente, Cacique Itaparica e sua filha Paraguassu, que dão nome respectivamente ao município e ao grupo
Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassu.

89
Carlos Corrêa Moro, em livro publicado a partir de sua pesquisa de mestrado pelo
departamento de Antropologia Social da USP, sobre tradição, experiência e improviso na roda
de capuêra Angola, nos diz que na capuêra “(...) os pés, braços e demais partes do corpo tornam-
se membros de tato tão finos quanto as mãos; a escuta deixa de ser um privilégio dos ouvidos
e o corpo como um todo torna-se um órgão de escuta e reverberação de sons e vibrações.”
(MORO, 2019, p. 95). Penso que no funcionamento do trabalho de uma/um esquizoanalista,
um pouco de “capuêra”, de improviso, de ginga, de mandinga, de inusitado se fazem
necessários. O acaso está sempre presente e precisa estar.
Apesar das semelhanças com jogos de combate africanos como a luta chamada
khandeka, mbangula ou, kambangula, praticada ainda hoje na região da Namíbia, ou
principalmente com o engolo, ou n’golo, praticado no sudoeste de Angola, a capuêra aparece
como uma expressão cultural autenticamente brasileira, como afirma Matthias Röhrig
Assunção:

O uso generalizado de símbolos da identidade brasileira (como bandeiras e cordéis


nas cores nacionais verde, amarelo e azul) e o emprego do português brasileiro nas
letras de suas cantigas sugerem que, hoje em dia, a capoeira é uma expressão
“autêntica” de brasilidade [...] Há poucas dúvidas de que a capoeira funciona como
forte embaixadora da cultura e da língua do Brasil. A narrativa dominante sobre sua
história e origem enfatiza a invenção e o desenvolvimento da capoeira em solo
brasileiro, da mesma forma, suas cantigas — as tradicionais e as mais recentes —
fazem o elogio de heróis brasileiros e da resistência contra a escravidão no Brasil
(ASSUNÇÃO, 2020, p. 523).

Muitas são as pesquisas e inúmeros os interesses de pesquisadoras/es em aprofundar e


documentar sobre as origens e influências da capuêra na cultura, identidade e subjetividade
brasileiras. Rosângela Araújo ou Mestra Janja, como é conhecida no universo da capuêra
Angola, afirma em sua tese de doutorado, defendida pelo PPG em Educação da USP, que

[...] a capoeira é uma expressão cultural de matrizes africanas no Brasil, e,como tal
apresenta aspectos desta diversidade re-significada na realidade escravista que a
formatou. Sua trajetória ao longo da formação da sociedadebrasileira apresenta-a em
meio aos modelos de organização da resistência dos africanos, e seus descendentes,
às condições de sub-humanidade impostas pelo racismo e seus subsequentes aparatos
de dominação naturalizados pelo escravismo (ARAÚJO, 2004, p. 8).

Pedro Abib (2004) e Assunção (2020) afirmam que os primeiros registros e


documentações sobre a prática da capuêra no Brasil remontam ao final do século XVIII e início
do século XIX na cidade do Rio de Janeiro, quando o termo era associado a brigas, desordem,
vadiagem e rebeldia que seria então praticada pela população negra escravizada, marginalizada.

90
Em 1890, a prática da capuêra foi proibida no Brasil, configurando crime previsto no Código
Penal Brasileiro desde esse período até o ano de 1934, quando deixa de ser criminalizada a
partir de decreto assinado por Getúlio Vargas (ABIB, 2004), passando a ser considerada como
“um importante instrumento na estruturação da identidade nacional no campo da ginástica e do
esporte” (ARAÚJO, 2004, p. 8).
Com o intuito e o desejo de que fosse mais aceita socialmente, Mestre Bimba 29 se
articulou a partir de suas redes e seus contatos sociais e foi o grande responsável por uma
reformulação da prática da capuêra, introduzindo elementos e regras de artes marciais como o
karatê e o jiu-jitsu, criando assim uma nova modalidade de luta, batizada inicialmente de Luta
Regional Baiana, amplamente conhecida como Capoeira Regional, conferindo, além de uma
maior visibilidade à capuêra, a aquisição do status de esporte nacional (ABIB, 2004).
A história que aprendi sobre a capuêra e que foi acessada por mim através da oralidade,
nas conversas com praticantes, treineis, professoras/es e mestras/es desde que adentrei ao
mundo da capuêra Angola – primeiro como alguém apaixonada pela beleza imagética de uma
roda de capuêra principalmente pela musicalidade contagiante (da bateria e do coro), depois
pela destreza dos golpes que conseguiam demonstrar ao mesmo tempo leveza e aptidão numa
luta/dança/jogo/arte fascinante e finalmente como aprendiz e praticante – era que a capuêra
Angola se diferenciava bastante da Capoeira Regional de Mestre Bimba, e que, além da Angola
e Regional, existiam outras modalidades de capuêra pelo Brasil, como a contemporânea,
moderna, etc. As diferenças entre essas modalidades, principalmente entre a capuêra Angola e
a Regional, e que passei a identificar imediatamente (só de olhar), parecia estar relacionada
principalmente a uma questão estética. Na capoeira Regional, os participantes vestiam roupas
brancas, usavam cordas ou cordões de cores diferentes na cintura de suas calças ou abadás,
jogavam descalças e descalços e a bateria (conjunto de instrumentos musicais) era composta
geralmente pelos seguintes instrumentos: berimbau, atabaque e pandeiro, apesar das variações,
podendo haver dois berimbaus ou dois pandeiros, por exemplo. As músicas cantadas e tocadas
num ritmo acelerado, misturando-se às palmas dos participantes da roda, em que os dois
jogadores, ao centro, desferem golpes ágeis, altos e acrobáticos, intercalando um golpe sob o
outro, numa velocidade frenética.
Na capuêra Angola, tudo se dá em outro tempo, num tempo mais lento. As roupas
usadas são mais largas sem muito evidenciar os corpos dos participantes; em muitos grupos,

29
Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba nasceu no dia 23 de novembro de 1899 na cidade de Salvador/BA
e foi responsável por fundar a primeira escola de capoeira do Brasil.

91
usa-se calças pretas e camisas amarelas, mas isso varia de acordo com a tradição de cada grupo.
As/os jogadoras/es geralmente estão calçados, a bateria é indiscutivelmente mais complexa,
composta necessariamente por três berimbaus, chamados de Gunga, Médio e Viola (esses
também são os nomes dados aos instrumentos na capoeira Regional), com variações entre sons
graves e agudos, por um atabaque, dois ou três pandeiros, e por outros instrumentos de
percussão como o reco-reco, o ganzá e o agogô, a depender da linhagem do grupo. As músicas
e os instrumentos são executados num ritmo lento. Os golpes das/os jogadoras/es, ou
“angoleiras/os” geralmente são rasteiros, mais próximos ao chão, muitas vezes de cabeça para
baixo, “posição invertida (ponta-cabeça), em que braços e cabeça passam a ser ponto de apoio
e sustentação do corpo no lugar dos membros inferiores” (ZONZON, 2011, p. 144).
Certamente, não são apenas essas diferenças imagéticas as existentes entre as modalidades,
mas essas foram as primeiras que pude observar.
A Capuêra Angola, praticada antes da criação da Regional e que acabou se
convencionando como a mais antiga, ou a tradicional, tem um perfil mais afrocentrado, tendo
em Mestre Pastinha30, seu precursor. Mestra Janja nos lembra que “antes do surgimento da
Capoeira Regional, falava-se apenas em capoeira, tanto como referência ao jogo/dança/luta
quanto ao indivíduo que a praticava” (ARAÚJO, 2004, p. 9). Reivindicando “sua origem na
mãe África” (ZONZON, 2011, p. 133), a capuêra Angola segue um trajeto mais tímido entre
as décadas de 1950 e 1970, conforme afirma Assunção (2020), passando a ter uma maior
projeção e adesão entre os anos 1980/1990, como apontam Abib (2004), Araújo (2004),
Zonzon (2011) e Moro (2019), principalmente devido ao “crescimento dos movimentos negros,
que passam a valorizar conceitos como ancestralidade, reafricanização e ritualização” (MORO,
2019, p. 84).
Ainda que não seja meu intuito realizar um estudo mais aprofundado sobre a capuêra,
sobretudo Capuêra Angola, penso ser importante apresentá-la aos leitores e leitoras, justamente
porque ainda que não haja um consenso sobre a origem da capuêra. Para muitas/os
pesquisadoras/es, há algo que parece de fato ser inegável, que é “o processo híbrido que
caracterizou a formação das manifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas”
(ABIB, 2004, p. 94). É sobre esse hibridismo e essa reinvenção que eu gostaria de evocar, já
que estou propondo aqui uma articulação entre Capuêra Angola e Esquizoanálise. Se

30
Vicente Ferreira Pastinha foi um dos principais mestres de capoeira do Brasil. Nasceu em 5 de abril de 1889, e
foi responsável pela difusão da Capoeira Angola, bem como pela reunião e organização dos princípios e
fundamentos da capuêra.

92
pensarmos nesse movimento de reafricanização da Capuêra Angola, poderíamos dizer então
que, resguardadas as devidas proporções, Capuêra Angola e Esquizoanálise experimentaram
um processo de “re-invenção” em terras brasileiras e parece que ambas encontraram nesse país-
continente, solo fértil para essa empreitada. Entretanto, enquanto a Capuêra Angola se
fortaleceu e reafirmou suas raízes na África e na Diáspora, como aponta Eduardo Oliveira
(2015), reificando, dando materialidade a sua ritualística, territorialidade, tradição e
ancestralidade, a Esquizoanálise, desprendendo-se cada vez mais de sua origem europeia,
porém, em diálogo, “miudinho” e feito com muito cuidado, para poder seguir os fluxos, mas
também emitir os cortes, foi se inventando e reinventando no Brasil e na América Latina a
ponto de proporcionar e manter de maneira permanente esse hibridismo, multiplicidade e
complexidade, bem como as suas possibilidades de uso e reinvenção, a sua clínica.
Nessa cartografia, nas entrevistas realizadas com psicólogas/os que entendem que suas
práticas se orientam pela Esquizoanálise, por essa perspectiva e esse olhar que é ao mesmo
tempo complexo e singular, e em todos os espaços que tenho circulado (ainda que virtualmente
nos dois últimos anos), escutei histórias incríveis, desde atendimentos feitos na rua, até a
profissionais que utilizam do conhecimento que aprendem com a agroecologia para sua prática
clínica. Ao acessar essas histórias, percebi alguns aspectos marcantes em relação à clínica
esquizoanalitica e seu funcionamento no Brasil, e pretendo destacar seis desses aspectos a
seguir no intuito de apresentá-los como possíveis sustentáculos/princípios/possibilidades para
o exercício dessa prática: esquizoanalistas estudam (incessantemente, sem parar, tanto
questões próprias da Esquizoanálise quanto outras diversas); consideram a perspectiva
corporal na clínica (não há uma primazia da mente sobre o corpo - alguns dos entrevistados
têm formação em práticas corporais e a utilizam em seus atendimentos clínicos); criam
dispositivos (que utilizam em sua prática profissional a partir de “caixas de ferramentas”
teóricas e técnicas tanto da Psicologia como de outras áreas) ; realizam trabalhos grupais (a
maioria dos entrevistados já trabalhou atendendo grupos terapêuticos em diversas
oportunidades e privilegiam essa prática); participam de supervisão clínica (a maioria oferece,
está ou já esteve envolvida em grupos de supervisão clínica que os auxiliam a refletir sobre sua
prática) e, por fim, fazem Esquizodrama (alguns dos entrevistados conhecem e operam a
partir desse recurso teórico-técnico-metodológico inventado por Gregorio Baremblitt e
baseado na Esquizoanálise, em suas práticas profissionais).

93
4.2 Esquizoanalistas estudam

Estudar a obra de Deleuze e Guattari não é uma tarefa fácil. Os pensamentos do filósofo
Gilles Deleuze, as teorias e conceitos forjados por ele em sua carreira prioritariamente
acadêmica aliados à eloquência do psicanalista e militante político Félix Guattari advindos de
suas ideias, suas viagens pelo mundo, sua experiência e seu envolvimento político e
interventivo em tantas empreitadas como La Borde por exemplo, fazem de sua obra conjunta
um universo de proposições tão apaixonantes quanto complexas, capazes de reunir aspectos
bastante heterogêneos, como a ecologia, o cinema, as artes, a geografia, a economia, a física, a
saúde mental, a matemática, a política, biologia, a filosofia, a sabedoria popular, a história, o
rigor, o acaso. É claro que, para um recém-chegado à Esquizoanálise, essa confluência de ideias
tão diversas e os desdobramentos advindos delas comumente assustam, pois parecem exigir
da/o estudante um conhecimento prévio de todas as áreas de conhecimento exploradas pelos
autores, dando a sensação de uma tarefa muito difícil de ser executada, talvez até impossível.
Para além disso, há a notável inversão da lógica cartesiana comumente praticada
academicamente, que prioriza a razão em detrimento ao movimento, ao afeto, à
experimentação, à ação, o que gera espanto até aos mais ousados, já que, para os autores, a
leitura de seus livros pode partir do qualquer ponto, de onde se desejar. O livro é um
agenciamento. Deste modo, os autores afirmam que

Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas,
de datas e velocidades muito diferentes. [...] Um livro tampouco tem objeto.
Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros
agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca
o que livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender
num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou
não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a
sua, com que corpo sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo
fora e no fora (ibid., p. 18).

Esta busca pelo funcionamento e não necessariamente pelos conceitos ou pela gênese,
esta atitude libertária que os autores tem em relação própria obra, este interesse dilatado a
tantas áreas de conhecimento e esse incentivo implícito ao inventar, ao criar, ao pensar de
outras maneiras inclusive em como ler a obra, faz despertar em muitos uma relação menos
dogmática e reprodutiva, uma busca por leituras e experiências outras que contribuam para o
funcionamento e o aprendizado singular de cada um nesse exercício de se aproximar da
Esquizoanálise. É claro que por estes mesmos motivos, muitos também desistem de seguir com
94
os estudos da obra. Em uma tradição acadêmica e científica que está a cada vez mais interessada
em fragmentações, especialistas, experts (BAREMBLITT, 1996), pensar de outras formas
realmente não é tarefa fácil, pois, as reproduções infinitas do mesmo ainda são valorizadas. A
maioria dos entrevistados afirmou em algum momento o espanto e/ou dificuldade com a obra.
Alguns de maneira bem-humorada, outros nem tanto, relataram situações e impressões que
tiveram com esse primeiro contato e sobre a dificuldade de compreensão acerca da teoria

E aí eu fui fazer uma disciplina que era Análise Institucional, Deleuze e Guattari se
não me engano... o título da disciplina. E aí a gente começou a ler Diálogos (...) E aí
eu lia aquilo e não entendia absolutamente nada, aquilo estava começando a me irritar
porque eu lia, não entendia, lia de novo, seguia sem entender. Aí eu chegava na aula
seguinte com o livro todo sublinhado e em pânico “Gente, eu não entendi nada”, eu
não sei nem sobre o que é o texto. Tem alguma coisa errada acontecendo aqui. E aí,
eu fazia quinhentas mil perguntas, ela (a professora) tentava explicar e eu seguia sem
entender bem, ficava desesperada sem entender aquilo, né? Até que um dia ela fez
uma intervenção que me irritou tanto, que eu fui embora. Falei “vou embora, eu não
volto mais, chega, pra mim deu! Cansei de ser feita de otária aqui, cansei!”. Eu: O
que ela fez? Entrevistada: Ela virou e falou assim “Pára tudo. Larga esse livro, olha
pra mim! Você não está entendendo porque você está tentando entender da maneira
errada.” Aí ela falou com toda aquela tranquilidade hippie dela que me irritou ainda
mais. Aí ela falou “Você está tentando entender Deleuze e Guatarri aqui. Você não
vai entender aqui. Você vai entender Deleuze aqui” e apontou para o coração. E eu
falei “Ah vai tomar no meio do seu cu, vai se fuder” (risos). “Quando você viver uma
desterritorialização você vai entender” e eu olhei pra ela e falei “pra mim chega”,
levantei e fui embora. Eu não volto mais nessa aula eu vou pedir para sair da
disciplina. Na semana seguinte eu estava lá sentada, igualzinho. Não fui embora, né?
E aí nesse momento a gente começou a viver um negócio muito louco. (...) Aí eu
entendi, eu comecei a entender, né? E comecei a entender um pouco mais do
vocabulário, comecei a entender um pouco mais dos conceitos, mas realmente pra
entender é necessário que você pense de uma outra forma (Entrevista 7).

Durante a entrevista supracitada, a entrevista de número 7 (sete), após rirmos juntas de


seu “desespero” (que também vivenciei) por não compreender logo de início do que se tratavam
os textos de Deleuze e Guattari e avaliarmos que a persistência, o empenho e até um pouco de
teimosia e insistência nas leituras parece algo a ser considerado, foi relatado pela entrevistada
uma experiência de desterritorialização que vivenciou em um trabalho que executou em uma
política pública em que teve oportunidade de atuar como estagiária e depois como psicóloga,
o que fez ressonância com a fala que ela considerou “hippie” da professora, contribuindo para
sua compreensão do que ela havia escutado naquela ocasião.
A entrevistada relatou que teve a oportunidade de vivenciar um trabalho autogestivo
logo que iniciou seu estágio em Psicologia em um equipamento de uma política pública de seu
estado que tinha a finalidade de desenvolver ações para combater a violência e discriminação
de lésbicas, gays, travestis e transexuais.

95
Eu tinha acabado de entrar no estágio e a gente ficou sem coordenadora. A
gente estava sem coordenação. Então a gente estava em auto-coordenação.
Como é que era isso: a gente sentava na mesa de reunião, via nossa agenda
semanal e se dividia para realizar a agenda semanal. E eu me acostumei com
isso, né? (...) Não tem coordenação, é tudo igual, a gente é quem manda. E eu
achei isso ótimo, até que chegou uma coordenação. Eu falei “bom, agora vai
dar ruim”. E tipo foi tudo em um mês, em um mês a gente estava gerenciando
aquilo sozinhos, todo mundo junto... Trabalhando horizontalidade, o mundo
perfeito, sabe? (risos). Não tinha isso de estagiário, de supervisor,
administrativo... não tinha, a gente trabalhava junto, de verdade, em equipe.
Uma equipe transdisciplinar de fato, naquele momento. E aí chega a
coordenação, aí eu entendi o que é desterritorialização, mas eu só entendi
depois que eu já tinha vivido. Exatamente como ela (a professora) falou,
porque era isso. A gente teve que se virar nos 30, eu mal cheguei no estágio,
adapta e desadapta tudo, vamos fazer tudo de novo porque está sem
coordenação, e daqui a pouco chega a coordenação, volta tudo de novo (risos)
(Entrevista 7).

Então, estudar aqui extrapola aquela concepção tradicional que se tinha, pois estudar
passa a ter a ver também com experimentar, desterritorializar, sair dos moldes e até subverter
e transgredir. Seria algo que estivesse para além de apreender, aprender, memorizar, decorar,
mas a uma postura que se relaciona ao pesquisar, discutir, debater, investigar, tem a ver com a
curiosidade e espreita. 31 De fato, não dá para assimilar a teoria espontaneamente sem um
compromisso de se debruçar em alguns aspectos da obra e sem se deixar afetar. Os dois
fragmentos abaixo, acessados em duas das entrevistas (números 8 e 3) apresentam relatos sobre
sensações, interesses, sentimentos e posicionamento crítico dos entrevistados em relação à obra
de Deleuze e Guattari:

Tive aula com o professor, que foi meu orientador, ...), e foi com ele que eu tive
contato na disciplina Psicologia Social, com aquele texto, que para mim, aliás, eu ia
até reler, eu sempre releio, que é o capítulo dois, o micropolítica, que é a subjetividade
e a história. Ele recomendava a leitura desse texto na disciplina de graduação, e eu
me lembro perfeitamente de ter lido esse texto pela primeira vez e não ter entendido
absolutamente nada, ter ficado com essa angústia e ter incomodado ele muitas vezes
porque eu não entendia nada do texto. Mas aí, depois você vai entendendo, vai
fazendo algum sentido em algum momento, mas eu sei que me pegou de alguma
forma porque eu fiquei interessada no texto. (Entrevista 8)

31
Jonnhy Alvarez e Eduardo Passos, ao abordarem o método da cartografia como um exercício de habitar um
território existencial, fazem uma aproximação entre a cartografia e a capuêra Angola e apresentam a espreita, essa
“espera atenta, mas não ansiosa, ciente e respeitosa do tempo dos eventos e da necessidade de não atropelá-los
estando o sujeito disposto a aproveitá-los” (ALVARES e PASSOS, 2014, p.145) conforme ocorre nas rodas de
capuêra Angola, como condição de possibilidade para o exercício da cartografia. É preciso estabelecer uma outra
relação com o tempo, há que se estar disponível a “perder tempo”, descompromissadamente, estando junto para
com-por um território existencial. A espreita, esse tipo de disponibilidade, também é elemento a ser considerado
na empreitada de estudos dessa obra.

96
Sim, isso é uma salada de frutas, né? Um estudo de tudo. Uma mistura. Não é nada.
O ecletismo é a escola grega mais difícil. Se você se propõe a Esquizoanálise você
precisa estudar. Você precisa saber de behaviorismo, de estruturalismo, de pós-
estruturalismo. Se você quer criticar o Lacan, você precisa ler o Lacan, se você quer
criticar o coaching, precisa estudar um livro sobre coaching para entender qual é a
proposta, conversar com o mundo que ele está compondo, porque o grande problema
é que a gente critica com base na nossa crença sacrossanta. Você precisa ler o livro
de coaching não para contrapor, mas para entender o que está acontecendo, o que ele
está falando, para quem ele está falando, como se pode articular, porque o coaching
aparece dentro de uma lógica capitalista, num contexto de produção de sucesso
individual, pessoal, dentro de toda uma teia de fatores que esse discurso emerge como
poder. Se você ler só para criticar, você perde a potência de entender a beleza e o
perigo desse outro mundo que eles colocam em movimento, aí você não consegue
conversar (Entrevista 3).

O estranhamento, o “susto”, as descobertas, a persistência, a preguiça, o encantamento,


sobretudo a experimentação -isso tudo e muito mais compõe a prática de estudar a obra de
Deleuze e Guattari e de tantos outros que contribuíram para a proposta esquizoanalítica. Na
entrevista que Gilles Deleuze concedeu a Claire Parnet em 1988, conhecida como O
Abecedário de Gilles Deleuze, há um trecho em que o autor diz de sua compreensão sobre a
aula

Para mim, uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é
uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada
grupo ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém
a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar.
Obviamente, tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no
momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém.
O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto
inteligência. Sem emoção, não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão
de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém
pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o
deslocamento dos centros de interesse, que pulam de um para outro. Isso forma uma
espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura (DELEUZE, 1988).

Acordar misteriosamente no momento que lhe diz respeito. No meu entendimento, é


disso que se trata o funcionamento e a função de estudar a Esquizoanálise: acessar outras
sensibilidades a partir do que se lê, do que se estuda e o que isto afeta em cada um. Como
sabemos, não é esse o modelo tradicional de aprendizagem a que somos apresentados desde
tenra infância. Razão e emoção desde a influência do pensamento platônico ocupam lugares
bem diferentes e ainda hoje obviamente, a razão é privilegiada. A emoção, o sensível, o corpo
muitas vezes são preteridos pelas ciências, inclusive as Ciências Humanas e esse parece ser o
grande contraste ao se pensar o estudo desta obra. Nos textos esquizoanalíticos, lidos e relidos,
não é possível identificar os autores apontando um modelo a ser seguido nesse quesito e sim
de possibilidades de invenção que devem ser experimentadas e que podem e devem ser

97
acessadas de uma outra ordem, pelo afeto. Não somos separados das relações que
estabelecemos, que nos compõem e produzem efeitos. Os afetos vividos nessas relações
produzem variações de potência em nós e em nossos corpos. Assim, entendemos afeto não
como sentimento, mas como o que faz um corpo variar. Essa variação contínua da força de
existir é disparada pelos encontros. Desse modo, só existe em associação (DELEUZE, 2002).
Refiro-me aqui a um estudo mais livre, feito a partir da singularidade e dos afetos, mas
sabemos também, que, embora atualmente temos tido informações a partir das redes sociais
(Facebook, Instagram e até mesmo grupos de Whatsapp) de uma grande quantidade de cursos,
palestras, formações e grupos de estudos em Esquizoanálise, há no meio acadêmico uma velha
história, que vou tratar como “causo”, sobre uma “proibição” em relação a se fazer formação
em Esquizoanálise. Félix Guattari teria proferido famosa sentença demonstrando-se contrário
à formação do que ele chamou de “igrejinhas”, apontando o risco de se institucionalizar a
Esquizoanálise e hierarquizá-la em escolas/organizações/instituições internacionais como
fossem as representantes, reguladoras e legisladoras destes saberes, tal como foi feito com a
Psicanálise. Esta posição, que Guattari reviu mais a frente, tornou-se quase uma máxima entre
as/os estudiosos de Deleuze e Guattari, fazendo com que ofertas relacionadas a essa formação
fossem poucas e escassas. André Rossi (2021) em livro publicado recentemente, derivado de
sua minuciosa pesquisa de doutorado defendida pelo PPG em Psicologia da UFF, apresenta-
nos pistas para uma formação transinstitucional e nos conta a história dessa formação clínica,
tomando o caso do IBRAPSI - Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições como
o precursor de uma proposta de formação que abordasse a Esquizoanálise enquanto campo de
estudo. O autor discute cuidadosamente tanto a criação quanto a dissolução do IBRAPSI e os
efeitos e desdobramentos desse acontecimento no campo da clínica e da Psicologia.
Como meu intuito não é aprofundar na questão da formação, e esse assunto, ainda que
não esteja esgotado, foi muito bem trabalhado no texto de Rossi (2021), concentro-me aqui na
constatação de que esse “mito”, essa suposta proibição, ancorada nessa afirmação de Guattari
compreendida como se não pudesse se formar esquizoanalistas parece ter sido superado pela
comunidade acadêmica e pela Psicologia. O próprio Gregorio Baremblitt, um dos fundadores
do IBRAPSI, criou e sustentou uma especialização lato sensu acadêmica em Esquizoanálise,
Análise Institucional e Esquizodrama, durante vinte anos, no IFG, fundado por ele em Belo
Horizonte. O filósofo Luiz Fuganti, em sua Escola Nômade, também tem ofertado cursos de
introdução à Esquizoanálise e de conceitos de autores afins como Nietzsche e Espinosa nos
últimos anos em São Paulo e a própria Formação Livre em Esquizoanálise no Rio de Janeiro,
que atua há aproximadamente 4 anos, oferece uma formação clínica em Esquizoanálise.
98
Recentemente, nas ofertas de grupos de estudos e formações breves sobre a temática, que estão
em evidência principalmente desde o início de 2020 no Brasil com o início da pandemia de
Coronavírus, quando os cursos on-line se proliferaram por conta da necessidade de isolamento
social – que uma parte da população brasileira pôde fazer, pudemos ver (com muita alegria)
uma grande proliferação de iniciativas potentes em outras regiões do país (Norte, Nordeste e
Centro-Oeste) que partiram tanto de professores e alunos de universidades públicas e privadas
como de coletivos em articulação com movimentos sociais, lideranças indígenas, negras,
quilombolas e outros, evidenciando que a Esquizoanálise também pode se descolonizar e estar
mais atenta e afeita às questões sociais, raciais, de gênero, enfim, às particularidades desta
terra. Importante mencionar que em março de 2021 houve a realização do primeiro CO-N-
NEC-TA32 - Encontro Centro-Oeste, Norte, Nordeste de Esquizoanálise: paisagens, sotaques e
micropolítica, que reuniu nos debates, palestras e apresentações on-line, uma diversidade de
caminhos e trajetórias que têm sido percorridos pela Esquizoanálise feita no Brasil. Sabemos
que muitas professoras e professores que atuam hoje nestas regiões do país migraram da região
Sudeste. Entretanto, o que se tem construído em sua trajetória por lá, tem se mostrado em
experiências muito bem-sucedidas e inovadoras, em total congruência com a proposta
esquizoanalítica.
Um último ponto a abordar referente ao conhecimento na Esquizoanálise se relaciona
ao fato de as formações funcionarem numa perspectiva transdisciplinar e terem muito
comumente atrelada às suas propostas de estudos conteúdos sobre Análise Institucional
francesa (Guattari, Lourau e Lapassade), mas também sobre sua vertente latina (Baremblitt,
Saidon e outros) e a estudos grupalistas como os de Pichón Riviere e tantos outros, (ROSSI;
PASSOS, 2014). Ao menos em duas dessas formações citadas (a ofertada pelo Instituto Félix
Guattari em Belo Horizonte e a Formação Livre em Esquizoanálise no Rio de Janeiro)
apresentam em sua grade curricular estudos referentes a estas temáticas. Acredito que até
mesmo os estudantes “autônomos”, “independentes”, costumam buscar/acessar leituras sobre
Análise Institucional, principalmente pela experiência de Félix Guattari com a temática.

32
O CO-N-NE-CTA, I Encontro Centro-Oeste, Norte, Nordeste de Esquizoanálise é um evento no qual, durante
3 dias serão trocadas, entre professoras(es), pesquisadoras(es), trabalhadoras(es) da Esquizoanálise nas regiões
Centro Oeste, Norte e Nordeste, novas informações, novos enfoques de pesquisas e novas perspectivas
esquizoanalíticas, buscando dar visibilidade à linha de pesquisa e seus profissionais. A primeira edição teve como
tema: paisagens, sotaques e micropolítica, abrangendo a produção plural em Esquizoanálise destas regiões em sua
diversidade.

99
4.3 Esquizoanalistas consideram a perspectiva corporal na clínica

Se o saber não é apenas racional, se é preciso acessar outras sensibilidades e se


inteligência e emoção andam juntas no processo do conhecimento, então conhecer também
passa pelo corpo. A Psicologia durante muito tempo negligenciou o corpo como uma
possibilidade de intervenção em sua prática clínica, privilegiando a razão, a compreensão, a
fala. Com exceção da Psicomotricidade e da teoria Reichiana (que poucos acessam nos cursos
de graduação em Psicologia por serem ofertadas na maioria das vezes como disciplinas
optativas), ainda são raros os diálogos entre a Psicologia e as perspectivas corporais na clínica.
Para a Esquizoanálise, o corpo precisa estar presente, já que as emoções, os afetos, a memória
também passam por ali. Apenas alguns dos entrevistados afirmaram trabalhar diretamente com
práticas corporais em seus trabalhos clínicos. Entretanto, todos apresentaram em sua fala uma
compreensão de que considerar um sujeito somente a partir do que ele pensa e fala, pelo viés
da racionalidade, é uma posição reducionista. Mente e corpo não existem separados, eles
coexistem. Por isso, uma clínica esquizoanalítica precisa estar atenta ao corpo para a realização
de um trabalho efetivo, para conectar-se.
Uma das psicólogas entrevistadas, ao falar de sua prática clínica, a Esquizoanálise e a
perspectiva corporal aponta:

E eu acho que a formação do esquizoanalista também é o mundo, mas é o


mundo do outro também, né? A gente precisa se abrir muito pro mundo do
outro. Precisa estar disposto a conhecer de fato o mundo do outro. Então eu
trago todas essas referências pra minha clínica. Minha clínica é uma clínica
trans. Não só no sentido de transdisciplinar, mas no sentido de fazer travessias
mesmo, de atravessar, de conhecer outros mundos. Por exemplo, eu faço yoga
já tem muito tempo, todo dia e aí acho que desde 2018 eu estou na prática do
todo dia na yoga e aí tem uma paciente minha que está descobrindo a yoga,
ela estava com muita dificuldade de corpo e eu sugeri algumas respirações de
yoga e isso eu já fiz muitas vezes. Pra mim, são os melhores exercícios pra
tirar a pessoa daquela situação quando ela chega, [após] de ter acabado de
sofrer uma violência, chegar lá tremendo, sem ar, tipo crise de pânico. Então
eu usava muito, eu sempre falava “peraí, a gente pode fazer uma coisa. Não é
psicologia”, eu já aviso. “Não fui eu que inventei, não foi um psicólogo que
inventou, é uma respiração trazida da yoga, topa fazer?” “Topo”. Então eu
trago conhecimento de outros lugares, principalmente de corpo, eu trago
conhecimento da dança, eu trago conhecimento da yoga... isso comparece
também. (...) e aí ela estava falando da Postura do Guerreiro 2, você
conhece? Eu: Não, eu não conheço. Entrevistada: É uma postura que você
fica de braços abertos, você flexiona sua perna da frente, a de trás você
estende. A sua bacia e seu tronco tem que estar centrado entre seus dois braços
esticados e você vai olhar para o braço da frente, com o queixo alto. O olhar,
segundo a professora é de um guerreiro que vence suas batalhas. Que olhar é
esse, né? Vamos lá, a gente faz, com o queixo erguido. E aí, nesse momento é

100
importante que você não deixe seu tronco cair nem pra frente e nem que você
puxe ele pra trás. E aí você entende que o que está na sua frente, que você
olha, é o futuro. O que está atrás te segurando é o seu passado, mas você se
mantem no presente, que é onde você precisa estar, que é onde sua respiração
está. Eu acho isso altamente clínico, né? Mas pra mim, tudo é clínica. E aí,
enfim, aí eu acho essas coisas da yoga incríveis. E aí tô lá, você tá lá sentada
na sua postura e principalmente sem derramar seu centro e não derramar seu
centro é segurar sua barriga pra dentro, é contraindo... e aí você tá lá. E aí
minha paciente tava falando que fez yoga e que foi muito bom, aí eu perguntei
“você fez a postura do guerreiro 2?” ela falou “fiz”. E ela estava trazendo uma
questão dessa, né? Com as raízes e uma preocupação excessiva com o futuro
que deixa ela muito nervosa. Enfim, a gente estava falando dessa postura, não
só como uma metáfora para o que ela estava vivendo, mas como essa postura
pode ajudar o corpo dela a viver o presente. Que é o que ela está precisando.
E que foi minha sugestão desde então, quando ela apresentava essas questões
de corpo, eu falava assim: “Você não pensa em fazer uma prática física, você
não acha que ajudaria com uma conexão com seu corpo? Ah acho!”, aí agora
ela está nessa da yoga... tá funcionando” (Entrevista 7).

Trazer elementos de várias práticas corporais como a yoga, a dança, a caminhada pela
rua, exercícios de respiração, os movimentos do corpo, são variações que algumas psicólogas
e psicólogos que se orientam pela Esquizoanálise se autorizam a utilizar. Não dar preferência
à racionalidade é algo bastante coerente com a proposta ética, estética e política da
Esquizoanálise, justamente devido à sua compreensão de subjetividade que é ampla e
complexa, conforme vimos no capítulo anterior. O que as entrevistas realizadas apontaram
nesse quesito foi uma aposta em outras possibilidades de expressão, para além da fala, já que
esta não precisa ser desconsiderada ou excluída, mas, sim, considerada como parte de uma
composição. Na oitava entrevista realizada, foi relatado pela psicóloga uma experiência que
diz dessa necessidade de se incluir outras possibilidades de expressão.

Tem uma experiência também com uma paciente, uma história de uma paciente com
sofrimento maior, e que eu tenho uma desconfiança, apesar de estar atendendo há
pouco tempo, que é isso, ela já passou por outros processos de análise, e uma sensação
de que não é exatamente esse espaço, pela palavra, que ela vai dar um contorno,
alguma contenção para o sofrimento, sabe, ela fala e cita que a experiência religiosa
dava mais alívio do que as experiências de análise, então, quer dizer, realmente não
é exatamente pela palavra que aquilo vai funcionar (Entrevista 8).

Voltando à alusão que fiz à capuêra Angola em uma aproximação com a clínica
esquizoanalítica, acredito ter encontrado na citação abaixo a relação que a justifique e faz
possível. Moro afirma que

o centro da roda de capuêra deve preservar um espaço de indeterminação e


imprevisibilidade, um espaço arredio às classificações demasiado estáveis, arredio a
coreografias e gestos premeditados. A roda não só guarda a possibilidade do
improviso, como o torna uma premissa básica do desenrolar das interações entre as/os
capueristas” (MORO, 2019, p. 27).

101
E não seria também dessa forma que o encontro entre esquizoanalista e paciente
acontece? De maneira indeterminada, imprevisível, instável, aberta a possibilidades de
conexão, de composição? Não pretendo fazer aqui uma defesa do molecular em detrimento ao
molar. Molar e molecular coexistem na perspectiva da Esquizoanálise. O encontro marcado, a
hora, local e motivos são passíveis de agendamento prévio, mas o que se dá nesse encontro
entre corpos, não. A clínica esquizoanalítica (e não apenas ela) entende que existem algumas
camadas sensíveis que só podemos acessar pelo cheiro, pelo olhar, pelo tato, às vezes pelo
toque, para além da escuta e da fala, pelo corpo. E, ao acessar essas camadas sensíveis, algo
que não ocorre de maneira pré-determinada se amplia à possibilidade de que a/o esquizoanalista
contribua com o aumento da potência de quem o acessa, pois, pelo viés da sensibilidade, mas
também pelo afeto, pela velocidade e pela lentidão, pelas mudanças de forma e tamanho, pode-
se forjar algumas novas corposições.33 É preciso estar atento ao espaço e às composições
possíveis aos corpos. Moro nos diz que “talvez um dos principais desdobramentos práticos do
processo de aprendizagem da capuêra angola seja tornar os corpos dos praticantes mais atentos,
permeáveis e responsivos aos diversos estímulos ambientais” (MORO, 2019, p.79). E não
seriam essas habilidades também desejáveis no plano da clínica? A valorização da presença do
corpo na clínica da Esquizoanálise é questão de movimento, de ginga.
A ginga é um “movimento de deslocamento, para frente e para trás, no qual as pernas e
os braços se alternam inversamente, de modo que, quando a perna esquerda está na frente o
braço direito deve estar também à frente próximo ao rosto e vice-versa” (ALVAREZ, 2007, p.
57). Um movimento aparentemente simples, porém complexo. Um deambular, um cambalear,
o desequilibrar se equilibrando, o sim e o não, conforme a cantiga da capuêra Angola: “Ô sim,
sim, sim! Ô não, não não!”, a presença vacilante, o estar e não estar ao mesmo tempo, a
estratégia de sobrevivência de um povo. “É ir como quem não vai. É ficar como quem está
indo. É o balançar no porão dos “negreiros”, sem luz e sem onde. É fazer que ataca quando
defende e defender quando ataca” (OLIVEIRA, 2015, p. 47). É da ginga que se originam todos
os golpes de capuêra Angola. É nesse deambular, nesse tatear que se busca mapear um território
possível de composição ali no meio da roda.
Alvarez nos lembra, no que diz respeito à ginga que

33
Corposição é um conceito que está sendo desenvolvido por Vinícius Carvalho em sua tese de doutorado em
Educação pela UFMG (no prelo). A proposta de Vinícius com o conceito é criar um movimento de descolonização
a partir da percepção de que se é um corpo. Corpo que é atravessado por hierarquias que constituem a estrutura
da organização social. Então, corpo envolto por atravessamentos de classe, raça, gênero, sexualidade, religião,
emoção, escola, dentre outros. Para Vinícius, corpor seria promover a ação de se mover em si, a partir de si, para
produzir alegrias de propósito, porque o Estado ainda pretende uma vida vivível para alguns poucos corpos e uma
vulnerabilização cada vez maior para grande parte deles (CARVALHO, no prelo).

102
Iniciar e encerrar devem ser aqui compreendidos como estados provisórios de
experiências de treino, pois o jogo da capoeira pressupõe uma continuidade de
movimentos, dispostas numa circularidade na qual o começo e o fim da ginga
ficam difíceis de serem identificados. Nesse sentido, mais do que encerrar ou
iniciar podemos dizer que ela é um movimento que mantém o jogo sempre em
movimento (ALVAREZ, 2007, p. 57).

E não seria também dessa forma que o encontro entre esquizoanalista e paciente acontece? Pelo
encontro entre os corpos, pela presença e pelo movimento, assim como numa roda de capuêra,
nessa ginga? Penso ser possível que façamos uma aproximação entre a ginga e a primeira tarefa
positiva/produtiva da Esquizoanálise, a tarefa cartográfica, a tarefa que vai de mapear, vai
buscar as máquinas desejantes. No centro da roda, gingando, vai se construindo pela/o
angoleira/o um mapa. No vai e não vai da ginga, busca-se, de forma vacilante, os territórios
mais seguros, reconhece-se os mais vulneráveis, as alturas, posições, velocidades e golpes
possíveis, nos movimentos do corpo, nas esquivas, nos ataques e nesse tatear, na “pisada
macia” do capuêra, (MORO, 2019), traça-se um mapa (imprevisível, provisório, instável),
assim como se efetua a tarefa cartográfica na clínica Esquizoanalítica. É indeterminada, é nesse
claudicar.

4.4 Esquizoanalistas criam dispositivos clínicos

O causo que abre esse capítulo que nomeei de “A psicóloga de rua” e também o pequeno
trecho que escolhi para iniciá-lo são fragmentos que foram retirados da sexta entrevista
realizada. Essa psicóloga, que iniciou seu trabalho como profissional do Consultório na Rua,34
conta de seus aprendizados com dona Martinha e com todos os outros encontros que realizou
com essa população em situação de rua e de muitos aspectos que a afetaram nesses encontros.
Atender na rua é condição para esse trabalho acontecer e o que inicialmente parecia complicado
foi se configurando necessário para o andamento do trabalho e das suas possibilidades de
intervenção, de forma que causa até estranhamento na mesma quando decide iniciar um
trabalho clínico num consultório fechado. Sentar numa calçada, acompanhar alguém por seu

34
Consultório na Rua foi criado em 2011 pela Política Nacional de Atenção Básica à Saúde, oferecida pelo SUS
e tem o objetivo de oferecer ou ampliar a oferta de acesso aos serviços de saúde à população em situação de rua,
que se encontra em situação de vulnerabilidade e vínculos familiares fragilizados ou rompidos. Para mais
informações ver: https://aps.saude.gov.br/ape/consultoriorua/. Acesso em: 14 jun. 2021.

103
trajeto errante pela cidade, assistir a alguém que cozinha arroz numa lata enquanto conversa e
se interessar por esses atos, estar disponível para eles, é o que parece sustentar a possibilidade
de se criar dispositivos para a experiência clínica da Esquizoanálise.
Dispositivo é um conceito caro a Foucault e a Deleuze, e foi trabalhado também por
autores como Agamben. Dispositivos podem ser compreendidos como técnicas, mecanismos,
invenções, objetos, aparatos. Os dispositivos podem ser organizações, instituições, leis, regras,
construções discursivas, arquitetônicas e têm finalidade e funcionamentos específicos para
situações singulares, para seus usos. Os dispositivos são “operadores de intervenção para
situações específicas”, “são montagens de elementos heterogêneos” (ROSSI, 2021, p. 69) que
vão “fazer falar”, ou, além disso, “faz expressar” aquilo que não seria possível acessar de outras
formas. Deleuze afirma que os dispositivos

Não são nem sujeitos nem objetos, mas regimes que é necessário definir pelo visível
e pelo enunciável, com suas derivações, as suas transformações, as suas mutações. E
em cada dispositivo as linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas,
científicas, políticas, etc. (DELEUZE, 1996, p. 83).

Da mesma forma que o panóptico foi utilizado como dispositivo de vigilância, como
nos mostrou Foucault, o dispositivo “ciência” foi utilizado muitas vezes para determinar e
fortalecer práticas racistas. O dispositivo “Bíblia” também foi utilizado para este mesmo fim.
O dispositivo “telefone celular” é utilizado para conectar pessoas. O dispositivo “Whatsapp”
foi utilizado nas últimas eleições presidenciais no Brasil para disseminar fake news.
As linhas que atravessam os dispositivos podem operar de formas endurecidas, a favor
de perpetuar o poder, podem atuar de formas flexíveis, deixando passar os fluxos e certamente
operam a favor de alguma mudança, alguma intervenção local. Gosto de pensar que o
dispositivo funciona como uma “gambiarra”. Renata Aspis (2012) em sua tese de doutorado
sobre Ensino de Filosofia, defendida pela Faculdade de Educação da Unicamp, nos apresenta
o conceito de “gambiarra” proposto pelo designer Rodrigo Boufleur:

O conceito de gambiarra foi pensado por Boufleur como uma ação criativa de
soluções para problemas práticos. Na contramão da concepção negativa de
gambiarra como improvisação precária e desleixada, sua nova forma de pensar
essa prática leva a aproximação desta com a capacidade inventiva e inovadora
face às adversidades às quais se está exposto. Da mesma forma é necessário
pensar as aulas de filosofia sob a tecnologia remendando-louco, aulas
acontecimento, aulas-vetores de novas formas de, aulas enxameamento de
signos que forçam a. Praticar a gambiarra, como a concebe Boufleur, quer
dizer que se faz (a aula, o que se planejou de “ensinar” naquela aula) com o
que se tem na hora (o que se consegue fazer acontecer no momento da aula:
as reações, as relações, as proposições, negações e afirmações que os

104
participantes venham a fazer a partir da provocação do professor), não há
ensaio, não há situação ideal e não há o Mesmo (ASPIS, 2012, p. 151-152).

Pensar na gambiarra como dispositivo e no dispositivo enquanto gambiarra parece


adequado às criações sutis relatadas pelas psicólogas e psicólogo que entrevistei durante a
pesquisa. Na clínica da Esquizoanálise, na ativação desse plano sensível que só se faz na
relação, dispositivos frequentemente são criados. Os dispositivos são incontáveis. Podem ser
pensados previamente ou podem ser guiados pela intuição da/o esquizoanalista e surgirem ali,
no aqui e agora da clínica. Não são raros os momentos em que é preciso que a/o esquizoanalista
se reinvente, crie algo inusitado, sem pestanejar. Uma das entrevistadas relatou que estava
participando de reuniões com grupos que se dedicavam a projetos de agroecologia. Disse estar
encantada com a organização, com o posicionamento político desses grupos e de como o
conhecimento circulava. Ela disse impressionada que naquele ambiente ninguém era professor,
estavam todos juntos horizontalmente pensando num mundo melhor. Disse que muito do que
aprendia com a agroecologia e com sua atividade em sua plantação de goiabas orgânicas no
interior de Minas, trazia para o consultório. Pode parecer meio “piegas” o que vou dizer agora,
mas, nunca estive num consultório tão acolhedor em toda minha vida. Trago abaixo anotações
do meu diário de campo que talvez consigam ilustrar um pouco do que senti nesse encontro-
entrevista:
Ao abrir aquela porta, em seu consultório, que fica localizado na região do bairro
Santa Efigênia em Belo Horizonte, compreendo desde início que o que se abria era
um “portal”. A sensação que tive era de estar em uma sala de um sítio, desses típicos
sítios que existem em Minas Gerais, uma sala ampla, com móveis antigos tipo
madeira de demolição, um grande arquivo de madeira com muitas gavetas, um
frigobar, duas poltronas antigas confortáveis com descanso para os pés, uma bela
vista da copa de uma árvore com a cidade ao fundo e plantas, muitas e muitas plantas
compondo o visual nostálgico. Eu me senti em casa (Diário de Campo, Entrevista 2).

Seriam as próprias plantas dispositivos de acolhida? A mim foram bem acolhedoras.


Ou o consultório organizado como que uma sala de fazenda? Uma imagem que de certa forma
remonta à memória das montanhas, do café no bule, do biscoito de polvilho feito à mão pelas
matriarcas, também um dispositivo que poderia provocar em quem é atendido naquele espaço
algum conforto? Precisamos considerar também que é preciso certa abertura e disponibilidade
da/o esquizoanalista para o dispositivo funcionar de fato como operador de intervenção. Num
artigo publicado por mim em parceria com dois colegas em uma revista internacional de
Filosofia,35 discutimos um pouco do funcionamento da prática clínica da Esquizoanálise a

35
VIEIRA, Kelly Dias, ROSSI, André, MIRANDA, André. As necessárias inconclusões da Esquizoanálise –

105
partir de nossas próprias experiências. André Rossi abordou a questão da formação, seu campo
de estudo atual, André Miranda disse de sua experiência na Educação enquanto psicólogo
escolar, e eu relatei uma experiência em que o choro de uma paciente foi o dispositivo. Não
nomeei assim esse acontecimento no artigo, mas agora entendo que sim, o choro foi o
dispositivo capaz de fazer funcionar algo maior do que eu e a ela naquele encontro, fui um
operador de intervenção.

Tudo começou quando uma paciente disse se sentir oprimida pelas paredes do
consultório e eu a convidei para sairmos juntas de lá. Desde então, passamos a nos
encontrar em praças, cafés, restaurantes, locais públicos dos mais diversos e a ousar
colocar nossos corpos em funcionamento a favor de um tipo de clínica que se propõe
ética-estética e política na medida em que nos coloca em conexão com a cidade e com
os encontros. Questões curiosas e imprevisíveis já surgiram nesse encontro com a
rua, como por exemplo uma situação em que uma travesti que estava na mesma praça
em que se realizava o atendimento, se sensibilizou ao perceber o choro da paciente e
ofereceu um lenço a ela, saindo da invisibilidade que uma travesti em situação de rua
ocupa em uma grande cidade, para entrar, também ela, no registro do cuidado, da
cuidadora, de alguém que pode cuidar (VIEIRA; ROSSI; MIRANDA, 2019, p. 11).

Foi o choro que despertou a sensibilização e operou mais um cuidado. Foram o choro,
o imprevisto, o acaso, a sensibilidade, a generosidade que despertaram o cuidado. Esses
dispositivos inusitados, não planejados, apareceram muitas vezes nos relatos das entrevistas.
Quando uma entrevistada (Entrevista 1) relata que sai do centro de saúde com seu paciente e
vai ao boteco da esquina fumar um cigarro; quando outra entrevistada (Entrevista 6) traz o
dispositivo da “vadiação” e improviso – assim como num samba de partido alto, para compor
sua prática clínica, compreendendo que andar pela rua, acompanhando uma pessoa em situação
de rua, ainda que de forma errante, é também uma forma de cuidado; quando outra entrevistada
(Entrevista 5) relata que lavou o cabelo da usuária do CAPS que trabalha e foi esse o dispositivo
o responsável pela efetivação de um vínculo entre elas; quando outra entrevistada (Entrevista
9) repensa toda sua trajetória clínica a partir de uma proposta de experimentação clínica vinda
de uma paciente. Muitas são as apostas, muitos são os dispositivos. Na clínica esquizoanalítica,
é possível inventá-los e isto tem sido feito, pelo menos por esse microgrupo de entrevistadas/o.

4.5 Esquizoanalistas realizam trabalhos grupais

Experiências de formações transinstitucionais. In: Revista On-Line de Filosofia La Deleuziana. (ver referências
bibliográficas).

106
Como vimos, a formação ou os estudos que fazem as/os esquizoanalistas, acabam
levando, chegando ou buscando sempre a uma interlocução com a perspectiva grupal. É claro
que isto está diretamente alinhado à ideia de coletividade, multiplicidade, complexidade que
permeia toda essa obra. Se não vamos reduzir a subjetividade à ideia de uno, se compreendemos
que somos todos grupelhos, realizar atendimentos em grupo é de certo modo uma prática de
resistência. Resistência ao individualismo e às posições narcisistas impostas pelo capitalismo,
que nos quer sempre isolados e consumidores.
Conforme discutimos, as práticas da Psicologia têm privilegiado uma noção de
indivíduo que é universalizante e vem há décadas priorizado o atendimento individual,
responsabilizando individualmente os sujeitos por questões que são políticas, econômicas,
sociais, culturais, enfim, coletivas.
A Esquizoanálise reconhece o grupo enquanto potência, justamente porque, em grupo,
há uma maior possibilidade de acolhida, de compartilhamento de cuidado, de escuta coletiva
que contagia a todos e possibilita a convivência com a diferença e a criação de um comum,
abandonando definitivamente aquela antiga posição de adaptação ou ajustamento que muitas
vezes ainda está atrelada ao lugar da clínica psicológica atualmente.
Os grupos, na perspectiva da Esquizoanálise, sejam eles os grupos de estudos, os grupos
terapêuticos, as oficinas em grupo ou os grupos de supervisão, são experiências cruciais para
vivência da coletividade e o enfrentamento a essa lógica reprodutiva e modelar que muitas
vezes opera na clínica que fica estática, sem movimento. Os grupos são uma aposta de
resistência à reprodução do mesmo, pois as conversas, as experiências os aprendizados
circulam, giram, rodam e assim como numa roda de capuêra Angola, não basta existir um
número determinado de pessoas para um grupo funcionar, o grupo (e a roda) acontece na
presença, na disponibilidade, na conexão. É uma afirmação da produção de novos modos de
vida, pois os grupos favorecem a criação, a produção de novos territórios existenciais.
Partindo da importância que tem o grupo para a clínica esquizoanalítica, e retomando
a segunda tarefa positiva/produtiva da Esquizoanálise - aquela da conexão-, proponho
novamente uma alusão à capuêra Angola, mais especificamente, uma roda de capuêra Angola.
A tarefa conectiva como vimos é a que possibilita o habitar de novos territórios. Se
relacionamos a tarefa destrutiva à rasteira pelo seu potencial desterritorializante e a primeira
tarefa positiva/cartográfica à ginga pela sua capacidade de mapear as forças e fragilidades do
território, certamente seria a roda a que daria condição de possibilidade da segunda tarefa
positiva/conectiva da Esquizoanálise se efetivar.
107
A roda de capuêra Angola é um acontecimento que envolve um grupo de pessoas em
torno de um ritual. A roda é o ponto central. “A Roda de capoeira é considerada o espaço para
onde todas as ações se encaminham. Entre as/os angoleiras/os, é o espaço onde se consagra de
maneira ritualística a dinâmica sagrada da construção do saber (ARAÚJO, 2004, p. 25). A roda
é dinâmica, não está parada. A bateria formada pelos sete ou oito instrumentos que são tocados
pelos capueristas mais habilidosos, deve estar afinada. O coro responde, junto e uníssono, à
“pergunta” feita pelo cantador após a ladainha e o louvor: “Vem jogar mais eu, vem jogar mais
eu mano meu! Vem jogar mais eu, vem jogar mais eu!”. Os capuêras, ao pé do berimbau,
aguardam a autorização do Gunga para o jogo começar. É na roda, no jogo, na ritualística, na
musicalidade que contagia e ressoa como um mantra os que estão dentro e os que estão fora da
roda que a conexão acontece. O centro da roda é o centro da vida, afirma Mestre Jaime de Mar
Grande, como nos diz Moro (2019).
Todos as pessoas que entrevistei para este trabalho mencionaram sua participação em
trabalhos grupais, seja na docência, nos grupos de supervisão ou de estudo, nas oficinas
terapêuticas no CAPS, nos atendimentos feitos nas favelas aos familiares de atingidos pela
violência de Estado e até mesmo grupos de policiais e familiares dentro de um quartel da Polícia
Militar. Os grupos, com suas linhas de desafios e de forças, têm sido uma escolha e uma
prioridade nas práticas das/os esquizoanalistas.

4.6 Esquizonalistas participam de supervisão clínica

A figura da/o supervisora/or é muito bem conhecida pelos alunos de graduação em


Psicologia que realizam estágios em serviços públicos, principalmente na área da saúde mental.
A supervisão é uma prática presente nos serviços e sua função fundamental é orientar os
estagiários aprendizes no que tange à prática profissional e aos profissionais dos serviços por
meio das discussões de caso, das observações críticas, das sugestões de caminhos possíveis,
proposições de intervenção, debates sobre prescrições medicamentosas, questões sociais,
psicossociais, dentre outras. Geralmente, a/o supervisora/or é alguém que tem mais experiência
na área e contribui com seu saber e seu olhar atento e de “fora” (em muitas das vezes) para a
condução dos casos, a direção do tratamento. Nos CAPS que estagiei, a supervisão era sempre
um serviço contratado de um profissional externo que participava semanalmente,

108
quinzenalmente ou mensalmente, a depender do serviço, e toda a equipe participava dos
momentos de supervisão. Como estagiei em serviços de saúde mental desde o início do curso
de Psicologia, participei de muitas supervisões clínicas. Em algumas, assisti supervisores
brilhantes darem aulas de Psicanálise e ofuscarem os profissionais que supervisionavam de
forma tão professoral que não sabiam nem os nomes dos colegas de profissão que
supervisionavam; em outras, vi supervisores fazerem “questão” que os técnicos de enfermagem
e funcionários que faziam a limpeza do serviço e trabalhavam na portaria também
participassem da supervisão, afirmando que o cuidado era de responsabilidade de todos. Vi
profissionais que se recusavam a estar em supervisão, ou que só aceitavam uma linha específica
de condução para a supervisão, principalmente na saúde mental. Nos serviços de Assistência
Social, vi profissionais atentas, desejosas e travando lutas com os gestores pela realização da
supervisão, que era muito valorizada. Não há dúvidas de que a supervisão clínica é um
dispositivo importantíssimo para a realização de uma prática ética, crítica e que mantenha
clínica e política em conexão.
Na clínica da Psicologia, numa vertente mais individualizada, também é muito comum
a prática de supervisão; porém, nem sempre ela ocorre em grupo. Muitas vezes as/os
psicólogas/os recém-formados, contratam supervisão de alguma/m professora/or ou chegam a
algum clínico mais experiente por indicação de colegas e essa procura está muito relacionada
aos casos de difícil condução, aos casos graves, que extrapolam o que é conhecido pelo
profissional, os casos que saem do padrão, que estão fora da linha. André Rossi, Tarso Trindade
e Edmárcio Medeiros nos lembram que a supervisão

tem seu surgimento na cena psicanalítica quando de sua institucionalização (criação


da IPA – International Psychoanalytical Association). A necessidade de o candidato
a psicanalista ser analisado e supervisionado em seus atendimentos foi uma das
primeiras preocupações com a formação de clínicos (ROSSI; TRINDADE;
MEDEIROS, 2012, p. 25).

Configurando-se como uma prática formativa, a supervisão, sobretudo a supervisão


clínico-institucional, está bastante presente na prática clínica de psicólogas/os que se orientam
pela Esquizoanálise. Outrossim, a realização da supervisão ocorre em grande parte dos casos
em grupo e se preocupa com a discussão, debate e orientação acerca da condução dos casos,
mas se preocupa ainda com uma acolhida dos integrantes do grupo e ainda mais com uma
grupalidade e a possibilidade de se efetuar uma contração grupal.
Na clínica esquizoanalítica, a supervisão é compreendida como uma atividade que
ocorre de forma complementar à atividade clínica. A supervisão, aqui, não ocupa o lugar da

109
“emergência”, no auxílio para a resolução de casos críticos, ou considerados difíceis - ela é
permanente, ocorre periodicamente e tem funções como a de acolher, escutar a/o profissional
em suas angústias e percepções acerca do caso, para além de oferecer recursos de possibilidades
de intervenção. As supervisões na Esquizoanálise preferencialmente ocorrem em grupo,
fortalecendo seu viés formativo enquanto proporciona uma construção de conhecimento que é
feita coletivamente, nessa aposta grupal.
Inicialmente, a questão da supervisão não apareceu, pelo menos no meu imaginário,
como um fazer da/o esquizoanalista. Esse aspecto nem sequer foi diretamente abordado por
mim durante nenhuma das entrevistas. Entretanto, como a análise na cartografia é feita a todo
o tempo, conforme discutimos previamente, nas lidas e relidas que fiz dos diários produzidos
a partir das entrevistas, percebi que todos os entrevistados haviam mencionado alguma situação
em que estivessem ofertando ou participando de supervisão. Deste modo, junto da pergunta
que fiz posteriormente à realização de todas as entrevistas sobre a declaração racial dos
entrevistados, perguntei também sobre supervisão. Conforme apontei, de todos os
entrevistados que responderam a esse meu último chamado, nove deles afirmaram que
oferecem, já ofereceram, participam ou participaram de supervisão e, por esse motivo, não
poderia deixar de fora esse diferencial da/o esquizoanalista no exercício de sua prática
permanente de supervisão.

4.7 Esquizonalistas fazem Esquizodrama

Das dez entrevistas realizadas, nove dos entrevistados afirmaram conhecer o


Esquizodrama, por ter participado de algum/uns ou por se utilizarem desse recurso teórico-
técnico-metodológico inventado por Gregorio Baremblitt e baseado na Esquizoanálise, em suas
práticas profissionais. O Esquizodrama é um recurso magnífico e uma possibilidade potente de
intervenção dessa perspectiva clínica. Por considerá-lo uma estratégia bastante inovadora e por
todas suas peculiaridades, optei por dedicar o próximo capítulo a uma apresentação um tanto
mais aprofundada da prática.
Finalmente, penso ser importante destacar que o intuito de apresentar alguns aspectos
encontrados na prática profissional das/os psicólogos que se orientam pela Esquizoanálise era
principalmente oferecer às/aos leitoras/es uma possibilidade de acessar essa ética-estética-

110
política em funcionamento. Muitos são os artigos, teses e dissertações que abordam conceitos
específicos dessa obra; porém, poucos são os que apresentam mais detalhadamente seu
funcionamento. Outro desejo meu, que almejo ter alcançado nesse esforço textual, é o de
desmistificar alguns assombros acerca dessa teoria muitas vezes vista como difícil demais e,
por isso, inacessível e outras vezes acusada de confusa, leviana ou lasciva. Ao contrário dessas
especulações, a clínica esquizoanalítica, nesse seu modo abrasileirado, operando por meio de
suas tarefas destrutiva (rasteira), cartográfica (ginga) e conectiva (roda), tem se mostrado uma
clínica amparada por rigor teórico e funcionado em sua prática cotidiana de forma responsável,
intensiva, inovadora, acolhedora e inventiva mantendo consigo seu viés crítico e afirmando a
liberdade de seu fazer clínico e político de inventar e propor novas composições.
Nêgo Bispo36 nos ensina e adverte

Como contracolonizar? Um dos movimentos mais importantes para contracolonizar


é sair da teoria e priorizar a trajetória. Eu digo que minha trajetória precisa sustentar
o meu discurso senão o meu discurso não tem sentido. Uma pessoa contracolonialista
é uma pessoa de trajetória e não de teoria (BISPO, 2020).

Entendo a clínica esquizoanalítica como uma clínica da trajetória. E por isso capaz de
contracolonizar, ainda que tenha sido proposta a partir dos pensamentos de dois franceses
(homens, brancos, europeus, cis, heterossexuais). Entendo a clínica esquizoanalítica como uma
clínica do movimento. E por isso capaz de girar/rodar. Entendo a clínica esquizoanalítica como
uma clínica da invenção. E por isso incomensurável. Entendo a clínica esquizoanalítica como
uma clínica da alegria. E por isso capaz de gerar bons encontros e de resistir. Sigamos!

36
Nêgo Bispo é um lavrador, poeta, escritor, professor e pensador, ativista político e militante do movimento
social quilombola e de direitos pelo uso da terra. Esta citação inserida no texto está contida em uma palestra on-
line ministrada por ele intitulada Presenças orgânicas, invisibilidades sintéticas, no dia 14/09/2020, sendo a
primeira do Seminário Culturas em Pensamento, uma das atrações 52º Festival de Inverno da UFMG. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=WlpCDec9NIE&list=PLzobgdsA2xI2B0c_tb9m-0v-LcEiPMDxL

111
Causo: O Esquizodrama e a alegria

Certa vez, lá pelos idos de 2015, havia uma psicóloga que estava
bem triste. Tinha feito uns encontros ruins na vida. Se
refugiava em cafés e cigarros. Magra, afetos tristes, um
embotamento tão profundo que quase não saía de casa, nem falava
com ninguém. Estava fazendo pós-graduação, coitada! Além disso
tudo ainda tinha que escrever. Um dia, um amigo ligou pra ela e
disse que ia acontecer um Esquizodrama numa praça pública e a
convidou para ir. Ela pensou, pensou. Pensava em coisas tristes,
que não ia confiar em ninguém nunca mais, essas besteiras que a
gente pensa quando está entristecido. Relutou um pouquinho
consigo mesma, mas foi. Chegando lá, a praça estava cheia. Muitas
pessoas reunidas. Era uma comemoração referente ao dia do
Psicólogo. De repente, começou o Esquizodrama e a primeira
consigna era que deviam ser feitas duplas e que uma das pessoas
da dupla ficaria com os olhos vendados. Feito isso, uma conduzia
a outra pela praça. Que trem mais arriscado!! Começou assim: uma
guiava a outra. A psicóloga triste guiou a colega desconhecida
primeiro. Depois trocaram-se as vendas dos olhos e quem foi
guiada foi ela. De repente, uma outra orientação da pessoa que
propunha o Esquizodrama: Agora vamos dançar!! Dançar? Como assim
dançar? E era dito em alto e bom som: Dançar!! Dançar sem música!
Dancem! Inventem suas danças! Corram! Gritem! Pulem! Girem!
Façam o que quiserem, desde que com prudência, mas também
audácia! Dançaram! Dançaram! Dançaram tanto que de repente a
psicóloga triste sorria. Sorria muito. Alto. E percebeu que
estava dançando com olhos vendados numa praça pública sendo
conduzida por uma pessoa que ela não conhecia. Foi tomada pela
alegria e pensou: talvez eu possa confiar nas pessoas sim! Esse
causo é verídico!

112
5 SOBRE O ESQUIZODRAMA

5.1 O que é o Esquizodrama?

O Esquizodrama é uma ferramenta de experimentação e intervenção baseada na


Esquizoanálise, nas ideias, pensamentos e conceitos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em seu
texto Dez proposições descartáveis acerca do Esquizodrama, Baremblitt (2013), seu inventor,
diz que o Esquizodrama foi disparado em 1973 em Buenos Aires, na Argentina, e praticado em
vários outros países da América Latina e da Europa. O Esquizodrama teve início a partir de
encontros que ocorriam num grupo de estudos que Gregorio Baremblitt coordenava. Junto a
outros profissionais de diversas áreas, experimentavam outras formas de estudar, afetados e
provocados principalmente pelo texto do livro O Anti Édipo, que havia chegado a suas mãos
em 1972 e causado grande reboliço. Baremblitt conta:

Em 1973, estávamos em plena ditadura militar. Ambiente horroroso e muitos


amigos estavam desaparecidos. Em 1972 saiu a tradução de O Anti-Édipo em
espanhol. Deleuze e Guattari construíram alguma coisa que revolucionou, nos
encantou, por completo (os freudomarxistas). Eu estava tão entusiasmado que
fui recrutando amigos e formamos um grupo. Esse grupo tinha três psiquiatras,
duas psicólogas, um psicólogo, um diretor de cinema e um filósofo.
Começamos a nos reunir e a pensar o que se podia fazer com isso. Ademais,
entender uma série de coisas que aconteciam e até o que se podia fazer
praticamente com isso e politicamente também. E chegamos a uma
combinação curiosa de teatro com música, com pintura, com dança, com artes
marciais, etc. Muito interessante é que começamos a aplicar a uma e outra
situação reais, com muito medo, porque a situação era terrível e fazíamos as
coisas muito preocupados (BAREMBLITT, 2019).37

A essa intervenção dramática que começaram a experimentar, nomearam inicialmente


de fluxodrama, muito influenciados pelo livro O Anti-Édipo e pela ideia de fluxo que, em
Deleuze e Guattari, é um conceito importante. O nome Esquizodrama surge depois, em 1973,
por dois motivos: uma apropriação da palavra fluxo estava a acontecer e a palavra esquizo
dialogava melhor com as infinitas possibilidades daquela nova práxis. Para Baremblitt:

Essa práxis funciona como um conjunto difuso de teorias, pragmáticas, estratégias,


táticas, técnicas e klínicas inspiradas, especialmente em diversas leituras praticadas
na obra esquizoanalítica de Gilles Deleuze e Félix Guattari (...) a isso se acrescentam

37
Aula proferida por Gregorio Baremblitt no IGB em Belo Horizonte em julho de 2019.

113
ideias, conceitos, perceptos, sensações, atitudes, movimentos, intuições de diversos
autores, especialmente os que versam sore o teatro (BAREMBLITT, 2013, p.1).

Antes de aprofundar numa maior elucidação acerca do Esquizodrama, penso ser


importante apresentar, ainda que de forma sucinta, um pouco da história do seu criador e dos
meios pelos quais o Esquizodrama foi transmitido. Hur (2014), trata de aspectos da biografia e
da obra desse autor costurando seu percurso profissional e sua história de vida desde seus
estudos iniciais em psicanálise, marxismo e política até a invenção do Esquizodrama, passando
pela sua relação estreita com a Análise Institucional na América Latina.
Gregorio Franklin Baremblitt é argentino, filho de ucranianos judeus socialistas que se
refugiaram na Argentina depois de terem sofrido perseguições políticas no período pós-
Primeira Guerra Mundial. Nasceu em 1936, em Santiago del Estero. Graduou-se em Medicina
em 1961. Especializou-se em Psiquiatria e fez parte da Associação Psicanalítica Argentina -
APA. Participou de um movimento instituinte importante, que foi responsável pela primeira
cisão dessa mesma Associação de Psicanálise por motivos políticos, que culminou na criação
do grupo Plataforma argentino 38. Este grupo, influenciado pelos movimentos de maio de 68
em âmbito internacional, criticou fortemente a formação em Psicanálise que se dava de forma
hierarquizada, elitista, excludente e questionou o papel e imagem da Psicanálise frente às
questões sociais (HUR, 2014). Baremblitt migrou para o Brasil na década de 1970, mais
precisamente no ano de 1977, durante a ditadura militar argentina que, conforme sabemos, foi
uma das mais duras e cruéis de toda a América Latina. No Brasil, sofreu perseguição política,
ameaças diversas, inclusive de morte, o que fez com que esse processo de se estabelecer na
cidade do Rio de Janeiro se construísse de forma delicada e gradativa. O primeiro trabalho que
realizou no Brasil foi coordenando grupos de estudos e supervisões clínicas principalmente
para médicos e psicólogos que o procuravam com a expectativa de serem supervisionados e
formados por um importante psicanalista argentino recém-chegado ao Brasil como tantos
outros psicanalistas importantes que o antecederam nessa imigração. Afinal, as instituições
psicanalíticas do Rio de Janeiro eram bastante elitistas, extremamente caras e só admitiam
médicos, deixando excluídos da formação uma gama de profissionais não médicos.
Em 1978, Baremblitt organizou junto a Chaim Samuel Katz e Luiz Fernando de Mello
Campos o Simpósio de Psicanálise, Grupos e Instituições. Entre os conferencistas, estavam

38
Para mais informações sobre o grupo Plataforma argentino, ver artigo de Henrique Galhano Baliero e Renata
Dumont Flecha, intitulado: A influência dos argentinos do grupo Plataforma na reforma psiquiátrica brasileira
(2018). Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/15983. Acesso em: 09
ago. 2020.

114
referências mundiais da Análise Institucional e da Psiquiatria Democrática, como Félix
Guattari, em sua primeira visita ao Brasil, assim como também Franco Basaglia, Robert Castel,
Erving Goffman, Emilio Rodrigué, Shere Hite, Thomas Szaz, Marie Langer, Eduardo
Pavlovsky, Hérnan Kesselman, entre outros. Participaram também dezenas de militantes da
reforma psiquiátrica e sanitária, como Sérgio Arouca. No mesmo ano, junto aos organizadores
do Simpósio, fundou o IBRAPSI, na cidade do Rio de Janeiro.39
Baremblitt (2021) em uma análise de implicação da sua participação e história do
IBRAPSI, relata alguns desses episódios vivenciados por ele trazendo para além de suas
impressões pessoais, muito do contexto sócio-político-econômico-cultural que vigorava em
toda a América Latina na década de 1970 e alguns dos desafios enfrentados desde sua chegada
ao solo brasileiro, como as suas frequentes e necessárias mudanças de endereço, as quais teve
que se submeter para sua própria proteção. Foram narrados ainda aspectos inéditos sobre o
funcionamento do IBRAPSI, como a informação de que já se praticava o Esquizodrama como
uma das atividades regulares, ainda que, secretamente, em virtude da repressão que vigorava
na época. Sabe-se que após o fim do empreendimento do IBRAPSI, Baremblitt esteve em
muitos estados brasileiros ministrando cursos, supervisões e aplicando o Esquizodrama.
Segundo relato de uma das entrevistadas, ela conheceu Baremblitt em uma dessas
situações em que ele ministrava cursos, com frequência mensal, no Sindicato dos Psicólogos
de Belo Horizonte/MG. Conta que a construção do livro 5 Lições sobre a Transferência”, de
Gregorio Baremblitt, foi construído a partir dessas intervenções no Sindicato dos Psicólogos e
que os livros foram vendidos e a arrecadação doada e utilizada para contribuir com Sindicato,
que apresentava graves problemas financeiros na ocasião.
Em 1995, fundou em Belo Horizonte/MG, o Instituto Félix Guattari - IFG, atualmente
Instituto Gregorio Baremblitt - IGB, que se caracteriza como um espaço formativo que
incorpora experimentações, intervenções, práticas e atendimentos individuais e em grupos,
consultorias, reuniões, assembleias, etc. Publicou diversos livros, dentre eles o Compêndio de
Análise Institucional e outras correntes, em 1986, que se tornou uma referência sobre essa
temática para estudantes de diversos cursos de graduação nas universidades do país, além de
artigos em revistas e periódicos científicos, capítulos em livros, prólogos, prefácios, posfácios
(BAREMBLITT, 1996).

39
Para mais informações sobre o IBRAPSI, ver: Formação em Esquizoanálise: Pistas para uma formação
transinstitucional, de André Rossi (2021) publicado pela editora Appris e que contém um posfácio escrito por
Baremblitt, conforme consta nas referências dessa tese.

115
Desde a criação do IFG/IGB, que fica no bairro Serra em Belo Horizonte, vinte anos
foram dedicados a uma formação (pós-graduação lato sensu) em Análise Institucional,
Esquizoanálise e Esquizodrama. Como a formação tinha duração de dois anos, dez turmas
tiveram a oportunidade de vivenciar uma experiência formativa que contava principalmente
com aulas expositivas, vivência dos esquizodramas e assembleias. Dentre as pessoas
matriculadas e interessadas em cursar a formação, havia profissionais das mais diversas áreas
e as turmas costumavam ser compostas por grande diversidade na maioria das ocasiões. Fiz
parte da terceira turma, salvo engano, e escolhemos nomeá-la “Caosmose”. Os alunos de
algumas turmas da pós-graduação tinham por hábito escolher para si um nome, que os
identificava e diferenciava das outras. Era sugerido pelos professores do curso que
escolhêssemos um nome e isso era feito a partir de um engajamento do grupo. A turma
Caosmose, que realizou a formação entre os anos de 2007 e 2009, foi uma turma bastante
heterogênea. Havia profissionais da Psicologia, mas também da Medicina, mais
especificamente da Psiquiatria, Nutrição, Serviço Social, Pedagogia, Artes Plásticas e Música.
Por manter sempre que possível um contato próximo ao IFG, lembro de nomes escolhidos por
outras turmas: Também, Anômalos, Falanstérios, cada qual com sua singularidade.
Tenho ainda memória nítida de minha impressão ao chegar ao IFG pela primeira vez, quando
as aulas começaram a acontecer lá, pois, na ocasião de minha formação, havia uma parceria
entre o IFG e a Clínica Urgentemente em Belo Horizonte e algumas aulas ocorriam lá. O espaço
de aulas no IFG é amplo, no segundo andar da casa antiga no bairro Serra. Tem o piso da sala
coberto por carpete com muitas almofadas e uma área externa, tipo um terraço bastante
aconchegante onde, aos intervalos, tomávamos um cafezinho com pão de queijo (bem à moda
mineira), fumávamos nossos cigarros, discutíamos as impressões e efeitos das aulas,
combinávamos o local do almoço ou o boteco que tomaríamos cerveja e cachaça depois das
aulas. A sensação que tinha era de que aquela formação não se limitava a uma formação
acadêmica, formal, mas a uma formação para a vida. Tínhamos aulas com professores muito
qualificados e engajados, “aventureiros”, disponíveis à coletividade e as experimentações,
acolhedores. Muitos deles, Marcelo Fontes, Patrícia Ayer, Carmem Lícia, Milton Bicalho,
Jorge Bichuetti, Fátima de Oliveira estão vinculados ao IGB até os dias atuais, além do próprio
Gregorio Baremblitt e Margarete Amorim, que, além de coordenadores da maioria dos cursos
(lato sensu e outros cursos de curta duração), também ministravam as aulas e participavam das
assembleias. Muitos destes, aos quais preservo um enorme carinho e amizade, contribuíram de
alguma forma para a construção dessa pesquisa.

116
Desde a minha formação em Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama,
estive mais próxima do IFG em várias ocasiões. Em 2015, quando ocorria a formação da última
turma da pós-graduação, passei a compor o quadro de colaboradores, época em que foram
pensados e propostos os “Cursos de Férias”, que iniciaram em janeiro de 2016 e ainda são
realizados até os dias atuais, porém com foco maior no Esquizodrama atualmente.
Os cursos e formações ofertadas pelo IGB despertam interesse de pessoas de várias
regiões do país, já que ainda são escassos espaços de formação com orientação da
Esquizoanálise pelo Brasil. Atualmente é possível observar um aumento gradativo destas
formações como por exemplo a Formação Livre em Esquizoanálise: perspectiva
transdisciplinar da clínica que conta com aulas de Esquizodrama. Além disso, há outras tantas
iniciativas que têm formatos bastante diversificados, a maioria abordando uma perspectiva
mais filosófica da Esquizoanálise, e concentram-se principalmente na região Sudeste e Sul40
do país.
Nessa ocasião em que estive colaborando mais ativamente da dinâmica do IFG/IGB,
eram realizadas reuniões semanais para discutirmos questões institucionais como financeira,
planejamento de cursos, propostas de Esquizodramas e ações diversas. A equipe realizou
alguns grandes Esquizodramas durante esses anos, como à convite do 13º Festival Internacional
de Teatro de Belo Horizonte em 2016, no Parque Municipal, região central de Belo Horizonte,
ocasião em que Gregorio Baremblitt também proferiu uma palestra sobre o tema;41 à convite
do II Congresso Internacional de Saúde Mental – Escola Franca e Franco Basaglia em
Marília/SP em 2017 com a temática “Quem cuida de quem cuida?”; à convite do Comitê
Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais – Comitrate, em Juiz de Fora/MG no ano
de 2017, em razão do Dia Internacional do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, dentre outras
ações, como a participação em pesquisas, consultorias, grupos de estudos coordenados por
Gregorio Baremblitt e outros coordenados por Margarete Amorim, grupos de discussão, dentre
outras atividades.

5.2 O funcionamento do Esquizodrama

40
No ano de 2020, tive conhecimento por meio de um grupo em uma rede social que participo, de uma excelente
iniciativa de profissionais da Psicologia que estão propondo a construção de um mapeamento de todos os
profissionais que trabalham com a perspectiva da Esquizoanálise nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do
Brasil.
41
Palestra disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSj7GoJ3Ff8. Acesso em 09 jul. 2020.

117
Por ser uma ferramenta tão singular de intervenção e com tantas possibilidades de uso,
acredito ser importante apresentar de forma mais detalhada algumas características que
compõem o Esquizodrama, assim como aspectos de seu funcionamento. Baremblitt explica que

O objetivo principal do Esquizodrama consiste em funcionar de maneiras


heterólogas, multiplicitárias, transversais, imanentes, maquínicas, semióticas,
capilares, com recursos dramáticos tomados das numerosas escolas teatrais e de
apropriação (dito no melhor sentido) que muitos e diversos saberes e afazeres fazem
deles (BAREMBLITT, 2019, p. 4).

Na realização do Esquizodrama, há algo importante a se considerar, que é sua abertura


e receptividade para a utilização de diversos recursos performáticos, como a dança, a música,
o canto, os ruídos, as artes marciais, a capuêra, as massagens, a yoga, os exercícios de
respiração, as artes, o cinema, as imagens, o teatro, a contação de histórias e causos, os corpos,
os encontros, as drogas psicotrópicas, os aromas, os sabores, os saberes populares, as
dramatizações, etc. Trata-se de acessar e abordar o molar/macro para transformá-lo no sentido
mais rizomático que pudermos dar a isso, em movimentos nano ou micropolíticos.
Gregorio Baremblitt se inspira especialmente, na profunda importância que Deleuze e
Guattari dão em sua obra à arte e à literatura, ao teatro de Artaud, Ionesco, Boal, Jarry, Brecht
e Beckett. A grandes traços do teatro do absurdo (e também da literatura de Lewis Carrol,
Kleist, Melville, Kerouac, D. H. Lawrence, Virgínia Woolf, Castañeda, Hölderlin,
Lautréamont, acrescentando-se a esta lista os latino-americanos Borges, Guimarães Rosa,
Onetti, Neruda, Pavlovsky, mas também John Cage na música, Gaudi na arquitetura, Butô na
dança (BAREMBLITT; AMORIM; HUR, 2020).
Hur e Viana, parafraseando o próprio Baremblitt, afirmam que o Esquizodrama

funciona como um conjunto de estratégias, táticas e técnicas que buscam atuar sobre
os aspectos subjetivos, sociais, semióticos e tecnológicos de seus dispositivos para
proporcionar experiências de desterritorialização dos agenciamentos instituídos. Visa
incitar a produção de linhas de fuga e desejantes que levem a novos processos de
subjetivação. Objetiva o protagonismo e a potencialização de seus participantes, os
atos dionisíacos e criadores do pensamento e dos afetos, para que nesses processos
de afetar e ser afetados sejam intensificados os agenciamentos e encontros (HUR;
VIANA, 2016, p. 119).

O Esquizodrama, portanto, está baseado principalmente nas obras de Deleuze e


Guattari, mas também na trajetória e experiência de vida de seu criador, efeito de seu
comprometimento com a militância política, da transdisciplinaridade de sua formação, de seu

118
trabalho como psicoterapeuta, professor, consultor, psiquiatra, analista institucional e por toda
sua produção intelectual e estética.
Conforme vimos no capítulo anterior, as três tarefas da Esquizoanálise,
destrutiva/desterritorializadora (rasteira), positiva/cartográfica (ginga) e positiva/conectiva
(roda) são indissociáveis. O Esquizodrama se inspira nessas tarefas e em suas reverberações e
ressonâncias e parte delas para fazer sua proposta de intervenção.
Neste sentido, a partir desta inspiração, Baremblitt (2013) afirma que a intervenção
esquizodramática se apoia em tarefas destrutivas/negativas42 e positivas/afirmativas: as tarefas
de raspagem/destrutivas/negativas e as tarefas positivas/produtivas/afirmativas de montagem e
de efetuação de agenciamentos coletivos de enunciação e agenciamentos maquínicos de
corpos. A tarefa destrutiva ou de raspagem do Esquizodrama é também uma tarefa combativa
e promove invenções. Seu intuito, assim como a tarefa destrutiva da Esquizoanálise, é fazer
uma demolição, um desmonte, não só das capturas, mas de tudo que comprime, aprisiona, reduz
a vida em sua potência de agir e criar. A partir dessa tarefa, faz-se uma raspagem dos aspectos
fascistas, racistas, reacionários, preconceituosos (sexuais, raciais, nacionais, etários, de
instrução, de nível intelectual, de religião, costume, gostos) e, ainda dos “revolucionários
convencionais e dos reformistas das democracias liberais”, (BAREMBLITT, 2019, p. 8).
Afirma ainda:
Trata-se de desestratificar, descodificar, desterritorializar, desaxiomatizar a
realidade, seus valores definidores repressivos como o feitichismo das mercadorias,
as mais-valias de lucro e renda. A ganância de poder, de prestígio, de prazer e de
gozo, assim como os das macro e micro entidades reprodutivas, suas formas, suas
estruturas, suas estabilidades, suas crenças, suas dualidades confrontadas,
dilemáticas, suas negações, centralizações, hierarquizações, transcendentalidades,
capturas, linearidades duras, circularidades concêntricas e ressoantes, seus espaços
estriados, seus falsos “desenvolvimentos”, suas subjetividades alienadas, suas
grupalidades sujeitadas definidas por seu regime significante pela “interpretose” e a
rostidade que lhe são próprias (BAREMBLIT, 2013, p.8).

É um desmonte de um certo tipo de realidade passiva que funciona conforme definições


de seus equipamentos de poder e produz subjetividades dóceis, consumidoras e não menos
adoecidas, é a isso que se pretende enfrentar e combater. As tarefas positivas, afirmativas, ou
de montagem/criação, relacionam-se com as tarefas positivas da Esquizoanálise, pois, ao
mesmo tempo que funcionam no sentido de buscar e fazer que surjam as máquinas desejantes,
as linhas de fuga de indivíduos, grupos, coletivos, também estão orientadas a um olhar de
afirmação da diferença e do reconhecimento de que molar e molecular são indissociáveis,
funcionam ao mesmo tempo e se conectam (ginga e roda). Nessas tarefas do Esquizodrama,

42
Baremblitt nomeia as tarefas como negativas e positivas em sua obra.

119
propõe-se promover acontecimentos e devires (invenções, criações, revoluções, mutações)
capazes de propiciar linhas flexíveis e de fuga, produção de subjetivações desalienadas, tanto
de agentes individuais como de grupos, novos territórios existenciais. Trata-se de ativar
micropolíticas produtivo-desejantes revolucionárias que militam para atualizar virtualidades e
promover mais espaços lisos e com isso intensificá-los (BAREMBLITT, 2016). Nesse sentido,
as tarefas do Esquizodrama são destrutivas e afirmativas, e assim como nas tarefas da
Esquizoanálise, elas não funcionam separadamente.

Trata-se do funcionamento sempre combativo do Esquizodrama: a raspagem, a


desestruturação, a neutralização dos equipamentos cósmicos de poder, assim com a
catalização da atualização-ecolosão de funcionamentos e instâncias caosmóticas. Tais
objetos podem parecer demasiado ambiciosos ou incompatíveis com abordagens
klínicas, mas, deve-se sempre ter em conta que os resultados serão sempre “parciais”
e que o trabalho klínico continua fora do evento, tanto nos participantes, como
noutros próximos, por contágio (BAREMBLITT, 2019, p. 10)

Importante ressaltar que o Esquizodrama não é uma mera aplicação de conceitos


esquizoanalíticos, nem uma experimentação descontextualizada, mas uma produção que tem a
partir da orientação da Esquizoanálise e de tantos outros saberes, a possibilidade de inventar
outros mundos possíveis, subjetividades mais libertárias, capazes de aumentar sua potência de
ação, invenção e criação. Nem tampouco uma variação do Psicodrama (Moreno), já que não se
pressupõe no Esquizodrama a representação de papéis, ou funções hierarquizadas e pré-
definidas para seus propositores, para citar apenas algumas diferenças. As tarefas do
Esquizodrama são vivenciadas a partir da práxis de dramatizações e ao dramatizar, cria-se,
movimenta-se, atua-se não no sentido de representar, mas, acessando devires e sensibilidades
outras, estando presente, em ato. É essa a perspectiva que interessa ao Esquizodrama.

5.3. Klínica com K e as Klínicas do Esquizodrama

São denominadas klínicas, as intervenções propostas pelo Esquizodrama. Baremblitt


(2013) propõe o termo klínica com “k” com a intenção de diferenciá-la das clínicas chamadas
clássicas ou tradicionais e também fazendo uma alusão ao sentido grego da origem da palavra
clinamen (desvio dos átomos que caem no vazio e se chocam produzindo o novo), conforme
propõem a filosofia estoica e seu atomismo. Esse desvio, que é produzido por forças
indetermináveis e aleatórias, produz mudanças no percurso que se era esperado dos átomos,

120
fazendo emergir um novo caminho, uma nova trajetória desconhecida e criada naquele instante.
Klínica do desvio, desviante, ou “n” klínicas, que podem e devem ser inventadas e
experimentadas sempre com o intuito de promover cortes, rupturas e provocações que
contribuam para que o protagonismo e a singularidade dos participantes se apresentem e que
se possam criar a partir daí novos territórios existenciais, novas composições e novos encontros
intensivos.
A sustentação da palavra klínica vem afirmar um posicionamento clínico que funcione
de modo a “‘desterritorializar-se’ e ‘despersonalizar-se’, ou seja, de ‘desviar-se’ dos macro-
modelos segmentários já instituídos na sociedade, das grandes identidades (pai, mãe, mulher,
homem, adulto, criança, cientista e leigo, analista e analisando, etc.)” (AMORIM, 2009, p. 1
45)43 para fazer surgir novos sentidos, devires e corpos intensivos. Nesse sentido

As klínicas esquizodramáticas rejeitam a reprodução de um modelo, norma, padrão,


a reiteração do mesmo, procuram a fenda para o desconhecido que devirá, o
simulacro, na medida em que ele não remete a padrões já vigentes e em exercício
(BAREMBLITT; AMORIM; HUR, 2020, p. 39).

A preferência pelo clinamen para identificar as klínicas do Esquizodrama serve também


para apontar uma posição mais transversal entre a/o Esquizodramatista e as/os participantes do
Esquizodrama, afastando ou abandonando o termo clinos (deitado, recostado), que marca uma
posição hierárquica entre aquele que tem o conhecimento, que sabe, que age (o médico, psicólogo,
o terapeuta) sob aquele que está passivo, imóvel, estável (o paciente).
A transversalidade foi pensada por Guattari (1987) a partir de sua experiência com as
práticas grupais, e surge como um processo que se em contrapõe a movimentos de verticalidade
que provocam introjeção das normas e das demandas instituídas presentes nos grupos
assujeitados e também a movimentos de horizontalidade que associam diferentes
conhecimentos sem que ocorra uma relação entre eles. A transversalidade efetua o
deslocamento necessário para que o grupo seja um dispositivo produtor de outras realidades,
em um processo autônomo e inventivo (LOPES; ROMAGNOLI, 2018). Assim, o grupo se
exerce de forma potente, sustentando sua própria criação. A transversalidade é, pois, “(...) uma
dimensão que pretende superar os dois impasses, o da pura verticalidade e o da pura
horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os

43
Este fragmento de texto está contido em: O corpo no Esquizodrama de Margarete Aparecida Amorim e faz
parte da apostila de aulas (mimeo) organizada pelo Instituto Félix Guattari intitulada Esquizorama: Recopilação
de textos, de agosto de 2009. Esta apostila (circulação interna) foi distribuída aos estudantes da pós-graduação
lato sensu durante o período que a cursei (2007 a 2009) e contém uma série de textos sobre as temáticas da
formação e as diversas klínicas do Esquizodrama, a maioria de autoria de Gregorio Baremblitt, mas também
contém textos de outros professores e colaboradores como Maria de Fátima Oliveira e Jorge Bichuetti.

121
diferentes níveis e, sobretudo nos diferentes sentidos” (GUATTARI, 1987, p. 96). Essa
transversalidade acontece no Esquizodrama num sentido de convidar/convocar os participantes
a ações. Nesse sentido, geralmente não se assiste a um Esquizodrama, mas mergulha-se nele,
embrenha-se, participa-se ativamente (Esquizodramatista e participante).
No texto Clínica e biopolítica na experiência do contemporâneo, Passos e Regina
Benevides também propõe a experiência clínica enquanto desvio, considerando que o desvio
do clinamen, “faz bifurcar um percurso de vida na criação de novos territórios existenciais”
(PASSOS e BENEVIDES, 2001, p. 3). Contudo, também afirmam que o trabalho clínico não
se reduz a esse movimento do se inclinar sobre o leito do doente, como se poderia supor a partir
do sentido etimológico da palavra derivada do grego klinicos “o que concerne ao leito”; de
kline “leito-repouso”, de klino “inclinar, dobrar”, mas ambas as atitudes de acolhimento e
produção de um desvio (clinamen) devem estar presentes no ato clínico.
Em minha prática esquizodramática que se iniciou na pós-graduação realizada no IFG,
conforme citado, tenho experimentado e coordenado Esquizodramas nos contextos mais
variados possíveis, em grupos (laboratórios, universidades, congressos, eventos acadêmicos,
praças, parques) e também individualmente (consultório) e tenho observado a importância de
se acolher os grupos e indivíduos, antes (por ser uma prática relativamente nova e ainda
incipiente há sempre muitas dúvidas e curiosidades sobre sua aplicação, sua experimentação),
durante (as klínicas do Esquizodrama são extremamente potentes e é preciso acompanhar e
cuidar de seu funcionamento para que as desterritorializações ou desvios que surgirem não se
tornem de nenhuma maneira nocivas ao seus participantes, já que muitas vezes acessamos um
campo muito sensível e também muito intenso jamais acessado ou percebido antes) e depois
(já que as ressonâncias, as reverberações suscitadas a partir das intensidades, dos fluxos que
foram liberados podem ter desdobramentos inimagináveis até mesmo um longo período após
sua vivência). Assim, a infinita audácia e a máxima prudência, mencionada inúmeras vezes por
Baremblitt, ou, o desvio e o cuidado são posicionamentos indispensáveis à experimentação
esquizodramática no meu entendimento, assim como também o é na clínica equizoanalítica.
No “causo” que abriu esse capítulo, a psicóloga triste sorriu ao acessar a partir da
vivência de um Esquizodrama, afetos alegres que aumentaram sua potência de agir e viver a
vida de forma mais confiante e aberta a novos encontros e novas composições. Esta é uma das
operações possíveis de se acessar a partir do Esquizodrama, ou seja, identificar os embaraços,
os nós e realizar sua raspagem para com isso possibilitar e intensificar os fluxos desejantes, a
afirmação da vida e do desejo. Entretanto, é sabido que experiências como estas não são
imperativas e que existem klínicas muito intensas, que mobilizam grandemente e por isso é
122
preciso cuidado. Há que se escolher klínicas mais flexíveis em determinados grupos ou
situações. Os princípios éticos, políticos estéticos, ecológicos, devem ser sempre considerados.
As invenções, as criações, as surpresas são os objetivos dos Esquizodramas e não os conflitos.
O objetivo do Esquizodrama é micropolítico.
Baremblitt, Amorim e Hur (2020) apresentam o Esquizodrama enquanto uma episteme,
pois, é composto por uma teoria (conjunto de esquizoemas 44 e contribuições de filósofos como
Espinosa, Nietzsche, Foucault e outros diversos autores), um método (contextualizado, criado
e inventado), e uma técnica (as klínicas). As klínicas do Esquizodrama são técnicas, fazeres e
saberes que são experimentados em uma prática que se faz ao mesmo tempo prática teórica,
prática do método e prática técnica (BAREMBLITT et al., 2020).
Baremblitt (2013) propõe algumas klínicas que chama de “elementares” ou “cruciais”
ou de “passagem45”, são elas: Klínica da produção, reprodução e anti-produção, Klínica do
caos, caosmos, cosmos, Klínica da diferença/repetição, Klínica do acontecimento/devir e a
Klínica da multiplicitação dramática, entretanto, o autor afirma que a/o Esquizodramatista tem
a liberdade e a possibilidade de inventar klínicas que funcionem conforme seu estilo e interesse,
podendo essas cruciais serem modificadas, adequadas, executadas em partes ou no todo, a
critério do que funciona melhor para cada interventor e para cada situação. Hur (2014) faz uma
consideração bastante relevante de que

o Esquizodrama não se constitui como um campo de conhecimento e práticas


consolidado, de dispositivos e técnicas com consignas, tarefas e enquadre fixos e
delimitados. Caracteriza-se mais como variação contínua e convite à inventividade
de novos dispositivos e práticas. É mais uma experimentação do que aplicação, num
saber instituinte, ao invés de algo pressuposto e fechado (HUR, 2014, p. 1032).

Nesse sentido, é primordial que a/o Esquizodramatista atue como vive e viva como atua.
A condição de Esquizodramatista é resultado do estudo e da aplicação das klínicas (pré-
existentes ou improvisadas), tanto sobre quem as aplica como sobre os participantes que as
protagonizam (BAREMBLITT, 2013), posições essas que se diluem variavelmente durante o
processo.
Desde que apreendido, o Esquizodrama não tem nenhuma restrição e não é
exclusividade de nenhuma profissão específica. Qualquer pessoa e/ou coletivo que se interesse

44
O termo Esquizoema foi criado por Baremblitt para denominar conceitos que tenham como base os pensamentos
e ideias da Esquizoanálise.
45
Para mais informações sobre as klínicas do Esquizodrama, todas as klínicas cruciais e outras foram
minuciosamente relatadas na publicação mais recente do IGB (2020) de autoria de Gregorio Bareblitt, Margarete
Amorim e Domenico Hur, conforme consta nas referências desta tese.

123
em estudar seus textos, compor e participar de Esquizodramas klínicos pode aplicá-los a outras
situações ou coletivos, perseguindo a execução de suas tarefas e se atentando a sua
possibilidade e potência criativa de produzir ou atualizar efeitos políticos, intelectuais, sociais,
artísticos, etc. Baremblitt afirma que

O Esquizodrama dito num sentido purista, não se ensina, nem se transmite: se


multiplica e se “contagia”, cada vez em condições mais apropriadas.
Esquizodramatizar consiste em desmontar ou contornar o que não funciona
para a vida do “todo” e de “todos” e intensificar o que funciona com essa
finalidade (BAREMBLITT, p. 28).

Neste sentido, apresentarei a seguir, algumas pequenas amostras do que tenho


experimentado com e a partir do uso do Esquizodrama durante esses anos de formação, já que
compreendo que a prática do Esquizodrama também se faz uma prática formativa em minha
experiência clínica, pois cada Esquizodrama vivenciado (como Esquizodramatista ou como
partcipipante) tem servido para promover novas inúmeras possibilidades de atuações.

5.4 Experimentações Esquizodramáticas

No início da pandemia de Coronavírus, em março de 2020, os participantes de um dos


grupos de supervisão que participo e que chamamos Supervisão Rizomática, ainda um pouco
perdidos, num misto de sentimentos de dúvida, medo, instabilidade, diante da confirmação de
que estávamos mesmo vivendo uma pandemia em escala mundial – ninguém imaginava que
iria vivenciar uma situação dessa – propôs despretensiosa e inocentemente, que dois de nós, eu
e Marcelo Fontes, fizéssemos com o grupo, uma vivência de Esquizodrama on-line. O grupo
sugeriu a atividade bastante animado, certamente porque não imaginava que tudo (reuniões de
trabalho, reuniões de orientação da pós-graduação, atendimentos aos pacientes, reuniões de
família, aniversários, etc.) que faríamos daquele mês em diante seria no formato on-line.
Lembro que eu e Marcelo nos entreolhamos pensativos. Será? Será que funciona? Começamos
a trocar os famosos áudios pelo aplicativo Whatsapp. Costumamos trabalhar assim. Marcelo
descobriu que um áudio de Whatsapp suporta até 29:32 de gravação, a depender do aparelho
celular. Fomos trocando, conversando e propusemos uma experimentação esquizodramática,

124
sem muitas pretensões. A ideia era que pudéssemos começar pela rostidade,46 já que,
deliberadamente nossos rostos estavam em evidência nas telas dos nossos computadores ou
celulares em nossos encontros de supervisão, que passaram a ocorrer a uma frequência maior,
semanalmente, e eu Marcelo pudemos estar presentes mais vezes no modo remoto, já que
naquele momento não residíamos mais em Belo Horizonte e RMBH. Começamos pelo rosto.
Fizemos caretas, tentamos desconstruir aquele rosto “bonitinho”, “certinho”, “organizado” que
a gente apresentava um ao outro nos encontros. Fizemos caretas horríveis. Rimos uns dos
outros. Descontraímos a musculatura facial. Ficou mais leve e mais possível estar ali diante
daquele “espelho”. Depois inventamos uma forma de nos massagearmos a nós mesmos.
Alongamos os nossos corpos, as articulações. Diminuir a tensão já era uma boa pedida naquela
época e nem imaginávamos o que estava por vir. Tivemos o cuidado de pedir aos colegas que
escolhessem um local em sua casa que oferecesse o mínimo de segurança, com tapetes,
almofadas e que não tivesse objetos pontiagudos, quinas, obstáculos, para a atividade que
iríamos propor. Uma das propostas era girar, sob o próprio corpo, com o celular na mão de
modo que os outros participantes pudessem acompanhar esse giro pelo corpo e pelo espaço de
cada um. Desorganizamos os espaços. Àquela altura, algumas cidades já estavam num esquema
de algum tipo de isolamento social (lockdown ou algumas restrições de circulação) e o espaço
que estávamos habitando era mesmo o de nossas casas. Parece que pudemos com aquela
experiência adentrarmos o “universo” de cada um. Nos sentimos mais próximos e tivemos com
essa experimentação esquizodramática, a oportunidade de nos acolhermos e nos abraçarmos
ainda que virtualmente.
Importante registrar o ineditismo dessa experiência, já que não temos conhecimento de
que o Esquizodrama tivesse sido experimentado antes de modo on-line. Ainda que muitos de
nossos colegas “psis” tinham dúvidas de como funcionaria o trabalho de modo remoto, em
especial os trabalhos grupais durante a pandemia, o Esquizodrama que experimentamos pela
primeira vez desta forma, funcionou e teve bons resultados. A partir dessa aposta inédita,
Marcelo foi convidado a dizer da nossa experiência à atual equipe de professores do IGB, junto
ao próprio Gregorio Baremblitt. Os desdobramentos decorrentes desta reunião foram as
Formações em Esquizodrama on-line, que têm sido ofertadas semestralmente pelo coletivo.
Outro registro importante a se fazer se relaciona à posição transversal entre Esquizodramatista

46
Uma das klínicas propostas por Gregorio Baremblitt é a Klínica da Rostidade. Essa klínica, dita de uma maneira
bastante resumida, visa desconstruir a ideia de rosto padronizado, codificado, que acaba servindo como
representação do sujeito, em detrimento de seu corpo. A ideia é promover a desterritorialização desta face (como
a representação universal da face de Jesus Cristo, por exemplo) que serve para modular modos de ser e agir, para
promover novas subjetivações.

125
e participantes da atividade. Nós, que propusemos o Esquizodrama, nessa experiência relatada,
também vivenciamos, junto ao grupo a atividade. No intuito de registrar a inauguração dos
esquizoramas on-line compartilho as fotografias das caretas que produzimos na ocasião na
figura abaixo:

126
Imagem 1: Esquizodrama on-line

Fonte: Fotografia da autora (2021)

127
Essa parceria de trabalho com Marcelo Fontes, rendeu outras experiências frutíferas.
Em 2019, oferecemos juntos um laboratório de Esquizodrama no Rio de Janeiro, que tem
repercussões até hoje. Coincidentemente, uma das entrevistadas para esta pesquisa também foi
uma das participantes desse laboratório e trouxe em seu relato, um pouco dos efeitos da sua
participação no mesmo:

Teve várias repercussões. [...] Agora eu tô lembrando disso, aquele primeiro curso
(laboratório) já mexeu muito comigo. Eu lembro que você até propôs um encontro no
seu consultório e eu falei, eu quero! Eu não lembro o que que foi que me acionou na
época, alguma coisa que eu tava passando, mas aquilo me acionou uma coisa que eu
fiquei muito tomada, tanto que na minha próxima sessão de terapia eu chorei muito.
Pensei: por que que eu tô chorando gente? Não me aconteceu nada na minha vida, tá
tudo normal! E aí depois a gente chegou nesse ponto, eu falei acho que teve alguma
coisa naquele negócio, naquele Esquizodrama que mexeu aqui. Eu não lembro o que
era agora mas enfim (Entrevista 6).

Neste laboratório, que teve dois dias de duração, o primeiro em que nos apresentamos
(já numa primeira experimentação de contação de causos) e apresentamos conceitualmente o
Esquizodrama e o segundo em que realizamos um Esquizodrama bastante potente em que
pudemos acessar sensibilidades genuínas e “desfazer” endurecimentos diante à clínica e ao
exercício da profissão da Psicologia. Tantas reverberações intensivas, sensações, emoções,
afetos foram despertados que um espaço de escuta e acolhimento após a realização do
Esquizodrama foi ofertado, configurando esse cuidado após a realização do Esquizodrama a
que me referi anteriormente, afirmando a relevância do acompanhamento desse processo,
conforme o entendo e pratico. Além dessa parceria, participei de muitas outras, levando o
Esquizodrama a muitos e diversos espaços e situações. Penso ser considerável afirmar aqui
nominalmente essas parcerias amistosas e engajadas que fiz em tantas oportunidades de utilizar
o Esquizodrama como recurso clínico e terapêutico. Junto a Eustáquio Silva, realizamos alguns
Esquizodramas com crianças e adolescentes no município de Timóteo/MG, à convite de
Margarete Amorim; Junto de Henrique Galhano, realizamos o Esquizodrama Quem cuida de
quem cuida com profissionais de saúde em Marília/SP; junto de Matheus Silva, realizamos
Esquizodrama com alunos do curso de psicologia numa das semanas de Psicologia da PUC
Minas; junto a Thiago Pedro Monteiro, realizamos Esquizodrama com alunos da Formação em
Esquizoanálise no Rio de Janeiro; junto a Margarete Amorim, realizamos Esquizodramas com
a rede de atenção à criança e adolescentes de Ouro Preto/MG durante a realização de uma
pesquisa-intervenção; além das oportunidades em que uma equipe de Esquizodramatistas atuou
conjuntamente na realização de grandes Esquizodramas, como na condução de Esquizodrama

128
em uma grande e movimentada praça pública em Juiz de Fora/MG, à convite do Comitrate em
que atuaram além de mim, Matheus Silva, Frederico Caiafa, Eustáquio Silva e Henrique
Galhano e em Rio das Ostras/RJ para alunos do curso de psicologia em uma Semana da
Psicologia da UFF, em que atuamos juntos eu, Thiago Pedro Monteiro, Milton Bicalho e Pedro
Cavalcanti. Também tenho utilizado o Esquizodrama como recurso clínico em consultório e
conduzido sozinha grupos menores, além de ter sido convidada para ministrar aulas-
experimentações na Formação Livre em Esquizoanálise desde 2019.
Outra possibilidade inovadora de uso do Esquizodrama que merece ser mencionada tem
a ver com sua aplicação em pesquisas acadêmicas, já que atualmente ele tem sido
experimentado também na composição de metodologias de pesquisa. Um exemplo deste uso
foi uma pesquisa-intervenção realizada pelo Laboratório de Grupos, Instituições e Redes
Sociais (L@gir/UFMG), entre os anos de 2014 e 2016 e que tive a oportunidade de compor a
equipe de pesquisadoras. Essa pesquisa,47 teve como objetivo “contribuir para o
desenvolvimento intersetorial e interdisciplinar de uma rede local, potencializando o Sistema
de Garantia dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente – SGDHCA no município, no
enfrentamento das vulnerabilidades psicossociais” (IZABEL PASSOS et al., 2017, p. 248).
Para alcançar o objetivo da pesquisa, que era fortalecer o trabalho intersetorial na rede
do município, a equipe inicialmente identificou os pontos de fragilidade e de potencialidades
da rede no que ser relacionava à garantia de direitos da população infanto-juvenil da cidade. A
partir de uma composição de diferentes experiências teóricas, técnicas e metodológicas das
pesquisadoras, tendo como principais referências a pesquisa-ação crítica (Thiollent), a Análise
Institucional (Lourau), a Esquizoanálise (Deleuze e Guattari), as pistas da cartografia (Passos,
Benevides, Escóssia), o Esquizodrama (Baremblitt) e a Formação Cruzada (Lima, Passos,
Perreault)48, desenvolveu-se uma proposta metodológica singular que potencializou e
intensificou o vínculo dos participantes entre si e em relação a temática da pesquisa. Durante
o processo e dentre tantas vertentes metodológicas, optamos pelo Esquizodrama logo no início
do trabalho, nas primeiras oficinas que realizamos e seu uso teve o intuito de aproximar e
sensibilizar os participantes da pesquisa às temáticas propostas. A realização dos
Esquizodramas se configurou como elemento riquíssimo para a efetivação da pesquisa. Foram

47
A pesquisa intitulada: O trabalho em rede para a promoção da saúde de crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade social e violência: desafios da intersetorialidade, foi financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG com recursos do Ministério da Saúde (PPSUS) e realizada por
uma equipe de oito pesquisadoras colaboradoras do L@gir na cidade de Ouro Preto/MG.
48
Para mais informações sobre a metodologia da Formação Cruzada, ver capítulo produzido coletivamente a
partir da pesquisa-intervenção citada em PASSOS et al., 2017, conforme consta nas referências desta tese.

129
reunidas nessas atividades pessoas que compunham vários segmentos da rede de atenção à
criança e adolescente do município. Estavam presentes nos Esquizodramas conselheiros
tutelares, conselheiros municipais representantes de diversos outros conselhos, profissionais
do CAPSi, profissionais a rede de Educação, vereadores, gestores, profissionais da Assistência
Social, agentes de segurança pública (policiais militares), professores/servidores da
Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, policiais civis, além de pessoas da comunidade
local.
A experiência de se conectar e de dramatizar, ou Esquizodramatizar suas vivências
cotidianas acerca do tema da pesquisa que se relacionava especialmente à de garantia de
direitos de crianças e adolescentes em vulnerabilidade e que vivenciavam situações de
violência sexual e uso prejudicial de álcool e outras drogas no município, configurou-se como
uma oportunidade ímpar de sensibilização entre os participantes da pesquisa em relação à
temática, mas também em relação à produção de afetos entre eles, que misturando-se, passaram
a se conhecer, reconhecer e perceber a necessidade e importância de ações coletivas e conjuntas
no enfrentamento das situações e casos que a pesquisa revelava.
Maria Luiza Cardoso também narra uma experiência em que se utilizou do
Esquizodrama enquanto proposta metodológica em pesquisa:

decidimos promover, além das entrevistas, um laboratório Esquizodramatico com


encontros em que todos os espectadores selecionados para a pesquisa estariam
presentes, constituindo um grupo. Visamos, com isso, empregar uma metodologia
que propiciasse outras formas de expressão, e também que as expressões verbais
pudessem avançar em relação aos aspectos abordados nas entrevistas (CARDOSO,
2007, p. 168).

Com o mesmo intuito de raspar os bloqueios, os endurecimentos (tarefas negativas) e


de deflagrar e intensificar os fluxos desejantes propiciando novas composições (tarefas
positivas), o Esquizodrama na pesquisa se faz um recurso metodológico singular e inovador no
sentido de buscar outras formas de se pesquisar, assim como propõe o método da cartografia,
por exemplo.
Das dez entrevistas que realizei durante esta pesquisa, apenas uma das entrevistadas
não conhecia o Esquizodrama. Todos os outros tinham alguma relação ou de vivência, ou por
ter feito alguma leitura sobre o tema a partir de curiosidade, ou pela busca por outros recursos
e ferramentas de intervenção para suas clínicas. Nenhum dos entrevistados afirmou utilizar
efetivamente o Esquizodrama em seu trabalho clínico cotidiano. Entretanto, muitos disseram
dos efeitos que conhecer e experimentar o Esquizodrama fez ativar/funcionar em suas práticas.
Os trechos abaixo exprimem um pouco dessas repercussões relatadas durante as entrevistas:
130
Eu acho muito interessante, eu ganhei muito de ter feito, mas eu não uso diretamente
na clínica. Eu acho que talvez de formas indiretas quando eu estimulo as pessoas a
dançarem, a cantarem, a fazerem experimentações, quando eu me preocupo com as
desterritorializações delas, eu dou valor a isso, gosto de perguntar como foi que
aconteceu, porque eu acho muito interessante essas perguntas da Esquizoanálise,
sabe? Ao invés dos porquês da psicanálise, os para que? Como funciona? O que está
envolvido? Quem? Eu acho que a única coisa que talvez eu faça de longe, do
Esquizodrama é que eu atento para coisas na vida que são esquizodramáticas que as
pessoas vivem. Eu valorizo isso. “Então ela fez uma viagem, e lá ela
desterritorializou, e o que que aconteceu? Ou foram outras viagens por outros meios,
na música, na droga, na literatura e que provoca desterritorializações. O que eu
considero que ganhei do Esquizodrama foi isso. [...] Eu estimulo as pessoas que eu
atendo a fazer Esquizodramas, vivências de bioenergética e aproveito, exploro essas
vivências e os efeitos disso. Eu valorizo. Acho que quando você valoriza uma coisa,
aquilo multiplica, abre espaço (Entrevista 2).

No relato desta entrevistada, observamos que, na sua avaliação, a utilização de


fragmentos do Esquizodrama em sua clínica, além de sua sensibilidade para com a prática, já
se fazem recursos importantes de suas apostas para com as movimentações de seus pacientes
em suas vidas, considerando os efeitos e desdobramentos dos mesmos.

Eu não uso o Esquizodrama, principalmente porque ah.. Ou eu uso o Esquizodrama?


Eu não faço encontros grupais, mas o que eu entendo do Esquizodrama, se eu uso ele,
é dentro de uma lógica filosófica da proposta. O Esquizodrama me pareceu mais uma
composição de diferentes técnicas, como o psicodrama, a multiplicação dramática, o
sociodrama, que eu entendi que o efeito era produzir no encontro aquelas pequenas
máquinas, aquelas pequenas atuações. Aí eu entendi por exemplo, alguns
movimentos de um cara muito criticado na terapia de família, o Molina, você o
conhece? O Molina, na minha época de estudante, era muito criticado, porque de
repente, numa intervenção ele mordia a canela do cliente. Aí o pessoal falava: que
doideira! Depois eu pensei: esse cara, ele tá produzindo um outro efeito, ao invés da
interpretação, ele atua. E essa atuação, ele produz uma diferente cognição, um
diferente efeito. E eu vi que a proposta esquizodramática conversava muito não em
interpretar, mas produzir outro efeito no nível do corpo, das sensações. [...] E era o
que eu percebia na Esquizoanálise. Quando a gente fala em não interpretar. A ideia
de não interpretar é não tentar criar um arcabouço universal. Não que a interpretação
não tenha o seu local, sempre um local provisório, é o que eu acho. Mas, às vezes
algumas atitudes atravessam outras camadas, outras sensações que produzem
movimento, produz um efeito, né? A proposta do Esquizodrama conversava sobre
isso, né? Eu no consultório por exemplo, eu sou muito dramático. Às vezes eu me
componho em encenações com meus clientes, mas sem necessariamente pensar: ah
vou usar uma técnica, deslocar meu cliente da posição de meramente cliente e
produzir um efeito, outra tentativa, uma outra sensação no encontro. Essas são
autorizações, por exemplo, que a esquizoanálise me dá (Entrevista 3).

Este relato, que surpreendeu até mesmo a quem relatava, que se questionou (será que
eu uso o Esquizodrama?) aponta que o Esquizodrama não é algo inexequível, como pensam
alguns, apesar de complexo e bastante elaborado. O Esquizodrama e suas klínicas (cruciais ou
inventadas) é um recurso/ferramenta interventiva que pode contribuir para a atividade clínica

131
nessa perspectiva esquizoanalítica devido às suas infinitas possibilidades de experimentação,
abertura, desvio e acolhida das questões referentes à subjetividade contemporânea e suas
composições.
Acessar, por meio do Esquizodrama, outras formas de expressão e outras sensibilidades
pode ser bastante relevante à clínica contemporânea justamente pelas vicissitudes das
subjetividades forjadas pelo capitalismo que tendem a perpetuar repetições do mesmo a todo
custo. Convocar e provocar experimentações para fazer emergir o novo é uma aposta
audaciosa, mas também essencialmente ética, política e estética. Acredito ser importante fazer
o Esquizodrama circular para que os deslocamentos por ele incitados possam fazer surgir outras
forças, outras delicadezas, outras fissuras, outros afetos, outras possibilidades.

132
6 IN (CONCLUSÕES) PROVISÓRIAS

Tô bem de baixo prá poder subir


Tô bem de cima prá poder cair
Tô dividindo prá poder sobrar
Desperdiçando prá poder faltar
Devagarinho prá poder caber
Bem de leve prá não perdoar
Tô estudando prá saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar

Eu tô te explicando
Prá te confundir
Eu tô te confundindo
Prá te esclarecer
Tô iluminado
Prá poder cegar
Tô ficando cego
Prá poder guiar

Suavemente prá poder rasgar


Olho fechado prá te ver melhor
Com alegria prá poder chorar
Desesperado prá ter paciência
Carinhoso prá poder ferir
Lentamente prá não atrasar
Atrás da vida prá poder morrer
Eu tô me despedindo prá poder voltar

Tom Zé / Elton Medeiros

Decidi, após um encontro potente com o grupo de escritas feministas que fez
parte da metodologia de validação desta pesquisa, que abriria cada capítulo da tese com um
causo. O causo, além de servir para a manutenção de uma oralidade, tão presente na cultura
mineira, na qual nasci e cresci, pareceu uma alternativa apropriada porque sempre esteve
presente em meu pensamento e desejo a ideia de produzir uma tese, ou seja, um texto
acadêmico, que fosse o mais acessível possível. Eu gostaria mesmo é que meus pais, que nunca
colocaram os pés em uma universidade, pudessem ler e entender o que eu queria dizer com
aquilo. Eu gostaria que estudantes de Psicologia, mesmo recém-chegadas/os ao curso,
pudessem ler, entender e ter na vertente da Esquizoanálise também uma possibilidade de
caminho a trilhar em sua prática clínica. Eu gostaria de produzir um texto que trouxesse de
forma mais “fácil”, ou “compreensível”, alguns desses conceitos desenvolvidos por Deleuze e
Guattari e que podem nos ser tão úteis para o trabalho clínico, para que se pudesse arriscar
fazer uso deles mais vezes, desde que compreendidos, e não sua reprodução infinita, vazia e
logorreica.

133
Empreitada bastante pretensiosa, eu sei, e que certamente não posso concluir que a
tenha alcançado. Ademais, compreendo que escolher essa perspectiva tão complexa dentro das
possibilidades que a Psicologia me ofereceu se fez algo tão inevitável quanto desafiador, já que
desde que fiz a escolha por essa ética-estética-política em minha conduta clínica, fui sempre
impelida a responder, afinal: o que é Esquizoanálise?
Certamente que nunca foi minha pretensão fazer uma exegese ou explicar o que é a
Esquizoanálise. Entretanto, o tom quase cômico do primeiro causo, quando os três
esquizoanalistas parecem não compreender a pergunta feita em espanhol, por escolherem a
mosca ao invés da abelha, se visto com um pouco mais de atenção, escancara o tamanho do
desafio. Como podem preferir a mosca à abelha? O caminho contrário? Às vezes as moscas
pousam em lugares sujos, contaminam, alerta o uruguaio que chega àquela conclusão: comem
merda! Escolher um caminho teórico/clínico/interventivo que o “ponto de chegada” é a própria
direção, ou melhor, escolher um caminho multifacetado que qualquer trajeto pode levar a
qualquer direção, sem muita ou nenhuma certeza do que se vai encontrar, apostando mais no
trajeto do que onde vai chegar, é mesmo uma aposta ousada, insana talvez.
Muitas e muitas vezes essa minha escolha pela Esquizoanálise foi questionada,
incompreendida, desqualificada, e esta afirmação não tem nada a ver com ressentimento, e sim
com uma sensação de convocação. Fui fazendo vários movimentos, andanças, deslocamentos
durante esses 15 anos de exercício da profissão, exercício clínico amparada pela Esquizoanálise
que me impulsionaram e me fizeram desejar realizar essa pesquisa. Outro ponto importante
que influenciou esse desejo é que eu não encontrava, ainda que tivesse buscado bastante
durante todo esse tempo, textos e referências que fizessem essa articulação entre a Psicologia
e a Esquizonálise de modo a apontar algumas possibilidades de uso, alguma perspectiva que
contribuísse para compreender seu funcionamento. A literatura que acessei abordava muitos
dos conceitos (rizoma, corpo sem órgãos, agenciamentos, hecceidade e outros); porém, a
maioria deles numa perspectiva mais filosófica ou tratando da aplicação desses conceitos a
outras áreas, principalmente a Educação e poucos trabalhos dizendo como funcionaria a clínica
e a prática de uma/um esquizoanalista. Não que eu buscasse por modelos, a busca era por pistas.
Nesse sentido, para a realização da pesquisa, não haveria outra proposta metodológica
que fosse mais coerente que a cartografia. As leituras feitas das Pistas o método da Cartografia
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2014; PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2016) e os
artigos sobre pesquisa cartográficas (ROMAGNOLI, 2009) em diversas áreas como os serviços
de Saúde e Assistência Social (ANDRADE; ROMAGNOLI, 2010), foram as primeiras
oportunidades de leitura que acessei que apontavam para a possibilidade de uma elaboração
134
em relação à Esquizoanálise na prática, em ato. Optar pela cartografia foi uma maneira de dar
consistência a essas indagações, além da possibilidade de ver operar uma metodologia de
pesquisa que não realizava uma cisão entre vida e política, entre pesquisadora e pesquisa, entre
saber e não saber.
No segundo capítulo, dedicado à apresentação e explanação dessa proposta
metodológica, me atentei inicialmente ao tipo de escrita que eu gostaria de desenvolver neste
trabalho, uma escrita encarnada que trouxesse a pesquisa ao mesmo tempo que trazia os afetos
provocados durante sua realização, que expressasse as variações de velocidade, forma,
tamanho, temperatura, potência do processo de pesquisar. Uma escrita que funcionasse quase
como a escrita de uma carta, daquelas que a gente recebia antigamente pelos Correios e lia
ansiosamente para saber as novidades, se atualizar.
Neste sentido, para que chamar Fucô pra conversa? Para pensar num saber que se
constrói no deslocamento, no movimento, nas relações e, sobre esse ponto, fico muito contente
por poder ao menos tentar uma escrita assim, em tempos tão endurecidos como o que estamos
vivenciando, além do que, parece que a academia de um modo geral, tem precisado “respirar”
por meios de textos escritos de forma mais livre, alegre e desviante, para poder sobreviver a
tantos ataques. Obviamente que esta foi uma tentativa e nem sempre a escrita vem assim fluida,
às vezes endurece, trava, porque tantas questões nos atravessam e tem sido realmente
complicado não adoecer de Brasil. 49
A escrita, com suas linhas ora flexíveis, ora mais endurecidas, foi costurando afetos,
conhecimento, desconhecimento, experimentações, deslocamentos, memórias, desvios, na
produção da cartografia, metodologia que foi minha grande aliada. Conforme vimos, a
inspiração rizomática da cartografia permitiu que essa pesquisa fosse se construindo durante o
percurso desses quatro anos e meio.
Penso ter sido importante apresentar a cartografia, discutindo passo a passo os seus
aspectos singulares e que fazem dela uma proposta tão oportuna. A sustentação deste método
passa por questões raramente consideradas pela pesquisa acadêmica tradicional, seja ela
quantitativa ou qualitativa, inclusive.
A discussão do corpo da/o pesquisadora/or (um corpo presente e atento, à espreita, que
é atravessado pelos afetos provocados em cada encontro), o funcionamento ímpar da entrevista
(que não se constitui numa mera coleta de dados ou informações e considera os silêncios, os

49
Doente de Brasil é um vídeo produzido pelo canal humorístico Porta dos Fundos, no Youtube, que aborda de
forma tragicômica a situação atual do povo brasileiro, diante à situação pandêmica, econômica e social que
enfrentamos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lu39Ltm60s4. Acesso em: 19 jun. 2021.

135
engasgos), o estabelecimento de um vínculo de confiança (aquele pelo qual é possível se
construir um conhecimento comum, coletivo, em que as/os participantes tem a oportunidade
de co-autoria), a análise dos dados (que não ocorre ao final, é feita durante todo o processo, já
que a vida não se conclui, acontece, e o que pode ser acessado são os efeitos e sentidos
construídos coletivamente, a intensidade) e validação da pesquisa (que envolve autoavaliação,
avaliação pelas/os participantes e avaliação em pares, já que nessa perspectiva, não é possível
conferir à/ao pesquisadora/or o poder de decidir isoladamente o que deve ou não ser
considerado, pois o conhecimento é coletivo), são pontos cruciais para a efetivação da
cartografia. É por todos esses motivos e pela possibilidade de acessar esse campo de forças,
considerando sempre os três indicadores propostos por Passos e Kastrup (2013) no que se refere
à sua validação: o acesso à experiência, a consistência cartográfica e a produção de efeitos,
além de sua compreensão acerca da subjetividade, que esta metodologia foi utilizada.
Penso ser importante mencionar também que, na perspectiva da avaliação por pares, na
validação da pesquisa cartográfica, essa pesquisa contou com um coletivo de pesquisadoras de
pós-graduação, que chamamos grupo de escritas feministas, em que todos os textos produzidos
foram compartilhados, lidos e comentados, num exercício minucioso e gradativo que
contribuiu não só para os quesitos formais da pesquisa (teórico, burocrático, relevância e
contribuição para a área, estético, etc.), mas também funcionou como um grupo de apoio em
que operaram políticas de amizade, que angústias foram acolhidas, sugestões de leituras,
filmes, músicas foram feitas, além da produção de texto coletivo, conforme consta em anexo.
No segundo causo, fala da alienação de uma psicóloga acerca da realidade de seu país
e cultura de seu povo. Esse causo abriu a possibilidade para pensar e discutir o que a Psicologia
tem produzido enquanto formação e práxis em solo brasileiro e quais seriam os motivos
responsáveis por esse tipo de alienação. Além da discussão sobre a compreensão de
subjetividade afirmada pela Esquizoanálise, que desenvolvo neste terceiro capítulo.
A subjetividade para a Esquizoanálise não é hermética. Não se limita a um sujeito que
a detenha. Está sempre em movimento e é atravessada por tudo o que está exterior ao sujeito.
Compõe-se e decompõe-se o tempo todo. Esta perspectiva proposta por Deleuze e Guattari
(2011), e não só por eles, também por Foucault, parte de uma noção de subjetividade que, além
de extrapolar o sentido de uma subjetividade universal, a considera como coletiva, complexa,
heterogênea e composta por linhas (flexíveis, de segmentaridade e de fuga). Essas linhas, que
têm funcionamento distinto, se entrelaçam, se atravessam, se fazem e se desfazem produzindo
composições provisórias, operando tanto abertura quanto rigidez. São muitos os fatores que

136
contribuem para a compreensão da subjetividade na Esquizoanálise, dentre eles questões
territoriais, raciais, de classe, de gênero, de orientação sexual, dentre outros.
Para além desses fatores, as questões políticas também interferem na produção de
subjetividade. Sobre estas, a partir de um estudo cuidadoso da obra Guardiães da Ordem, de
Cecília Coimbra (1995), apresento e discuto alguns dos acontecimentos que operavam no
Brasil nas décadas de 1960, 1970, 1980 e como eles contribuíram não só para a produção de
subjetividade, mas também para o exercício profissional da Psicologia, como a ditadura civil
militar e a situação econômica, social e cultual do país.
Sobre a formação em Psicologia no Brasil, minha preocupação e provocação se
referiram a observações feitas por mim durante meu percurso acadêmico e formativo e também
ao que colhi nas entrevistas, que apontam para uma crítica à atuação clínica que muitas vezes
se apresenta muito desconectada da realidade de seu público. As questões relacionadas à
desigualdade econômica e social brasileira, ao racismo, ao corpo, ao território, a gênero se
entrecruzam e se diferem bastante da branquitude dominante de quem produz ciência, as teorias
em Psicologia. Minha defesa foi e é a de sustentar na prática clínica uma visão interseccional,
decolonial, que não seja neutra, que não se apoie na lógica neoliberal e que não admita essa
cisão da subjetividade e do social, que dê consistência à singularidade, considerando sempre a
dimensão política do sofrimento psíquico. Parece possível que a Esquizoanálise, por toda a sua
compreensão de subjetividade e seu funcionamento, tenha condição de se apresentar como uma
abordagem clínica capaz de realizar práticas inventivas, criativas, libertárias, principalmente
se considerarmos as invenções/criações que fazemos aqui no Brasil.
A errância da Dona Martinha e a psicóloga que na rua a acompanha apresentadas no
terceiro causo; a relação de afeto produzida entre as duas; a possibilidade de uma clínica da
trajetória (física, psíquica, psicossocial) que se constrói por entre andanças, esse foi o objetivo
do quarto capítulo desta tese: dizer sobre o funcionamento dessa clínica. Afinal, o que fazem
as/os esquizoanalistas?
Inicialmente, propus uma discussão acerca de como se daria uma clínica
esquizoanalítica. A partir de sua compreensão singular sobre subjetividade e da
indissociabilidade entre clínica e política, proponho que a clínica esquizoanalítica opera a partir
de três tarefas, conforme nos apresentaram Deleuze e Guattari (2010). Tarefa destrutiva ou de
raspagem, tarefa positiva de mapeamento dos fluxos desejantes, ou cartográfica e tarefa
conectiva, reterritorializadora. Essas tarefas têm funções diferentes e funcionam a todo tempo,
sendo indissociáveis. A partir da leitura que fiz dessas tarefas, proponho uma aproximação com
uma luta/jogo/dança/arte afro-brasileira, a capuêra Angola. Nessa aproximação, nomeio a
137
tarefa destrutiva, ou de raspagem, de rasteira; a positiva cartográfica de ginga; e a positiva
conectiva de roda. Essa aproximação entre Esquizoanálise e capuêra Angola não é fortuita.
Parece que o que temos feito com a Esquizoanálise no Brasil e também na América Latina
(apesar de eu ter me concentrado neste trabalho à experiência brasileira) é mesmo algo que se
aproxima daquela velha máxima conhecida por quem transita no universo da Esquizoanálise:
ideia de roubo criativo defendido por Deleuze e Guattari (2010). Um roubo, uma apropriação
daquilo que nos convém, do que faz funcionar nossa prática. Um modo novo, inédito que
admite experimentações e ousa fazer diferente. Assim também o é na capuêra Angola. Não foi
criada na África, foi inventada em solo brasileiro, utilizando-se de todo o aprendizado ancestral
trazido na memória, sobretudo corporal, dos africanos no sentido de fazer funcionar uma ética,
uma estética e uma política (de sobrevivência), assim como também o fez a Esquizoanálise.
A partir das entrevistas realizadas e da minha própria experiência profissional,
apresento alguns aspectos do que efetivamente fazem as/os profissionais que escolhem essa
clínica: esquizoanalistas estudam; consideram a perspectiva corporal na clínica; criam
dispositivos; realizam trabalhos grupais; participam de supervisão clínica e fazem
Esquizodrama.
Cada um desses aspectos foi trabalhado mais detalhadamente no decorrer do capítulo,
e foi possível observar um pouco do funcionamento da clínica esquizoanalítica. Ao contrário
do que se podia imaginar, não há algo de tão extraordinário no trabalho clínico da/o
esquizoanalista, pois, muitas das suas ações são exatamente o que se espera de qualquer
profissional da Psicologia, como estudar, por exemplo. Entretanto, sua singularidade, está
certamente em suas apostas e em sua ética. Estudar, apesar de não ser nada excepcional, pode
ser considerado algo a se valorizar, já que essa clínica aposta em estudos mais abrangentes que
extrapolam a produção de seus autores/criadores, estudos estes que não tem o intuito de
aperfeiçoar alguma “técnica”, e sim a promover afetações.
Considerar a perspectiva corporal na clínica, criar dispositivos e realizar trabalhos
grupais podem ser vistos também como atos singulares de resistência, já que 1) a primazia da
mente sobre o corpo ainda vigora na Psicologia de forma bastante imponente; 2) assumir-se
enquanto um profissional que se autoriza a buscar “caixas de ferramentas” teóricas e técnicas
de outros campos de saber é uma posição que sofre muitas críticas conservadoras no campo
“psi” e 3) privilegiar o grupo, num contexto extremamente individualista num capitalismo
financerizado é um desafio constante, tendo em vista a insistência da Psicologia na clínica
individual.

138
A prática da supervisão clínica também se apresenta como uma singularidade nessa
abordagem, já que funciona de uma maneira muito diferente do que ocorre em outras
abordagens teóricas, conforme visto. E a prática do Esquizodrama, esta sim, a mais singular de
todas, confere ao esquizoanalista uma potencialidade a mais. Para tanto, tratamos do
Esquizodrama em um capítulo exclusivo.
Finalmente, no quinto capítulo, apresento o Esquizodrama, criado por Gregorio
Baremblitt e que se constitui como uma ferramenta de experimentação e intervenção baseada
nas ideias, pensamentos e conceitos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, ou seja, na
Esquizoanálise. Foi apresentado o funcionamento do Esquizodrama, suas tarefas negativas e
positivas, que se inspiram nas tarefas da Esquizoanálise, suas Klínicas e suas possibilidades de
uso e intervenção. Discorro sobre a experiência do Esquizodrama on-line experimentada por
mim e por Marcelo Fontes no início da pandemia de Coronavírus, a experiência da utilização
do Esquizodrama enquanto metodologia de pesquisa e afirmo esta proposta, ou episteme
(teoria, método e técnica) (BAREMBLITT et al., 2020) como uma inovadora e potente
ferramenta interventiva para contribuir para a clínica nessa esquizoanalítica.
A realização deste trabalho provocou além de muito aprendizado, uma imensa alegria.
Esses questionamentos, que sempre chegaram a mim, sobre a clínica da Esquizoanálise, foram
se re-elaborando, seguindo outros fluxos e amadurecendo no decorrer desses anos. Se antes
habitava em mim uma vontade antagonista (microfascismos) de responder em alto e bom tom
o que era que eu fazia, e que era ético, era responsável, cuidadoso, produzia bons encontros,
potencializava a vida, como se xingasse um palavrão, foi diminuindo e dando outros contornos
a essas inquietações. Não tenho uma receita e pontos que me convocaram foram cada vez mais
se relacionando à possibilidade de apresentar às leitoras e leitores, uma experiência, ou muitas
delas.
Ao finalizar este trabalho, estou certa de que durante todo o texto, minha prioridade não
foi discutir “o que”, mas o “como”, da forma que me foi possível, para dizer do meu jeito,
como a clínica esquizoanalítica me afeta e como funciona para mim e para outras/os “psis” que
a tem experimentado e acredito que esteja aí a maior contribuição deste trabalho para o campo
da Psicologia: poder oferecer alguma pista de como essa clínica funciona e o que se tem feito
a partir dela, para que com isso, se possam criar outras saídas. Dessa forma, talvez possamos
pensar na aposta em uma clínica da trajetória que só pode se fazer coletivamente (psicóloga/o,
paciente, família, cidade, trabalho, grupo).
Termino esta tese com o corpo cansado, porém, vibrante. Há também um sentimento
de alívio por poder trazer contribuições ao campo a partir das experiências. A academia muitas
139
vezes opera para a produção de tristeza, conformismo e rigidez; subverter essa lógica, aumenta
minha potência. Estão contidas aqui, não só as leituras que fiz durante todo esse tempo e que
estão referenciadas ao final, mas as elaborações feitas a partir dos debates nos grupos de
supervisão e escrita que participo, as “filosofias de boteco” feitas em discussões calorosas
durante todo meu percurso formativo, as contrações e flexões do meu corpo cartógrafo e
Esquizodramatista, as noites sem dormir, o jejum não planejado por ficar horas a fio em frente
ao computador, o medo, a ansiedade que apareceram em algum momento, as apostas, a emoção,
as angústias, a alegria, e, sobretudo, a tomada de posição da minha narrativa de que a clínica
esquizoanalítica inventada e praticada no Brasil é uma ética-estética-política inovadora,
acolhedora, crítica, cuidadosa, responsável e opera por meio de ginga, rasteira e roda. É preciso
estar disposto a girar, a movimentar e, como nos presenteia o genial Tom Zé e seu parceiro
Elton Medeiros, às vezes será necessário explicar pra confundir, confundir pra esclarecer,
estudar pra saber ignorar, ficar cego pra poder guiar.

140
REFERÊNCIAS

ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira angola: cultura popular e o Jogo dos saberes na
roda. Tese (Doutorado em Educação), Unicamp. Campinas, 170 p., 2004.

ALVAREZ, Johnny Menezes. O aprendizado na capoeira Angola como cultivo na e da


tradição. Tese (Doutorado em Psicologia), UFRJ. Rio de Janeiro, 227 p., 2007.

ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial. In:


PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulinas, 2014,
p.131-149.

ANDRADE, Laura F.; ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. O psicólogo no CRAS: uma


cartografia de territórios subjetivos. Psicologia, Ciência e Profissão, v.30, n.3. p.604-619,
2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/2820/282021784011.pdf. Acesso em: 15
jul. 2020.

AMORIM, Margarete A. O corpo no Esquizodrama. Instituto Félix Guattari de Belo


Horizonte/Fundação Gregorio Baremblitt. In: Esquizodrama: Recompilação de textos.
Apostila de aulas. Belo Horizonte, p.144-150, 2009.

ARAÚJO, Rosângela Costa. IÊ, Viva meu mestre: a Capoeira Angola da “escola pastiniana”
como práxis educativa. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 236p. 2004.

ARTAUD, Antonin. O teatro da crueldade: primeiro manifesto. In: O teatro e seu duplo. São
Paulo: Martins Fontes, p.100-116, 1999.

ASPIS, Renata Pereira Lima. Ensino de filosofia e resistência. Tese (Doutorado em


Educação) - Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, 226 p., 2012.

ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Engolo e capoeira. Jogos de combate étnicos e diaspóricos no


Atlântico Sul. Tempo. Niterói Vol. 26 n. 3, p. 523 – 556, Set./Dez. 2020. DOI: 10.1590/TEM-
1980-542X2020v260302

BAREMBLITT, Gregorio F. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes. Rio


de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1996.

BAREMBLITT, Gregorio F. Dez proposições Descartáveis Acerca do Esquizodrama.


Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte. Mimeo, 2013.

BAREMBLITT, Gregorio F. Dez proposições Descartáveis Acerca do Esquizodrama.


(Versão Ampliada). Belo Horizonte: Ed. IGB, 2019.

141
BAREMBLITT, Gregorio F. Posfácio. In: Formação em Esquizoanálise: Cartografia da
formação clínica do IBRAPSI como produtora de pistas para uma formação transinstitucional.
Curitiba: Appris, 2021.

BAREMBLITT, Gregorio F.; AMORIM, Margarete A.; HUR, Domenico. U. Esquizodrama:


Teoria, Método e Técnica. Belo Horizonte: Ed. IG, 2020.

BARROS, Letícia Maria Renault de; BARROS, Maria Elizabeth Barros de. O problema da
análise em pesquisa cartográfica. Fractal, Revista de Psicologia, Rio de Janeiro , v. 25, n.
2, p. 373-390, Ago. 2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198402922013000200010&lng=en
&nrm=iso Acesso em: 12 ago. 2019.

BATISTA, Gláucia Aparecida. Entre causos e contos: gêneros discursivos da tradição oral
numa perspectiva transversal para trabalhar a oralidade, a escrita e a construção da
subjetividade na interface entre a escola e a cultura popular. Taubaté, UNITAU, 2007. 213f
Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Área de
Concentração Língua Materna, Universidade de Taubaté – UNITAU, Taubaté, 2007.

BENEVIDES de Barros., Regina.; PASSOS, Eduardo. Clínica e biopolítica na experiência do


contemporâneo. Psicologia Clínica, v. 13, n. l, p. 89-100, 2001.

BOCK, Ana Mercês Bahia. O Compromisso Social da Psicologia. São Paulo: Cortez, 2009

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.

CARDOSO, Maria Luiza Marques. Contribuições para a pesquisa-intervenção: Cartografias


de uma pesquisa sobre subjetividade e televisão. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 2(1), São
João del-Rei, Mar./Ag., 2007. Disponível em: https://www.ufsj.edu.br/portal2-
repositorio/File/revistalapip/17artigo.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.

CARVALHO, Vinícius de. Cartografia de corposições. (Título provisório). Tese em


construção - Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte/MG, 2019-atual.

CASSIANO, Marcella; FURLAN, Reinaldo. O processo de subjetivação segundo a


esquizoanálise. In: Psicologia & Sociedade, 25 (2), 372-378, 2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822013000200014&lang=pt. Acesso em: 01 jul. 2018.

COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da Ordem. Rio de Janeiro: Oficina do Autor,
1995.

COUTINHO, André Rossi. Formação em Esquizoanálise? Cartografia da formação clínica


do IBRAPSI como produtora de pistas para uma formação transinstitucional. Tese
(Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia, Universidade Federal Fluminense.
PPG/Psicologia, 2019.

142
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, v. 10, n.1, p. 171-189, 2002.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? In: DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana.


Lisboa: Veja, 1996, p.83-96.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, v. 1, cap. 1, p. 17-49, 2011.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Micropolítica e segmentaridade. In: Mil Platôs:


capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, v. 3, cap. 9, p. 91-125, 2012.

DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Felix. O Anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São


Paulo: Ed. 34, 2010.

DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

DEWES, João Osvaldo. Amostragem em Bola de Neve e Respondent- Driven Sampling:


uma descrição dos métodos. Monografia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Departamento de Estatística,, 51p.

DÍAZ, Esther. A Filosofia de Michel Foucault. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; MATTOS, Amana. Interseccionalidade: zonas de


problematização e questões metodológicas. In: SIQUEIRA, Isabel Rocha de et al. (org.).
Metodologia e relações internacionais: debates contemporâneos, vol. II. Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio, 2019.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

FOUCAULT, Michel. A Ética do Cuidado de Si como Prática de Liberdade. In: Ditos e


Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 264-287,
2004.

FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, p.144-162, 2004.

FOUCAULT, Michel. Introdução a uma vida não fascista. Preface In: Gilles Deleuze e Felix
Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp.
XI-XIV.

GALHANO, Henrique B. e FLECHA, Renata D. A influência dos argentinos do grupo


Plataforma na reforma psiquiátrica brasileira Pretextos, v. 3 n. 5, jan/jul, p. 207- 224, 2018.
Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/15983. Acesso
em: 01 ago.2020.

GOMES, Ciro. Por que o golpe acontece? In: Por que gritamos golpe? Para entender o
impeachment e a crise política no Brasil. 1ºed. São Paulo: Boitempo, p. 39-42, 2016

143
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990n.

GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012.

GUATTARI, Felix. El Devenir de la Subjetividad. Caracas: Dolmen Ediciones, 1991.

GUATTARI, Felix. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional.


Americana, SP: Ideias e Letras, 2004.

GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo, SP:
Brasiliense, 1987.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Ed.


Vozes, 2013.

GIL, Antônio Carlos. O psicólogo e sua ideologia. Psicologia, Ciência e Profissão, v.5, n.1,
Brasília, p. 13-17, 1985. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931985000100005.
Acesso em: 15 out. 2019.

hooks, bel. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2017.

HUR, Domenico Uhng. Cartografia das intensidades: pesquisa e método em esquizoanálise.


Revista Práxis Educacional, v. 17, n. 46, p. 1-18, jul./set, 2021. Disponível em:
https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/8392. Acesso em: 13 mai. 2021.

HUR, Domenico Uhng. Trajetórias de um pensador nômade: Gregorio Baremblitt Estudos e


Pesquisas em Psicologia. Rio de Janeiro, v.14, n.3, p. 1021-1038, 2014. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/13899/10585. Acesso em:
14 fev. 2019.

HUR, Domenico Uhng, VIANA, Douglas Alves. Práticas grupais na Esquizoanálise:


cartografia, oficina e Esquizodrama. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro, v.
68, n.1, p.111-125, 2016. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672016000100010.
Acesso em: 20 maio 2020.

HUR, Domenico Uhng. Psicologia, Política e Esquizoanálise. Campinas: Alínea, 2018.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. 1º ed. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

LIBERMAN, Flavia; LIMA, Elizabeth Maria Freire de Araújo. Um corpo de cartógrafo. In:
Interface (Botucatu), Botucatu, v. 19, n. 52, p. 183-194, mar. 2015. Disponível em

144
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832015000100183&lng=pt&nrm=iso.Acesso em: 11 fev. 2019.

LIMA, Dulcilei da Conceição. #Conectadas: o Feminismo Negro nas Redes Sociais Tese de
doutorado - Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais. São Bernardo do
Campo, 2020.

LIMA, Fátima. Vidas pretas, Processos de Subjetivação e Sofrimento Psíquico: sobre viveres,
feminismo, interseccionalidades e mulheres negras. In: PEREIRA, Melissa de Oliveira;
PASSOS, Rachel Gouveia (Orgs.). Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de
gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Autografia,
2017, p. 70-88.

LOPES, Eduardo Simonini e ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. Transversalidade e


Esquizoanálise. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 24, n.3, p. 915-929, 2018.

MACEDO, João Paulo e DIMENSTEIN, Magda. Escrita acadêmica e escrita de si:


experienciando desvios. Mental, v. 7, n. 12, Barbacena, jan/jun. p.153-166, 2009. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272009000100009.
Acesso em: 11 jan. 2020.

MACHADO, Leila D. O desafio ético da escrita. Psicologia e Sociedade, Recife, v.16, n. 1, p.


146-150; Número Especial, 2004. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n1/v16n1a12.pdf. Acesso em: 05 jan. 2020.

MANSANO, Sonia Regina Vargas. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na


contemporaneidade. Revista de Psicologia da UNESP, v. 8, n. , p 110-117, 2009. Disponível
em: http://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/view/946. Acesso em: 12 out. 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.


São Paulo: n-1 edições, 2018.

MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa; Causo. In: MICHAELIS


Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2015,
Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/causo/. Acesso em: 05 nov. 2020.

MORO, Carlos Alberto Corrêa. O entro da roda é o centro da vida: tradição, experiência e
improviso na roda de Capuêra Angola. São Paulo: Primata, 2019.

Ó, Jorge Ramos do. e AQUINO, J. G. Em direção a uma nova ética do existir: Foucault e a
experiência da escrita. Educação e Filosofia Uberlândia, Uberlândia, v. 28, n. 55, p. 199-231,
jan./jun. 2014. Disponível em:
http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/15010. Acesso em: 12 jan.
2020.

OLIVEIRA, Eduardo. O dia em que Dussel jogou capoeira. In: CARBONARI, Paulo César,
COSTA, José André da e MACHADO, Lucas (org.). Filosofia e Libertação: Homenagem
aos 80 anos de Enrique Dussel. Passo Fundo: IFIBE, 2015, p.23-61. (e-book).

145
OLIVEIRA, Luciana da Silva. Por um Cuidado Menor: Mulheres, Violências e Psicologia(s)
Feminista(s). Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva. de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição


Evaristo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 2. p.621-623, maio/agosto, 2009.
Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2009000200019&script=sci_arttext.
Acesso em: 06 maio 2020.

PARPINELLI, Roberta S; SOUZA, Edmilson W. F. de. Pensando os fenômenos psicológicos:


um ensaio esquizoanalítico. Psicologia em estudo, Maringá, v. 10, n. 3, 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/pe/v10n3/v10n3a15.pdf . Acesso em: 04 jun. 2018.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à


experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, Revista de Psicologia, Rio de
Janeiro, v. 25, n. 2, p. 391-413, ago. 2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
02922013000200011&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 11 fev. 2019.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia, TEDESCO, Sílvia. Pistas do método da


cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2016

PASSOS, Izabel Friche et al., Pensar em ato “o desafio do conhecimento”: A experiência de


pesquisa-intervenção junto à rede de atenção psicossocial e defesa de direitos de crianças e
adolescentes da cidade de Ouro Preto/MG. In: PASSOS, Izabel F. e PENIDO, Cláudia F. (org.),
Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes: Pesquisa-intervenção nas Redes. São
Paulo: Zagodoni, 2017. Cap.12, p.248-265.

PEREIRA, Rosilene Maria Alves. A questão do sujeito em Foucault: entre a sujeição de si e


o governo de si. 2012. 183f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de Minas
Gerais. PPG/FIL, 2012.

PRECIADO, Paul B. Texto Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica.


São Paulo: n-1 edições, 2018.

RABINOW, Paul. & DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo:
n-1 edições, 2018.

ROMAGNOLI, Roberta C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia e Sociedade.


Recife, v. 21, n.1, p.166-173, 2009. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/psoc/a/zdCCTKbXYhjdVYL4VS8cXWh/abstract/?lang=pt . Acesso
em: 08 mar. 2021.

146
ROMAGNOLI, Roberta C. O conceito de implicação e a pesquisa-intervenção
institucionalista. Psicologia e Sociedade. Recife, v. 26, n.1, p. 44-53, 2014. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/psoc/a/NqxkBHNRmdShkZcgZJ4zg5M/abstract/?lang=pt. Acesso
em: 05 out. 2020.

ROSSI, André. Formação em Esquizoanálise: Pistas para uma formação transinstitucional.


Curitiba: Appris, 2021.

ROSSI, André e PASSOS, Eduardo. Análise institucional: revisão conceitual e nuances da


pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS. Rio de Janeiro, Vol.5, nº 1, p. 156-181, jan-
jun de 2014. ISSN 2178-700X.

ROSSI, André, TRINDADE, Tarso Ferrari e MEDEIROS, Edmárcio. Supervisão em grupo:


considerações sobre um dispositivo clínico-institucional. Mnemosine. Rio de Janeiro, Vol. 8,
nº 2, p. 24-50, 2012.

SADE, Christian; FERRAZ, Gustavo Cruz; ROCHA, Jerusa Machado. O ethos da confiança
na pesquisa cartográfica: experiência compartilhada e aumento da potência de agir. Fractal,
Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 281-298, ago. 2013 . Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198402922013000200005&lng=pt
&nrm=iso. Acesso em: 11 fev. 2019.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 10ª ed. Porto: Afrontamento,
1993.

SILVA, Rafael Bianchi, CARVALHES, Flávia Fernandes. Psicologia e Políticas Públicas:


impasses e reinvenções. Psicologia & Sociedade, v. 28, n. 2, p.247 -256. Belo Horizonte,
mai/ago 2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822016000200247&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 15 fev. 2021.

SOUSA, Julienni Lopes de; LIMA, Luana Nunes Martins de. Regionalismo e variação
linguística: uma reflexão sobre a linguagem caipira nos causos de Geraldinho. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 72, p. 63-82, abr. 2019. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i72p63-82. Acesso em: 13 dez. 2020.

SOUZA, Pedro Fernandes de, FURLAN, Reinaldo. A questão do sujeito em Foucault.


Psicologia USP, vol. 29, nº3, p. 325-335. São Paulo: set/dez 2018. DOI:
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420170057. Acesso em: 15 dez. 2020.

TEDESCO, Silvia H.; SADE, Cristian; CALIMAN, Luciana V. A entrevista na pesquisa


cartográfica: a experiência do dizer. Fractal Revista Psicologia, v. 25, n. 2, p. 299-322, 2013.

VIEIRA, Kelly Dias, ROSSI, André, MIRANDA, André. As necessárias inconclusões da


Esquizoanálise – Experiências de formações transinstitucionais. La Deleuziana - Revista On-
Line de Filosofia. N. 9, p.115-127, março de 2019. ISSN 2421-3098

ZANELLO, Valeska. Saúde Mental, Gênero e Interseccionalidades. In: PEREIRA, Melissa de


Oliveira; PASSOS, Rachel Gouveia (Orgs.). Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões

147
de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Autografia,
2017, p. 52-69.

ZONZON, Christine. Capoeira Angola: africana, baiana, internacional. In: MOURA, M. A


larga barra da baía: essa província no contexto do mundo [online]. Salvador: EDUFBA, 2011,
pp. 130-165. ISBN 978-85-232-1209-4. Available from SciELO Books .

Filmografia:

DEMOCRACIA EM VERTIGEM. Direção: Petra Costa. Produção: Joanna Natasegara, Shane


Boris e Tiago Pavan. Brasil, Netflix, 2019 (121 min) Cor. Acesso em julho 2019.

DOENTE DE BRASIL. Direção: Bianca Frossard. Produção: Porta dos Fundos. Roteiro:
Gregório Duvivier. Brasil, Youtube, 2021 (3:52) Cor. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Lu39Ltm60s4. Acesso em abril 2021.

GUERRAS DO BRASIL.DOC. 1ª Temporada. Episódio 1. As guerras da Conquista.


Direção: Luiz Bolognesi. Produção: Laís Bodansky e Luiz Bolognesi. Buriti Filmes. Brasil,
Netflix, 2018 (26 min). Son., cor., Acesso em: janeiro 2021.

NARCISO EM FÉRIAS. Direção: Ricardo Calil e Renato Terra. Produção: Paula Lavigne.
Brasil, Uns Produções, 2020 (1h24min). Acesso em: outubro 2020.

O QUE É O ESQUIZODRAMA. Palestra de Gregorio F. Baremblitt. Direção: Equipe FIT-


BH. Produção: 13º Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte – FITBH. Brasil, 2016
(55:41). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSj7GoJ3Ff8. Acesso em: 14 jul.
2020.

VERDADE 12.528. Direção: Paula Saccheta e Peu Robles. Produção: Paula Saccheta. Brasil,
João e Maria.doc, 2013(55min). Digital. Cor. Acesso em: 10 jan. 2021.

NÊGO BISPO: VIDA, MEMÓRIA E APRENDIZADO QUILOMBOLA. Direção: Eduardo


Saron. Produção: Júlia Sottili e Paula Bertola. Brasil, 2020 (15:54). Cor. Acesso em: 02 abr.
2021.

148
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS


Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação
Comitê de Ética em Pesquisa - CEP

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

N.º Registro CEP: CAAE 07092819.8.0000.5137


Título do Projeto: Esquizoanalistas: o que fazem? Uma cartografia da clínica
esquizoanalítica na Psicologia

Vimos convidá-la(o) para participar de uma pesquisa que estudará a prática profissional
do psicólogo e as possíveis contribuições da Esquizoanálise, de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
para o fazer da psicologia.
Você foi selecionado porque cursou a pós-graduação Lato Sensu em Análise
Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama: Clínica de Grupos, Indivíduos e Redes Sociais,
oferecida pelo Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte, ou outra formação com esta temática
ou foi indicado por alguém que a fez. A sua participação nesse estudo consiste em responder a
uma entrevista sobre a sua atuação profissional e sua relação com a Esquizoanálise.
Ao concordar em participar, você será entrevistado em um local de sua preferência e
sem qualquer custo material para você. Sua participação é muito importante e voluntária,
portanto, não haverá pagamento por participar desse estudo. Em contrapartida, você também
não terá nenhum gasto. Para garantir a qualidade dos dados, solicitamos a sua aprovação para
que a entrevista seja gravada. Ressaltamos que será mantido sigilo sobre o que você disser.
Os riscos e desconfortos que você poderá sentir estão relacionados ao sentimento de
desinteresse em relação ao tema ou mal-estar com algum assunto abordado. Nesse sentido, a
gravação das entrevistas poderá ser interrompida se você sentir necessidade. Pode haver
também um desconforto na divulgação da pesquisa, mas fica enfatizado o caráter confidencial
dos registros.
As informações obtidas nesse estudo serão confidenciais, sendo assegurado o sigilo
sobre sua participação em todas as fases da pesquisa, e quando da apresentação dos resultados
em publicação científica ou educativa, uma vez que os resultados serão sempre apresentados

149
como retrato de um grupo e não de uma pessoa. Você poderá se recusar a participar ou a
responder a algumas das questões a qualquer momento, não havendo nenhum prejuízo pessoal
se esta for a sua decisão.
Todo material coletado durante a pesquisa ficará sob a guarda e responsabilidade do
pesquisador responsável pelo período de 5 (cinco) anos e, após esse período, será destruído.
Os resultados dessa pesquisa servirão para ampliar o conhecimento sobre a prática
profissional do psicólogo, e poderá gerar benefícios a partir da reflexão sobre sua prática
cotidiana de trabalho.
Para todos os participantes, em caso de eventuais danos decorrentes da pesquisa, será
observada, nos termos da lei, a responsabilidade civil.
Você receberá uma via deste termo onde consta o telefone e o endereço da pesquisadora
responsável, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer
momento.

Nome da pesquisadora: Kelly Dias Vieira


Endereço: Av. Itaú, nº 525
Bairro Dom Cabral – Belo Horizonte/MG
CEP 30535-012
Telefone: (31)3319-4568 / (31) 98311-2559

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, coordenado pela Prof.ª Cristiana Leite Carvalho, que poderá ser contatado
em caso de questões éticas, pelo telefone 3319-4517 ou e-mail cep.proppg@pucminas.br.

Belo Horizonte, de 2019.

Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para participar deste estudo.

_________________________________________________
Nome do participante (em letra de forma)

_________________________________________________ _______________
Assinatura do participante Data

150
Eu, Kelly Dias Vieira, comprometo-me a cumprir todas as exigências e responsabilidades a
mim conferidas neste termo e agradeço pela sua colaboração e sua confiança.

_________________________________________________ ______________
Kelly Dias Vieira Data
(Pesquisadora)

151
APÊNDICE B – Termo de autorização de imagem (Fotos)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS


Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação
Comitê de Ética em Pesquisa - CEP

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE IMAGEM (FOTOS)

Eu, (nome do participante)_____________________________________, AUTORIZO a


doutoranda pesquisadora Kelly Dias Vieira, coordenador(a) da pesquisa intitulada:
Esquizoanalistas: o que fazem? Uma cartografia da clínica esquizoanalítica na Psicologia
fixar, armazenar e exibir a minha imagem por meio de foto com o fim específico de inseri-la
nas informações que serão geradas na pesquisa, aqui citada, e em outras publicações e
apresentações dela decorrentes, quais sejam: documentário, revistas científicas, congressos,
jornais e na internet.
A presente autorização abrange, exclusivamente, o uso de minha imagem para os fins
aqui estabelecidos e deverá sempre preservar o meu anonimato. Tenho a escolha de usar o
próprio nome ou pseudônimo, ou também a negação da própria imagem na exibição do
material. Qualquer outra forma de utilização e/ou reprodução deverá ser por mim autorizada.
A pesquisadora responsável Kelly Dias Vieira, assegurou-me que todo material
coletado durante a pesquisa ficará sob a guarda e responsabilidade da pesquisadora responsável
pelo período de 5 (cinco) anos e, após esse período, será destruído. A tese ficará arquivada por
tempo indeterminado na responsabilidade da pesquisadora e da instituição PUC Minas,
podendo ser apresentado em demais eventos acadêmicos.
Assegurou-me, também, que serei livre para interromper minha participação na
pesquisa a qualquer momento e/ou solicitar a posse de minhas imagens.
O presente termo será assinado em 02 (duas) vias de igual teor.

Belo Horizonte/MG, ______, ________________, 2021.

Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para exibir minha imagem nesta
pesquisa.

152
___________________________________________________________________________
Nome do participante

___________________________________________________________________________
Assinatura e carimbo do pesquisador responsável

153
Anexo A - Fragmentos coletivos de uma pandemia (corpoescritas50 de nós)

Fragmentos colectivos de una pandemia


(corpoescritas de nosotras)

Fernanda Rocha da Silva; Juliana Pereira Dias Lima; Kelly Dias Vieira; Luciana
Oliveira; Paula Gontijo Martins; Priscila Tamis

Resumo: Em tempos de crise, afirmar a vida e enfrentar o presente. O que há


de vital em nós? No nosso caso, a pandemia insurgiu a conexão virtual de
seis mulheres pós-graduandas para a partilha do que grita e silencia nossos
corpos e nossas escritas. Vivendo em diferentes cidades, em construção
provocativa, juntas, tecemos textos contra-hegemônicos. Esses fragmentos
foram escritos na intensidade, com os sentidos, o ouvido, as mãos; pelas
cores, texturas, espessuras; em experimentações e acontecimentos. Uma escrita
coletiva, afetiva, que tece e destece palavras, entremeia ideias, multiplica
sentidos, desburocratiza histórias. Tecido forjado nas linhas da contração
e da expansão, no qual, enquanto tecelãs, estamos continuamente a nos
inscrevermos e nos apagarmos, nos diferenciando de nós mesmas. Assim,
resistimos aos aprisionamentos estruturais e experimentamos a tecitura
rizomática, inventando múltiplas entradas e sustentando a aposta viva de nos
fazermos escritoras a partir do rigor dos afetos que movem nossos
corpoescritas.

Palavras-chave: corpoescrita, coletivo, escuta, afeto, mulheres.

Resumen: En tiempos de crisis, afirmar la vida y afrontar el presente. ¿Qué


hay de vital en nosotras? En nuestro caso, la pandemia estalló la conexión
virtual de cinco mujeres estudiantes de posgrado para compartir lo que grita
y silencia nuestros cuerpos y nuestros escritos. Viviendo en diferentes
ciudades, en construcción provocativa, juntos, tejemos textos
contrahegemónicos.Estos fragmentos fueron escritos en intensidad, con los
sentidos, el oído, las manos; por colores, texturas, espesores; en
experimentaciones y acontecimientos. Una escritura colectiva, afectiva, que
teje y desvanece palabras, entrelaza ideas, multiplica significados, reduce
la burocracia de las historias. Tejido forjado en líneas de contracción y
expansión, en la que, como tejedores, nos vamos inscribiendo y borrándonos
continuamente, diferenciándonos. Así, resistimos los encarcelamientos
estructurales y experimentamos el tejido rizomático, inventando múltiples
entradas y sosteniendo la apuesta viva de convertirnos en escritores a partir
del rigor de los afectos que mueven nuestro corpoescrita.

Palabras clave: corpoescrita, colectivo, escucha, afecto, mujeres.

Estar à vontade para a escrita do possível. Para a


escrita de um possível: um parágrafo, uma frase que seja.

50
TAMIS, Priscila. O Belo Surto - experiências finitas de um corpoescrita. (Título provisório). Tese em
construção. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, 2016 -
atual.

154
Para que não fiquemos coladas na obrigação de escrever,
e estejamos mais ligadas na vontade de fazer algo juntas,
enfim. De colocar no papel o que a gente já vem fazendo
juntas. A proposta é que possamos pensar um pouco mais
livremente sobre a escrita nesse momento das nossas
vidas, porque a obrigação às vezes nos afasta dessa
possibilidade.


Quando a gente aprende a palavra, aprende a fazer beleza e também aprende a machucar.
Quando a gente aprende a necessidade do ser de enfrentamento às agruras, aprende a inevitável
dureza da ternura revolucionária que não trabalha com paz. Viver a guerra em nós em tempos
de guerra. Não existe dom para escrever, cada liga de palavra feita em linguagem é um rasgo
na pele. A pele riscada pelas palavras, a dor de ter tantos alguéns para se lembrar.
Toda semana você começa assim triste. E toda semana você começa assim. Triste.
Olha bem pra esse rosto. O que você acha que sabe não se fundou ainda. O que está vivo e que
você não pode ver, a inflamação da carne, o correr dos dias entre máscaras e desinfetantes, esse
estado de espera do dia que não quer chegar. O alvorecer. A redenção. O novo normal. Não
escrevo para você, testemunho as marcas e me coloco para dentro, a pungente volta para o
abismo das incertezas. Me sinto primitiva e bruta com as burocracias, a náusea das lutas que
aqui estão e do que não alcançamos. O caos vexatório da liberdade que não conseguimos viver.
Esses dias que estamos assim há anos. Sim, é sempre mais do mesmo. Dizem os intercessores
de mim que quando acontece uma tristeza profunda um instinto selvagem por perseverar nos
coloca em estado de percepção e criação de si. Será? Às vezes tenho vontade de que tudo
exploda. Tomo um café pra ver se algo se acolhe, lavo a louça como quem expurga o que não
entende do espírito de nossa relação, tomo banho para encontrar ajuda nos elementos vivos do
fora, sinto o coração bater na própria escuta, alecrim para o corpo e lavanda para os pés,
mandinga ritualística para sustentar os afetos que vive. Alimentos para a alma, afagos para o
coração. O que cura é o corpo do amor, aquele que se levanta todos os dias com o olhar à altura
dos olhos da vida e da morte. O cuidado é o nervo à flor da pele que pede ao olhar do
encantamento delicadeza firme. Não perder a mão de si, não ser obrigada a dívidas ou culpas,
não seres obrigado a me suprir. Nós, pequenas ilhas de desorientação na quarentena que não
acaba. Tão amadoras. Não nos deixaremos morrer durante o plano de nos matarem, cantamos
e escrevemos para os espíritos que nos guiam. Mano velho, mana velha, saúde! O campo das
Humanidades está aqui por um fio, enquanto algumas ciências e suas tecnologias parecem

155
nunca terem impedido a guerra e suas torturas. Tecnologias sociais explicam isso. Povos
originários há centenas de anos denunciam a queda do céu.
Vai, tira o pó, passa o aspirador com a vitalidade de quem segue, maneja os sonhos, põe a
escrita para antes das tarefas. Dança os abraços virtuais e os que de nós, como avesso rebelde
do governo da morte, está para nascer e inventar sentido menos igual. Não adianta essa tentativa
de nos roubar, de nos fazer zumbis, de nos esgotar. Nossos corpos estão em chamas, só que
olha aí - não paramos de nascer.
Quando é que não há mais tempo?
Somos a história dentro das estórias que ficam no entre infinito das palavras.
E escrevemos. Escrevemos porque queremos. Porque ganhamos corpo. E nas palavras criamos
vida. Interstícios de luz. Pequenos gérmens de alegria.
*
*
*
Na quarentena. Eterna, quase eterna, infindável, recebo um vídeo
de uma amiga que está isolada em Portugal. São mulheres dançando.
São dançarinas. Enquanto dançam, juntas, em ritmos variados e
se movimentam maravilhosamente, um texto incrível é narrado. Uma
voz de mulher diz: “Ouço vozes”51. “Nós somos quem luta porque
somos quem pode falar. Nem sempre foi assim”. “Meu corpo é o
corpo de todas que lutaram para eu estar aqui”. Essas frases
invadem minha existência. Estão ecoando em minha cabeça faz
alguns dias, uns 15 dias talvez. Entre sons de tambores e o som
de um instrumento que parece árabe e que não me lembro o nome,
assisto a dança que às vezes me lembra uma mandinga de capuêra
e outras os movimentos frenéticos de um baile funk, ouço:
“quiseram-nos caladas”, “nos tapam, nos matam, nos casam, nos
calam, nos silenciam, nos castram”, “putas poderosas, bruxas”.
Choro. Fico arrepiada. Choro e me emociono mesmo que seja a
décima, a quinquagésima ou a milésima vez que assisto a esse
vídeo. O texto narrado durante o espetáculo do qual sou plateia
atenta a partir da tela do meu celular é de uma mulher chamada

51
ORCHIDACEAE, Piny. Manifesto Feminista. Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CAf-
sJVFyWk/?igshid=2o5t5ypj89bk. Acesso em 06/10/2020.

156
Piny, dançarina, performer, arquiteta, professora, coreógrafa,
nascida em Lisboa. A narradora (me) diz: “Somos muitas e sempre
uma, que foi carregada nove meses por uma mulher, e ela por
outra, e ela por outra, e ela por outra, e ela por outra, e ela
por outra e por outra e por outra e por outra e somos nós, as
filhas das mães, as filhas das putas, as putas que também fomos,
que somos”. Ancestralidade. “E não temos que ter vergonha do que
somos, do que sempre fomos”. Somos mulheres. Brasileiras. Que
nos atrevemos a escrever juntas. Decidimos escrever parte de
nossos textos tesudos e dissertativos coletivamente. Escritoras
do terceiro mundo que devem ousar escrever, como nos suplica
Glória Anzaldúa52. Escrever nossas vivências, escrevivências,
como nos convoca Conceição Evaristo53. Somos muitas e queremos
que todas falem juntas a nós, para que não sejamos mais apagadas,
para que nossas vozes alcancem os ouvidos necessários, para que
nossas letras escrevam outras possibilidades para as próximas
que virão. Escrever é um ato político, nos diz Grada Kilomba54.
*
*
*
Escrevo este texto na expectativa de partilhar com vocês um pouco das minhas angústias a
respeito da experiência de escrever. Digo um pouco, pois elas são múltiplas, difusas,
inomináveis, insuspeitas. De modo que, vez por outra, me dou conta de sua presença em mim
de forma ostensiva, integral. Como a visita indesejada que chega em sua casa, abre a geladeira,
toma a última cerveja, cospe no chão, xinga o cachorro, e se deita em sua cama sem ao menos
tirar os sapatos. E por mais que você queira, ela não vai embora. Não importa que você não
esteja feliz ou confortável. Ela veio para ficar.
Em outras vezes ela aparece assim meio que de relance, sorrateira, como em uma piscadela. E
se torna quase impossível identificar seus modos de funcionamento. Seu sistema de opressão.

52
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista
Estudos Feministas. Florianópolis, v. 8, n.1, p. 229-236, 1º semestre/2000. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em 06 out. 2020.
53
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
54
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. 1º ed. Rio de Janeiro: Cobogó,
2019.

157
Penso também que logo de início me traio, porque escrever não é somente uma dor, escrever
também é um prazer. Um deleite. Brincar com as palavras. Construir frases como quem esculpe
um qualquer coisa a se dizer. Frases sem nenhuma importância. E quanto menos importância,
mais brincante, mais prazer. Essa escrita não abre passagem à angustia e o corpo que a encarna
é a potência de vir a ser, de deixar ser, de deixar-se. Ela é o que é e ponto. Sem falta, sem vazio.
Sem o lamento inglório de não ser o que deveria ter sido. Às favas com os louros ressequidos
dos textos relegados à condição de cópias, que por infortúnio não alcançaram a ascese dos bons
escritos. A escrita quando viva, pulsa e faz correr por caminhos desconhecidos, que se fazem
no próprio ato de caminhar.
Sigo no pressuposto de que há uma qualidade de escrita que se faz enquanto potência através
do próprio ato de escrever: livre, afirmativa, inventiva sem intencionalidade, no sentido de que
ao texto não falta nada. Não lhe cabe atender a nenhum tipo de expectativa, ele simplesmente
é. E que a experiência desta modalidade de escrita mobiliza uma certa qualidade de afetos.
Consideremos a seguinte questão: que tipo de atravessamentos disparam modos tristes de
experimentar o exercício da escrita? A que eles se conectam? Que afetos eles mobilizam? Que
efeitos produzem em nossos textos, em nossos corpos, em nossas relações e em nossas vidas -
potências de existir?
Proponho-me a analisar as questões colocadas acima a partir da perspectiva de que, para
compreender tais processos, é imprescindível ampliar o campo problemático acerca dos afetos
que me atravessam e que produzem determinados efeitos em mim. E para tanto é
imprescindível rastrear as linhas do que me acontece mediante à necessidade de escrever.
Investigar o que se passa em mim, de que forma, em função de quê. Ser sujeito e objeto de
pesquisa ao mesmo tempo.
Escrita-vida. Escrita-respiração. O escrever não está dissonante da vida, do cotidiano. Escrita-
elipse como a procura pelo fio propulsor do traço, da primeira palavra digitada ou escrita. Da
primeira palavra respirada. Rotina-escrita: opostos? Integrados?
Pulsão de escrita-vivência, que faz nascer sentidos e significados de vida, que faz do fim,
começo, e do começo, o fim. Viver sem escrita? Escrita sem viver? Onde encontrar alimento
pro traço preciso das palavras senão na vida-escrita.
*
*
*
Escritavida, vidaescrita. As leio e pergunto onde e como a escrita dá passagem à vida, gera
vida, possibilita. Onde e como a escrita nos atravessa como criação e reinvenção do que somos,
do cotidiano, das possibilidades para os que ainda não chegaram.
158
Uma vez meu avô me deixou uma nota num presente de aniversário. Nela, estava escrito que
ele e vovó me amavam e que deixavam escrito, pois, foi escrevendo que os homens
encontraram a forma para imortalizar o que julgam importante.
Os homens. A importância. Não me lembro do presente. Mas tenho o pequeno cartão onde
escreveu guardado em um livro.
Ao lê-las me vem de súbito essa passagem. E também: os homens, a importância.
Depois da louça. Depois da roupa. Os bichos. Coisas da casa. Coisas de menina. Coisas sem
sentido. Palavras que me despertaram e que agora vão secando junto com os pratos. Escritavida,
vidaescrita. Como fazer da escrita, vida?
Conversa. Penso na escrita como diálogo possibilitado. Como escuta do longe. Desejo ler
mulheres. Das importâncias que não encaixaram.
*
*
*
As escritas são também as pessoas e suas circunstâncias, acontecem antes mesmo de acontecer,
é o processo já de antes, é o corpo que se vai costurando até ser, corpoescrita que se faz no
enquanto e seus ressoares, corpoescrita é o processo que está no infinito entre as palavras.
Quando o corpo está no processo ou melhor ainda, cara companheira, caro companheiro,
quando o processo está no corpo a narrativa produz e cria consistência antes que se possa tornar
ela própria escrita, a confiança de afirmar valores que estão para a Vida. É linguagem de corpo,
é língua pulsando palavra no corpo, corpo pulsando língua na palavra. Corpo e escrita - corpo
e mente indissociáveis, produzindo manejo na diferença e na diferenciação de si.
Se vive se encarna se padece se percebe se ocupa.

Corpoescrita de si corpoescrita de si
Corpoescrita de nós

159
Deixar solto o processo é rigorosamente cuidar
para que ele seja livre. Deixar o processo
acontecer e aparecer, deixar a travação acontecer e
aparecer, deixar o que nos vitaliza e o que nos
constrange aparecerem como forças vivas que
compõem o deixar-se escrever-se. A vida tem
texto.
*
*
*
Eu escrevo porque gosto. A escrita para mim, funciona como um certo mecanismo capaz de
favorecer a acomodação de experiências indigestas da realidade. Experiências fruto da
desacomodação e de afectos que ainda não têm nome, e nos deixam sem lugar, como que de
ressaca. Soma-se a isso o fato de que não sou uma pessoa dada às confidências nem aos
desabafos, logo, a página em branco acaba ganhando pontos extras em uma relação
estabelecida sem muitos concorrentes à altura. Desta forma, com o passar dos anos, fomos
estreitando nossos laços em uma tríade quase perfeita: uma pessoa solitária, a escrita para o
desabafo e os livros por companhia. Fui tomando gosto pelo processo imbricado na experiência
de escrever: a construção das frases, formas de criar sentido, a troca de palavras. Enfim, eu
definitivamente gosto de escrever, mas gosto de escrever quando é assim pra mim. E daí tem
início a maioria dos meus problemas (pelo menos os problemas relacionados à escrita).
Tudo estaria muito bem SE toda essa relação com a escrita se estendesse também às ocasiões
em que eu PRECISO escrever. Entretanto, isso está muito longe de ser o que acontece.
Simplesmente as palavras me fogem, as ideias são como água no deserto do meu ser. Passo
semanas sem abrir o computador. Eu, que escrevia textos sobre minhas questões de pesquisa
muito antes da existência mais remota da possibilidade de haver uma pesquisa. Anos antes. E
escrevia por que? Porque gostava, porque queria, porque me ajudava a pensar, porque aquelas
questões pulsavam em mim.
Me pergunto atualmente por quais caminhos trilhar para fazer doer menos. Para deixar fluir.
Estou tão cansada de sofrer com coisas pequenas.
A vida é tão impermanente.
*
*
*
Em tempos de crise, afirmar a vida toma muitos sentidos. Nesse texto, cada uma de nós assume-
se como uma fiandeira ou tecelã, trazendo nossos próprios fios para compor um tecido textual

160
que se afirma como uma escrita contra-hegemônica, implicada com as diferenças e também
com nossas composições múltiplas. Uma escrita que coloca em evidência modos de produzir
conhecimento que não são dissociados de nossas vidas e de nossas marcas. Em nossos
processos de pesquisa, fomos/somos afetadas por diferentes teorias e práticas, manuseamos
diferentes novelos, que nos exigem rigor na tecitura. Tal rigor não nos impede de pensar e de
escrever com cuidado e com amorosidade. Escrevemos na intensidade, com os sentidos, com
o ouvido, com as mãos, pelas cores, texturas, espessuras, em experimentações e
acontecimentos. Um modo afetivo de escrever. Que tece e destece palavras, entremeia ideias,
multiplica sentidos, de modo que a escrita vai ganhando a forma de um tecido múltiplo e
infinito, no qual, enquanto tecelãs, estamos sempre a nos escrever e nos apagar, nos dissociando
de nós mesmas, nos reinventando em diferentes lugares.
É curioso pensar que, no decorrer dos tempos a atividade de tecer foi bastante relacionada ao
universo feminino, pois para tecer as mulheres unem-se umas às outras para conversar, fiar,
urdir, enfim, tecer diferentes tecidos. Nesse nosso movimento de tecer a escrita, às vezes
realizado de forma solitária, outras coletivamente, mas sempre contando com momentos de
partilha de experiências e histórias de vida, fomos nos tornando aliadas nas nossas produções
textuais, enfiando-nos nas palavras umas das outras. Enfiar-se na escrita é enfiar-se no
múltiplo, tecer novos fios, emaranhar, desmanchar e reinventar os sentidos, é confiar na
transvaloração dos pontos. É que às vezes na construção dos pontos tecidos, um ou outro
caminho desmancha-se, produzindo novas tramas: escrever de novo e de novo; compor e
decompor relações por meio da escrita. Assim, um processo no qual tecer correspondeu à
operacionalização de uma ética do cuidado, pois foi preciso cuidar de si, mas também cuidar
das outras, dos fios tecidos na escrita das outras, cuidamos do nosso encontro, cuidamos do
espírito de nosso tempo, reunimos nossas intensidades, criamos condições de experimentação
e, juntas, tecemos novos possíveis. Resistimos ao aprisionamento e experimentamos tecer
rizomas, inventando múltiplas entradas e saídas e cultivando bons encontros por meio de uma
escrita tecida na diferença.
*
*
*

PROVOCAÇÕES

Acho que falei demais ontem. Sempre tenho essa sensação. Lembro da Piny: “querem-nos
caladas”. Isso dá uma sensação de alívio. É verdade. Sempre quiseram nos silenciar, a nós

161
mulheres. Depois eu lembro dos anos e anos de minha análise pessoal e sei que tem muita
verdade nessa minha íntima sensação. Que seja! Saí da conversa do grupo de Escritas
Feministas ontem cansada e empolgada ao mesmo tempo. Escrevemos um texto incrível,
coletivamente. Umas há alguns dias, outras há algumas horas, outras há apenas dez minutos
do encontro/reunião. Nos autorizamos. Pudemos escrever. Podemos escrever. Tem hora que
acho que esse encontro é “potente demais” pra mim. Que não vou dar conta dessa
intensidade. Mesmo assim eu sigo. E falo. E agora escrevo também. Sugeri que contássemos
causos, que intensificássemos ainda mais os fluxos rizomáticos e potentíssimos dessa escrita-
coletiva-nós-eu-nós-elas-juntas-encontro. Medo da intensidade? Quero mais é que se
exploda! Decidido: cada capítulo da tese será aberto por um causo. E não será fechado
nunca mais! Quero falar da minha avó! (Para ser continuado, conectado, picado, rasgado,
cortado, emendado). Convido-as!!!

Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito. Da
voz outra, faço a minha, as histórias também. [...] estas histórias não
são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em
que, às vezes, se (con)fundem com as minhas. [...] Sim, invento, sem o
menor pudor. [...] Desafio alguém a relatar fielmente algo que
aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se
perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E,
quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento)
entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. [...] continuo no
premeditado ato de traçar uma escrevivência. 55

Costurar: Minha avó costureira, minha mãe também.

Eu tentei compreender a costura da vida, me enrolei, pois a linha


era muito comprida. O que é que eu vou fazer para desenrolar,
para desenrolar?56

A minha avó paterna era costureira. Excelente costureira. De renome. Fazia roupas, almofadas,
capas para travesseiros, toalhas de mesa, vestidos de noiva, saias, saias rodadas para as seis
netas dançarem lambada. Mentira, as saias para lambada eram só para mim e minhas primas,
pois, minhas irmãs eram mais novas, não são dessa época. Guardo algumas roupas que ela fez
pra mim até hoje. Cuidadosa, meticulosa. Uma vez ela fez uma saia pra mim com um tecido

55
EVARISTO, Conceição. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016, p. 7.
56
PERERÊ, Sérgio. Costura da Vida. In: Costura da Vida. Brasil: Napele Produções Artísticas, 2019.

162
de fazer colchão que veio junto a uns retalhos que ela ganhou de alguém. Vaidosa. Usava
muitos brincos, colares, pintava os lábios e os cabelos de vermelho. Puta! “Sua avó pinta o
cabelo de vermeeelho, lá lá lá lá!!” Era essa frase que os meus primos da família materna
gritavam para mim quando queriam me ofender, me provocar. Eu não entendia porque aquilo
poderia ser um xingamento, mas, de fato, ela pintava os cabelos de vermelho. As unhas
também, esqueci. Era uma baixinha invocada, generosa que só, tinha os seios fartos e uma pinta
daquelas tipo anos vinte, no canto esquerdo da boca. Aquelas bem grandes. Uma vez alguém
da família a levou para tirar fotografia para renovar um documento, nem lembro qual, e a pessoa
que a fotografou “corrigiu” a foto tirando sua pinta do rosto. Veja só! Tirar uma pinta do rosto
de alguém é a mesma coisa que tirar sua identidade. Eu tirei uma pinta que tinha no rosto! Aqui
eu colocaria um emoji que tem no meu celular em que uma figura feminina coloca a mão no
rosto dando um sentido de: “Vacilo! Nada a ver!” Bom, eu tirei a pinta do meu rosto e estava
falando da minha avó. Costureira. Ela bebia cachaça também. Todos os dias. Um copinho
pequeno, artesanal, tipo uma cuia. Bebia todos os dias antes do almoço um golinho de cachaça
mineira. Dizia que era bom para a saúde e provavelmente estava certa. Morreu aos 96 anos,
devido a uma infecção generalizada após uma cirurgia para retirada de cálculo na vesícula,
meses de internação, tentativas de fuga do hospital e “arrancamento” da sonda inúmeras vezes.
Acho que ela deprimiu em sua primeira experiência de internação hospitalar na vida. Isso nunca
havia ocorrido antes até os seus 95 anos. Minha mãe é costureira também. Ela cuidou da minha
avó, a ex-sogra, até o findar de sua vida. Minha avó chamava a minha mãe de mãe. Às vezes
chamava de Rosa, mesmo sem ser esse o nome da minha mãe. Minha avó ensinou a minha mãe
costuras que minha mãe considerava difíceis. Ela dizia: sua avó é muito habilidosa, tem coisas
que só ela consegue fazer! Minha mãe costura bolsas, camisas, saias, calças, vestidos, pijamas,
uniformes, almofadas, lençóis, meticulosamente, fria, detalhista, não sossega enquanto sua
costura não ficar perfeita. Eu queria falar da minha avó. A máquina de costura foi um objeto,
um instrumento sempre presente em minha vida. Desde a máquina antiga da minha avó, com
gavetinhas de madeira e pés pretos de ferro, até as semi-industriais da minha mãe, que fazem
um barulho diferente da antiga, não menor, apenas diferente. Esse som, que quase ouço agora
enquanto escrevo essas palavras, “barulhou” toda minha existência e me fez escutar a beleza,
a delicadeza e a potência da costura-transformação do tecido em roupas e dos laços que podem
ser criados entre as mulheres. Esse texto é fruto de uma escrita entre mulheres, que chamamos
de escritas feministas. Somos mulheres que escrevemos, que costuramos nossas histórias,
desde aquela “casa para botão”, difícil de ser feita por ser necessário muita habilidade e
atenção, até o colorido das saias rodadas e da alegria de vermos nossos textos prontos! Estamos
163
juntas, costurando, enlaçando, nos cuidando, como cuidou a minha mãe da minha avó, numa
aposta viva de nos fazermos escritoras a partir dos afetos que nos movem.

Suco verde
Eu perco a noção dos dias. Dias em números ou dias da semana, tanto faz. Olho o calendário e
não tem nada marcado. A conversa de ontem me fez sentir mais sozinha. Esqueço de celebrar
as conquistas diárias. Comecei a fazer suco verde. Consigo cozinhar uma coisa ou outra. A
casa, um pouco mais arrumada. As roupas, limpas. Mas fico triste com a falta de
reconhecimento dele, que também é minha.
Ele disse algo sobre "aproveitar" enquanto ela fica aí “mirando para mim". Mirando para mim.
Me sinto incompetente. Eu realmente fico horas com ela. Todas as horas do meu dia.
Estou cansada. E teria que aproveitar para fazer a tese. Como se fosse simples. Como se fosse
isso.
E eu, não falo. Não falo nada. Não explico. Também duvido. Estou cansada. Cansada de mim.
Observo. Para ele, parece que não mudou. Pega ela quando quer. Sai, faz suas coisas. Com ela,
não deixa de prender la estufa57, ver seus vídeos, martelar. Ela no colo, como só um adendo.
Para mim, não.
Estou em atenção constante. Driblando minutos. Ontem consegui tomar banho enquanto ela
dormia. Coloquei o feijão de molho e comecei o humos. Penso (para ajudar na calma): o único
que preciso é sempre priorizar a comida. Ir fazendo, pouco a pouco, enquanto dá.
Comida. Fico muito chateada de sentir fome. Ele faz. De última hora. Quando dá. Quando le
toca. Eu não sinto segurança que vou ter o que comer no próximo almoço.
Agora, o melhor mesmo seria parar de escrever e começar a picar abóbora.
Agora, ele está trabalhando lá fora com a construção da casa. Trabalho pesado.
Sua mãe pergunta: “e a comida, quem faz?”
Ele se esforça, eu vejo. Mas sempre que pode, foge, sai. Volta depois. Eu fico aqui. Esse é
“meu drama”.
Eu não escrevo, nem falo. Tento esquecer a sensação e aproveitar o carinho dela. “Passa
rápido”, dizem. Que medo que passe. Que bom que passe. Que se transforme. Eu não escrevo.
Tampouco falo. Não falo. Choro. Ela continua dormindo e me pergunto como “aproveito” esse
tempo. Vou dormir o que na madrugada não pude. Ou cortar abóbora. Comemoro. Hoje fiz
suco verde. Escrevi.

57
Acender a lareira.

164
A oradora tardia

Quando a palavra falada nos falta, a escrita pode assumir esse lugar de expressão. Um dia
conheci uma garotinha que tinha lá seus 7 anos. Dessas que a gente sabe que existe, que senta
no canto da sala, escondendo-se dos olhares interrogativos das professoras, mas que tem
sempre a resposta na ponta da língua. A gente não sabe se por medo ou por sorte, ela nunca
respondeu. Sua voz, doce e macia, ficava guardada no peito, enquanto seus ávidos olhos, como
que procurando reconhecimento e permissão nos olhos professorais, brilhavam, sussurrando as
respostas.
Ela estava sempre ali no cantinho da sala, sentada entre seus semelhantes. Por mais que tentava
se esconder dos olhares ameaçadores dos outros, deixava sempre um pé ou o pescoço de fora.
Vocês já viram quando uma roseira escolhe morar no meio de outras flores? Ela vai crescendo,
crescendo, até que suas rosas já não conseguem mais ouvir as melodias dos cravos e das
violetas vizinhas. Foi assim com a garotinha. Ela queria brincar com as estrelas e o seu corpinho
espichou. Cresceu rapidinho. E logo foi para o último lugar da fila. De lá, a garotinha achava
que estava segura, longe dos olhares indagadores da professora. Porém, ela não sabia de uma
coisa, que a sua altura desenvolvida facilitava o encontro, pois naquele plano já não havia outro
ponto de parada e de esconderijo para os olhos seus.
Os dias passaram, os meses findaram, aproximando-se o fim do ano letivo. Naquele tempo,
celebrava-se o primeiro ano dos alunos. Era fundamental, a formatura. E tudo era feito ali, no
pátio da escola e pelas professoras.
E em um encontro, a professora escolheu a oradora da turma dos alunos primevos. A garotinha
havia sido descoberta. Ela teria de abrir seu peito e deixar o timbre escondido de sua voz ressoar
pelo salão, diante de tantos outros olhares. Não poderia mais se deixar misturar entre as linhas
da escrita. Era preciso dizer aquelas palavras.
Esse encontro fez o coração da garotinha acelerar e sua voz emudecer. Ela trancou-se no
silêncio tracejante dos desenhos, a pensar: - E agora, como me esconder daqueles olhares?
Sonhando, a garotinha viu a formatura acontecendo. Naquele dia havia um instrumento que
tinha a força de fazer sua voz fina e adocicada chegar até os ouvidos de todos que estavam no
salão. Disseram que seu nome era microfone, mas para a garotinha tinha nome de pesadelo.
Ela que antes dobrava a palavra falada, estava agora ali, em cima do palco, desenovelando a
sua voz e falando em nome da turma.

165
Mas ela disse não. A garotinha não conseguiu retirar a palavra falada de dentro de seu peito. E
cresceu assim: carregando o peso da palavra não falada e do texto não realizado.
Outro dia encontrei com a garotinha. Ela já estava crescida. E ela me contou que o silêncio
ainda faz eco em seu peito e que suas pernas ainda tremem diante de tantos olhares
desconhecidos. Outro dia fiz uma sustentação oral. E aquela garotinha que outrora não
conseguiu ler o discurso de formatura, foi agora a oradora de sua turma. Dessa vez ela estava
vestida de uma capa preta.

A roupa nova da rainha


Quando eu era criança minha tia costurava. Me lembro bem daquela época e dela naquela
época. Vívida, um sorriso largo, jovem que só, a pele muito morena, pintinhas pelo rosto, tão
magra, cabelos longos cacheados e pretos. Solar. Tia Tininha. Ela parecia respirar amor e
generosidade pelos poros. Hoje sei bem que enquanto isso ela sentia coceiras fortes e
periclitantes pelo corpo, nada curava. Na minha terra chamam de sarna. Nada era tão no lugar
assim. Ela trançava meus cabelos e fazia roupas coloridas, saias com roda, saias plissadas,
mangas bufantes. Cada roupa me fazia sentir como uma criança encantada diante das coisas
que via sem compreender. Por que afinal, nada era tão no lugar assim. Aprendi a ter gosto pelo
o que escolhe cada corpo, depois aprendi que não tem feio, tem composição, tem cuidado ou
não nos pontos, tem o olhar para as cores. Aprendi a me virar nos pontos, a dar novos sentidos
para uma peça, remendar uma meia furada, aprendi a desfiar uma calça até fazê-la outra,
aprendi o charme da meia-calça arrastão. Aprendi um gosto, meio que assim, color blocking.
Do cuidado na costura dos tecidos aprendi o cuidado na urdidura dos fios de histórias, o
interesse pela cor dos tecidos vivos, a delicadeza em forjar armaduras e encantamentos.
Tecedura – ato de delicadeza fina da artesã que cria para não afogar na dor. A alegria que um
corpo é capaz de afirmar apesar do desamparo.

Sobre encontros
(de nós para todas as outras)

Quando um corpo encontra outro corpo, uma


ideia outra ideia, tanto acontece que as duas relações se
compõem para formar um todo mais potente, e ao

166
contrário, quando um decompõe o outro destrói a
coesão das suas partes58.

Senti o desejo de escrever sobre encontros. Sobre os nossos bons


encontros. Sobre os afetos alegres em que mergulho quando
estamos juntas e que aumentam minha potência de agir. Surgem
ideias, sentidos, inspirações, caminhos, desejos. Efeitos de
composição, ao invés da decomposição que sinto diante de algumas
tarefas, obrigações e prazos da academia. Composição coletiva,
que me desloca do “eu” para o “nós”. Leio vocês, escuto vocês e
me afeto com vocês. Permito que meu corpo seja atravessado pelas
narrativas e causos de vocês, pelas dores, sofrimentos,
angústias, e também pelas alegrias, pelas pequenas conquistas e
pelos prazeres cotidianos. Sinto que assim nos implicamos
mutuamente. Nos misturamos. Nos acolhemos. Nos conhecemos.
Sinto-me brincante. Nos sentimos umas nas outras. Compartilhamos
palavras: nossas e de outras. Compartilhamos nossas vozes. E a
cada palavra lida, a cada voz que ouço contando um causo, sinto
que nossos olhos d’água59 se encontram, como se estivéssemos
frente a frente, mesmo estando cada uma em sua casa, em seu
bairro, em sua cidade, e mesmo em estados e países diferentes.
As telas e os áudios de nossos aparelhos celulares parecem se
dissolver e não impedem que toda a porosidade dos nossos corpos
se abra e se deixe afetar. Nos autorizamos a sentir e a chorar
por questões que são de uma, mas que também são de todas nós.
Nos conectamos e experimentamos a partilha no encontro de nossos
olhos d’água. Somos múltiplas. Somos juntas.

Referências bibliográficas

58
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 25.
59
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

167
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

_________________. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

_________________. Becos da memória. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. 1º ed. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2019.

LIMA, Juliana Pereira Dias. Governos de Vida e Morte: Uma análise das práticas de cuidado
à população em situação de rua no município de Macaé/RJ. (Título provisório). Dissertação
em construção. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense, Niterói/RJ, 2018 - atual.

MARTINS, Paula Gontijo. Entre cafezinhos e biscoitos maria, cartografando modos de ser
mulher no Bailinho da tia Naná (Título provisório). Tese em construção. Programa de Pós-
Graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais. 2017 - atual.

OLIVEIRA, Luciana. Entre psicologia(s) e feminismo(s): tecendo o cuidado junto às mulheres


em situação de violência. (Título provisório). Tese em construção. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, 2016 - atual.

SILVA, Fernanda Rocha da. A criação de heterotopias literárias por meio das escrevivências.
Gaguejando nos Estudos Organizacionais (Título Provisório). Dissertação em construção.
Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais. 2019
- atual.

TAMIS, Priscila. O Belo Surto - experiências finitas de um corpoescrita. (Título provisório).


Tese em construção. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense, Niterói/RJ, 2016 - atual.

VIEIRA, Kelly Dias. O que fazem as(os) esquizoanalistas? Uma cartografia sobre a formação
e prática de psicólogas(os) que se inspiram na Esquizoanálise. (Título provisório). Tese em
construção. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, 2017 - atual.

Links

168
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro
mundo. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 8, n.1, p. 229-236, 1º semestre/2000.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em
06/10/2020.

OLIVEIRA, Luis Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição


Evaristo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 2. p.621-623, maio/agosto, 2009.
Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2009000200019&script=sci_arttext
Acesso em 23/05/2020.

ORCHIDACEAE, Piny. Manifesto Feminista. Disponível em:


https://www.instagram.com/tv/CAf-sJVFyWk/?igshid=2o5t5ypj89bk. Acesso em
06/10/2020.

Discografia
PERERÊ, Sérgio. Costura da Vida. In: Costura da Vida. Brasil: Napele Produções Artísticas,
2019.

169

Você também pode gostar