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Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.

4, No 1/ 2010

Resenha

FERGUSON, Niall. A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo. Tradução Cordelia


Magalhães. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009. Publicado originalmente em 2008 pela
Penguin Press.

Francisco de Assis Campos da Silva


Universidade de Brasília

Sobre bolhas e crises o desemprego continuou alto e surgiu no


horizonte a possibilidade de deflação. Nesse
A partir do verão do hemisfério norte de 2007
contexto, o governo dos Estados Unidos tem
– as crises parecem sempre acontecer no verão
considerado medidas de contenção fiscal, e a
-, as pujantes economias desenvolvidas, até
autoridade monetária adotou a chamada
aqui um exemplo de solidez econômico-
quantitative easing, com reflexos esperados em
financeira para o mundo emergente e em
todo o mundo.
desenvolvimento, forjadoras e principais
beneficiárias do processo de globalização dos A Europa também sofreu os efeitos da crise
mercados mundiais, principalmente em sua iniciada nos Estados Unidos e, como
vertente financeira, viveram com antecipação subproduto, experimentou um forte abalo
indesejada um sobressaltado outono e, na financeiro e quase institucional. Tenta agora
sequência, um inverno cuja rigidez somente equacionar o problema da dívida soberana em
agora, ainda que timidamente, parece querer sua periferia. A economia do Japão ainda
dispersar-se. O ano seguinte foi principalmente encontra-se estagnada.
amargo, com acontecimentos que não se
julgava pudessem ocorrer no centro financeiro A Ascensão do Dinheiro, de Niall Ferguson,
do mundo, uma consequente desconfiança com veio a lume nos Estados Unidos em meados de
relação a Wall Street e um extremo novembro de 2008 (no Brasil o livro seria
desconforto nos escaninhos governamentais e publicado em 2009). Não se trata propriamente
burocráticos em Washington. Se alguns foram de um livro sobre a crise financeira atual, mas
deixados à sua própria sorte, muitos foram vai de qualquer forma desembocar na “grande
socorridos com o dinheiro do contribuinte na crise” de 2008 na medida em que é uma obra
indústria financeira e mesmo na indústria sobre as crises do capitalismo, a sua etiologia,
produtora de bens. De novo aqui a socialização desenvolvimento e desfecho.
das perdas.
Em grandes linhas, A Ascensão do Dinheiro
Depois de um pacote de estímulos de cerca de descreve a globalização das finanças, trajetória
US$ 800 bilhões, a economia americana deu sempre tortuosa e, mais do que isso, cheio de
sinais de recuperação, mas no segundo picos e vales. Faz isso pela apresentação e
semestre de 2010 a já lenta retomada estancou, análise de suas etapas, num processo - que

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preferimos denominar incremental, mas que contemporizamos (suffice) porque não temos,
Ferguson acredita ser evolutivo - que vai desde nem de longe, a capacidade de maximizar.
as tabuletas de barro da Mesopotâmia, espécie
de nota promissória corrente na Antiguidade, Com a crescente matematização dos modelos
passando pelas instituições modernas e de decisão, facilitada pelo avanço da
contemporâneas criadas para facilitar e automação, o mundo das finanças foi ficando
promover a intermediação financeira, a cada vez mais afastado das lições da história
sequência do surgimento dos produtos (ponto que será comentado na sequência). Mas
financeiros no tempo, dos produtos financeiros os modelos, com séries temporais restritas no
para a proteção de outros produtos financeiros tempo dificilmente capturam crises mais
e do próprio dinheiro como mercadoria, remotas e o limitado ciclo da vida profissional
reproduzindo-se fora da produção das pessoas, sempre breve no mundo das
propriamente dita. Não deixa de abordar o finanças, faz com que os profissionais nunca
papel central de grandes atores estatais – se lembrem da última crise ocorrida. Assim,
Europa, Estados Unidos e China. recorda Ferguson, os profissionais que
experimentaram a atual crise, com algumas
Ferguson quer também e, principalmente, exceções, por terem começado suas carreiras
mostrar que as “bolhas sempre estouram” e no início da década de 1980, não puderam se
que a euforia, cedo ou tarde, se transforma em recordar das agruras da década anterior. Daí a
medo, com suas consequências nefastas. Isso importância do conhecimento histórico.
acontece com tal previsibilidade que é possível
construir uma tipologia de seu surgimento e Como mencionado acima, interessante aspecto
fim: da ilusão de grandes lucros para uma de A Ascensão do Dinheiro é a descrição do
incontida euforia, da euforia para uma continuado surgimento dos instrumentos
verdadeira mania – todos querem se juntar ao financeiros no tempo, indo desde as eras mais
rebanho e considera-se pouco astuto quem não remotas, passando pelo Renascimento até o
o faz. Então, para finalizar, vão-se os insiders, seu apogeu e grande diversificação no final do
acotovelam-se os desavisados, vem a aflição e século XX e no início do século XXI. No
tudo se esvai. Cessa a bolha, vem a Posfácio da obra, Ferguson apresenta a história
desconfiança e o descrédito, até a próxima financeira do mundo que acaba de descrever
bolha. Tudo a custo de muito sofrimento como um caso típico de evolução, com
humano. acentuada semelhança com a história do
ambiente natural. A analogia biológica seria
Segundo Ferguson, um elemento central dessa evidenciada pela existência de acentuada
instabilidade pode ser encontrado na assim evolução e mutação dos instrumentos
chamada “natureza humana”, em uma financeiros ao longo dos anos, pela
psicologia que incentiva um apetite para o experimentação com novos instrumentos e,
lucro, apetite esse que, de tempos em tempos, também, pelo aparecimento de novas
é colocado em cheque. Não somos “espécies” financeiras. Sob esse ponto de
definitivamente o ator racional que preconiza a vista, a ajuda a uma instituição debilitada
economia neoclássica, que maximiza deteria o passo da evolução.
(maximize) as suas escolhas a partir do
ordenamento de uma vasta gama de O Capitulo 6, que descreve a crise atual, é o
informações disponíveis. No máximo, como ponto alto da obra. Como a crise tem origem
nos sugere Herbert Simon– no máximo no setor imobiliário dos EUA, Ferguson
investiga o surgimento da ideia de que “todo
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mundo deve comprar uma casa”. Segundo ele, Ferguson confere importância à “memória” e,
até a década de 1930 não era comum a posse por essa via, às lições da história. Embora a
de propriedades pelas pessoas comuns no discussão da memória possa ter as suas
mundo de fala inglesa – o corriqueiro era o variantes, e há os que acreditam, por exemplo,
pagamento de aluguéis. A partir da Grande que é o esquecimento que estrutura as nações,
Depressão houve uma acentuada queda no a memória a que Ferguson parece se referir é,
preço das propriedades e determinadas segundo entendemos, mais instrumental. São,
medidas adotadas no contexto do New Deal de fato, “casos exemplares” e discretos.
incentivaram a aquisição de residências. Isso
tinha também um objetivo político de Nesse contexto mais amplo, há também uma
apaziguamento das massas trabalhadoras: clara alusão à necessidade de “alfabetização”
esperava-se, e funcionou segundo Ferguson, financeira das pessoas. Se não bastasse sermos
que um proprietário não se encantasse com instáveis e inconstantes, e como a curta vida
ideologias de esquerda. Com a acentuação do não nos concede experimentar todos os
modelo e a liberalização impensada do eventos, somente a educação pode nos
mercado sobreveio a crise das chamadas auxiliar. De certa forma, um objetivo implícito
Savings & Loans (1986-89), ruindo o de Ferguson é popularizar as histórias que
arcabouço concebido pelo New Deal. analisa, é fazer com que elas passem a fazer
parte das avaliações financeiras das pessoas,
Durante o governo de George W. Bush o de sua memória individual.
incentivo à compra de residências foi
ampliado, pelas mesmas razões que Há em todo o livro pelo menos quinze
determinaram as políticas anteriores. Como já referências à “memória”, às lições da história.
estamos na era dos derivativos, e tudo o que se Ao chamar a atenção repetidamente para a
mexe sobre a terra pode e deve ser “memória”, ou mais precisamente para a sua
transformado em um instrumento financeiro, escassez, para a pouca duração das carreiras
foram securitizados os fluxos de pagamentos frente ao ciclo das crises, por exemplo, ou
das hipotecas imobiliárias. Isto é, com base no mesmo para a falta de conhecimento de fatos
fluxo de pagamentos das hipotecas, que históricos longínquos e mesmo
serviam de colateral, foram emitidos títulos, contemporâneos, Ferguson atesta a sua
denominados mortgage-backed securities divergência com relação aos ditames de
(títulos referentes à emissão de dívida, racionalidade da economia neoclássica.
garantidos pelo fluxo de pagamento de
As bolhas e sua destruição, como verdadeiros
hipotecas) que foram então vendidos a
momentos fronteiriços, constituem momentos
investidores em todo o mundo. Tudo
privilegiados de aprendizagem, ainda que
funcionou bem até que o default no crédito das
pouco aproveitados nesse sentido, e de criação
hipotecas, concedido a tomadores sem
– pois há os que os aproveitam para dar o
histórico de crédito e sem condições
próximo passo, para ganhar mais dinheiro
financeiras de honrá-lo, fez ruir todo o
ainda. Sempre vamos achar que uma situação
edifício.
presente difere da anterior, que o próximo
Memória e lições da história: picos e vales negócio será lucrativo. Até mesmo o
experiente Greenspan acreditou, como
argumenta Ferguson, que a exuberância dos

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ativos ponto.com correspondia a um novo clássico da quebra de um princípio central de


círculo virtuoso da economia. controles internos e gerenciamento de riscos: a
“preservação da segregação de funções”. Isso
Embora grande parte das memórias referidas quer dizer, por exemplo, que uma única pessoa
seja de casos de insucesso, e nesse caso a não pode dominar todas as fases de um
Grande Depressão dos anos 1930 é sempre processo: quem determina o nível de crédito
citada como um caminho que deve ser evitado não concede o crédito, e quem concede o
a todo custo, há também memórias de alegria crédito não o libera, e quem o libera não o
(Capítulo 3). Tal acontecimento é a criação e controla.
desenvolvimento da Companhia das Índias
Ocidentais Holandesas (COV), a primeira Com relação aos casos exemplares mais
companhia de ações estabelecida no mundo, recentes, e já em um mundo de relativa
em que já está presente a prática de sofisticação financeira, Ferguson relata
“governança corporativa” (os cotistas foram (Capítulo 5) a ascensão e quebra das chamadas
conseguindo pouco a pouco um total controle Savings & Loans (S&L), nos Estados Unidos.
dos negócios da empresa, ainda hoje uma luta Segundo ele, a quebra do sistema foi “um dos
travada por acionistas minoritários de grandes maiores escândalos financeiros da história [dos
empresas em todo o mundo). A COV é Estados Unidos], um golpe que ridicularizou
também um exemplo de como as bolhas toda a ideia da propriedade como um
podem ser evitadas. investimento seguro” e, pode-se acrescentar,
um vestíbulo aos problemas que viriam a
Isso, entretanto, não aconteceu na França dos redundar na crise dos empréstimos
Bourbons, na sequência da Guerra da Sucessão hipotecários ditos subprime. Nesse caso, a
Espanhola. Sob a condução de John Law, um origem de todos os males foi uma
escocês renegado em seu país, os investidores desregulamentação atabalhoada, mal urdida e
franceses embarcaram (muitos literalmente) mal implementada: dura lição para o
em uma espiral especulativa em torno de ações contribuinte norte-americano (US$ 124
de uma companhia criada para a colonização bilhões).
da região do Mississipi, então uma possessão
francesa. Law controlava todas as fases do Para concluir a questão da memória e do
processo e, assim, usava a sua influência aprendizado com a história, Ferguson
inclusive para mudar normas e regulamentos argumenta que há também lições mais gerais a
ao sabor de sua conveniência. O dique serem consideradas. Em primeiro lugar,
estourou, e passariam anos até que os quando uma crise atinge investidores
investidores franceses recuperassem a sua inexperientes, “ela causa muito mais rupturas
confiança nas finanças (aqui um caso de do que quando atinge investidores
memória!). A devastação da economia que se experimentados e marcados pelas cicatrizes
seguiu à crise é vista como uma das das suas lutas”. E isso dificilmente acontece de
consequências da Revolução Francesa. Por outra forma: os investidores menos experientes
outro lado, a perda da confiança nas finanças entram na euforia da bolha exatamente quando
significou um maior atrelamento da esta está se transformando em mania e os
imaginação popular ao padrão ouro e um experts já estão deixando o barco. Outra lição
atraso considerável da financeirização da relevante é que a primeira era de globalização,
economia francesa em comparação com a localizada nas décadas imediatamente
Inglaterra. Ferguson não menciona no livro, anteriores a 1914, foi destruída em poucos dias
mas o fracasso de John Law é um exemplo com o advento da I Guerra Mundial. Seriam
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necessárias mais de duas gerações para que o entretanto, não agradar ao especialista. Isso
estrago fosse reparado (a nova e atual fase de porque, a obra peca pela simplificação em
globalização só teria início a partir de meados momentos cruciais: não fica claro, por
da década de 1970). Uma terceira lição de exemplo, como se dá a securitização de fluxos
relevo, e ao mesmo tempo perturbadora, é que de pagamentos (vital para o entendimento da
quanto maior o período sem um conflito crise hipotecária norte-americana).
importante entre países, mais difícil é conceber
a sua ocorrência, e, dessa forma, mais fácil Em A Ascenção do Dinheiro, embora
concorrer para a sua eclosão. Nesse ponto, Ferguson não tome partido na discussão sobre
ainda que o alerta se dirija ao presente, se a moeda é simplesmente um “véu que
Ferguson parece remontar à longa paz que se recobre a economia” - portanto, um fator
situa entre o Congresso de Viena e a eclosão exógeno - ou um “fato social” - imbricado ou
da I Guerra Mundial. Para Ferguson, “[n] ada imerso no social -, seu descrédito com relação
ilustra mais claramente a dificuldade dos ao ator racional da economia neoclássica e a
serem humanos de aprender com a história do sua descrição da evolução dos instrumentos
que a história repetitiva (nosso grifo) das financeiros no contexto de projetos humanos -
bolhas das bolsas de valores”. de ganância, de poder, de proteção ou
simplesmente de loucura ou fraude - já deixa
De resto, Ferguson apresenta muitas entrever uma determinada visão sobre o
“anedotas”, pequenas histórias introdutórias ou dinheiro e a moeda.
exemplificativas, bem gosto da escritura do
mundo de língua inglesa, algumas até Fica então o chamamento de Ferguson no
inteiramente expletivas. Em certos momentos, tocante à valorização da memória e das lições
há um excessivo uso de jogos de palavras com da história, e mesmo sobre a necessidade da
o propósito de divertir ou acordar o leitor – o construção de um conhecimento sobre o
livro é longo e o tema pode ser árduo para mundo das finanças, tamanha a sua imbricação
alguns. no ambiente social. E alguns alertas: as bolhas
sempre explodem, a euforia se transforma
O Capítulo 6, sobre a globalização financeira, facilmente em decepção e desconfiança, e o
contém muitos temas e decepciona por não mais pachorrento dos mundos não deve
ampliar a noção de Chimérica (China + significar que ele permanecerá
América) e mesmo pela abordagem cifrada do indefinidamente assim. Lembrando Hume, não
relacionamento entre China e Estados Unidos. há garantias de que o sol nascerá amanhã.
Há, por outro lado, um mosaico de temas no
Posfácio e, entre eles, a analogia biológica ou
evolucionista parece ser mais uma curiosidade
do que mesmo uma correlação que pudesse
tornar mais compreensível o desenvolvimento
das finanças domésticas e internacionais.

O livro tem um claro propósito educativo e


cumpre bem esse papel – certamente tem
contribuído para incutir um insight financeiro
em muito de seus leitores. Ele poderá,

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